The Project Gutenberg EBook of Estrellas Propícias, by 
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco

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Title: Estrellas Propícias

Author: Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco

Release Date: September 21, 2010 [EBook #33788]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK ESTRELLAS PROPÍCIAS ***




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Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Setembro 2010)





ESTRELLAS PROPICIAS.



OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO
QUE SE ENCONTRAM Á VENDA
NAS
LIVRARIAS DE VIUVA MORÉ


PORTO E COIMBRA.





Abençoadas lagrimas, drama 240
Amor de perdição 500
Agostinho de Ceuta, drama 240
Cabeça, coração e estomago 500
Carlota Angela 400
Coisas espantosas 500
Doze casamentos felizes 500
Duas epochas da vida 600
Estrellas funestas 500
Justiça, drama 200
Livro negro 500
Marquez de Torres Novas, drama 400
Memorias do Carcere, 2 vol 800
Morgado de Fafe, drama 200
Romance d'um homem rico 500
Scenas innocentes da comedia humana 500
As tres irmans 500
Um livro, poesias 360





ESTRELLAS PROPICIAS.

POR

CAMILLO CASTELLO BRANCO.








PORTO,
EM CASA DE VIUVA MORÉ - EDITORA,
PRAÇA DE D. PEDRO.


A mesma casa em Coimbra, | Casa de Commissões em Paris,
Rua da Calçada. 2bis, Rua d'Arcole.

1863.









TYP. DE SEBASTIÃO JOSÉ PEREIRA,
Rua do Almada, 641.







ESTRELLAS PROPICIAS.




I.



Navegando contra a corrente do Lima—o rio das saudades e dos pavores da mythologia—vereis, a meia legua distante de Vianna, na margem direita, uma casa apalaçada, em parte cantaria que os seculos denegriram, em parte edificação moderna, caiada, tingida, variegada, coisa sem graça, sem poesia, que toda lhe tira a magestosa e veneranda avó, alli á beira, com o seu toucado de ameias e collares de embrincadas laçarias.

Da margem do rio ao edificio conduz uma vereda relvosa ladeada de alamos, cilindras, hidranjas, e outras arvores e arbustos, que ensombram a convidativa álea. Lá no tôpo entrevêdes um chafariz, rodeado de bancos de pedra, e abobadado por um pavilhão de chorões, [6] cujos troncos a mão do tempo torneou e retorceu em caprichosos feitios.

Se mandaes parar o barquinho diante d'esse obscuro alcáçar das esquecidas musas do idyllio, d'esse manancial dos gratos devaneios, ao abrir de uma manhan de agosto, ou ao entardecer de um dia da estação do outomno—a mais amavel do Minho—ahi ficareis como arrobados, sentindo sem saber o que, desejando sem dar limites ao desejo, aspirando a enlevos que vos não parecem da terra, nem os sabereis dizer, se cuidaes que vos transportam ao ceo. O que vêdes, se sabeis copiar a natureza na tela, no verso, ou na prosa, podereis conseguir que nós tambem o vejamos em sombra; o sentir, porém, que semelhante espectaculo, a tal hora, vos suggere, sêde embora Raphael, Fénélon, ou Delille, que não lograreis verter em nossas almas a poesia das vossas. Folheai o livrinho, todo mimo e deleite, do poeta Bernardes, sentido e escripto alli n'aquellas margens; cuidareis vêr n'elle as harmonias que vos soam ao coração em descompassadas notas; e, melancolicamente, abrireis mão das maviosas poesias, que dizem menos que o susurro da veia limpida na fluctuante frança do salgueiro, ou o regorgeio do rouxinol, que vos fugiu da margem, para de longe vos estar conversando com o espirito alheado. Nos versos e nas poeticas prosas do mais canoro bardo do Minho[1], se vos deparam relanços de delicado sentimento, doçuras [7] campezinas, que todas recendem os aromas d'aquelles relvados e arvoredos. No mavioso romance d'outro cantor e prosador sentimental do jardim d'esta formosa terra[2], lá inspirado, lá haurido no mel de tantas colmeias, nem ahi achaes senão o bosquejo das visões que adentraram vosso animo, e de vós se apartam, mal vos embaralhaes com homens vascolejados em negocios da vida real. Não ha coração que sostenha em si poesia, quando cuidados o empegam no commum esterquilinio, onde todos, uns mais que outros, nos rebalçamos, embora á luz do sol das praças, e á luz das serpentinas das salas, as immundicias brilhem como ouro, ou alvejem como arminhos.

