The Project Gutenberg EBook of Da Loucura e das Manias em Portugal, by 
Júlio César Machado

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Title: Da Loucura e das Manias em Portugal

Author: Júlio César Machado

Release Date: November 11, 2010 [EBook #34275]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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DA

LOUCURA EM PORTUGAL

 

 

 

 


Lallement frères, Typ. Lisboa, 1871

 

 

 

 

DA LOUCURA

E DAS

MANIAS EM PORTUGAL

ESTUDOS HUMORISTICOS

POR

JULIO CESAR MACHADO

 

 


 

 

LISBOA
LIVRARIA DE A. M. PEREIRA—Editor
50—Rua Augusta—51
1871

 

 

 

 {5}

RILHAFOLES


I

Os doidos

Tudo é alegre, á entrada: flores e arvores. D'ali a nada,—da porta para dentro parece já que passou o outomno por cima da primavera d'aquelle jardim!... Apagam-se as côres, escurece o céo, ouve-se estalar a casca das arvores... Principiam as physionomias a transtornar-se; já os olhos não são outra cousa{6} senão buracos luzidios; cavam-se as faces, parecem caretas os sorrisos, não teem os gestos significação, as feições são vagas, a fórma tem contornos indecisos; tudo são personalidades phantasticas, existencias ficticias; linguagem que não se entende; gente estranha, que dá idéa dos habitantes da lua!...

Alguns dançam, e cantam; e passa a tristeza n'aquella alegria, e transpõem-se effeitos de claro escuro na musica e na voz delles, envolvendo-lhes a idéa como n'um crepusculo!... Parece que se estão avistando ali as visões de Swedenborg, aquelles espiritos do ar que conversavam uns com os outros e que se entendiam pelo piscar dos{7} olhos... Como essas taes conversas no fundo das nuvens, assim é desusado e insolito quanto por lá se ouve!

Ás vezes chega a parecer-nos que é natural tudo aquillo; que o ser como nós somos e portar-se como nos portamos—é ser affectado, é ser pedante; que assim como na natureza tanto ha sensitivas como ha cevada e centeio, assim deve haver nas creaturas sentimentos complexos que a linguagem vulgar não poderia dar; que são elles quem tem juizo; melhor do que juizo, talento: a finura, o guindado, a quinta essencia do espirito; que em nós ha simplesmente mudança de convenções; que elles estão mais perto do{8} estado natural; que tudo vae da maneira de ver as cousas e de as julgar; da opinião dos homens e do genio e moda dos tempos; que tambem o amor já foi outro quando inspirava as filhas dos patriarchas a dar de beber aos pastores; e depois, na Illiada, quando levava Helena ao leito nupcial de Páris; na Grecia, creança a quem ensinavam gracinhas anacreonticas; ébrio, nas orgias de Roma; na idade media, fada, estrella, anjo; mais tarde tendo azas como os desejos; e sendo hoje um casamento commercial, um dote de noiva, cem contos de réis em inscripções!...

Assim chega a pensar-se ali, que a vida, que é um entrudo, tambem{9} varíe de mascaras, de modas, de elegancia e de fallas; e que o estylo dos pobresinhos doidos, comquanto diverso do dos tempos em que vamos de tanto tino e conceito, seja talvez mais subtil, mais colorido, e mais exacto!...

Ha ali, hoje, quinhentos e onze d'esses infelizes; duzentas e cincoenta e sete mulheres, duzentos e cincoenta e quatro homens; tres creanças idiotas. Quando o marechal Saldanha fundou este hospital em 1850 o numero dos alienados era de trezentos; ultimamente tem crescido por fórma que foi preciso augmental-o, acrescentar um pavimento, e annexar o edificio de recolhidas na travessa de S. Bernardino, onde vão{10} pernoitar cem dos tranquillos e invalidos. Ha pensionistas e indigentes. Os pensionistas dividem-se em quatro classes: e pagam, conforme as commodidades e o numero de enfermeiros que requerem, 800 réis, 480 réis, ou 240 réis por dia, tendo os seus quartos em repartição separada; os da 1.ª, 2.ª e 3.ª no mesmo pavimento; os da 4.ª em sala commum.

Os doentes entram ali por ordem da auctoridade publica, ou a requerimento de particular,—com attestado do medico, auto de investigação, e, se são pobres, certidão do parocho,—e ficam quinze dias em observação; findos elles, ou a doença não se verifica e são immediatamente{11} despedidos, ou, verificada a alienação, colloca-se o doente na repartição que o director lhe destina, e segue o tratamento.

O tratamento! Isto é,—o estudo, a observação constante, as experiencias, mil tentativas, o diligenciar permanente de chamar á razão e ao sentimento das cousas aquellas pobres cabeças cançadas de sonhos, de lutas, de prazer ás vezes, de amarguras, de esperanças, de enganos!... Vêl-os como medico, como philosopho, e como moralista,—unica maneira de poder assenhorear-se-lhe dos segredos. São doidos; mas de onde provém cada uma d'aquellas loucuras,—a de um, que nunca perde a pista do caracter{12} que tem, e em tudo que diz e no que faz vae de accordo sempre com a sua mania; a do outro que não póde juntar idéas; a d'aquelle, que conserva a lembrança do que fez durante os accessos, e pede depois desculpa brandamente, humildemente; a d'este, que perdeu de todo a memoria; a d'aquell'outro, que a conserva de tudo, excepto de logares, ou de datas!?

Ah! É preciso vêl-os, por aquelles corredores interminaveis e singularmente alegres, em que a luz entra por todos os lados, e a cada passo por alguma janella se avistam campos e se descobre a cidade; é preciso vêl-os nos vae-vens de uma carreira e de uma fallacia,{13} que não cança nunca, para um lado, para o outro, d'aqui, d'além, accionando, gritando, fallando—este a si mesmo, aquelle a ninguem, um á parede, outro ao céo!... Reis, sabios, escriptores, millionarios, todas as ambições, todos os orgulhos, todas as preoccupações, todas as vaidades. Lá vi um poeta; mostrou-me os seus ultimos versos, que se intitulam:

«Elogio
á ex.ma sr.a D. L. de S. F.
no dia natalicio de seu nascimento
dividido em tres partes.
Passado, presente e futuro.»

 

Um jornalista deu-me o programma do seu jornal novo:{14}

«Grande globo
do
Grande enredo

 

Jornal das mentiras purificadas
e saidas do funil
estampadas calligraphicamente em
papel, respeitando
as dignissimas auctoridades.»

 

Alguns têem grande habilidade, habilidade util e séria, são pintores, trabalham nas officinas, e fazem os differentes serviços do hospital, dos banhos, e da quinta. Á entrada, entre o gabinete do director e a secretaria, está logo a primeira aptidão aproveitada,—o continuo, que é um doido! Leva papeis, traz papeis,{15} dá recados; está ali a toda a hora, desempenha perfeitamente, e não ganha nada.—Que lição... a continuos!...

Por isso, quando se chega ali e a gente o vê, aquelle curioso porteiro, homem forte e sizudo, com o seu fatinho de briche,—todo grave, cortez, benevolo—não deixa de vir á idéa que, se lhe der na vineta, elle póde abrir a porta para se entrar... e não a querer abrir depois para se sair; e vae uma pessoa lembrando-se mesmo sem querer do caso do carvoeiro... O carvoeiro tinha lá ido para tratar de negocio, e foi entrando por ali dentro até o apanhar um guarda que o tomou por hospede novo, a{16} quem se devia dar um banho, como é costume quando para ali entram.

—Vamos ao banho, vamos! dizia o guarda.

—Qual banho?! retorquia o carvoeiro pasmado.

—É muito bom. Para se ficar limpinho. Vá, vá!

Num quero, dizia o carvoeiro. Leba de xalaxas! Nunca tomei banhos na minha bida! Arreda para lá!

—É uma ceremonia, replicava o guarda; só uma ceremonia. É optimo para a saude, e de grande aceio.

O carvoeiro, como viu que instavam tanto, consentiu por fim em tomar o seu banhosito n'uma d'aquellas{17} magnificas tinas de marmore, admirado ao mesmo tempo de tantas attenções que tinham com elle n'este estabelecimento do estado.

Vestiu-se depois outra vez, muito fresco, e quiz sair. Mas, sair querem elles todos e não se ouve por lá outra cousa.

—Ámanhã, disse-lhe o guarda.

—Ámanhã!?! redarguiu o homem.

—Sim proseguiu o guarda! habituado áquellas exigencias e provido sempre de paciencia e de fallas dôces para se entender com os enfermos. Ámanhã, quando o sr. director passar a visita, provavelmente dá-lhe alta, e vae vocemecê passear.{18}

Paxar a bixita! uivou o carvoeiro. Eu n'um estou doido, démo!

E ahi se zangava, e ahi gritava, e quanto mais se agitava mais o tomavam pelo... que não era,—até que chegou o fiscal que esclareceu o caso e o mandou para a rua, mudado tambem—como aquelles seus compatriotas do poço, de quem já de uma vez contei a historia,—porque tambem tinha... lavado a cara!

A casa é triste; não poderia deixar de sêl-o, porque a imaginação vê sempre em Rilhafolles o lasciate ogni speranza, um beco sem saida, o mais fatal dos carceres, e cuida sempre ouvir os gritos dos furiosos e o chicote dos enfermeiros... Entretanto{19} ella é o menos triste que uma casa d'essas póde ser, pelas condições especiaes em que está collocada, o ar e a luz, e tambem pela dedicação notavel do director o sr. Guilherme Abranches, e pela escrupulosa diligencia dos empregados. É preciso ver com que methodo, com que bondade affavel, com que resignado carinho são ali tratados aquelles infelizes; conhecem-o quasi todos elles, dizem-o, disseram-m'o a mim uns poucos.

E todavia que balburdia, que capharnaum! Em todo o comprimento de um corredor gira impaciente um ambicioso que quer ser deputado, que se propõe em todas as legislaturas, e anda constantemente{20} a ensaiar discursos.—Um, que nos diz que é coronel, e d'ali a nada que é marechal, e um instante depois que é elle o proprio marechal Saldanha, conta-nos os seus feitos d'armas da vespera e do dia.—Um piloto da barra, que entrou esta semana, mergulha nas lembranças do mar e cae n'uma melancolia profunda.—Um, que foi porteiro do sr. barão de Santos, conta como foi que endoideceu, e é a verdade: indo a Loures enterrar junto de uma arvore duzentos mil réis de economias, e achando-se depois roubado.—Um moço, filho de gente pobre, entretem-se em cobrir cartões do chamado jogo da gloria, e manda ao pae o dinheiro que ganha{21} n'isso. Um mathematico, bom latinista, que tem o curso do seminario de Santarem, enche o quarto de papelada e a papelada de calculos:—«Diga-me, pergunta-lhe o director, o senhor já prégava lá no seminario?»—«Pois está visto, responde elle; como prégo aqui; a mesma coisa.»—Um, alegre e risonho, philosopho sem o cuidar, coração que ainda não saiu da infancia, nascido para ser alvo de qualquer ajuntamento, mostra-nos por uma janella os campos, os cabeços virentes, os seus palacios, e algum particular gracioso e ainda não observado d'aquelles sitios que todos lhe pertencem.—Outro vae-se comsigo só pousar a um canto.—O famoso{22} Bertholo do Cadaval, que uma noite com uma faca na mão poz em susto a villa inteira, conserva-se de collete de forças, pallido e sinistro, com vontade sempre de matar alguem.

E riem-se uns dos outros; e uns dos outros me dizem ao ouvido de passagem, quando me vêem tomar apontamentos:

—Não faça caso, não escreva o que elles dizem; são doidos!...{23}

II

As doidas

N'um comprido corredor com quartos de um lado e outro encontram-se primeiro as que ainda têem alguem n'este mundo; as que não estão abandonadas de todo pela sorte á hediondez da sua desgraça, e a quem a familia, ou algum parente, paga o quarto em que vivem. Essas são as felizes; ainda têem lá{24} de vez em quando quem as visite, quem lhes leve algum presentinho, quem lhes dê um dinheirito qualquer para apetites—comprar marmelada quasi sempre. São as felizes, essas; são as fidalgas,—as fidalgas de Rilhafolles!...

Passam n'aquelle corredor enorme—que o espectaculo monstruoso d'ellas torna maior ainda, correndo; umas gritando, apostrophando, outras fallando ás enfermeiras, outras encolhendo-se de receio ao vel-as, entrando nos quartos, saindo, entrando, dirigindo a palavra ás visitas ou passando-lhes ao lado orgulhosamente, desdenhosamente.

Esta, olha para nós com serenidade e indifferença, e parece dizer{25} com a vista que tudo é sempre o mesmo n'este mundo e que não ha ver n'elle nada de novo—grito melancholico, que tem atravessado as edades; idéa triste e fria.

Aquella, que viveu de um sonho e encadeiou todos os seus desejos a uma chimera,—coração ardente, alma profunda e vasta para quem o amor foi tudo,—odeia os homens, indigna-se, enfurece-se em os vendo, e mergulha nas sombras escuras da loucura, nos abysmos tenebrosos da sua idéa fixa, como se procurasse de cada vez segredos novos que a tornem senhora das forças ignoradas da natureza e lhe dêem voz e mando no mundo dos espiritos.{26}

Essa, d'ali, conta uma historia. Uma historinha galante. Gostou de alguem. É moça e bonita; o alguem era bonito e moço. Até aqui tudo é risonho, e ella sorri. Depois, veem as nuvens; quizeram affastal-a d'elle, para a levar a outro; o outro era um senhor: o alguem não tinha outra riqueza senão ella gostar d'elle; o outro era poderoso, o alguem era ninguem; casaram-a com o outro. E o resto? O resto não quer ella dizel-o; e é como se o haja deitado ao mar n'uma d'aquellas caixinhas,—tão fechadas que ninguem as podia abrir,—que os pescadores das Mil e uma noites achavam ás vezes e de que sahia fumo escuro pelas fendas!{27}

A d'além, n'aquelle quarto, estirada sobre um colxão: levantando-se, deitando-se, vindo á porta, estorcendo-se, caindo prostrada: reerguendo-se mais sonhadora, mais desejosa da felicidade e da vida, pensando no amor, sempre no amor e nas venturas ineffaveis: rasgando-se, compondo-se, suspirando, anceiando, é uma mulata; tem duzentos contos de réis de fortuna. N'um dos seus quartos ha um piano, onde vi outras tocando, em quanto ella arredada de tudo e de todos estava entregue apenas á sua inquieta phantasia. É uma mulher esbelta, opulenta de fórmas, lembrando as feiticeiras do Oriente; uma d'essas organisações colossaes{28} como as que a terra produzia quando era nova e que absorviam em si umas poucas de existencias!...

As enfermeiras tratam de a tranquillisar, quando observam que com o ver visitas principie a agitar-se; encostam mais a porta do quarto: e continuam caminhando gravemente, com o seu ar impenetravel; impenetravel ao ponto de se estar sempre em duvida ao ver o olhar vago d'ellas se tambem serão...—se as doentes tambem serão enfermeiras?

Vão andando de chave na mão, e apresentam ao director uma ou outra doente que precise ser examinada. Em geral teem ar de boas creaturas essas empregadas, e corrigem{29} um pouco pela sua presença a impressão penosa que se experimenta ao atravessar aquelle triste captiveiro.

As doidas cercam-as, pucham por ellas, pedem-lhes para alcançar do director ordem de saida: que já é tempo, que é de mais, que não podem já...

—Ámanhã! respondem ellas sempre. Ámanhã.

E as pobres doidas ficam-se sorrindo áquella palavra:—Ámanhã!

Uma, aqui, sem fazer caso do delirio que vae em roda d'ella não faz senão costurar; coser, coser, coser; e gritam, e pulam, e dançam, e ralham, e atropelam-a, e ella vae costurando, cosendo, cosendo, tranquillamente,{30} prudentemente, como se fôra o sol no meio da noite, a acção no meio da idéa, a rasão no meio da loucura!

Outra falla sósinha, e ri. De que está a fallar sempre? De que está sempre a rir? Está a rir das coisas, e a fallar de um certo, por causa de quem veiu a observar que a maior parte dos amantes ficariam contrariados com o possuir para sempre e sem partilhas o objecto da sua adoração; e que, se se dirigem mais homenagens ás casadas do que ás solteiras, é porque o marido é um obstaculo que ninguem supprime, e dá, por isso mesmo, a melhor latitude a protestos de dedicação. Está á janella a olhar para os campos{31} e a farejar tormenta em tudo—no voejar dos passaros, na pressa das formigas... Queixa-se de ter conhecido a vida, á sua custa;—a peor maneira de conhecer as coisas. Ás vezes não é segura, e quando se exalta vae dando bofetadas em quem apanha; previnem-me disto.

Ai! a tafula! a tafula! Lá armou o seu chapeu com bocados de chita e papel de todas as côres; duas rolhas, uma penna de rama, e o badalo da campainha. É a catita! É a janota! Pobre e desgraçada elegante, que tem a mania das modas, préga uma saia ao meio da outra para figurar vestido de cauda grande, quer ver-se nos espelhos,{32} quer que a achem galante, que a admirem, que digam nos jornaes que estava deliciosa no baile de tal, que tambem deu uma soirée onde estava a primeira sociedade, que a sua toilette era primorosa, que está já em vesperas de partir para o campo, que toda a Lisboa vae ficar saudosa d'ella... E conversa comnosco, e dá ao leque, e coqueteia, e mostra-nos as pulseiras, os anneis fingidos, a sombrinha improvisada; e toda se requebra, e compõe a manga, e pucha a camisinha, e, cuidando ás vezes que se está dançando os Lanceiros, faz-nos a cortezia.

Uma menina, que deve ter vinte annos, apparece á porta de um{33} quarto onde estão algumas mais tranquillas a costurar e a fazer crochet. Olha para mim fixamente e como esperando que eu lhe falle. O director vendo isso, pergunta-lhe se me conhece.