Não ha, pois, dizer o que sente cada um, ao abrir da manhan, ou descahir da tarde, se alli parou e contemplou do seu barquinho a avenida arborisada, o repuxo com seu docel de ramagem, e as cornijas denticuladas da vetusta metade do edificio.

Se por lá derivasseis, ao fim de uma tarde de agosto de 1844, e o rumorejo da corrente vos não houvesse entorpecido a vida exterior, verieis, ao cimo da avenida, n'um dos bancos circumpostos á fonte, uma senhora reclinada com o descuido de quem se crê sósinha, sobre um respaldo de massiço, que brandamente se amollentava, para, a prazer da solitaria scismadora, se lhe modular ás fórmas gentis.

[8] A seu lado estava uma carta de muitas paginas, sobre a qual ella assentava a mão descahida em langoroso quebranto. O que certamente não verieis eram as lagrimas, que humedeciam a carta, e outras que desciam nas faces, e paravam aos cantos dos labios, como se ahi esperassem que um sorriso de esperança outra vez as embebesse no coração.

De véras creio que o meu leitor ahi se ficaria em quanto o vestido branco da formosa visão se estremasse da escuridade das arvores; quando, porém, a noite lhe fechasse o encanto de olhos, o leitor ir-se-ia, rio-abaixo, scismando um pouco na solitaria creatura, amante das noites bellas; e, chegando a Vianna, escassamente se lembraria de têl-a visto, e só, a muito proposito, perguntaria quem fosse a mulher da pittoresca vivenda do Minho.

Tivesse eu a honra de ser a pessoa interrogada, e responderia com o seguinte capitulo, se o leitor me désse ares de sua complacencia em ouvil-o.



[9]

II.



O romancista de mais perluxo gosto em nomes de personagens de novella, se os procurar nos climas temperados, ahi os acha mais lindos, mais a molde da strophe, do poema e do romance sentimental. Os nomes de mais musica, e mais amoraveis, são os das mulheres gregas, se todos soam como os das heroinas de Byron, de Hugo, e dos poetas affeiçoados ás coisas orientaes.

Desisto de ir á Grecia baptisar as minhas personagens femininas. Escrevo de Portugal, onde ha nomes de mulheres a competirem de belleza com suas donas; e, mais que em outra provincia, no coração de todas, no Minho,—que bem podéra ser a flor da Europa—ahi, na familia de solar, e na familia da choça, ha peregrinos nomes, que mais parecem ensinados pela melopeia das aereas musicas, ou dos mui suaves murmurinhos das florestas, dos rios, das aves e dos insectos.

Corinna da Soledade era o nome da visão, que o meu leitor pudera ver n'uma tarde de agosto de 1844.

[10] Em outra qualquer tarde poderiamos ver, não uma, mas um rancho de cinco meninas, a competirem de formosura, todas trajadas de branco, soltos os cabellos, ou ennastrados de flores, com que se andavam dando invejas ás outras. Eram as cinco irmans d'aquelle ditoso ermo; as cinco Evas d'aquelle terreal paraizo, por onde não rastejavam serpentes, estas serpentes de casaca e luva branca, que são o proprio demonio civilisado pelo alfaiate, e amoldado a estes tempos illustrados em que nenhuma Eva de certo se deixaria embair por cobras, propriamente ditas.

Tinha então vinte annos Corinna da Soledade.

Sou avesso a descripções: muitas vezes o tenho dito. Sahem-me todas muito pallidas e infieis por causa do esforço que faço a dar relevo aos traços. Profusamente se dispendem os romancistas em mineralogia e botanica para colherem o effeito das comparações. Flores e pedraria, a alvura do lyrio, o escarlate do carmim, o niveo jaspe, o rubido coral, a lustrosa pretidão do azeviche, a ágata para a cutis das mãos, a petala de rosa para a das faces, o branco avelludado da magnolia para o collo, o marfim para os dentes... que sei eu!