—Parece-me que conheço, responde ella.

O director diz-lhe o meu nome.

—É isso mesmo; já vi o retrato n'um livro.

É da Ericeira, esta menina; muitas das leitoras se lembram talvez d'ella, e toda a gente que ali tem ido a banhos lhe conheceu o pae,—o chamado Ericeira, o capitão Ericeira, que morreu ha poucos mezes. Nos fins do ultimo outomno procurou-me uma manhã um homem{34} baixo, vermelho, atochado, de cabeça grande, sobrancelhas fartas, perna curta, tronco forte, especie de Han de Islandia em velho; trazia uma carta do meu amigo Augusto Tallone, que m'o apresentava dizendo que por ter lido um folhetim meu a respeito da Ericeira elle quizera conhecer-me;—era o pobre capitão. Conversámos um pouco de tempo; elle fallava com difficuldade. Agradeci-lhe o favor da sua visita e despedimo-nos até o verão, na idéa de que eu fosse á Ericeira este anno; morreu tres mezes depois, coitado, e agora fui encontrar a filha em Rilhafolles!...

A pobre menina tem um parecer agradavel; não alegre, mas suave{35} e resignado. As poucas coisas que disse ao director nada tinham de tresvariado nem de demente; o aspecto mesmo é natural, assim no olhar como nos modos. Tem por entretenimento a mania de fazer versos, e cedeu-me uns que estava compondo e que lhe pedi; são versos certos, euphonicos, mas em que não se percebe nunca a idéa e em que as palavras baralham tudo:

Amei, infanta e leda como a aurora
Dos sonhos d'esse infante adormecido;
Ao rei o teu gemido, o teu trovar,
Ao throno o teu sondar encanecido.

Harpejo d'alma, lhana, feiticeira,
Gotejo em teu rollar mil alegrias,
E colho em cada nota que desfiro
Insomnias do porvir, crueis magias.{36}

Felizmente ellas não teem a consciencia da miseria humana que as esmaga; e vão vivendo, vivendo até chegarem a velhas, algumas.

A que, de todas, me produziu mais viva impressão foi uma formosa rapariga que não quer fallar, e que tem levado a teima por diante atravez de todas as diligencias. Estava n'uma das salas, agachada a um canto; parecendo não reparar no que se passava em redor d'ella, de olhos no chão, com a cabeça encostada ás mãos, ar de recolhimento profundo e invencivel. É o primeiro exemplo de mutismo por teima que tenho visto; e irreflectidamente, insensivelmente, disse-lhe não sei o quê na esperança de que{37} ella responderia. O director, que se prestou com a mais amavel paciencia a todas as minhas curiosidades, disse-lhe:

—Vamos; levante-se; estão fallando comsigo!

Ella poz-se de pé. É uma rapariga alta, bem feita, de cabeça lindissima, a mais bonita cabeça de mulher que se póde vêr, brilhante, inspirada, olhos grandes e melancholicos resguardados por longas pestanas, cabello negro e farto, feições accentuadas, expressão dominadora; certa graça aspera; o que quer que seja de caça brava; a bellesa crua, como fructa verde; uma formosura dos montes e das serras, ardente e pittoresca!{38}

Teem sido baldadas quantas tentativas se teem feito para alcançar d'ella que se resolva a fallar. Ultimamente o director recorreu aos banhos fortes; e havia já conseguido, na vespera exactamente do dia em que lá estive, que, ao sobresaltar-se com o calor da agua, ella dissesse: «Ai Jesus»! Taes são as duas unicas palavras que essa pobre creatura tem dado desde que ha uns poucos de mezes para ali entrou; um «ai», e o nome por excellencia, o nome divino, que diz todas as agonias e todas as esperanças, emblema da humanidade e symbolo de todos os emblemas que a alumiam: = Jesus!...

Havia já tres horas que andavamos{39} por aquelles corredores e por aquellas salas; e, ao descer uma das escadas, suppondo que iamos sair não pude deixar de dizer ao sr. dr. Abranches:

—Emfim!

Mas o director sorriu-se, e retrocou:

—Falta-lhe ver os idiotas.{40}

 {41}

III

Os idiotas

Por mais seguro que se esteja de si e dos outros; por mais vaidosa confiança que uma pessoa tenha no seu juizo, e na lealdade dos empregados de Rilhafolles,—é inevitavel o olhar, de quando em quando, como que receioso, para aquelles guardas que fazem o favor de{42} nos formar sequito, com um molho de chaves na mão.

Têem cara de bons, devem ser optimos, propensos a affectos benignos, e dotados de inexhaurivel fonte de branduras—estou persuadido; mas dão ás vezes um geito ao corpo, e de outras vezes olham-se entre si como piscando os olhos, com um modo natural, naturalissimo de certo, bem sei, mas que o sentimento febril de terror—que invencivelmente se apodera de quem ali se encontra, sem estar habituado a ir lá—transforma em indicios de uma perfidia atroz!

Quando nos encaminhavamos para ir ver os idiotas, cortámos por uns corredores que se me figuraram{43} mais escuros, e descemos por uma escada tortuosa, um pouco sinistra, que levava tempo a descer, e dava tempo a pensar,—um diacho de escada que acordava idéas phantasticas de corredores talhados em penedias, paredes com hyerogliphicos e procissões pintadas, quartos, com poços e ganchorras, para ir dar a outros quartos de onde desemboquem outros corredores, mosqueados de gaviões e serpentes;—lendas de pedra que só os doidos entendam bem, mas que nos dêem a pensar a nós que tambem póde succeder o ficarmos lá...

Eu olhava de esguelha para o director, e chegava a parecer-me ás vezes que me olhava elle tambem{44} de soslaio. É o terror, horror, pavor, de Rilhafolles. Sentimento especial que só ha ali, que só ali se conhece. Lembra-me aquelle-caso de um sujeito, a quem o dr. Pulido no tempo em que foi director d'este hospital convidou de uma occasião a jantar dizendo-lhe que lhe havia de mostrar os doidos.

—Nunca viste? perguntava-lhe o doutor.

—Não, nunca vi.

—Pois has de ver. É curioso.

Pozeram-se á mesa em companhia de dois doidinhos socegados, pessoas finas que estavam recolhidas em Rilhafolles havia pouco tempo.

O sujeito olhava para elles pouco{45} á vontade, pensando de si para si no nadinha imperceptivel que separa a razão da loucura...

Depois, por acaso, perguntou ao dr. Pulido como é que costumava fazer para levar para ali os enfermos. O dr. Pulido fixou-o com o olhar um pouco vago que tinha, bem devem lembrar-se d'isto os que o conheceram—e que parecia de alguma maneira ser o reflexo do olhar dos doentes, e respondeu:

—Não custa nada. Em sendo pessoas de certa classe, a familia pede-me para ir vel-as, convidam-se a jantar, veem sem desconfiança, e, tão depressa cá as apanho, em ellas querendo ir-se embora já acham as portas fechadas.{46}

O outro ouviu isto cobrindo-se de suores frios, e acudiu-lhe a idéa de que aquelle convite tambem fosse um laço. Á sobremesa puchou pelo relogio, pediu desculpa de não se poder demorar, levantou-se á pressa, despediu-se, e ao chegar ao pateo largou a correr.

É que, além do estonteamento em que se fica ao vêr aquelles desgraçados, ha uma vertigem peor ainda—é a que resulta de os ouvir.

Quando chegámos ao pateo dos idiotas, estavam acocorados quasi todos elles como as gallinhas no choco, pasmadinhos para o muro, ou fazendo riscos na terra com o dedo. Não lhes importa ar puro,{47} nem horisonte; que o terreno seja vasto ou não seja, que haja verdura ou não, que estejam presos ou livres, para elles é o mesmo. Fincam os cotovellos nos joelhos, encostam a cara ás mãos, e vão dando á cabeça como os bonecos da feira, n'um movimento sempre igual.

Ha lá uns patetas, que quasi toda a gente conhece por andarem no serviço dos banhos,—um sobretudo, que é popularissimo, o que tem voz de tiple—mas esses são a conta d'aquella missanga; a nata, a flor dos idiotas!... Preparam os banhos com a maior diligencia, são modelos de cortezia benevola, perguntam com affectuoso interesse {48} se a gente gosta da agoa sobre o quente, recommendam, com agrado que captiva, que se toque a campainha em querendo que elles appareçam de novo, e estacam de bocca aberta em avistando o bello sexo! Ah! esses são os idiotas tafues, os idiotas como se quer. Não servem para muito; mas, bem aproveitados, até podiam servir para se encostar ás esquinas pelo Chiado fóra, ou espécar ás portas das salas nos bailes,—como janotas!

O tal que tem voz de tiple, toca flauta. Toca flauta, e é um melomano de não se parar com elle. Em se lhe fallando de gostar de musica, redargue logo:

—Se gosto de musica! Mas eu{49} como musica, senhor, musica é que eu como!...

E ahi tira da flauta, e com uma ancia de sopro capaz de fazer virar faluas, larga a tocar coisas incalculaveis.

Mas isso são idiotas á maneira do que manda o diccionario da lingua portugueza de Fonseca—«Idiota, adj. es. de 2 g. ignorante, sem estudos.» E disse. A natureza, porém, vae um pouco mais longe do que o diccionario; e a pobre creatura humana recua atterrada na presença de uma aluvião de desgraçados que ha em Rilhafolles, não como o da flauta, que falla e toca, mas dos que não fallam: não pensam: não ouvem: chiam, guincham,{50} riem, e babam-se. Esses são um pouco mais do que ignorante e sem estudos, e a gente ao vel-os tem vontade de segurar a cabeça, fragil como aquelle vaso de cristal a cujos manes Heliogabalo levantou um mausoleu para eternisar a memoria das ebriedades que lhe devia,—tal é o medo que se sente de que ella estale e se quebre como a taça do Cesar idolatra,—com a differença de que estes manes, que são as idéas e as paixões, em se caindo em idiota... não voltariam nunca mais!...

Estão para ali, no pateo; uns, passivos, fixos, sem sensações, parados e quietos, como o soldado na guarita, olhando no direito do{51} nariz, capazes de ficar encostados á parede o dia todo...

Outros, agachados, conchegando o peito e as pernas, olhando sem saber para onde, nem se perceber para o quê; existencia vasia; vida sem drama; o horror sem lances.

Um, está gordo. Testa de um dedo de largura, cara de pau, pançudo, bonacheirão,—certo ar de paspalhice, immobilidade de figura decorativa.

Este, sentado no chão, junta um montinho de folhas, e depois dispõe-as a seu modo em carreirinhos: mas, se succede desmandarem-se-lhe, faz como a Sibylla de Cumas, que em o vento lh'as espalhando tirava dali o sentido. Depois, vergando{52} a cabeça, fica a olhar para ellas...

Já estiveram alguma vez ao pé de uma cova aberta no cemiterio? Chega a parecer que os cadaveres são as almas dos tumulos, e que o sepulchro é que morre em não tendo ossos dentro.

Tambem com os idiotas, quando a gente olha para elles, pergunta o que será feito do que devia ter havido dentro d'aquellas cabeças, e parece que elles é que não existem já.

Não se lhes falla: que poderia dizer-se-lhes, se o da flauta é o formica leo d'aquelle pateo horrivel? se elles percebem mal os gestos, e alguns não ouvem? se o destino{53} os seccou como o sol secca os regueiros!...

Lembram o cortejo de Momo. Anda-lhes o corpo a cavallo nas pernas; teem cabeça de quem viu bicho; esgroviados: sorrir bruto: dando sempre aos hombros: uma especie, nos modos, do perfil de uma bengalla com castão figurando um saguí; voz difficil; meio gagos: o que quer que seja de um palhaço morto!...

Um, perdeu de todo a memoria, depois de um ataque de congestão cerebral; e está para ali sem dar accordo de si. Tratam-o como ás creanças; recommendam-lhe que não metta os dedos no nariz, e que não ande de joelhos pelo chão para{54} não estragar as calças. Elle ouve, e esquece-se.

Alguns mastigam palavras, as mesmas palavras sempre, muito contentes, a rir sosinhos...

A macaca apparece aos pulos. Conhecem-a todos por este nome. Não tem outro. Quando a mandam chamar, diz-se: «Chamem a macaca»; os guardas acenam-lhe e dizem-lhe:—«Anda cá, macaca!» Ella vem. Toda a gente que foi alguma vez a Rilhafolles nos ultimos annos a conhece. Entrou para ali no dia 5 de setembro de 1855. Tinha nove annos. Entrava no mundo pela peior das portas,—pela porta de Rilhafolles. Era enfesada, cabecinha aguda, orelhas grandes, ar bestial;{55} ali lhe tem crescido o corpo, ha dezeseis annos. Não pede de comer, nem lhe importa isso. Diz-lhe o instincto que a natureza e a sociedade lhe devem um prato de sopas no jantar de cada dia e espera que lh'o vão metter na boca. Quando vão dar-lh'as, come-as,—sem cuidado e sem agradecimento. Agradecimento de quê? Quem imagina que o ar no dia de ámanhã já não seja respiravel, e que o sol nunca mais torne a sair? O mesmo se dá para ella com as sopas. É abrir a bocca, e lá lhe irão parar. Está gorda, agora, com os seus vinte e quatro annos. O director diz que está magnifica; e queria que eu lhe apalpasse a cabeça para vêr{56} até que ponto é molle. Consideram geralmente lá em Rilhafolles que ella está muito bem; saudavel e feliz. E dahi,—talvez! Pobre macaca! Desraizada do mundo, e plantada na vida como uma cebola de jacintho na agua!...

Passam ali a sua vida, no pateo, e quando olham uns para os outros—não sei se se vêem. Toda a gente faz alguma coisa, elles não fazem nada; toda a gente pensa alguma coisa, elles não pensam em coisa alguma; até os animaes teem memoria, e lembram-se de quem lhes faz mal, de quem lhes faz festas, conhecem as pessoas com quem teem vivido:—elles não se lembram nem conhecem ninguem. Uma aranha é{57} mais do que elles! a aranha arranja a teia, elles não arranjam nada!... De fóra d'aquella casa, anda ahi pela cidade o espirito, a religião, a politica, a honra, o crime, as desordens da turba: elles não sabem nada d'isso; estão exilados no mundo, e ouvem apenas cortando os ares os gritos bravios dos furiosos!{58}

 {59}

IV

Os furiosos

Estes já não tentam dissimular o estado em que se acham,—triste prova de que não conservam sequer um restosito de juizo!... De physionomia vivaz e animadissima, semblante exaltado, olhos extraordinariamente mettidos pelas orbitas, pelle encarquilhada, face cavada e esqualida, saltam-lhes por entre os{60} beiços corádos pela febre, como por um arquinho vermelho, gritos e apostrophes que nem dardos!...

Têem idéas, mas fugitivas, sem ligação, quebradas. Grande agitação, grandes accionados, grandes berros. Ora vem, ora vão. Fallar sem descanço,—para um—para outro. Puchar a enxerga, atirar com a enxerga. Ir ás grades; segurar, apertar; lucta da carne com o ferro... Vontade visivel de apanhar alguma cousa á unha, de poder deitar-nos a mão. Mas,—nem mesa, nem cadeira: nem, ás vezes, uma tigela para despedaçar...

—Anda cá! Olha! Chega aqui! dizem alguns, com perfida languidez, certo agrado felino, o risinho{61} da hyena,—a morrerem de desejo de nos saccudir de encontro ás grades.

Alguns fallam em dinheiro, desconfiam que fomos nós que os roubámos. Outros, de amores; recordam-se, inquietam-se, agitam-se, enfurecem-se... Alguns têem ainda o sentimento da ambição, querem grandezas,—d'essas mesmas grandezas pequenas que por ahi se arrastam de gatinhas com ares de ir n'um andor—e gritam que são magnates e figurões: a tal ponto é profunda nas creaturas a vaidade, que mesmo mortas para o mundo ainda conservam a idéa de alardear possança! Mas já não têem sequer, como os outros, papel doirado,{62} para fazerem corôas; nem ha coberta na enxerga para poderem fingir que se embrulham no manto dos imperadores...

Donde provêm o mal?

Quem poderá sabel-o! De alguma paixão desordenada, enorme, extrema. Quem nos diz até que a loucura n'aquelle grau, a loucura d'aquella qualidade, não seja simplesmente a paixão levada ao excesso?... Estão ali durante as horas do ataque, as horas da furia, fechados nos quartos, quasi ás escuras para que a claridade lhes não fira a vista. No decorrer do anno, ligeiro para nós, pesado e cruel para elles, quantos dias de agitação e de tortura,—com as mãos{63} atadas, os braços presos, as rações da comida diminuidas; e as grades, as grades frias e negras, por unico horisonte e unica companhia!...

Já não ha ver ali a gordura pagã; são magros quasi todos, e parecem velhos: a loucura ainda envelhece mais do que as paixões; abatem-os, dissecam-os as furias; alguns parecem esqueletos, que a ira unicamente acorda; um ou outro tem a mão finissima, mão de quem não faz nada, de quem não trabalha ha annos; de outras vezes parecem os ossos da morte com pelle por cima... em ar de luva!

Ali gastam e consomem a vida, separados, presos, isolados, nas agonias insondaveis da desesperação.{64} Só a mãe de algum ou a mulher, vão vêl-o; unicas dedicações n'este mundo que não abandonam as angustias persistentes. Lá esteve um, famoso e illustre, o mestre do folhetim em Portugal, e sua esposa ali foi todos os dias vel-o e fazer-lhe companhia—colhendo no ceu a palma do combate terrestre e vendo sorrir-se para ella e abraçal-a meigamente aquelle ente querido, que havia representado um dos primeiros talentos d'esta terra, e que parecia, lucidamente, dizer-lhe com a vista que deve um dia ser feliz na eternidade a alma que n'esta vida teve dedicação pelo infortunio!