Corinna da Soledade era de estatura mais que mean, refeita, robusta na apparencia, mimosa de pelle, mas não alvissima; olhos mais singulares pela brandura que pelo tamanho, reluzentes como chammas, ou amortecidos como a luz tibia da lua empanada por transparente nuvem—alternativas instantaneas, que denotavam as rapidas mutações da alma—; arcadas negras [11] e sedosas, travadas na base da escampada fronte—rara belleza em mulher, n'aquellas mesmas, que se chamam Sapho, Staël, ou Sand—, breve boca de finissimos labios, subtilmente assombrados d'um buço, imperceptivel a curta distancia, mas de bello effeito na approximação.

Tanto esta, como as outras quatro filhas de Gastão de Noronha, tinham sido educadas em França, para onde os paes emigraram em 1829. O fidalgo do Minho homisiara-se, sem conscienciosamente poder dizer que era menos realista que seus avós; porém, odios velhos de covardes inimigos o haviam denunciado á alçada, e o prudente sujeito antes quiz confirmar a denuncia com a fuga, que provar d'entre ferros sua innocencia.

Em 1833 recolheu a numerosa familia á patria. As meninas vinham esmeradamente educadas em collegio de Paris, e saudosas dos comêços de vida alegre que ainda experimentaram na capital do mundo. A transição de Paris para as margens do Lima, as noites fugitivas dos bailes comparadas com o silencio do palacio velho, em parte ruinas, e rodeado de arvoredos e murmurios melancolicos, parece que ao mesmo tempo enluctaram o animo das cinco meninas, que se contemplavam umas ás outras, como se as lançassem nas praias ermas d'Africa.

Gastara, nos cinco annos de emigração, o jactancioso Noronha, como gastam em Paris os homens opulentos ou perdularios. Bem que a sua casa, toda em propriedade rustica, fosse grandemente rendosa, e bastasse [12] a dar-lhe fama e brilho de rico na sua provincia, os redditos d'ella escassamente dariam a um parisiense com que sustentar dez pessoas de familia em recatada decencia. Gastão, recolhendo á patria, rareou a pouco e pouco as nuvens da poeira olympica de Paris, que lhe empanavam os olhos, e viu todos os seus haveres ameaçados, se não já feridos de proxima ruina. Os caseiros e administradores tinham esbanjado e desbaratado á porfia com elle; porém, tão engenhosamente o fizeram, que o fidalgo achou-os a elles proprietarios, e legitimos possessores das quintas que, por ordem do amo homisiado, tinham vendido.

A velha casa solarenga d'onde o fidalgo sahira para o estrangeiro, nos cinco annos de desamparo e descuido dos administradores, abriu pelo tecto e fendeu-se pelas abaladas paredes. A familia, affeita a morar em casas decoradas com graciosas alfaias, quando entrou ao palacete das margens do Lima, confrangeu-se de pavor como se os vigamentos estivessem estalando sobre suas cabeças. Fugiram as meninas do salão de espera, e entraram na sala proxima, onde as mais velhas se recordavam de terem visto tapetes encarnados, jarrões indianos, e espaldares de sêda. A sala estava sendo uma eira, com espigas a monte, medas de palha painça, e instrumentos agricolas, como enxadas, gadanhas, forcados e aguilhadas, por sobre os jarrões esbotenados.

D. Mafalda, mãe das meninas, quando tal viu rompeu a chorar, e o marido a praguejar, e as meninas encolheram-se [13] todas a um canto, tão tristes e intanguidas, como se as tivessem descido por um alçapão ás lageas de fria masmorra.

Cuidou logo o fidalgo em mandar reconstruir aquella parte da casa, que eu mostrei ao meu leitor, na margem direita do Lima. Como gizara obra grande, a belprazer da sua desasizada fantasia, vendeu e hypothecou bens urgentes á sua sustentação para convertel-os em salas, tapetes, porcellanas, diwans, sophás, chaises-longues, jardineiras, consoles, e que taes estrangeirices em que as meninas reconheciam um pedaço do seu saudoso Paris.