Mas, em geral, como se os olhos{65} humanos não devessem contemplar o espectaculo d'aquella dôr horrivel, poucos são os que teem quem os visite, e ali se conservam até que um dia o padre do hospital vá junto d'aquella enxerga resar-lhes ao ouvido, e, na hora em que vão emfim libertar-se do mundo, fazer a diligencia de que elles repitam as orações que lhes disser...

Todos ali, mais ou menos, se entreteem e se divertem. Só elles não. São os poetas da casa;—sonhar, soffrer. Mesmo se teem officio, é raro aquelle que pode aproveital-o uma hora ou outra,—e isso mesmo é arriscado ás vezes. Lá vi, quando fomos visitar as officinas, um que dizem ser excellente marceneiro{66} e de quem me mostraram um trabalho curioso:—uma maquineta, como costuma chamar-se-lhe, um nicho de madeira para Santa Philomena,—santa com que tinha grande devoção uma enfermeira de Rilhafolles, que fôra educada n'um convento de freiras de Leiria, e que morreu ultimamente doida n'este mesmo hospital onde fôra empregada. As outras enfermeiras, em obsequio á memoria da sua antiga companheira, conservam o culto á santa.

O nem sempre amavel marceneiro estava logo á entrada das officinas com o banco e a ferramenta, na occasião em que o director o convidou a mostrar-nos as suas obras.{67}

—Mostrar o que? berrou elle; e logo se lhe injectaram os olhos; e travando de um pedaço de taboa partiu-a, batendo com ella no banco.

—Bem, bem! disse o director. Hoje estás muito zangado; deixemo-nos d'isso! E virou logo comigo pelo mesmo caminho.

Uma circumstancia interessante é a placidez do director, o desembaraço com que anda por entre os doidos, e a bondade e descanço com que os trata. É isto resultado do seu genio, e em parte tambem de querer dar exemplo aos empregados de que não deve ter-se medo dos doidos, porque o medo aconselha cobardemente toda a especie de crueldade. Em vez de injurias{68} e de chicotadas, como se usava d'antes para com os pobres furiosos, sem se lembrar ninguem de que mais humana seria a lei que de vez os condemnasse á morte, emprega-se o geito, a doçura, o bom modo, para não espatifar brutalmente, e apagar de todo aquelles restos de intelligencia, que ás vezes só de passagem está nublada.

Todos mais ou menos se entretêem ali e se divertem alguma vez, menos os furiosos. Ha theatro de tempos a tempos; e pelas festas de junho, arraial.

De ordinario os doidos que representam,—dos mais quietos, já se vê, e dos que costumam estar dias, semanas, mezes ás vezes sem{69} dar signaes de alienação—dizem os seus papeis regularmente, mas falta-lhes expressão de physionomia, gesto, movimento, olhar, tudo que auxilia e completa a phrase. São espectaculos mais curiosos do que recreativos.

Até os idiotas poderão bailar nos arraiaes ao som da flauta do companheiro:—os furiosos, não; arredados de tudo e de todos, hão de ir gritando, extorcendo-se, rugindo na solidão atroz do seu carcere!...

O sentimento da liberdade, que sobrevive a todos, até nas creaturas que perderam o juizo, não os abandona ainda assim. Querem sair, sair!

As mulheres são mais furiosas do que os homens. Estes de ordinario{70} agitam-se durante horas, depois caem prostrados no somno lethargico que succede á furia. Ellas, fallam e berram, dias, noites inteiras, e tornam-se mais notaveis nos insultos, no descomposto do fato, e até nas tendencias malfazejas—atirando sempre que podem uma tigella contra as grades, e os cacos á cara de quem vae.

Algumas são verdadeiramente horriveis.

Uma gira todo o dia—mas todo o dia!—descalça, em roda do quarto. Tira-se-lhe a enxerga para poder andar n'aquellas voltas, como a hyena na jaula. Depois, á noite, põem-lhe a enxerga: cae sobre ella, e enrosca-se.{71}

Uma rapariga de Coimbra, que não falla senão de um retrato, tem de estar de collete porque marinha pelas grades.

Aquella, de Lamego, que dá pancadas em quem apanha, atira com o pão em pedaços—para as almas!

Esta, de Guimarães,—com certo ar de astucia machiavelica no fundo da loucura—está doida um dia sim, um dia não. No dia em que não está doida, trabalha. É uma alienação á maneira das sezões.

—Como está? pergunta-lhe o director.

—Sempre estou boa! responde ella.

—Ah! E então?

—Então sardinha com pão!{72}

E, sem mais nada, enfurece-se, grita, ameaça, quer saltar, terrivel, hedionda, como se a noite e as Parcas lhe desenhassem no semblante as caretas da loucura.

Um moço esbelto e forte conserva-se de gravata de coiro, para não poder dobrar o pescoço—porque se morde.—Um velho grita por tal fórma, que ás vezes, de noite, as patrulhas de Arroios têem ido, sem saber o que é, em procura do sitio de onde vem aquelles ais...

Passados dias,—por não haver trazido apontamentos dos furiosos na primeira visita que fiz a Rilhafolles,—tive de voltar ali.

A tarde declinava, e os ultimos raios do sol iam a despedir-se d'aquellas{73} tristes paredes. Ao passar com o sr. dr. Guilherme Abranches, que teve ainda a bondade de me acompanhar, por um d'aquelles corredores que serpenteiam ali em todas as direcções, vi dois homens sentados á porta de um quarto.

—Estão de guarda ao cadaver! disse-me o director.

Entrámos no quarto, vi um embrulho no chão, como que o corpo de um homem amortalhado,—um boneco, suppuz eu,—e duas tochas ao lado.

Não era boneco, era deveras um cadaver.

Na vespera fallecera em Rilhafolles um doido israelita. Prevenidos os seus, mandou o presidente{74} da Sociedade hebraica dois homens para envolverem o cadaver n'um lençol, deposital-o n'um quarto isolado, de cara e ventre para baixo, sem caixão, e ficarem de guarda á porta. Como era sabbado—dia santo para elles—não lhe mechiam em quanto não fossem nove horas. Haviam pedido, para a noite, café, pão, manteiga, genebra e cigarros. Na madrugada deviam partir para levarem o cadaver e enterral-o no alto do Varejão.

Aquelle era talvez o mais feliz de quantos ali ficaram n'essa noite. Já não ouvia sequer os clamores da raiva, os rugidos da paixão, os arrancos de desespero e de furia dos companheiros. Estes estão mortos{75} tambem, de alguma maneira; mas é de mais, e é pouco! Se aquelles braços que se agitam, se aquellas vozes que estrugem, se aquelles dentes que rangem são a materia—que é da alma?...


Á saida, o jardim é triste, triste; e os pingos de chuva, que ficam nas pétalas das flores, brilham que parecem lagrimas. Depois, se se levanta a cabeça, estremece-se ao ver o ceu, como contraste—por cima d'aquella miseria continua!...{76}

 {77}

V

Telha

Tambem os ha cá por fóra!

Mansos, com falla, sem collete, passando a vida á procura do motu-continuo, de um ministerio adoravel, de dhalias azues, de acabar com o deficit, da perfeição no amor, do circulo bicudo...

Avista-os a gente por essas ruas,{78} sequiosos de barulho, persuadidos de que têem para cumprir uma missão, exercer um sacerdocio, defender uma causa, fazer tremular victorioso um estandarte; e observa com estranhesa que, sem se saber de onde vêem nem o que querem, sem que alguem jámais os visse entrar n'uma escola ou comprar um livro, desprezem o mundo que os quiz empregar n'alguma cousa, e embirrem em ser tribunos unicamente, tribunos e heroes, prégando umas celebreiras no tom de quem salva a patria!

Pasma-se de ver outros atravessando a vida com ares de visinho—descarapuçado e de chinellas—sem mais bagagem do que a sua{79} insolencia, altivos e petulantes, por entre a risota da multidão.

Alguns, pobres moços, levados da esperança, vivendo mal, açoitados pela sorte, emmagrecendo na luta; rindo sempre na bochecha da vida positiva, deitando a lingua de fóra entre desdens ás exigencias e riscos d'ella; desprezando o dinheiro, nervo de todas as cousas, que aplaina e floreja o caminho, torna facil estudar, dá independencia ao espirito; sustentando-se de theorias; compondo maximas e conceitos d'este genero:—«É o homem que faz o titulo, e não o titulo que faz o homem»;—e pondo-se a caminho pela vida adiante, pé cá, pé lá, como quem vae com botas de andar leguas,{80} para ficarem estatelados na estrada sem solas e sem palmilhas. E para que, tudo isso? Para querer á força viver de litterato, n'uma terra em que as letras se vendem mais baratas que os tremoços, e cair agonisante, sem gloria e sem fortuna, em dôres sem grandeza, dôres que dão riso aos mais!

Já de creança, ás vezes, deixam perceber o que d'ali sairá! Um, pondera em menino que o sol não tem prestimo; e que a lua, sim: porque faz sol de dia, quando não é preciso, e de noite a lua dá claridade.

Vae crescendo, vivendo, engordando; quer a familia fazer-lhe casamento com uma viuva; mas o rapaz scisma, e diz:{81}

—É melhor não casar com esta.

—Porquê?

—Tem o dobro da edade que eu tenho!

—E depois?

—E depois, é muito. Quando eu tiver cincoenta annos, vem ella a ter cem!

O pae fica embuchado, e medita.

Vae vivendo sempre, e medrando. Com o tempo torna-se homem politico. Quer endireitar o paiz. Para elle ha uma idéa só e uma só palavra—supprimir. No fervor da crise das economias vae de uma vez a uma reunião politica, onde se discutem os maiores problemas. É n'um terceiro andar. Muito escura{82} a escada. Dão-lhe um rolinho. Aceita; desce, pensando nas economias; no patamar acha-se ainda com um bocadinho de rôlo; torna a subir, para ir entregar o resto; desce depois ás escuras,—pensando sempre em economias...

Quantos! Quantos andam por essas ruas!...

Este, quer á força parecer inglez. É filho de virtuosos burguezes nacionaes, e foi creado em menino por uma ama do Reguengo grande—como qualquer de nós; mas tem a preoccupação constante do shoking, usa bota de duas solas, calça sal e pimenta, encarquilhada sobre o pé, collete inglezado, gravata de seda frouxa com{83} as pontas pendentes, caçadeira, chapeu de aba direita. Bambaleia horisontalmente na mão um bengalorio revirado n'uma das extremidades com muitos nós, muitos nós... Ah! Ninguem sente como elle escaldarem-se-lhe, ou, para dizer melhor, refrescarem-se-lhe as arterias com sangue inglez! Pára no meio das praças a examinar os monumentos; defuma o fato com carvão de pedra, para parecer que veiu do paquete instantes antes; e mira maravilhado a estatua de D. José, examinando, estudando, tomando apontamentos, medindo, comparando, admirando, criticando com gestos expressivos, sem perder tempo;—time is money! E passeia; e corta;{84} e gira; e vae indo, inglezmente, até ao alto de S. João. Estão abertas de par em par as portas do cemiterio... Entra, segue uma das ruas, examinando as inscripções das campas; escolhe um tumulo que lhe pareça commodo, e senta-se. Não ha, digam o que quizerem, melhor logar para ler o Times. O Times está n'uma das algibeiras da caçadeira. Lê o Times com imperturbavel serenidade. Acabada a leitura, apanha um raminho de cypreste, guarda-o na carteira: dobra o jornal e mette-o no bolso. É noite; vae para casa,—acabou de ser inglez até ao outro dia!

Ha um que foi celebre entre os bebedores; desde que os bebedores{85} se chamam piteireiros, pareceu esconder-se. Os amigos, companheiros das sucias, estranharam que assim se despedisse do vinho sem dizer—agua vae. Elle respondia sempre, e responde—que já não bebe, que lhe fazia mal, que ia a soffrer por causa d'isso, que não vale a pena... Engana os outros, mas, o que é mais singular, engana-se a si. Em casa, fechado e sosinho, põe-se á mesa com uma garrafa e dois copos. Depois, como se fallasse com alguem:

—Prova, diz. Prova d'este, do Alemtejo!

E, disfarçando a voz, como se fosse outrem que respondesse, retroca a si proprio:{86}

—É muito palhete. Bons vinhos mas muito palhetes! Prefiro, se insistes, um copo de Collares.

—É Collares picado o que posso offerecer-te!

E, pondo na mesa a garrafa, enche dois copos.

—Deixa-o sempre levar aos beiços. Não é traiçoeiro, e acompanha o queijo amavelmente.

—Mas nota bem que quero fazer-te uma saude!?

—Dás-me muito gosto.

—Uma saude com um copo de Xerez generoso.

—O Xerez contende commigo. Vinho aguardentado e febril. Conservemo-nos n'este...

—Mais um copo, visto isso, de{87} Collares; e passaremos ao Porto, que de certo não te faz nervoso como os vinhos brancos?

—Está dito. Acceito o Porto. De que anno o tens?

—Não bebas datas. Contenta-te que seja bom. Que te importa o anno?!

E uma garrafa de Porto vae muito lampeira, em cima da mesa, fazer companhia á do Alemtejo e á de Collares.

—Á tua saude! diz elle, enchendo dois copos.

—Á tua saude! prosegue, bebendo ambos.

Ah! Quantos, quantos!

Alguns até de que ninguem desconfia e que fazem cousas que chegam{88} a parecer serias; os folicularios, inaptos ou calumniadores; inaptos não reparam que se cortam no proprio gume da arma; calumniadores, não vêem o tribunal da Boa Hora e têem-o diante de si;—uns exaltados ridiculos, a arder em aspirações phantasticas;—uns pimpões de palavra, sempre em prologo de valentia, pernada cá, pernada lá, quatro leguas á roda da sala em passo gymnastico, preparando casos, annunciando heroismos, vociferando contra este e aquelle, resolvendo castigar, destruir, arrazar: tutto parole, parole, parole!—Um que quer cantar sem voz, e móe os ouvidos das pessoas por casas particulares, festas, concertos,{89} cantando tudo, dizendo que dá o , e não dando cousa nenhuma senão cabo da paciencia á gente!

O jogador tençoeiro, que vae de queda em queda—como outros vão de bamburrio em bamburrio—para cair no abysmo, para que se lhe devore a ultima libra, para que as dividas lhe levantem assuada á porta, para que a mão da penhora lhe pouse no hombro, e as garras da usura o esganem!...

O que desdenha de tudo, estraga tudo, como a toupeira n'uma horta; e massa com semsaborias, que caem no ouvido syllaba por syllaba, como pingos de chuva da rama de um chorão...—O que attribue tudo aos jesuitas, não scisma,{90} não dorme, não sonha senão com jesuitas. Tudo a mão de Roma, a mão de Roma...—O que, em apanhando piano, principia logo a tocar com um dedo horas a fio.

Os sexagenarios maganões, que armam terceira mocidade, postiça como a cabelleira e a dentadura, e vão, bem retocados, em conquista...

A antithese d'esses:—velhos precoces, já enfastiados de tudo em meninos: aventuras que não são visiveis sem lente; escandalos que Platão consideraria chôchos; concebendo Lisboa apocalypticamente, como se fôra mãe dos sete peccados mortaes e excedesse as orgias{91} de Babylonia. Não sabe a gente, ao ouvil-os, se está no Azul se no meio do chão! Aos vinte annos já não dançam, e usam luneta côr de fumo nos olhos fatigados... do gaz do Martinho!

Um não pensa senão em albuns. Tem dois seus, dois da familia, um da namorada, e tres dos visinhos. Pede-nos o retrato; peior ás vezes,—quer trocar. Tambem deseja um pensamento para o album de authographos; qualquer coisa; exemplo:.—«As ginjas são talvez melhores á sobremesa, do que para prato de meio.» Conceitos!—Outro, leva o anno inteiro a scismar como ha de disfarçar-se pelo entrudo; como ha de farruscar a cara,{92} o que ha de pôr no nariz...—Outro, conversa muito alto, n'este estylo que lhe parece optimo:—Diga-me se não é anomalo, acephalo, hybrido, através da civilisação e do progresso, ver as nações atrophiarem-se em carnificina, á maneira dos povos barbaros, ou dos tempos em que as sociedades mergulhavam nas trevas da superstição e da ignorancia. O meu amigo é ecletico?

E os que faltam sempre, promettem para faltar, offerecem para não cumprir, nunca vão a horas—o maior dos erros, exemplo aquelle diplomata que chegou tarde á morte do seu principe e foi dar com a rainha a fazer papelotes!—que{93} se esquecem de tudo, ou antes não se esquecendo—pensando n'outra coisa, diversa sempre da que estão fazendo, da que estão dizendo. Gente que baralha tudo, troca, atropella, estraga; trapalhões de officio e de geito. Um deita rapé no chá em vez de assucar; outro cuida que está no botequim, e põe um tostão no pires quando toma café na casa alheia; outro nas conferencias do Casino ia já a estender o braço para o copo d'agua do prelector, e bebia-lho se o não pucham a tempo. Alguns chegam a esquecer-se do nome que têem, ficam parados á porta do correio geral á espera de que passe alguem que lhes diga como elles se chamam, e irem então{94} reclamar a carta; a correr, antes que lhes esqueça o nome outra vez!..: Telha, pois que?—telha, e rija!...

Digamos o peior;—quasi todos nós temos um pouco d'isso. Ha principalmente dois mezes do anno em Portugal, maio e junho, em que toda a gente anda com telha...

Quem ha,—dos que pensam, é claro, e dos que, por assim dizer, costumam tomar o pulso ao espirito, que não se tenha sentido em certos dias como que exilado n'este mundo e tentado juntar, unir, ligar no fundo d'alma remeniscencias vagas de melhores tempos, enleiando-se n'uma especie de saudades da patria que perdeu... A terra parece{95} triste então, embebe-se o animo na nostalgia do céu, quer a idéa voar para lá, e consegue-o ás vezes... De noite, quando não se póde dormir, mas está tudo socegado, some-se o mundo em que a gente anda, vêem-se brilhar as flores colhidas que o tempo murchou, ouvem-se chorar-nos n'alma suspiros e ais conhecidos, e passam na penumbra duvidosa em que se nos perde o olhar certas creaturas que só nós sabemos bem quem sejam... O mundo então chama a isso ás vezes ser poeta; e é ainda, talvez,—a telha!...{96}

 {97}

VI

Enguiços

Quente... quente...