Soffreram maior quebra os rendimentos, sem que a conformidade, se não o contentamento d'aquella familia, bem aposentada e servida do luxo da civilisação, os indemnisasse do desfalque dos bens. Gastão de Noronha em vez de aconselhar paciencia á esposa e ás filhas, era o primeiro a lastimar-se da solidão em que viviam, do tedio das compridas noites de inverno, do enfadonho palavrorio dos primos e primas, e dos pessimos cosinheiros, que nunca tinham bem acertado com o segredo de loirejar á parisiense umas omelettes souflées, ou um vol-au-vent.

Enfadado de tudo, Gastão, incitado pelos gabos que a imprensa portuense dispensava á sua companhia lyrica, pegou da familia, alvoroçada com a boa nova, e foi para o Porto, onde passou um inverno, frequentando as melhores casas, e convidando aos seus bailes a flor da mocidade portuense.

[14] Imaginou elle que suas filhas, educadas a primor, bem fallantes, bonitas, e graciosas em seu desembaraço, fariam epocha no Porto, como costuma dizer-se, e seriam pretendidas dos negociantes ricos á conta de sua fidalguia. Este plano é o unico signal que temos da intelligencia domesticamente governamental de Gastão de Noronha. Não se recommenda o systema aos paes dissipadores e aos fidalgos arruinados, porque, sobre ser revelho e desautorisado, é seu tanto ou quanto immoral: abstenho-me de fundar o dito em razões que não agradariam nem moralisariam.

Não ha duvida que as meninas, educadas em França, e formosas como as que mais o são em Portugal, impressionaram vivamente os moços abastados da dinheirosa cidade; mas estas impressões redundaram todas em muita poesia, em muito suspiro, em muitos olhares meigos, e em muita contradança innocente, quando contradansas podem ser innocentes.

Os mancebos apaixonados viam as meninas, e viam tudo que mais anhelavam; mas os paes d'estes mancebos, posto que achassem lindas de se verem as flores, iam de preferencia analysar o tronco da arvore florida, o qual tronco, como sabem, era Gastão de Noronha. Estas analyses ao tronco prejudicavam grandemente as flores, como é de ver; e todos os velhos abastados diziam, á uma, que não queriam enxertias de sua obscura linhagem em arvore podre. Não sei se o nobilissimo Gastão de Noronha chegou a saber que lhe chamavam arvore podre!

[15] O sabido é que o fidalgo voltou ás margens do seu Lima, na primavera seguinte, com as filhas solteiras, e tristes em dobro do que tinham vindo de Paris.

O Porto d'aquella epocha era muito para dar saudades a quem o trocava, não direi só pelas solitarias margens d'um rio, mas ainda pelos ruidosos esplendores da capital.

Quem de lá sahiu ha dezoito annos, e hoje alli voltou, não reconheceu de certo a sociedade portuense. Então primavam as principaes familias do commercio, da industria e da jerarchia na magnificencia de seus bailes. Rara semana corria sem que algum salão reverberasse os seus lustres nas graças nativas e nos custosos artificios com que se sobre-doiravam aquellas gentis meninas, que hoje se desvelam em ser mães, e todo seu viver concentram na vida intima. Das duas ricas provincias, feudatarias da cidade industrial por excellencia, confluiam, no fim do outomno, quantidade de morgados e morgadas, que se dispendiam á larga, e constituiam grande parte da sociedade brilhante, que os folhetins cantavam, e as modistas vestiam... ou despiam, seria mais acertado dizer-se. Nenhum festim nupcial dispensava um baile; cada pessoa da familia opulenta, em seu dia natalicio, tinha um baile; o baile era o cunho do progresso n'aquella sociedade desentorpecida do marasmo de seculos, e devotada a competir em pompas com Lisboa, que a não valia então, nem hoje me affoito a dizer que a vale. E quão diversa agora se me afigura, quão outra te vi, ó rainha do norte, depois[16]que os teus próceres trocaram a convivencia dos salões pela commodidade das equipagens! Foi a parelha que matou o baile indisputavelmente. Foi o luxo esteril dos urcos e dos arreios, dos trens armorejados, e das fantasiosas librés que desviou o fecundante capital do intento civilisador a que o applicaram os patriarchas do progresso n'aquella boa terra. Era um capital que a todos chegava, todas as classes sociaes participavam da superabundancia do baile.