Já estão a lembrar-se de alguem do seu conhecimento, com quem lidaram, com quem viveram, parente, amigo, visinho...

O diccionario de Moraes explica-o assim:—«Enguiço é o mal que se causa de ser olhado por algum torto ou outro qualquer accidente.»{98} Até aqui, o mais notavel é elle chamar aos tortos «accidentes». Lá se avenham.—«Consiste,—continua—em ficar acanhado.» Estão satisfeitos? Eu, não. Procuremos mais, procuremos sempre;—no verbo enguiçar o mesmo auctor exprime-se assim:—«Dizem que o torto olhando para alguem enguiça-o. Passar a perna por cima da cabeça (d'outrem) enguiça; isto é, faz que desmedre, que se faça pêcco e pobre.

D'ahi vem tudo; os habitos excentricos, pueris ou ridiculos; o vasto e incalculavel mal que resulta d'isto ou d'aquillo, conforme o capricho da creatura; a ignorancia creadora; successos triviaes, centos de cousas e cousa pouca, que{99} moem e affligem os enguiçados,—gente nervosa, delicada e phantastica.

Tudo os inquieta. Fal-os tremer um nada, um nadinha os anima. A influencia do tempo ataca-lhes a saude como um barometro. Abate-os o vento sul, torna-os tristes a chuva. Ficam, ás vezes, horas sem fallar e sem vêr. Parecem acordar na primavera pelo canto dos passaros e pela doçura do ar; e ouvem tudo então, as vozes que passam no murmurio das ondas, na rama das arvores, ouvem o que se diz ao longe, ouvem o que não se chegou a dizer,—ouvem-se a si, unicamente a si; a voz do enguiço, que falla dentro d'elles, e compõe,{100} e ordena, e retem, e impelle...

Um levanta-se da cama, veste-se e prepara-se para sair. Sente-se todavia preso ao chão, e não póde dar um passo emquanto o creado não vem dar-lhe um alentado empurrão que lhe quebre o enguiço. Volta-se então para o servo:

—Ó José?

—Senhor.

—Tu deste-me a corda inteira?

—Dei, sim senhor.

—Toda, toda?

—Dei-lhe a corda toda, sim senhor.

—Está bom!

Aquella resposta affirmativa convence-o de que tem movimento para{101} as vinte e quatro horas, como um relogio de algibeira. Se o empurrão foi brando, a machina pára a qualquer hora do dia e precisa nova corda.

Um irmão d'este (os enguiços são familiares e hereditarios, o que é ainda mais pasmoso!) não póde comer a sobremesa sem dar tres voltas em redondo ao prato.

Um velhote anguloso, magro e verde, que se avista na repartição onde é empregado de barretinho de seda preta e mangas de algodão, faz todos os dias antes de entrar para a secretaria um joguinho de passos ao transpor a porta, que consiste em marcar tres vezes estes tres numeros:{102}

«Um.

«Dois.

«Tres.»

Depois, seguro de que tudo irá bem, sóbe e entra.

Um, homem gordo, de physionomia benevola, fallando com ar sentencioso a quem por civilidade fingia dar-lhe ouvidos, ia sempre tomar o seu café ao mesmo botequim havia muitos annos, suppondo ser o unico que não envenenava os freguezes. Achava n'aquelle café, do antigo Nobrega, hoje Aurea Peninsular, rua do Ouro, grandes vantagens para as propriedades sanitarias e digestivas. Em indo a outro, ficava doente. Quando ha sete annos o botequim fechou, elle{103} acabou de jantar, foi muito lepido pela rua do Ouro, dirigindo-se ao seu cafésinho,—encontrou as portas fechadas, e morreu. Muita gente o conhecia em Lisboa, e deve lembrar-se d'elle; os jornaes contaram o caso.

Alguns são beatos. Têem uma religião lá d'elles;—a religião do enguiço. Não querem ouvir comedias com receio de frescuras; nos bailes, em traje de ceremonia, luvas, etc., permittem-se olhar para as senhoras embora decotadas; mas em S. Carlos impõem-se crueldades gothicas, e quando apparecem as bailarinas, tão frescas e tão pouco vestidas que até o beato Antonio haveria arriscado um olho, como{104} o meu amigo leitor ou eu, fecham elles ambos.—Conheci um que, quando lia n'um jornal a palavra Deus, interrompia a leitura para atirar com o papel ao ar.—Ha outro que não póde passar diante de um nicho de santo sem que immediatamente leve as mãos ao rosto e o esfregue, como para se lavar das impurezas que o santo não deve presencear. Como fosse em certo dia guiando um carro e visse um nicho cavado na fronteira de certo predio, largou immediatamente as redeas e pôz-se a lavar o rosto em sêcco. O cavallo, sentindo-se sem governo, tomou o freio nos dentes, fugiu, e por felicidade não deu cabo do enguiçado e do amigo{105} que elle levava em sua companhia.

Ha uns que porfiam em conservar toda a noite durante o somno a attitude em que estão quando o somno os surprehende. Um diligenciou muitas vezes ser mais forte ainda e fez grandes tentativas para dormir de corpo no ar, só com as mãos ambas encostadas á bordinha do colxão, como se faz ao saltar para a cama; não o conseguiu, como podem crêr, e deu muitos trambulhões.

Um pintor, que foi do Porto para o Rio de Janeiro, tinha enguiço de pintar pretos. Por mais que o instassem, o pobre artista negrophilo não consentia por ter dó de{106} obrigar os moleques a estarem para ali espécados, e cuidar que isso tiraria a fortuna ao quadro. Punha um creado branco no logar do escravo, depois de lhe farruscar a cara de preto.

Este espantalho de espinha angulosa e nariz atrevido é rico;—faz casas para não morrer. Lá diz o proverbio campesino—«ninho feito, pêga morta.» Avarento, sordidamente miseravel, só é grandioso em fazer predios. Suppõe que em terminando uma obra, morre. Vae acrescentando sempre a casa; compra terrenos, faz crescer a cosinha, estende a capella, alarga as cocheiras. Aguenta-se na vida com muleta de pedra e cal!{107}

Aquelle está já por tal modo aferrado a manias que chega ás vezes a parecer criminoso, e sente que dá cabo da intelligencia quebrando-lhe os raios com o fechal-a no ciclo estreito e febril dos medos e das apprehensões. Tem sete filhas; quatro estão casadas; duas principiaram a namorar os que hoje são seus maridos no circo Price; as outras duas no Gymnasio. Estão ricas e felizes as duas primeiras; as duas ultimas, pobres e desgraçadas; elle tem a scisma de que ás tres que estão solteiras não convém irem ao Gymnasio, e suspira por vêr aberto o circo Price, a cujos espectaculos sempre concorre com a familia, resmungando á entrada uma{108} prece, não sei que lérias piedosas que só elle entende...

Que dança! que dança!

Os d'aqui têem scisma com o sair da escada sem pôr primeiro o pé direito.—Os d'ali em pondo as meias do avesso ficam em torturas, contando que hão de ter dádiva ou insulto, e receiando que venha insulto em vez de dádiva.—Os d'acolá pedem a benção á mãe, e emquanto ella não estender a mão seis vezes não lh'a beijam.—Uns têem terror ás aranhas; outros assustam-se em sonhando com uvas pretas; estes não passam em certas ruas senão do mesmo lado sempre.—Alguns, brutos com toda a gente, são timidos com as creanças. As{109} creanças têem o que quer que seja de maravilhoso. Já o Fernão Lopes, na Chronica de D. João I, cita uma ainda de leite que proclamou: Real, real, pelo mestre d'Aviz, rei de Portugal. Os enguiçados que leram esta chronica ficaram tendo pelas creanças uma veneração profunda; os que não a leram—tambem. Batia na mulher todos os sabbados á noite um saloio, ao voltar da taberna—para onde ia tão depressa lhe pagavam a féria. A mulher, coitada, conformára-se com a sua sorte por gostar d'elle e acabára por se costumar com aquella renda. N'isto foi mãe. Apesar de todos os sabbados estar bebado como d'antes, o marido parecia esquecer-se da tósa{110} semanal. A mulher, pasmada, disse-lhe uma vez:

—Porque é que tu já me não bates?

E o saloio, enguiçado, desejando romper e quebrar por uma vez com a prisão imaginaria que o tolhia, mas confrangendo-se, esquivando-se, escrupuleando, respondeu de mansinho, apontando para o berço:

—Tenho medo de acordar o pequeno!...

De tudo, entretanto, o mais trivial é não se poder vêr um corcunda sem ficar enguiçado. Parece que, sobretudo em jejum é desastroso. Os corcundas sabem isto; sabem-o á legua; não sabem outra cousa; estão fartos de o saber; e{111} por isso são tão joviaes. Andam sempre a rir-se do mundo e a enguiçal-o o mais que podem! O melhor do caso, porém, é que um corcunda neutralisa o outro. Eis a rasão porque nunca desde o principio do mundo nenhum philosopho fez a observação de haver encontrado dois corcundas de braço dado. São inimigos capitaes. Um d'estes dias foi encontrado um sujeito—se eu lhes dissesse o nome riam-se!—encerrado n'um portal á espera que passasse um corcunda para o desenguiçar de outro que havia visto.

Ha comtudo um remedio para este mal. Consiste em esfregar na parede uma moeda de dez réis que tenha tocado na giba de um corcunda.{112} Mas—para obter o remedio—quantas difficuldades! quantas astucias! quantas subtilezas! O corcunda está sempre prevenido e não se deixa tocar. Ha um muito conhecido em Lisboa, que por mais de uma vez tem posto a policia em bolandas—sómente para garantir a giba do contacto impudico da moeda preservativa.

Ha quem affirme que os vesgos são ainda peiores que os corcundas, e que a sua influencia é de maior malignidade. Felizmente o Mascaró promette acabar com elles,—e não haverá mais enguiçados por este accidente!...

Consolem-se todavia os que teem a scisma do enguiço,—sujeitos de{113} pouca fortuna, sedentarios que fazem gallos na nuca a dar com a cabeça nas costas da cadeira; peões para quem estão de reserva as topadas nas pedras das ruas; homens das fatalidades, heroes das pequenas miserias, que farejam na malicia da sorte inquietações para todas as horas do dia; consolem-se uns com os outros, porque ha muitos.

São sujeitos a enguiços os homens pequenos e os grandes homens; homens grandes no corpo e na força;—homens grandes no espirito; phantasistas, poetas, os artistas quasi sempre, a nobreza e o povo, os sabios e os ignorantes; têem enguiços os pastores; e os reis—ha{114} uns tempos—andam muito enguiçados!...

Os patetas riem-se d'isto; os homens de juizo, tambem. Singular harmonia! Toda a cautella é pouca em não se indispôr a gente com elles, nem com o acaso;—os enguiços são como as paredes, têem ouvidos; e lá se entendem, lá se entendem entre si... Basta uma palavra de mais para uma pessoa se comprometter e vir depois isso a custar-lhe caro... Máu! Ahi está que n'este instante a penna não quer tomar tinta e está a espirrar-me entre os dedos como se lhe repugnasse escrever.—Vou mergulhal-a no tinteiro... Peior! Deitou-me um borrão no papel...—Basta!{115} Talvez que este borrão resuma, melhor do que eu podesse fazel-o, o systema dos enguiços. Não escrevo mais.{116}

 {117}

VII

Agouros

Agouro e enguiço não são a mesma cousa. O vulgo confunde ordinariamente o sentido natural destas palavras, que têem todavia uma significação diversa. Agouro significava antigamente predizer o futuro pelo canto, gesto, e pasto das aves (ex avium cantu, gestu, vel pastu futura divino) e por extensão conjecturar{118} de qualquer modo. N'este sentido se usa hoje em Portugal, quando por incidentes insignificantes—a que chamamos agouros—queremos predizer o futuro.

O terror—de umas vezes os remorsos, os ciumes queimadores de outras vezes—torna videntes certas creaturas. Mudam de côr, á mesa, se espalham sal na toalha; sobresaltam-se na aridez das praias se succede levantarem com o pé os limos, que cobrem as borboletas do mar; atormentam-se quando ao atravessar charnecas se lhe prende o lenço nas urzes; vêem imagens, conhecidas nos montões de nuvens negras que um relampago allumia. Tudo lhes falla; para elles até a{119} materia muda tem lingua. Ouvem presagios no grão de areia que o vento leva, no tremer das folhas, nas borboletas escuras, no voar das nuvens, na agua que reflecte as figuras, na herva que balança ao peso de uma formiga... Ouvem chorar vozes no orvalho, nas trepadeiras se lhes cáe chuva, no canto do gallo fóra de horas, no mocho, nos morcegos, no uivar do cão...

Respiram ares de vertigem, ares doentios. Avistam estocadas á direita e á esquerda; golpes mortiferos; desgraças precipitadas;—a fatalidade delirante; o horror da incoherencia em que tudo lhes parece harmonico. Vivem de cabeça baixa e braços encruzados, agitando n'alma{120} questões insoluveis, corre-lhes nas veias com preguiça um sangue fraco que arranja o que se chama agora anemia; doença em que ninguem fallava, e que, estou persuadido, principiou por elles. Gente receiosa e triste a quem o nosso clima estonteia ainda mais, gente que podia passear commodamente á sombra glacial das extensas galerias dos castellos do norte, e para quem a vida é um supplicio atroz,—condemnados de manhã ao Chiado, abrazados de calor; de noite ao Passeio Publico sacudidos pelas ventanias.

Têem todavia essas naturezas o que quer que seja de religioso. Vão seguindo na vida como a Electra{121} dos gregos, devota e severa, confiando ás cegas nos oraculos e submettendo-se sem murmurio ás leis da fatalidade. Parecem-lhes legitimos os sacrificios;—dir-se-hia que, como outr'ora, ouvem os deuses pedir-lh'os; offereceriam o pescoço ao cutello resignadamente, como holocausto inevitavel, se o agoiro os avisasse... Os artistas principalmente,—os que são dignos d'este nome, os notaveis, os verdadeiros artistas—têem superstições indestructiveis e muitas vezes os acontecimentos parecem mais tarde dar-lhes rasão. Ha exactamente quatro mezes, n'uma das ultimas manhãs de março, humida e ventosa, o actor Rossi que ia embarcar para o Rio{122} de Janeiro, e a quem de Genova haviam mandado um vapor conduzindo a companhia, que não era aquelle que se lhe havia promettido e que elle esperava do contracto, dizia-me em frente do Tejo:

—Adeus. Sinto que não vou ser feliz. Trocaram-me o barco. Presagio funesto.

As noticias infelizmente tem confirmado esse facto,—um pouco mais singular ainda do que o agouro!

Da maior parte das vezes, as superstições dirigem-se unicamente a evitar o mal e aplanar o caminho; mas, o peior é, que, a poder de se darem a perros para assegurar a felicidade, transformam-a quasi sempre em miseria ou em asneira.{123}

Um, que cuidou sentir-se chamado a representar papel na camara, lá arranjou ser deputado—mas o que não arranjou é fallar, porque os agouros o impedem. Os agouros dizem-lhe que a habilidade do orador é saber ouvir e callar; que, por pouco que se falle, lá succede um dia dizer-se o contrario do que se havia dito tempo antes; que os adversarios abusam d'isso e ficam causticando o sujeito; que a força das maiorias consiste em votar sem abrir o bico; que assim como o nauta dextro caça a véla, e muda o rumo ao leme conforme sopra o vento de um lado ou do outro do horisonte, assim a elle lhe convém variar a proposito conforme as circumstancias,—com{124} socego, e sem bulha. E tudo isto lh'o diz o azeite quando se entorna, e o espelho quando se quebra, e uma aranha no tecto, e um besouro que passa no ar a rosnar-lhe avisos:—«Calla-te, calla-te. As fallas são de prata, e o silencio é de ouro. Calla essa boca!...»

Outro não se move, não vae d'aqui para ali, sem recorrer a um exame prévio de tudo que o cérca. Sabe este mundo e o outro no que respeita a agouros; não sabe mais nada, é certo, não sabe das suas cousas nem trata d'ellas—mas sabe d'aquillo. Não permitte que lhe cosam a fazenda em cima do corpo, que é signal de desmedrar, emmagrecer,{125} definhar, dar á casca;—não corta o cabello em quarto minguante com receio de que lhe não torne a crescer; evita quando está na cama cortar as unhas e olhar para um espelho ao mesmo tempo, indicio de estar jogado aos dados;—não permitte que em sua casa deitem lixo fóra de noite,—pobreza imminente;—não póde vêr sem sobresalto duas facas em cruz, desordem fatal;—e por cousa alguma morará em «casa de esquina,—morte ou ruina!»

Este, se vê um «ladrão» na véla—sabe que vae ter carta.—Aquelle, em caindo uma thesoura e espetando os bicos no chão, espera uma má visita.{126}

Muitos não se desfazem de pombos. Ou não os ter nunca, ou tel-os sempre; o mais a que chegam é dar o ultimo casal ao Espirito Santo no dia da Ascenção do Senhor.

Ha noivos que fogem de ir ouvir os banhos para o seu casamento,—porque, se os ouvem, ou não casam ou morrem. Diz-se que quem cáe de cama ao domingo, nunca mais se levanta.—No campo, em os martyrios de um jardim dando muita flôr, julga-se breve a morte do dono da casa.