Enriquecia a modista.

Prosperava o cabelleireiro.

As confeitarias rivalisavam em primores de bolinhos e pasteis.

O mercador renovava os seus lotes em cada trimestre.

As alfaias dos salões, no ultimo baile, faziam esquecer as pompas do penultimo.

E, por outro lado, visto pela face moral, o baile era o incentivo mais energico do talento. Então se viram maravilhas de genio na secção das locaes, que tão enfezadinha é agora! Então andavam ahi versos, a froixo, por todos os jornaes; eramos todos poetas, todos tinhamos uma estrella que cantar, e, pelo commum, aquella estrella luzia-nos da constellação dos bailes.

E agora, tudo fundido nas carruagens que trancaram as portas dos salões, tudo, sem excepção das musas!—as proprias musas me quer parecer que andam aos varaes das seges! E agora, tudo fundido nas carruagens que trancaram as portas dos salões, tudo, sem excepção das musas!—as proprias musas me quer parecer que andam aos varaes das seges!



[17]

III.



Das meninas, a mais saudosa do Porto era Corinna da Soledade. Razão tinha mais que as irmans, porque amara mais que todas, e amara sem intenção nem calculo.

N'um baile do conde do Casal fôra-lhe apresentado Antonio d'Azevedo Barbosa, moço de vinte e dois annos, nem pallido nem córado, nem triste nem alegre, um homem egual a todos os homens, como elles são fóra do romance.

Este Antonio d'Azevedo Barbosa era de Barcellos, filho d'um pequeno proprietario, que tinha muitos filhos, e mandara o mais velho cursar jurisprudencia em Coimbra, cuidando erguer um futuro esteio aos irmãos, lesados em seu patrimonio por amor d'aquelle.

O moço fôra muito novo para Coimbra; ninguem o admoestava a estudar; viu-se em plena liberdade de suas acções; achou que era muito suave vida gastar a [18] mesada, e poupar os livros. Assim o fez, e fez mal, que ficou reprovado em preparatorios.

Os patricios seus contemporaneos na universidade foram contar a Barcellos o desastre do estudante, não por lhe quererem mal, mas por se quererem demasiado bem a si: disseram-n'o para que a villa de Barcellos e o mundo soubessem que Coimbra não é para todos; e, a este proposito, repetiam as memorandas palavras do senhor Ferrer, lente de direito natural, aos seus discipulos: «meus senhores, quem não puder ser doutor, seja sapateiro.»

Manoel d'Azevedo, pae do academico reprovado, adoeceu de paixão, e, se o não amparam os braços implorantes dos outros filhos, cahia na cova.

Um abbade limitrophe de Barcellos, e tio materno do estudante, levou o moço para sua casa, e castigou-o com uma tarefa diaria de duzentos versos de Virgilio, e um thema de duas laudas da Vida de Fr. Bartholomeu dos Martyres, e doze paginas do Genuense, e outras tantas de rhetorica e geographia. Findou o prazo das ferias, e Antonio tornou a Coimbra, á custa do abbade. Fez o seu exame de latim, logica, rhetorica e geographia, com approvação e applausos de bom latinista.

Matriculou-se no primeiro anno, e sobre-excedeu as esperanças do tio e as ambições do pae: ganhou o segundo premio, e recolheu ao gremio de sua familia. D'esta vez, o pae ia adoecendo de alegria.

Não se morre de dor, nem de alegria; mas morre-se [19] facilmente d'um hydro-torax; foi o que n'esse mesmo anno succedeu a Manoel d'Azevedo.

Eram nove os orphãos, e Antonio, o mais velho dos irmãos, tinha dezesete annos. Fez-se inventario, pagaram-se as dividas do casal, e ficaram dotados com cento e cincoenta mil reis cada um. O abbade levou as sobrinhas para sua companhia, que eram quatro; arrumou no commercio os pequenos, e disse ao segundo-annista da universidade, que se reduzisse a viver com quatro mil e oitocentos reis de mesada, se queria formar-se.

Antonio respondeu que viveria com menos, para que suas irmans vivessem com mais.

Foi o moço ao segundo anno, e começou logo a escrever umas cadernetas que lá denominam «sebentas», as quaes os cuidadosos em reproduzir a prelecção do lente vendem lithographadas. As sebentas de Antonio d'Azevedo grangearam reputação de explicitas e bem coordenadas, e produziram metade de sua subsistencia; a outra metade proveio-lhe da versão de romances francezes, editados por assignatura. E assim vingou o segundo anno, e os annos seguintes até completar sua carreira.

O bacharel Antonio d'Azevedo recolheu ao presbyterio do tio com o seu diploma enrolado n'um tubo de folha de Flandres.

—E agora?—perguntou o abbade, tres mezes depois.

—Agora, estou formado—respondeu o bacharel.

[20] —Bem sei; mas que fazes? quando começas o teu officio de doutor?

—O meu officio de doutor?!—disse Antonio de Azevedo, como perguntando a si mesmo a utilidade da formatura em direito.

—Sim—tornou o padre—o sapateiro, o marceneiro, o artifice em todos os mesteres, cumprido o tempo de aprendizagem, começa de ganhar sua vida. Ha dez annos que tu estudas para isto que hoje és: estás doutor, meu sobrinho; agora applica o que sabes.

Antonio d'Azevedo achou discreta a admoestação delicada do tio. Recebeu o seu patrimonio de cento e cincoenta mil reis, e foi a Lisboa requerer.

Ajuntou o pretendente ao seu requerimento as certidões de seus premios na faculdade, e de seu excellente comportamento, afóra a pathetica narrativa de sua pobreza, e das quatro orphans dependentes d'elle. Consta que o ministro da justiça se não commovera, porque não lera a petição nem os documentos.

O bacharel, ao cabo de seis mezes, pediu ao tio padre que lhe mandasse alguns soccorros, com que pudesse deter-se mais algum mez em Lisboa, esperando despacho.

Não lhe respondeu o tio, porque já estava na presença de Deus. Responderam as irmans, pedindo-lhe que fosse tomar conta d'ellas, visto que o novo abbade as mandaria sahir da casa da residencia parochial.

Triste nova para o pobre pretendente, que só tinha de seu o diploma, e uma surrada casaca com que [21] ia ás audiencias semanaes do ministro, o qual nunca lhe deu fé da casaca, nem dos premios universitarios, nem das lagrimas!

Escreveu Antonio a um de seus quatro irmãos, que já era guarda-livros n'uma casa commercial do Porto, pedindo-lhe meios para sahir de Lisboa, e ir á provincia tomar conta das irmans. O guarda livros acudiu prestes ao pedido, e partiu logo a segurar a subsistencia ás quatro meninas na casa agricola em que tinham nascido. Deteve-se ainda alguns mezes o bacharel em Lisboa, sustentado por seu irmão. A final, baldadas as supplicas, o triste moço sahiu da capital com intenção de abrir escriptorio de advogado na sua terra.

Não desagrade ao leitor este familiar estylo com que lhe são contadas coisas de si tão singelas, que, só á custa de muito florescêl-as, é que poderiam ser agradaveis. Acceitem-me os successos verdadeiros sem enfeites; quando eu estiver fantasiando, então lh'os darei ataviados de modo que a poesia me dispense de ser um fiel copista do que a toda a hora nos passa diante dos olhos.

Chegou Antonio d'Azevedo ao Porto, e hospedou-se em casa de seu irmão Joaquim. Acertara de ser o commerciante a cujo serviço estava Joaquim, pae de dois condiscipulos de Antonio. Receberam-n'o cordialmente, deram-lhe bom quarto, sentaram-no no melhor logar da sua mesa, e instaram-o a demorar-se no Porto durante aquelle inverno. N'essa mesma occasião fôra ao Porto Gastão de Noronha com suas filhas e mulher;[22]e, como Antonio d'Azevedo, obrigado pelos seus hospedeiros condiscipulos, fosse aos bailes onde elles iam, ahi está a razão porque Corinna da Soledade encontrou o bacharel de Barcellos no baile do conde do Casal.