Na existencia de alguns parecem agrupar-se maliciosamente os presagios. A vida de Isidoro—o nosso popular actor Isidoro, do theatro da Trindade—é um pinhal de agouros.{127} Vamos vêl-os com cautella; se têem medo, tragam luz... Nasceu em dia de finados de 1828; foi baptisado n'uma sexta feira, 2 de janeiro de 1829; principiou em 1842 a aprender o officio de tecelão na fabrica de Xabregas, e foi tres annos numero treze; trabalhou dois annos no tear numero treze; depois de official foi obrigado a dar seis mezes de aprendiz em castigo de uma falta que commetteu na sexta feira de Passos de 1845, e ficou tendo o numero vinte e seis, que é duas vezes treze. Assentou praça no 2.º batalhão movel em 1846, e durante oito annos foi numero treze. Representou pela primeira vez em theatro particular a{128} treze de junho de 1846; em theatro publico n'uma sexta feira, 30 de novembro de 1849. Foi escripturado para o Porto e embarcou para lá no dia treze de maio de 1851. Fez o primeiro ensaio no Gymnasio n'uma sexta feira, 11 de março de 1853. E—para corôar este catalogo de memoranda—casou em dia de S. Bartholomeu!... Por entre este capharnaum de vaticinios tem lidado, triumphado, mais invulneravel do que o capitão de Homero—que o não foi no calcanhar.

Não só é dia de agouro a sexta feira; tambem para muitos o é a terça. O actor Santos,—depois de uns arrufos de artista com poeta, que houve entre elle e Francisco{129} Palha—não quiz apparecer pela primeira vez no tablado da Trindade n'uma terça feira que se destinára para primeira recita de Frou-frou. Mas já estavam afixados os cartazes, alugados os camarotes: que remedio havia de dar-lhe? E deu-lh'o. Foi na vespera, segunda feira, ao palco; representava-se a Flor de Chá; no ultimo acto vestiu-se de china; na ultima scena, perdido entre os comparsas, dançou com elles o can-can com que terminava a peça. Na noite immediata representou Frou-frou; era a segunda vez que apparecia ao publico da Trindade; não o sabia ninguem, mas sabia-o elle! Os agouros contentam-se assim.{130}

O quarto treze nas hospedarias está de voluto quasi sempre. Agora já principiam a adoptar um expediente malicioso, e, visto o treze não se alugar unicamente por ser treze, substituem-lhe o numero por um doze repetido, e já não se vê por cima da porta senão 12—12.

Treze pessoas á mesa, prophetisa que isso custará a vida brevemente a algumas d'ellas. Ha pouco tempo esteve retido n'uma casa o filho de um amigo meu, que ia passear as tardes, quando o chamaram d'uma janella e lhe explicaram ser indispensavel a sua presença á mesa para se principiar a jantar. O rapaz allegava que não tinha vontade de comer, que acabára de jantar{131} com os paes n'aquelle instante. Debalde! Não o largaram senão ao café.

Na vida aventureira dos mares têem sido sempre triviaes estes medos que vem das tradições e das prophecias. Deixam ás vezes de ser tolice, para ser apenas o terror sublime que se apossa dos espiritos mais elevados e mais nobres. Teve-os Moysés no cimo do monte quando avistou na baixa do valle os hebreus revoltosos, já com saudades da escravidão e das cebolas: e desanimou e julgou estar doido, e o certo é que avistou a terra da promissão, mas não conseguiu pôr lá o pé—e morreu á beira da realisação da sua idéa...{132}

A illustração dos officiaes de marinha de hoje já quasi não admitte os agouros, mas entre a maruja ha ainda alguns. Padre a bordo, quando não é capellão do navio, annuncia refrega dura, viagem contrariada.—Mulato a bordo, é salceirada frequente, e por vezes—na linguagem maritima—vento de gaveas nos terceiros e de traquete na passadeira.—Cadaver ao mar, predispõe para tareia e tem de se aguardar vigilante o salto do vento para evitar o empandeiramento do velame.

Ás vezes veem como que disfarçadas, as predicções, nos brinquedos das creanças. Em os pequenos figurando batalhas na rua, em elles{133} armando barretinas, arranjando bandeirolas, e travando combates, é signal de reboliço, signal de guerra. De outras vezes, se fingem conduzir um saimento, morre dentro em pouco alguem no sitio... É certo? Não é? Como quizerem. Os agouros, para mim, são o tinha de ser: consolação—de quem não tem outra!...{134}

 {135}

VIII

Feitiços

Feitiço é o sortilegio, a fascinação, o olhado. É-se victima de qualquer mal, e soffrem-se as consequencias ignorando as causas—sem outra culpa ás vezes senão a de desejar muito, muito, alguma coisa. Espera-se um bem:—falta, porque se aspirou a elle; receia-se{136} semsaboria: ella que chega porque a attrahimos. O pulsar inquieto e ancioso do coração é uma especie de bulha de passos que faz com que fuja a creatura ou a coisa a que se quer bem. Dá a sorte pão duro a quem tem sede, e agua a quem tem fome; vivem na abundancia os que estão fartos, e quem for só rico de appetite—pede esmola. Vae a saraiva embirrar com as seáras que o sol tisnou, e derrete-se a neve dos montes por cima dos valles que a chuva innundou já... Feitiços! O ir boiando contra a maré pelo rio do tempo adiante. A Psyche queria tornar a ver o amante, e ao inclinar da lampada, o amante acordou e fugiu...{137} Voltou-se Orpheu para ver Eurydice, e a adorada creatura caiu logo outra vez no inferno. O feitiço é um demonio pequeno com um grande archote nas mãos, levantando-o entre as pessoas e o objecto que as seduz: dá-lhes claridade, dá-lhes fulgor, e, á proporção que se está mais perto, principia o demonio a pernear, salta d'aqui, salta d'ali, dando luz a outros objectos que estejam mais distantes, e tornando em sombra o que tinha sido, havia momentos, uma apparição scintillante! A imaginação popular precisa de casos extraordinarios para se entreter, e não gosta senão do que fôr maravilha, do que estiver superior á{138} humanidade, do que ella não entender... Não se vê na Iliada andarem sempre os deuses a fazer costas aos heroes? Assim é na vida. Tem cada qual um auxilio sobrenatural a que recorre. Um uma estrella, outro um oraculo;—este as romagens á senhora do Cabo, da Nazareth, da Bonança, de Porto Salvo ou da Guia: mas a uma d'ellas de sua feição, e não a outra, porque o que acredita na Senhora da Guia, não dá nada pela do Cabo; aquelle, em perdendo coisa, não ha fazer com que a procure sem resar um responso a Santo Antonio;—o outro tem scisma com o passar de noite defronte de um espelho, por ser possivel ver-se morto,{139} ou ver outra imagem em vez da sua...

Apesar de mil precauções, quando as pessoas menos o cuidam lá está alguem na sombra, perdido, ignorado, a dar-lhes feitiço, ou a deitar-lhes uma sorte. Ninguem o vê; ninguem o ouve; e o feitiço lá vae saindo das resas, dos ensalmos, das pragas, das orações, do esconjuro...

Alguidar, alguidar
Que foste feito ao luar,
Debaixo das sete estrellas,
Com cuspinhos de donzellas
Te mandei eu amassar...

As fadas, outr'ora, presidiam a isto. Havia a fada do bem, e a do{140} mal, que eram madrinhas. Vinham uns ao mundo para as venturas, para a desgraça outros, conforme o querer do ceu ou da natureza. Mas as fadas nos ultimos tempos foram deitando, como se lá diz, os bracinhos de fóra, e andavam de mais por este mundo. É bom ter fadas, mas com moderação;—e era isso o que ellas não queriam perceber, assolando o paiz a ponto de levarem a camara municipal, que nunca teve o sentimento da poesia tão desenvolvido como podia ser, a prohibir n'uma postura de 1385 que se usassem em Lisboa nem em seu termo—«obra de feitiços, nem de ligamento, nem de descantações, nem de viadeira,{141} nem de carantulas, nem outrosim medir cinta, nem cantar janeiras, nem maias, nem lançar cal ás portas, nem furtar aguas, nem lançar sortes.»

Principiou depois a fazer-se depender tudo da hora e da lua. Veio a mania de que os astros tinham grande influencia nas acções, idéas, ou inclinações humanas. Ha negociantes que importam annualmente, a titulo de fazer folhinhas de porta e de algibeira, uma carregação de petas que offerecem á gente como chegadas directamente dos planetas. Que em tal mez ha de morrer um grande personagem:—sempre morre, e seria um transtorno se assim não succedesse,{142} n'uma terra como esta em que se aponta a dedo quem não é conselheiro!—que no mez de tal ha de correr uma noticia falsa: que no mez d'isto hão de nascer muitas creanças, no mez d'aquillo haverá questões com o papa: no mez d'aquell'outro se fará um emprestimo: em tal planeta entrando em tal signo cairá o ministerio, ou se dissolverá a camara. Prophecias certissimas! Feitiços irremediaveis! Foram-se as fadas, vieram os almanaks!...

Ao que os medicos ás vezes chamam «nervoso» chama o povo feitiços. Mulher pallida, franzininha, com ares de musa da melancholia, dada a doença que ninguem entende,{143} chorando e rindo ao acaso, torcendo os dedos por qualquer coisa, quebrando o leque, rasgando por gosto, moendo e ralando as pessoas de quem mais gostar,—tem feitiço. As artistas, ou porque a incerteza da vida de theatro as leve a isso, ou porque a arte as influenceie, teem phantasias inacreditaveis. A sr.ª Emilia das Neves, pontualissima aliaz em ir aos ensaios,—ensaia todavia os papeis em casa mais do que no tablado; é entre as quatro paredes da sua sala que ella calcula os effeitos, ajusta os sons, os gestos, os delirios e as quedas. Antes do Gladiador de Ravenna se representar, já as criadas da famosa actriz—por{144} espreitar ás portas e escutar—sabiam de cór o papel de Tusnelda. A sala é a grande preparação;—o tablado é o dever; a sala é o feitiço. Depois nos bastidores, antes de entrarem em scena, cada artista tem a sua invocação: uns benzem-se simplesmente, outros affagam um coral torcido, outros tomam a figa de um breloque, para evitar o quebranto.

Os feitiços ás vezes são brincalhões. Ahi está o nosso Isidoro, de quem fallamos por occasião dos «Agouros», que tambem é mimoso dos feitiços. Abriu os olhos ao mundo na travessa da Pereira, que tem no topo o Cardal da Graça, á direita o sitio chamado a Gloria,{145} e á esquerda a rua do Paraiso!...

Conhecem o Matta? Quem ha que o não conheça! O Matta cosinheiro, o Matta pastelleiro, o Matta artista,—o Matta do Chiado emfim, como lhe chamam. Elle tem um avental branco. Para elle, o avental branco é tudo. Não sei que lhes faça. Quizera explicár-lhes isto de maneira que me entendessem bem; assim como não ha nada que nos faça admirar dos tolos como ser incomprehensivel, assim a clareza é tudo para pessoas de juizo; e eu sei a quem me dirijo. Vamos.—Vamos ao caso: Tem o Matta um avental branco. Quem uma vez na vida pelo menos não frigiu uns{146} ovos, não fez um biffe, ou não assou um coelho, não sabe dar valor a isto. Ha muito quem conheça os melhores tratados a respeito da arte alimenticia, e que seja incapaz de uma inspiração de espeto ou de caçarola—por nunca haver posto o avental branco. Com elle é que o Matta se tem achado no meio dos perigos do seu destino e das alternativas a que estão sujeitos seus frageis dias,—os vapores que o carvão exhala e que lhe vão minando a saude, comquanto vigorosa: a labareda e o fumo de tão perniciosos resultados para os pulmões e para a vista. E elle sempre alli como o soldado entre as balas,—com a differença de{147} que para elle todos os dias que Deus dá são de combate, e combate que não dá postos nem condecorações! E dirige e tempéra, e tira e põe,—mas de avental; mesmo que não se trate senão de dar a voz de commando,—de avental sempre: aliás, tudo se perde, entra na comida o bispo,—unico que não tem nem terá partido,—agúa-se o môlho, ou estraga-se a geléa, a geléa que elle por assim dizer reformou, essa querida geléa que data do paraiso,—porque a serpente não seduziu Eva com uma maçã, como se espalhou; ainda não havia maçãs: a maçã é muito mais moderna; seduziu-a com geléa: geléa que se apanhava da rezina{148} das arvores. E não lhe fallem de tirar o avental, em se tratando de jantar grande,—porque o não tira; é ao avental branco que elle deve tudo; o avental branco é o seu pae, é o seu feitiço!...

Ha aguas beneficas, aguas que dão virtude, e outras que transformam a gente, como a que a Sabia dá ao marido curioso, no auto da Ciosa, de Antonio Prestes, para que a esposa o confunda com o primeiro namorado que teve e possa ver como ella o recebe: «Toma esta agua e o que vae n'ella
lava teu rosto com ella,
tornar-te-has na compostura
e fegura
do que se foi.»{149}

No mar tambem ha feitiços, e é por causa d'elles que se parte a verga da gavia, se rende o mastareu do velacho, se perdem as vergas da gata e secca, encalha o navio ou tem de voltar para traz.

Dizem que ha sitios no mar,—o cabo da Boa Esperança, por exemplo,—em que, ás vezes, se ouvem vozes de som espantoso, palavras inteiras, de feitiço; e que o pio de certas aves que passam de noite no mar alto é o gemido das almas dos capitães de navios que se perderam ali e andam a cumprir fado até que as aguas lhe levem o corpo á terra e encontrem emfim sepultura.

Os feitiços no mar representam{150} a attracção do elemento, o magnetismo da natureza, a perfidia e avidez da agua insaciavel. Têem caprichos perigosos. Em estando alguem para se afogar já na vespera se põem a dançar por cima das ondas. Adivinham o navio que ha de naufragar, e mal vae ao piloto em os feitiços dando no barco.

Até se conta que D. Sebastião está ainda hoje a dormir no fundo do mar, por lhe haverem dado feitiço; que as proas dos navios que vão passando lhe quebram de tempos a tempos um pedaço do tecto do palacio em que elle está guardado; que acorda n'essas occasiões, estende os braços, quer chamar, mas lhe tapam a boca para{151} que não grite, e elle adormece outra vez...

As vozes do povo são, n'estas crendices, o grande oraculo. No Porto vae-se á capella da Senhora da Verdade, por traz da Sé, pede-se que faça ouvir nas vozes do povo o que se quer saber, e á volta, de ouvido á escuta, repara-se se diz sim ou não quem vae passando.—Em Lisboa, pelas festas de junho, põe-se a herva pinheira á meia noite ao relento na esperança de se conservar verde e crescer. Mal vae desde logo, se ella deita espiga.—Queimam-se cinco réis na fogueira, dão-se depois de esmola a um pobre e pergunta-se-lhe o nome: hade chamar-se o marido{152} como se chama o homem da esmolinha. Da alcachofra, dos bochechos, do ovo no copo d'agua, é quasi inutil fallar-lhes.—Quem tiver sete filhos está em mau caso: ou o ultimo se ha de chamar Mauricio, e um irmão ser padrinho,—ou nascerá defeituoso.—Enrolam-se tres papelinhos, com seu nome cada um, bem enrolados, e enrolados bem irmãos; deita-se um á rua: outro para traz da porta: debaixo do travesseiro o outro. Este é que ha de ser o nome do noivo. Extrae-se toda a casca a uma fava,—metade da casca a outra, e junta-se ás duas uma fava com casca; mettem-se as tres entre os colxões. De manhã, tira-se uma; se{153} traz casca, vem vestida e a pessoa virá a ser rica: se não traz, é nua e a pessoa vem a ser pobre; se traz metade da casca, a pessoa será remediada...

O peor dos feitiços, porém, ó leitoras! o feitiço mais arriscado, ó morenas,—o feitiço mais perigoso, ó loiras, é o amor,—sois vós! Aquella de quem a gente gosta, e aquella que gostar de nós!{154}

 {155}

IX

Encantos

Os encantos veem de longe. Circe, a encantadora por excellencia, converteu em porcos os companheiros de Ulysses:

Carminibus Circe socios mutavit Ulyssis

Para quem combatera na guerra dos dez annos não deve ter sido uma methamorphose muito agradavel!—O{156} grande impostor do Simão magico, contemporaneo dos apostolos, para mostrar o seu poder egual ao dos deuses quiz voar por cima de Roma—como o nosso Bartholomeu Lourenço por cima de Lisboa. S. Pedro, que assistia á experiencia, fez por intermedio das suas orações que caisse das alturas e se despedaçasse...

Nos tempos modernos em Portugal os grandes encantos teem sido os das mouras. Querem muitos que ellas hajam ficado no nosso paiz desde a dominação mourisca, e vivam escondidas nas covas e no mar—para melhor guardarem os seus thesouros, que constam de perolas, esmeraldas, rubis, saphiras,{157} cordões de ouro, brincos, anneis, pulseiras, e broches de diamantes de um primor de desenho superior ao do florentino Cellini. Parece que saem de madrugada para arejar em terra os bens, e desapparecem aos primeiros raios do sol, apagando-se-lhes logo a riqueza e voltando outra vez a guardar á sombra a sua formosura e as suas joias. Pretendem outros que ellas se recolhem antes do cantar do gallo, e á meia noite se lhes acaba o encanto e o poder,—como diz Garrett na D. Branca:

E ai! se o gallo cantou, que á meia noite
Encantos quebram, e o poder lh'acaba.

Muitas vivem nas fontes.—Algumas{158} têem ido á India n'uma casca de ovo. No campo ainda se usa hoje quebrar a casca dos ovos para que as encantadas ruins não embarquem nellas, e vão chupar o sangue de meninos por baptisar.—Algumas têem-se fingido encantadas, para as desencantarem melhor. Á sombra dos encantos tem havido muita casta de obra, e não poucas se serviram d'isso para apanhar marido. Lá o indica bem a trova da «Encantada»: o cavalleiro vae á caça e encontra no arvoredo uma donzella que lhe diz achar-se ali por sete annos e um dia, e completar n'esse dia o fadario. Offerece-lhe elle saltar para o cavallo, e dá-lhe a escolher:{159}

Ou nas ancas ou na sella
Onde fôr mais honra minha.

Ella trepa. Partem. Vão seguindo. E lá pela estrada adiante, ella larga a rir, a rir...—Estava a zombar d'elle. Era tão encantada como eu!...

No paiz do peixe e das perolas, do coral e das alforrecas,—no mar—ha-as tambem, e dizem que em maior numero hoje do que em terra. É o reviver das divindades humidas da fabula; successoras das naiades e das nereidas, que o christianismo enxugou com o exorcismo; menos bonitas, provavelmente, do que as sereias pagãs, que encantavam{160} Ulysses com o soltarem a voz deliciosa, e o faziam torcer-se todo, preso ao mastro do navio; mas descendentes, mas netas d'ellas,—e, o que é mais, mulheres como as outras, dos bicos dos pés á cabeça! Conta-se o caso de não sei que moço, que deixou uma d'ellas para ir casar com a filha de um capitão mór de aldeia; durante o jantar das bodas, o noivo ergueu casualmente o olhar e viu um pésinho alvejante e nu a sair do tecto;—affirmou-se, conheceu que era o pé da sua encantada, aquelle bonito pé que elle beijára tantas vezes, e entendeu logo de si para si o que queria dizer um signal d'aquelles. Mandou chamar{161} um padre, confessou-se, pediu os Sacramentos, e dispoz-se a bem morrer. Á meia noite expirou, depois de recommendar muito que o enterrassem em certo sitio...

Ha quem diga que são mais bonitas do que as fadas, e querem outros que sejam feias de metter medo. Fazem-se-lhes os dentes verdes e os olhos ficam parecendo olhos de peixe. Não deixa de haver harmonia n'estas opiniões desencontradas; porque, variavel como a onda que a encobre, a encantada no mar deve ora ser horrivel como a vaga furiosa, ora fresca e pura como a agua transparente. Refere-se que em tempos iam todas as manhãsinhas á praça{162} fazer compras; eram conhecidas por terem sempre molhada a orla do vestido. Eram mulheres pallidas quasi sempre, que andavam de olhos no chão sem dar palavra a ninguem. Pagavam tudo com moedas de dez réis furadas. Em Peniche trata-se ainda d'ellas como de coisa certa. Mostra-se perto das Berlengas o sitio em que fallou uma; appareceu, ao sair do luar, com um espelho na mão, e gritou aos marujos que não tivessem medo porque estavam perto de terra: mas em elles lhe vendo a cara não tornavam a ver terra nunca mais e o caso foi que ali se perderam todos n'essa noite...

Teem genio proprio do elemento{163} em que vivem; graciosas e crueis; amantes e perfidas; gostando de levar os homens para debaixo de agua, o que tambem era a balda das nymphas. Quando os affogam já ouvi dizer que não é por mal; até ás vezes se apaixonam por elles, e lá acham maneira de os consolar por esses mares de Christo da travessura de lhes roubar a existencia humana.

Não podem ficar em terra além da hora marcada, e os amores que por cá têem acabam sempre mal. Ainda ha no Baleal a tradição de um rapaz padeiro que morreu doido por causa de encantamentos, e de encantadas,—que ora lhe appareciam á borda dos regatos a{164} pentear os cabellos de oiro, ora á tona d'agua nos poços, ora nas ondas do mar; até que, uma occasião em que elle estava dormindo encostado a um muro, se lhe enroscou ao corpo uma que andava em figura de cobra...

Por duas ou tres vezes na Nazareth uns pescadores as apanharam ao colher da rede e fizeram a diligencia de ver se ellas fallavam:—mas conservaram-se sempre tristes e caladas, sem quererem comer nem beber, e, tão depressa puderam, fugiram outra vez para a agua... Tudo isso já lá vae. Hoje, as banhistas fazem-lhes concorrencia. A Deuza dos Mares, a Flor de Lisboa, e os vapores do{165} sr. Burnay, assustaram-as. Deixaram de vir ter comnosco. D'aquelle serralho liquido já não saem cá para cima senão os mudos,... que são os peixes!...

De que provém, o encanto das mulheres? Não ha sabel-o. Até a formosura poucas vezes lhe vale. As bonitas, bonitas, têem muito quem as gabe e pouco quem se apaixone por ellas. Os defeitos ás vezes são o grande segredo do seu poder,—porque a graça precisa de ser picante. É como com as flores; roseira que não tenha espinhos ha só a do Japão; dá rosas bonitas,—mas sem cheiro! O encanto nos tempos de hoje está onde a gente o põe—n'uma creatura,{166} n'uma vaidade, n'uma paixão, n'uma mania. Para uns é a mulher; para outros é o dote. Para alguns, uma particularidade qualquer; uma imagem emblematica, uma palavra ás vezes—como succede com os titulos dos reis, cada um de seu primor especial; em Hespanha «magestade catholica», em Portugal «fidelissima» na Monomotapa «senhor do sol e da lua»!... Ha um supremo encanto que transforma tudo; vence, derruba, consegue; mas n'esse quasi ninguem faz reparo:—a vontade.

Heroismos, casos de romance, aventuras phantasticas—tem ella o encanto de realisar tudo isso. Um homem de perto de Barcellos, chamado{167} Manuel Corrêa, que em 1838 viveu no Rio de Janeiro, guiou sósinho um navio, que a tripulação abandonára, no meio da tormenta navegando sete dias até fundear no porto de Santos!

O encanto toma differentes fórmas e esconde-se ás vezes nos objectos de apparencia inanimada,—nas bengallas e nos chapeus de chuva por exemplo: trastes perfidos e caçoistas... Em estando para chover já a bengalla o adivinha com o seu instincto nativo de marmeleiro, e vem offerecer-se muito lampeira á hesitação em que uma pessoa está:—depois, em se apanhando fóra de penates, se desaba a cair chuva e o sujeito fica encharcado{168} põe-se a bengalla lustrosa de agua a rir, a rir... Pelo contrario, em o sol estando com tenções de tirar d'ali a nada a caraça de nuvens e brilhar senhor do firmamento azul, o chapeu de chuva dá logo por isso, pressente-o em cada fio da seda, trepa-se no dono antes de elle ter tempo de consultar os ares, e ahi sae para a rua—não chovendo, e ficando o pobre homem condemnado a andar com elle todo o dia debaixo do braço. Ha encanto! ha encanto na bengalla e no chapeu de chuva; representam a vida debaixo dos seus principaes aspectos,—a borrasca e a bonança, a tormenta e a calmaria! O chapeu de chuva ergue-se para o ceu,{169} e a bengalla volta-se para o chão; elle levanta-se, e ella curva-se: elle desabrocha nas nuvens e defende-nos do que vem de cima, ella serve para os casos terrestres e para nos defender o lombo do que vae cá por baixo!

O encanto principia a ter poder n'uma pessoa antes mesmo d'ella nascer. Chorar na barriga da mãe é annuncio de que se ha de ser feliz n'este mundo—Mas, se a mãe, em conversa, contar a alguem que o filho lhe chorou no ventre, corta-lhe a sorte, e nasce anão ou gigante. Qualquer das coisas não é boa. Os gigantes em Portugal saem sempre inferiores—haja vista aquelle do Minho, que esteve ha{170} annos em exposição na rua Nova do Carmo, espantalho enorme para qualquer profissão, mas um tanto chôcho para gigante. Depois a vida que levam é de mau fadario; nem namorar podem, por não haver donzellas que se exponham a affrontar seu desmesurado affecto, e por ser necessaria uma escada de mão para se lhes fazer festas na cara!

Ser anão tem mais vantagem, cabem em qualquer buraco, vestem-se com um metro de fazenda, e quando morrem basta-lhes um caixão pequenino; mas não se póde dizer que seja muito bonito, e é arriscado a desordens, porque ás vezes, mesmo sem querer, lá dão{171} uma cabeçada nos callos de quem vae passando...

Em as meninas tendo comichão no nariz é aviso de que n'esse dia um rapaz lhes ha de dar um beijo;—em lhes comendo a palma da mão, já a gente sabe que está para receber dinheiro, mas é preciso não coçar e fechal-a logo;—a orelha direita quente, estão a dizer bem de nós: quente a esquerda, alguem nos corta na pelle.—Na madrugada de S. João quem fôr lavar a cara á fonte, fica bonito:—e quem nadar n'essa noite alcança o que quizer, levado na onda que dá fortuna e indo ao porto onde os amores sorriem...

Os dois encantos negros são as{172} almas penadas e os lobis-homens. A preta Domingas, que vendia fava rica, enviuvára; ao lado da sua casa morava um sapateiro, menos barbudo que Merlim mas da força d'elle em malandrinices. Alta noite o sapateiro trepava-se-lhe á chaminé e gemia lamentosamente:

Eu caio! A minh'alma anda pinando as penas di purgatorio. Sou o teu difunto marido, i peno por ter ficado a diver uma moeda ao vijinho sapateio...

—Pois não ha de pinar por isso a tu'alma, pae Faxico! respondeu a preta. Eu lhi pagaré, ao vijinho sapateio!

E pagou. E o sapateiro foi arrecadando{173} a moeda, dizendo com modestia que não era pressa. E d'ali em diante era certa a lamuria, pela noite velha, ora por dividas de jogo, ora de marufo, e a Domingas ia pagando até que uma vez se cançou do encanto e lhe redarguiu:

—Qui a tu'alma vá p'ra o ceu, qui a tu'alma vá p'rá inferno, eu já não dou mais rial ao vijinho sapateio!

E o caso foi que desde então a alma do sapateiro é que principiou a penar deveras e tambem o seu corpo, porque a preta cumpriu o que disse e nunca mais lhe deu vintem.

As almas penadas são d'esta qualidade;{174} e tambem defuntos, que por lhes faltar alguem á palavra dada—vagam n'este mundo, até que lhes satisfaçam as ultimas vontades.

Lobis-homens são pessoas que andam a cumprir sina, a cumprir um fadario, mudados em animaes; em lobo, em cão, em gato, em burro... Tão depressa apanham encruzilhada onde se tenha espojado animal, despem-se logo, mudam-se n'elle, e espojam-se tambem. Isto é,—espojavam-se. Isso não continua, e até já ouvi dizer que succede agora ao contrario, para variar, e que tem por ahi apparecido seu burro—mudado em homem.{175}

X

Sonhos

Ha gente que precisa viver mal; ter transtornos, ralhos, penas, estar n'um inferno; tudo, menos levar a vida com o socego que lhes faz lembrar talvez a monotonia da agua dormente—mare mortuum! Querem casos, avisos, phantasmas a trepanar-lhes a cabeça com desvarios nem possiveis nem faziveis...{176} A antiguidade espantava-se com o assoviar das serpentes, com o espirrar das luzes, com os vapores negros que saem da terra, com o roncar das Eumenides; a nós que somos a civilisação e o progresso, atterra-nos hoje sonhar com amoras, desgosto e feridas: com dados, perder os bens: com espelho, traição: com favas, doença: com herança, miseria: com padre, morte!

Alguns, não sei porque,—pode ser que por fazerem o mesmo acordados—sonham só com o que não têem, que são o que não podem ser, que fazem o que não fizeram nem farão; Job dá jantares, Creso pede meia libra, Adozinda bebe, Alda sae fóra d'horas; fica tudo{177} mudado; fazem-se em ortigas as violetas; Manuel Mendes engana Rebolo e Michaella; D. Quichote é farcista, e o Pança é poeta; a alegria aeria, crepitante, explendida, trepa como um foguete e cae d'ali a nada n'uma chuva de lagrimas; uns criticos que ha, da rua e da praça, gente que torce sempre o nariz—limite de seu horisonte—a tudo que vae pelo mundo, chegam no sonho a ser benevolos; está tudo de pernas para o ar; o Apollo de Belvedere é piteireiro: a Venus de Milo assa castanhas, Antinuo usa uma palla n'um olho, Dante é corcunda, Polichinelo está de capa de asperges!...

Porque será que se sonha?! Chega{178} a parecer que a alma não está nas pessoas: que está de fora, e é uma espécie de fio electrico que nos traz suspensos da mão de Deus para nos dizer o que elle quer; que uns cedem com mais facilidade, outros com menos á direcção que lhes é dada,—obedecer é ser virtuoso, e ser criminoso é não querer ir para onde o pucham. Quando a gente dorme, será porque Deus em vez de segurar o fio o deixe bambo:—qualquer brisa do ceu n'essa occasião faz fluctuar e emmaranhar-se toda esta meiáda de fios que prende as creaturas, e acerta ás vezes de encontrar a nossa a alma de quem não conhecemos, trazendo-nos idéas e imagens{179} que não têem parentesco com as imagens e as idéas do costume, extravagancias que só se dão nos sonhos, e que fazem que a gente como que esteja a ver pelo pensamento alheio!

Dizem que os successos do dia preparam os sonhos da noite.—Que a ultima coisa em que se pensa, é a primeira com que se vae sonhar.—Outros affirmam que em se querendo escolher o sonho é justamente quando elle não vem, e certo está em o evitando;—principios um pouco alheios aos do Evangelho, e que parecem querer dizer: Não procures e encontrarás; não batas e abrir-te-hão!

A maneira de dormir deve ter{180} n'isto influencia. Cama desengonçada e velha, que verga e range, ameaçando queda; a porta do quarto cheia de fendas; por cima da cabeça da gente os ratos a passear no sotão, saltando, roendo; depois, o dormir de boca aberta, com a lingua de fóra, de bruços... Como ha de ter sonhos felizes e côr de rosa um estafermo n'essas condições?

As crendices populares de Portugal são geralmente bonitas, e parece sentir-se n'ellas que vieram até nós do genio poetico dos arabes; as dos sonhos porém são quasi todas chapados disparates no genero d'isto: Tres luzes na alcova fazem sonhar com morte ou com{181} casamento.—E crê-se entre nós firmemente em sonhos, e todos os dias se ouve alguem attribuir-lhes a fortuna:—os que costumam ser desgraçados, já se vê, que os felizes não tenham medo que a attribuam nunca senão aos seus merecimentos!—E baralham tudo, o que sonham e o que scismam despertos; e adoecem das noites que passam, agitadas, febris; e queixam-se ora de visões, ora de insomnias:—e ás vezes, vae a ver-se, e o seu mal é ter pulgas no quarto!

Mas contam, commentam, improvisam, e dão parte á visinhança das apparições que tiveram, larvas, espectros, chimeras; e comparam,{182} e apreciam, e consultam-se gravemente de janella para janella de saguão para saguão,—com mais cautela sempre em esconderem o juizo do que a loucura!

É a fraqueza de temperamento; a necessidade de sentir-se escravo, que nos faz ser um povo bisonho, a scismar não se sabe em quê, mal humorado, merencorio e fusco, gatos pingados por natureza! Os que não teem desgostos, engendram-os. Imitamos tudo, menos a alegria dos povos livres. A falta de tormentos,—os sonhos. Em não havendo causas grandes, as pequenas nos bastam para dar cuidados; quem não tropeça n'um tronco de arvore, escorrega n'uma casca de{183} laranja,—e vae de ventas ao chão do mesmo modo.

—Não sabe, visinha? Esta noite sonhei com cominhos!

—Ai! Com cominhos!

—São pragas! É praga que me rogaram.

—Credo! É facil ser!

E dá-se credito.

Se alguem lhes affiançar que sabe metter um ferro em brasa n'um barril de polvora sem pegar fogo—estou que não acreditam ao ponto de se deixarem ficar para assistir ao caso,—mas que sonhar com uma concha seja signal de perder o credito, com um copo de agua de prompto matrimonio, com damascos de grande alegria, com{184} guitarra prazeres dispendiosos, e com papagaio descoberta de um segredo, quem se atreverá a pôl-o em duvida?!

Em Portugal o povo até tem resas para os sonhos,—por tal fórma os males imaginarios se tornam reaes em se pensando muito n'elles—como succedeu ao outro que cuidava ver uma cabeça na bandeira da porta, e foi pintal-a... para a ver melhor. Conhecem a oração a Santa Helena? Vou dal-a tal qual a ouvi: curiosa, original, excentrica; metade em verso e metade em prosa; conforme m'a disseram, que não me custou pouco a conseguil-o:{185}

«Gloriosa Santa Helena
Filha da rainha Irena
Moira foste, christã vos tornaste.
Nas ondas do mar andaste,
Com as onze mil virgens vos encontraste.
Com ellas pão e queijo ceaste.
Ao crucifixo vos encostaste
Tres cravos que tinha lhe tiraste.

O primeiro atiraste com elle ao mar, para o consagrar; o segundo déste-o ao vosso irmão Constantino em Roma para com elle vencer a batalha da fé: o terceiro no vosso peito o depositaste. Minha gloriosa Santa Helena, pelo cravo que tendes no vosso peito declarae em sonhos o que pretendo saber. Se é como desejo, dizei-o em roupas lavadas, em aguas crystalinas, em campos verdejantes:—se assim não é, tudo venha ao contrario, e dizei-o em roupas sujas, casas negras e aguas turvas, Amen

Os somnambulos são a maravilha por excellencia, a rara avis{186} dos dormentes. A dormir fallam, a dormir vão de uma casa para a outra pelo seu pé. Muita gente tem medo d'elles;—principalmente desde o caso de Cupertino... Cupertino casou com uma menina de quem a familia lhe disse em segredo que era somnambula. O homem ficou um pouco espantado de ter mulher que passeiasse á noite pelos telhados; e quando, poucas noites depois das bodas, a viu levantar-se da cama e ir direita á cosinha—foi atraz d'ella. Cupertino não tinha criada: e vinha o gallego pela manhã lavar a loiça;—estavam em cima da mesa uns poucos de pratos; a esposa limpou-os todos, depois engraixou{187} as botas do marido, e foi deitar-se outra vez. Cupertino no outro dia não lhe disse nada do que se passara durante a noite; unicamente, para fazer economias, despediu o gallego.

—Isto não a cança, dizia entre si. Trabalha a dormir!

Principiou depois a fazer experiencias, e a fallar-lhe durante o somno, interrogando-a a respeito do tempo, das coisas da casa, dos acontecimentos politicos do paiz; e era um instante em quanto caía o veu a todas as intenções, conferencias, e mysterios. Cupertino não cabia em si de contente. De uma occasião dirigiu-lhe com voz tremula a seguinte pergunta:{188}

—Ó menina, em que numero sae d'esta vez a sorte grande?

Ella disse-lhe um numero. No dia seguinte—comprou o bilhete e sairam-lhe oito contos. Ganhava o que queria; não tinha mais do que perguntar-lhe qualquer coisa pela noite adiante; estava feliz.

De repente, porém, appareceu carrancudo, turbido, umbroso.... Constara-lhe que a mulher andava, como se lá diz, de cabeça no ar. Á noite perguntou-lhe—quando ella estava a dormir, já se vê:

—É verdade que tu andas de cabeça no ar?

—Ando.

—Por causa de quem?

—Do primo José Maria.{189}

—É possivel! E porque é isso?

—Porque elle é bonito, e tu és feio.

Cupertino metteu-a n'um convento, com horror ao somnambulismo.

A grande preoccupação popular são os pesadelos,—sonhos negros, carregados de angustias, de lagrimas, de gritos, que veem da desgraça que causámos.—-«Não é um sonho, Elvira, são remorsos!» como se diz na Nova Castro. Visões atterradoras, casos fataes, carreira torta, lances mysteriosos, creanças que morreram sem baptismo... Até se diz que os primeiros momentos da morte são ainda apenas dormir, e que se sonha. Os chronistas referem o caso de se haver D. Pedro I{190} levantado depois de morto, para confessar um peccado que não tinha dito.

Acordada, sonha a gente ás vezes; e é bem bom. A musica, por exemplo, faz sonhar; evoca á roda de nós um mundo ideal, por onde andam os sonhos a dar voltas, levantando-se os affectos que estavam caidos, reanimando-se as lembranças que o tempo apagára, cicatrisando feridas com os sons, e acalentando-nos n'um dormir melodioso em que se está a ver o que se ouve, n'um nevoeiro de sonhos em que parece ouvir-se o que se vê!

Em todo o caso ser feliz a sonhar ainda é ser feliz—quando não se possa sel-o de outra fórma. Sempre{191} são horas de ganho sobre os enfados e cruezas da vida. A sonhar se espera, a sonhar se ama, a sonhar se alcança. Só tem o contra de que o sonho não dure. No adro da egreja da Graça havia uma sepultura, que os frades depois levaram para os claustros, que dizia assim: «Aqui jaz Manuelinho, mercador, de 15 annos, que morreu espertando.»—É o perigo de acordar. Acorda-se do sonho—e ás vezes da felicidade!{192}

 {193}

XI

Sinas

Portugal é a terra das sinas,—historias quentes e coloridas como o paiz; contos que nas noites de inverno entretem as creanças pequenas... e as grandes, ao pé do amigo lar.

Quem nascer nos fins de janeiro será sujeito a paixões amorosas (como os gatos): de 13 de fevereiro{194} a 20 de março, nascem os que hão de ser gastronomos:—de 21 de março a 19 de abril, os engenhosos e prudentes, com signal visivel no corpo e ameaçados pela ferocidade de algum animal:—de 20 de abril a 20 de maio, o que ha de casar rico, dar uma grande queda (talvez essa!) e ser careca:—de 21 de maio a 22 de junho, os de sentimentos humanitarios:—de 23 de junho a 22 de julho, gente destinada a demandas, e a viver até os 73 annos;—de 23 de julho até 25 de agosto, os bonitos que hão de casar com mulher que soffra de esterico, ter no decurso da vida perigo grande de golpe de ferro ou aguas do mar, felizes nos{195} negocios, achando algum thesouro escondido (o do Lavradio, por exemplo!):—de 24 de agosto a 21 de setembro, os que hão de exercer cargos do governo (entre nós toda a gente!); as senhoras ficarão solteiras, apesar de grande numero de namoros, e hão de gostar muito de côres espantadas:—de 24 de agosto a 21 de setembro, homens castos (oh!), mulheres activas; cabellos ruivos:—de 22 de setembro a 23 de outubro, ventura no que se emprehende, honradez, passar melhor em terras estranhas do que na patria; mulheres elegantes com uma queimadura n'um dos pés:—de 24 de outubro a 22 de novembro, teimosos, inclinados á astrologia;{196} mulheres robustas, de beiços grossos e dentes grandes;—de 23 de novembro a 21 de dezembro, caracter vergonhoso, afavel, dado á navegação; mulheres com falta de cabello;—de 22 de dezembro a 20 de janeiro, genio iracundo, mentiroso, vão; costume de fallar só; pouco saudaveis; mulheres tafulas, que hão de ser mordidas por algum bicho, brancas, de olhos castanhos, gostando de bailes, tendo muitos namoros, quasi todos militares.

Taes são as sinas, e muito mais ainda; centos de coisas;—tudo. Apparecem, por via de regra, em a gente as procurando: vêem do que nos succeder depois de nascer...{197} ou antes. A mão o dirá. Na mão ha muito. A mão diz tudo. Tudo se encontra e reconhece n'ella,—e já se vê que é d'ahi que provém dizer-se ás vezes:

—Disponha de mim, até onde estiver na minha mão!

Ou:

Peço-lhe isto, por ser coisa que está na sua mão!

Procurêmos por exemplo os peccados mortaes:

Soberba, dedos compridos, seccos, aguçados;—avareza, mão dura e encarquilhada;—luxuria, mãos curtas, gordas, lisas, moles, dedos largos na base;—ira, mão esverdeada e aspera, de unha curta;—inveja, mãos compridas e ossudas;—preguiça,{198} mão branda e macia:

Ter bem claro o M da palma da mão é signal de existencia quieta; as linhas confusas e emmaranhadas indicam vida agitada e tortuosa. A mão direita para isto é melhor do que a esquerda, dizem os peritos; se é que isto não é mais uma velhacada das muitas da mão direita, que anda sempre a chamar as attenções e a armar intrigas para pôr na sombra a irmã, que logo pelo nome principia a perder, coitada, a pobre mão esquerda!

A mania de explicar a sorte pela influencia dos signos, essa podia ter poesia se fosse dita e sentida{199} de outra fórma. Comprehende-se que quem estiver cançado do mundo se refugie nos ceus, com as inquietações que o devoram, a querer ler no firmamento. O astro de Saturno por exemplo tem o que quer que seja de curioso na aureola que o cerca sem lhe tocar, diadema que não se lhe segura na fronte; ha n'isso alguma coisa parecida com a esperança, nimbo de luz que brilha no escuro das magoas, corôa e prisma que nos resplende por cima da cabeça e afasta os raios em vez de os attrair. Os astronomos dizem que aquelle annel não passa de ser mais um satelite—e a esperança é um dos nossos tambem, nuvem de guarda{200} que nos vae consolando com as visões...

A sina é o invencivel, o que está marcado, o que não póde deixar de cumprir-se,—apesar, dizem, de todo o empenho em lhe fugir. Porque se gosta tanto ás vezes de certas mulheres que não são formosas? Porque motivo se deixam em paz as completamente e perfeitamente bonitas, para ir ter paixões devastadoras por uma creatura a quem se reconhecem os defeitos, a quem em certa maneira chega a odiar-se dentro do amor que se lhe tem?!

É a sina, e em tudo é o mesmo: não têem visto ramitos novos a brincarem no tronco centenario{201} dos chorões, e a era a abraçar-se aos muros negros e rachados? Não dizem que as abelhas do Oriente gostam de ir fazer o mel nas ossadas dos animaes mortos? Não se vê os passaros armarem o ninho no colmo das choupanas desertas? É a sina da naturesa material, que tem sina tambem como a natureza intelligente!

Uma formosa que o mundo admira, que se preoccupa de ser bella e de continuar a sel-o, horrorisa-se com a idéa de ter bexigas. A sabedoria das nações diz-lhe que é bom dar duas vezes o braço á lanceta, por mais bonito que o braço seja; que não basta a vaccina da infancia; que é util entregar-se,{202} termo medio, de sete em sete annos áquella operação. Ella consente, e vaccina-se. Espera oito dias como a irmã Anna—sem ver apparecer nada: a vaccina não pegou; tentativa abortada; ahi tem de voltar á obra porque adiante de tudo está a formosura. Segunda representação de vaccina:—trinta segundos; depois, já se vê, da meia hora de preliminares: a paciencia é um facto; ha uma dôrsinha, ha tres borbulhinhas vermelhas, sobresaindo na alvura da pelle immaculada, ha febre, ha tudo: d'esta vez pegou; está segura a formosura. D'alli a dois annos tem bexigas. Diz o povo:

—Era a sua sina!{203}

As trovas dizem-a ás vezes; concertos na eira á desgarrada, cantigas do fado á guitarra; e no mar principalmente, onde os descantes são quasi sempre fatidicos; lá se diz na Chronica de D. Sebastião por Fr. Bernardo da Cruz que na expedição de Africa um tal musico chamado Madeira foi pelo mar cantando á viola a el-rei um romance que dizia: «Hontem eras rei e hoje nem casa tens», trova em que vinha saindo a sina, e que fez tal impressão nos animos que logo se lhe disse que mudasse para outra mais alegre.

Ninguem lhe escapa; dizem que não ha fugir-lhe—nem pessoa nem bicho, porque até os animaes teem{204} a sua sorte escripta:—a sina do porco, por exemplo, é ser comido! Ser comido, haja o que houver; não serve para mais nada; o boi é para a lavoura, o cavallo para a guerra, as aves para o ar: o porco é para a pucilga; as aves são poeticas, o boi é laborioso, o cavallo é nobre, o porco é feio, immundo, e sem prestimo se não para o espeto e para a salga. Ser comido, ser comido; é a sina d'elle!

Que se torça o caminho, que se evite o atalho, que se fuja á estrada, não ha outra saida, dizem, senão ir cada um para a sua sorte. Póde zombar, póde não crer;—a sua sina lá está, ironica ás vezes, maliciosa, cassoista. Um moço{205} elegante e pallido que durante um tempo foi grandemente amado como se lá diz á direita e á esquerda, fez um dia a côrte a uma senhora casada. O marido tinha as maiores mãos de que ha memoria; grandes, gordas, inchadas, vermelhas;—o mancebo detestava as mãos d'elle, e queixava-se sempre de que a sorte houvesse consentido que tão peregrina creaturinha pertencesse a um lapuz com taes mãos. A poder de esforços conseguiu de uma occasião que ella o deixasse ir fallar-lhe tres minutos, tres minutinhos. Estava elle no corredor protestando sua respeitosa adoração, quando se ouviu bater á porta. O susto traz{206} complicações medonhas, e a senhora por não saber o que fizesse—deixou-o esconder debaixo de um sophá! Entrou o nosso homem das mãos grandes, conversou, pegou n'um jornal, estirou-se no sophá, e poz-se a ler. O outro, contrafeito, esticado n'um collete comprido e n'uma calça justa á perna, precisou no fim de tempo mudar de attitude, e fez alguma bulha. O das mãos grandes, sempre lendo, disse:

—Que é isto? É o cão que está ahi debaixo? Anda cá, , , anda cá tollo...

E deitou o braço de fora deixando pender a mão, a mão enorme, vermelha...

O outro lembrou-se que qualquer{207} suspeita n'aquellas alturas podia perdel-o; e de mansinho, de mansinho, lambeu-lhe a mão; aquella mão phenomenal de que elle tanto se rira sempre!...

Ainda se a sina fosse sempre brincalhona! Mas é cruel, mas é fatal, ás vezes. Abre feridas que nem fecham, nem saram. Quando na primavera da vida o amor surprehende um homem e o prega na parede como se fôra uma borboleta, está feita a sina. A liberdade chegue quando chegar, virá sempre tarde. Os poetas podem ver n'elle Prometheo no Caucaso; mas é isto, simplesmente isto—uma borboleta pregada, a querer fugir, a querer dar ás azas sem poder—porque,{208} de cada vez que as quer librar, alarga ainda mais a ferida e não lhe serve de nada!

A sina annuncia-se tambem no canto de certas aves, que atiram aos ares a buena-dicha. Os rapazes do campo quando andam de povo em povo a assistir ás festas do logar e á feira na intenção de verem as moças e escolherem noiva se as do seu sitio lhes não agradam, mudam de idéa e de rumo se acaso ouvem pelo caminho o canto melancholico d'aquelle mensageiro da primavera que annuncia as folhas—e dizem que annuncia tambem outras coisas,—canto um pouco extravagante, canto de duas notas, o canto do cuco!{209}

A sina vae de geração em geração. De Aben-Afan diz Garrett no poema de D. Branca:

          Por onde o traz seu fado?
Oh! negra sina entrou n'essa familia...

Querem dizer que todos vêem ao mundo destinados já para o que hão de ser; por este systema, a vontade, o juizo, e a educação, não têem força alguma; nascem uns para padres, outros para sachristães, estes para ricos, aquelles para pobres; até se diz que muitos nascem para ladrões, e que não podem deixar de o ser: ia á casa de pasto do antigo Simão um freguez, que a unica coisa que{210} não furtava era a má fama que tinha. Levava as colheres, os guardanapos, tudo o que podia apanhar. O Simão tinha muito dó d'elle, por entender que não fazia com aquillo senão obedecer á sua sina; deu ordem para não se lhe dizer nada, e de uma vez quando o homem pediu a conta teve o gosto de ler:—«Pratos 800 réis.»

—Que é isto! exclamou. Então vocês mettem os pratos na conta?

—Cuidei que o senhor os levava! disse-lhe o criado.

A sina é o que a gente a faz ser. A inteireza e o trabalho, que são os cimentos do commercio da vida, dão resultado certo. Até o tempo faz sempre justiça, e apesar{211} de destruir, por maiores que sejam, os monumentos, apesar de arrasar thronos e imperios, respeita certos nomes e conserva-os levantados como pharoes no horisonte da historia e do pensamento. A felicidade não póde estar senão em se ser gente de bem. Tirar a Deus a tutela do mundo para a ir dar a um poder meio fadista a que se chame sina, parece-me uma impiedade e uma tolice!{212}

 {213}

XII

Coisa má

«Coisa má!»

«Coisa má» se lhe chama; e por peior que seja sempre ha de ser preferivel á ruindade humana;—que mais vale dar uma topada ou uma canellada do que encontrar certas caras!

«Coisa má» é a lua de março;{214} a lua marcina, como lhe chamam no campo—que nem deixa saber se haverá trigo ou milho emquanto ella não passar; coisa má é a terra esquentadiça e delgada, a terra que aperta e não produz, defronte mesmo de chão fresco, chão de barro, ao pé de varzea; coisa má é o lameiro virgem; a espada que matasse homem, ou que passasse tres vezes o Douro e o Minho; o lenço de assoar que nos deram sem que recebessem cinco réis em troca...

Salta nos atomos a ironia, as moleculas andam a rir-se; são laços, armadilhas, ratoeiras, os corpos mortos que nos rodeiam; parece que não ha objecto que não{215} tenha morador, que não tenha inquilino, que não tenha «coisa má» em si; espiritos malignos que espreitam pelos poros com o seu olhinho gasio, fazem caretinhas á alegria em que uma pessoa esteja e rompem em risota perante as maguas que nos pesam... Demonios hostis, pequerruxinhos, invisiveis, que estão sempre á caça de nos pregar peça...

Anda, ás vezes, mezes a fio «coisa má» com a gente—que nem que fosse um cão escondido de que só se aviste a baba e a mordedela... Em se pondo chapeu novo, é sabido que ha de chover.—Fato que se vista pela primeira vez, não deita ao sol posto sem lhe succeder{216} precalço; anda um homem com calafrios na golla, e acrescimos nas abas, passam pressentimentos nas pernas, e apertam-se as fivellas com susto do que se está passando...

Ah! rico palletot velho, chapeu companheiro das noites de inverno, capote das rapaziadas e das aventuras,—que de extensas marchas na estrada da vida! Esses trastinhos é que são amigos, esses é que nos sabem do feitio, e que se ageitam bem ao corpo.

Que differença com o fato novo, que se trata como a Santo Antoninho onde te porei! Se na cidade toda não houver mais do que uma porta pintada de fresco, lá ha de vir caso urgente que leve uma pessoa{217} a ir por ali roçar-se e arranjar divisas na manga como um sargento; ou um diabrete de algum preguito que tenha estado annos n'aquella umbreira sem fazer mal a ninguem, até que nos apanhe com um farpão formidavel!

Ha coisas que se perdem sempre; outras que sempre esquecem: a chave do trinco, por exemplo. Que de noites fica o sujeito durante horas batendo á porta, na esperança de que o visinho se compadeça d'elle,—ou, o que ainda é peor, que de noites tem o homem de ir dormir fóra de casa por não ter comsigo a chave do trinco! Noites de aventura forçada, noites sem graça e sem gosto, quasi sempre{218} a chover, e o pobre diabo a vagabundar e a ir bater quem sabe onde!?

Que, diga-se a verdade e não deitemos toda a carga ao lombo da chave do trinco—não é só ella que tem coisa má, são todas as chaves. Em sendo preciso abrir porta, caixa, armario, ou malla, ahi se somem ellas, e toca a procurar d'aqui, a buscar d'acolá, e vae e gira e anda e volta, até que vão achar-se muito bem fechadas n'uma gaveta!

Em antigas relações de autos da fé e sentenças da Inquisição ha mil historias de «coisa má,»—poços que atiram para fóra com o que se lhes deita; hervas de maleficio{219} que se mettem de proposito debaixo dos pés da gente, pedregulhos em que mora ferrabraz, satanaz, caiphaz...

Ás vezes é o mau olhado. Está a «coisa má» nos olhos, no feitio, na luz e influencia d'elles; e a gente deixa-se levar de apprehensões, de inquietações, a recear de tudo, e a querer saber, a querer explicar... Por isso faziam bem os egypcios,—nunca houve povo com mais juizo!—que cortavam as curiosidades e as manias com a religião, e fizeram da noite origem de tudo quanto ha, mundo, estrellas, soes, divindades. Noite. Armar em dogma e em artigo da fé a escuridão que envolve as coisas, e{220} adoral-a por não saber que explicação lhe dar.

Que ás vezes succede que a «coisa má» possa parecer boa. Ahi está que havendo em Portugal superstição para com os tortos, já um poeta dos principios do seculo passado, mascarado com um pseudonimo, os cantou no poema da Monocléa; poema destinado ao louvor dos cegos, vesgos e zanagas, e em que se diz de Camões como quem dá de vez com o segredo da sua gloria:

De um olho claudicava de tal arte
Que celebre se fez em toda a parte.

Tudo vae da disposição d'animo, do interesse, e da optica. Um agiota,{221} sempre certo no Terreiro do Paço, da uma hora ás tres, debaixo da arcada, emprestava dinheiro—n'uns tempos de crise politica e financeira, de que o paiz ficou guardando má lembrança—a 9 por cento.

Dizia-lhe um amigo:

—Ó homem! Isso é esfollar de mais! Olha lá o ceu não te castigue. Deus vê tudo, e estou que não te perdôa essa!

—Deixa-o ver, respondia o outro. Eu bem sei o que faço. O 9 visto lá de cima parece um 6.

Ha dias em que todas as cousas realmente parecem querer-nos mal, e em que as contrariedades veem em ranchos, em grupos, em series;{222} desde o saltar da cama até ao deitar á noite como que se vae caindo de barranco em barranco; parece estar-se destinado como o Sybarita a que até a prega de uma folha de rosa nos sirva de incommodo para nos sentarmos. Não se póde trabalhar, nem pensar sequer. O correio, arauto do torneio da vida que todos de manhã esperam soffregos, ou não traz carta ou traz más novas;—sae-se para a rua sem haver escovado o fato;—as pessoas a quem se procura, em morando alto não estão em casa;—ao voltar da esquina está á porta da taberna um bebedo a comprar castanhas, e entorna por cima da gente o copo que tem na{223} mão;—é n'esse dia quasi sempre que um homem se constipa, rompe a espirrar duas horas, e fica sem o botão do collarinho...

Em Portugal as classes cultas são tão dadas á superstição das series como o povo; em lhes succedendo um revez não descançam emquanto não chegam mais dois; tres é o numero.—Decorrem dias, semanas, mezes, sem haver incendio; mas, em tocando a fogo, dizem que é certo não parar n'aquelle, e os gallegos ficam logo de pé no ar para irem buscar outra vez a bomba.

É da indole da nossa terra dar vulto a estas manias, pelo amor que ha aqui a tudo que seja casos{224} sombrios, dias nefastos, e cousas relamborias. É sabido! Precisamos absolutamente de tudo que for mofino e tetrico. Indifferentes, preguiçosos, desenchabidos, de tudo isto nos consolamos com tanto que venha de tempos a tempos alguma celebreira carregada e tristonha para nos entreter; de Garrett ou de Castilho é raro o que saiba um verso, mas qualquer será capaz de recitar entre a pera e o queijo o fado de João Brandão!

Ha sitios de que se gosta, sem sequer ás vezes saber porque; cada casa tem por assim dizer uma alma, e dá-se uma pessoa bem, mas muito bem, muito melhor que n'outras, n'uma certa; ha um recanto{225} do jardim, que cheira mil vezes bem depois d'estes chuviscos do outomno, e onde a gente gosta de estar ao cair da tarde espreitando o ceu por entre a rama das arvores;—ha até simples objectos, coisitas de nada, que exercem attracção nos animos e nos dão gosto em os ver... Mas lá está, lá está no fundo a coisa má;—e esses objectos a que mais se quer serão os que hão de perder-se mais depressa,—e os sitios queridos, a casa, o quintal, a arvore, têem de ser os que a gente haja de deixar mais cedo contra vontade!

E o mesmo succede a tudo que tiver «coisa má;»—o amor, a formosura, a mocidade: tres coisas realmente boas; as tres coisas{226} melhores que ha; e tambem as que mais depressa fogem,—que até têem azas como os anjos, e voam como as andorinhas!

Nas familias portuguezas o terror pela «coisa má» tem variado muito, e chegado por vezes a ser jocoso. Houve tempo em que mettia medo quem sabia fallar francez. Não se queria matar os meninos com estudos; o estudar fazia mal. Lembravam-se dos exemplos da antiguidade, e do fim desgraçado de homens notaveis,—Euripides despedaçado por uma matilha de cães, Cicero degolado, Socrates succumbindo ao veneno! Destinavam um a mercador, outro a cadete,{227} o mais gordinho ia para padre. Em todo o caso—nada de fallar francez. Dizia-se de um rapaz:

—É um extravagante. Jogador, caloteiro. Bate no pae... Até me dizem que falla francez!

—Sério? perguntavam todos.

—Ha quem o ouvisse.

Depois, e já no meu tempo, inspirava igual panico usar chale-manta quando appareceram os primeiros em Lisboa.

—É um bregeiro, dizia-se. Não é limpo de mãos...

—Sim, sim.

—Deixa andar a mãe a pedir esmola...

—Sim senhor.

—Até anda de chale-manta!{228}

—O quê?!

—Palavra de honra.

Se formos a observar, em quasi tudo conforme as épocas e as manias ha «coisa má»—e em tudo a «coisa má» póde ser evitada ou combatida. Já ouvi contar de um homem que para vencer os maleficios e armadilhas da sorte e por saber os perigos que resultam das cartas de amores—sempre que escrevia alguma punha-lhe a data do dia de entrudo, para que, se alguem de casa lh'a apanhasse, pudesse a obra passar por brincadeira. A mania de se julgar perseguido pela sorte é uma loucura como outra qualquer, muito frequente em Portugal e tanto mais{229} perigosa que se manifesta por gradações insensiveis. Começa pela melancholia, vae azedando o genio, é-se mausinho e tyrannico, e vae-se indo a um estado de ferocidade que póde dar com um homem em doido furioso.

«Coisa má» é querer trabalhar e não ter em quê; querer amar e não ter a quem; querer remar e não ter braços. O politicão que passa a vida a recusar pastas que não lhe offerecem—diz que o paiz tem «coisa má;» o beberrão que troca as pernas—accusa de ter «coisa má» o vinho de mais que bebeu.

«Coisa má» é a mulher que gosta de outro; e o dinheiro que a gente não tem!...{230}

 {231}

XIII

As mulheres de virtude

O meu amigo leitor conheceu já a felicidade? Por mim, conheço-a pouco, e de vista—apenas. Não poderia siquer dizer-lhes em que rua mora nem a que horas está em casa. Creio que sae a miudo, e não se sabe nunca quando recolhe. Lá uma vez na vida, encontra-a uma pessoa, vê-a dignar-se{232} sorrir para si, e está-se quasi a tocar na mão em signal de estima; mas ella pede cem contos de réis á gente, e como uma pessoa não os traz comsigo... nem com outro—a marota da felicidade volta-lhe as costas e dá ás de Villa Diogo!

De outras vezes, diverte-se com a humanidade; reserva os seus favores para a quadra em que já não ha cabello, ou tira-nos a alegria e a saude na vespera de nos dar a riqueza, como succedeu lá ao

     Pero Pico
que viveu pouco e pobre
e finou rico!

As bruxarias são destinadas aos que não querem perceber que a{233} vida seja isto e porfiam em comprar a sorte a retalho, nas cartas e em philtros, ás mulheres de virtude. As mulheres de virtude são as chirogromanas, as chiromantes, as cartemantes de Portugal. As crendices populares dão-lhes grande fama e muita da nossa gente e da melhor as vae consultar a occultas. Especuladoras lepidas, vendem elixires para attrair o amor e artificios para encantar; e sabem das cartas tudo que vae pelo mundo.

Ainda não ha dois mezes, contavam os jornaes de Lisboa a prisão de duas mulheres de virtude, mãe e filha, apanhadas na occasião em que saiam de uma casa na rua dos Correeiros, onde{234} tinham ido exercer as ladras funcções da sua industria. Deitavam cartas, e revolviam as casas onde entravam. Haviam roubado quatrocentos e tantos mil réis, além de roupas a titulo de serem lavadas em agua benta. Vendiam frasquinhos com liquidos especiaes para conservar o amor, e ensinavam ás mulheres casadas que déssem d'isso aos maridos na comida para elles nunca se enfastiarem d'ellas. Benziam a casa com um ramo de alecrim molhado n'um cosimento de mostarda, saramago e alho. Quando as prendeu o policia, esse Antunes muito citado nos jornaes, as benzedeiras enfurecidas ameaçaram-o de lhe salgarem a porta á{235} meia noite de sexta feira em que fosse lua nova.

As senhoras portuguezas em geral são dadas a superstições; vivem condemnadas pela educação e pelos costumes do paiz á inacção, captivas no lar domestico, creadas na solidão—mais profunda sempre que a do homem, que se distrae alguma vez nos negocios e vae-vens da vida. Depois, e isto em qualquer paiz, a faculdade mais desenvolvida nas mulheres não costuma ser a logica; em desejando uma coisa, já lhes parece justa; em a receando, já se lhes figura provavel:—acreditam todas na fatalidade—e a fatalidade é a mãe da bruxaria.{236}

Por isso vão ás vezes, ás escondidas, lá a um beco escuro e immundo que lhes ensinou não se sabe quem, uma criada quasi sempre, trepar por uma escada que range e verga, bater a uma porta carunchosa e perguntar pela senhora fulana, a senhora dona fulana de mais a mais, um diabo de velha com bigodes, ou uma grande verruga no queixo, que traz para ali um pires com agua e a lamparina da noite com azeite, resa um credo em cruz em cima do pires que tem agua, e molha no azeite o dedo minimo da pessoa, dizendo tres vezes o nome d'ella e resando:{237}

     Deus te fez,
     Deus te creou,
     Deus te desolhe
     De quem mal te olhou.
Se é torto ou excommungado,
Deus te desolhe do seu mal olhado.

Depois, sempre em bichancros e tregeitos, olhando para a cliente,—fregueza, victima,—assustando-a com a vista, com os modos, vão resmungando de fórma que mal se perceba—«Sant'Anna teve a Virgem, a Virgem teve Jesus: assim como isto é verdade, Deus te desolhe do teu mal olhado!» Se o pingo do azeite fôr ao fundo, tem olhado; como não vae, não tem—e cumpre averiguar as coisas, deitar uma sorte, vencer obstaculos,{238} descobrir de onde vem o mal e acabar com elle;—quer dizer que cumpre principiar a mugir o caso e a roubar dinheiro á consultante. Precisam um dia de uma coisa, no outro dia de outra. Hoje um lençol, ámanhã um annel de ouro, depois um córte de seda preta para fazer um vestido e ir offerecer á egreja uma promessa...—Sei tudo isto por uma mulher que esteve como criada em casa de uma d'ellas.

Entremeiam aquellas exigencias com pedidos faceis, um lenço de assoar, vellas de cêra, e—como diz o povo—para compôr, um pouco de cabello. O cabello é o ponto romantico da gerigonsa. O cabello{239} dá amor, lembrança, consolação; o cabello dá força, o cabello ampara e vivifica. Havia um homem em Alcantara que morreu velhissimo, que levava sempre o amor conjugal a limites extremos—o que não o impediu de casar por duas vezes. Tinha o vicio das mulheres de virtude, e ellas aconselharam-lhe por tal fórma o ter cabello da pessoa amada que o homem resolveu—para conservar sempre fresca e amorosa a lembrança das duas mulheres que haviam feito a felicidade da sua existencia—aproveitar as tranças de cabellos que lhes tinha cortado piedosa e successivamente quando tivera a desgraça de as perder, e{240} mandar fazer daquillo um chinó. Cobria o topete com o cabello de ambas. Os cabellos não eram bem da mesma côr—mas isso não fazia nada ao caso e o ponto era não o abandonarem nunca, por aquella maneira, nem uma nem a outra. Era um chinó de virtude!...

Diz-se que as bruxas teem um signal no olho esquerdo,—mas que só dá por isso quem fôr muito experiente. Ha uma resa para as apanhar, e só podem soltar-se quando o que as prendeu desdisser a oração. Saem de noite correndo e saltando invisiveis por cima de arvores, sebes, e vallados, logo que digam a sua prece de segredo, que acaba por estas palavras: «Vôa,{241} vôa, por cima de toda a folha!» O marido de uma, que não sabia que a mulher era bruxa, notou que ella desapparecia alta noite, espreitou-a de uma vez, viu-a esfregar-se com umas ervas, ouviu-lhe a resa, e teve occasião de observar com que rapidez ella cortou logo o espaço por ares e ventos. Foi-se ás ervas, esfregou-se tambem, e começou de dizer a oração; mas enganou-se n'uma palavra, e em vez de «por cima de toda a folha!» disse:—«Vôa, vôa, por baixo de toda a folha!» Sentiu-se levado por força occulta, foi correndo tambem, correndo, mas a rasgar-se, por baixo das arvores e por baixo dos silvados...{242}

Contou-me este caso um rapaz de Goes, que o affiança tanto ou mais que a si proprio; affirmou-me elle que em uma pessoa sonhando que as bruxas lhe estão chupando o sangue—accorda de nodoas no corpo; e assegurou-me que a boa bruxa é a de nascença, e não a que aprende.

Ora as mulheres de virtude são bruxas que aprendem. Vae aquella arte de mãe para filha. D'isso vivem, d'isso comem e bebem, d'isso compram ás vezes papeis de credito. Não teem só virtude, teem talento, teem saber: até se lhes chama sabias. A humanidade tem-se gosado sempre de possuir seres privilegiados para a instruirem, quer{243} queira, quer não; a sibylla de Gumas, Orpheo, Apolonio; sem fallarmos no Lavater que lia na cara do sujeito, ou no Gall, capaz de cortar o cabello á escovinha ao genero humano para lhe apalpar melhor as bossas. De tudo isto a mulher de virtude é o que tem havido melhor!

Em ellas estendendo as cartas, parece que se abre a terra. Dilata-se-lhes a palpebra, despedem dois raios de fogo de queimar tudo, dão á cabeça, batem o pé no chão, guincham, resam, praguejam, misturam nomes de santos e nomes de bichos, benzem-se, maldizem-se, riem e choram... A pessoa que as consulta, senhora quasi sempre, estremece{244} com aquelle olhar de fascinação, com aquellas palavras de sortilegio... Os bonecos das cartas apertam-na, angustiam-na como se fossem animados; ou então, ao envez, parece zombarem do que se passa e é como se a dama piscasse o olho, o rei deitasse a lingua de fóra, o az de espadas tivesse olhos, nariz e bôca. A bruxa, fumegante de suor, ora tem como que arrepios na espinha, ora tem extasis; anima-se, geme, grita de contente, hurra, arrepela-se, esperneia á proporção que saem as cartas... E como se o espirito da verdade fallando pela boca d'ella estivesse a patentear o quadro das vicissitudes da vida intima, apalpando{245} o presente, avistando o futuro... O valete de ouros é o amante, o cinco de copas são lagrimas, o az de paus fandangos (amores), sete d'espadas desgosto formal, az de ouros prenda, tres de copas com certeza, dois de paus a caminho, quatro de paus prisão, e a espadilha affirma!

É um horror. Não é uma tolice, não é um disparate, não é uma estupidez—é um horror. E a desgraça de familias, a guerra na vida de casados, o mal estar permanente, a calumnia, o roubo, a infamia. Um horror!

Vae esta gente procurar torturas áquellas casas que vendem a inquietação, a angustia, as noites raladas{246} de ciume, de despeito e de odio; casas sinistras em que se respira a fatalidade em tudo—na mobilia que se compõe de uma bilha quebrada e de uma cadeira côxa, nas rodilhas que supprem os vidros das janellas, nas paredes a cair, no fogareiro ao meio da casa com uns carvõesitos quasi afogados na cinza, no galo grande que canta como o diabo, no pucaro com bagos de café e clara d'ovo, no sacco dos bruxedos com pedra d'era e coke, na cruz de alecrim, no espelho, na thesoura, aberta em cruz em cima do sal, no palavrorio de resa que precede o botar a falla:—Credo—cruzes—canhoto—temos bruxaria—saramago—mostarda—alho{247} e arruda—maravalhas e palhas de alhos!

Tudo isto faria rir se não fosse funesto, e não tivesse tanta influencia na gente portugueza, dada a melancholias sem razão, melancholias do acaso, saboreando tudo que é chocho e amargo. Fizeram-nos falta os conventos, casas por excellencia para a indole sombria que temos. Todas essas allucinações de que lhes tenho fallado, telha, enguiços, encantos, agouros, feitiços, sonhos, sinas, coisa má, provêem da falta de educação. Ou se tem fé em Deus, ou nas mulheres de virtude. Quem duvida está ás escuras; o principio de ver é crer; crer no renascer das folhas; na{248} volta da quadra florida; crer que a dor não é sempre esteril, que ha affectos fieis, amores que duram, feridas que saram. A fé não é bem o dia, mas é o fim da noite; é a luz a chegar-se á alma. Toda a nossa mania e o nosso mal é não termos fé senão em duas coisas,—em enguiços e em economias! O mesmo deficit de que tanto por ahi se falla, é um enguiço publico, enguiço official! Assim somos. Enguiços e economias! Tristes e pobres;—duas vezes tristes!

FIM

 {249}

INDICE DOS CAPITULOS
    PAG.
I —Os doidos 5
II —As doidas 23
III —Os idiotas 41
IV —Os furiosos 59
V —Telha 77
VI —Enguiços 97
VII —Agouros 117
VIII —Feitiços 135
IX —Encantos 155
X —Sonhos 175
XI —Sinas 193
XII —Coisa má 213
XIII —As mulheres de virtude 231





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Júlio César Machado

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electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

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effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
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property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
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with this agreement, and any volunteers associated with the production,
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that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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