O infortunio abastarda os espiritos, desalenta-os, e de todo os transfigura. Antonio d'Azevedo vergava debaixo da dependencia, sem maldizel-a. Sentia-se alquebrado por sua mesma inercia, e esmagado pelo quasi opprobrio de sua inutilidade. O futuro estava-lhe fechado, futuro para onde o arremessavam esperanças, que todas vira morrer, durante aquelle triste viver de supplicas e repulsões á porta de ministros, de magnates, de influentes, homens que vestem o arnez do egoismo, logo que, no dizer do senhor A. Herculano, «se recostam nos sophás para onde se atiraram de cima do tamborete de couro ou da cadeira de pinho.» Sentia-se o moço brutificado pela desgraça: tem ella de seu o fatal condão de deslapidar o brilho das ideias, enredando-as, escurecendo-as, falsificando-as; ha uma como nevoa que empana os objectos ou os desfigura; o infeliz vê sempre errado; ora crê e confia-se em tudo que ao commum dos homens é despresivel; ora esquiva-se a tomar pelos caminhos direitos do bem-estar, que eventualmente se lhe offerecem. Póde ser que uma linguagem energica lhe valesse uma transformação de vida; mas o susto, o quasi pavor com que falla aos grandes, e a humildade lagrimosa com que intenta commovel-os, é ainda um sestro mau da sua desgraça. E em tudo assim, em tudo, até no amor, que devia estar [23] forro das cadeias com que a desfortuna peia e trava as demais faculdades. É ao pé da mulher amada, amada sem confiança nem expansão, é ahi que mais a olhos observadores se manifesta o infeliz. Nenhuma palavra diz que lealmente lhe sirva o coração. O que diz é incongruente e absurdo, quando não é disparate de desfranzir um riso. As agudezas triviaes, que inculcam fina têmpera de alma, e que todo o homem, medianamente servido de olhos e intellecto, sabe dizer, tomam no discurso do infeliz umas entoações ridiculas e antipathicas. Se algum pensamento bem ordenado lhe entreluz, esmorece ao proferil-o, afroixa-o como inconciliavel com sua baixa posição, e prefere antes trocal-o por uma semsaboria. Esta é a sorte de todos os desgraçados, que não são tolos; porém é coisa muito rara encontrar-se um tolo desgraçado.

Antonio d'Azevedo sondara-se, compulsara-se, e vira a lenta desfiguração que se operara em sua alma. Impozera-se silencio, que os seus amigos estranhavam. Negava-se a dar parecer nas mais insignificantes questões. De si para si dizia elle que sentia uma depressão no cerebro, uma placa de ferro premindo-lhe a bossa do entendimento. Onde concorresse com senhoras, ninguem lhe ouvia palavra, senão as precisas para dar um pretexto a ausentar-se. Muita gente o reputava malfadado; e outra optava antes por que fosse estupido.

Quando elle viu Corinna da Soledade, estava ao lado d'um sujeito, cuja maxima gloria n'este globo era [24] poder apresentar um conhecido a outro conhecido. Assim que alguem lhe dizia: «Vossa senhoria conhece fulano?» respondia logo: «Quer ser apresentado?» E se os apresentados lhe ficavam á mão, era logo.

Foi o que aconteceu com Antonio d'Azevedo.

Apenas lhe elle perguntou quem era aquella menina vestida de azul-celeste, o sujeito travou-lhe do braço, e disse:

—Venha cá.

O bacharel mal sabia onde era levado, quando se viu rosto a rosto de Corinna, a quem o apresentante disse:

—O meu amigo doutor Antonio d'Azevedo Barbosa, que eu satisfactoriamente apresento á excellentissima senhora D. Corinna da Soledade e Noronha, filha do nobilissimo Gastão de Noronha. Agora deem-me licença, que tenho de fazer quatro apresentações ao conde do Casal.

Deus livre o leitor de ver-se alguma vez nos apertos do bacharel! Corinna esperou o logar-commum que deriva da apresentação. Antonio d'Azevedo não sabia o logar-commum. Foi ella quem o disse:

—Está animadissimo o baile; mas abafa a gente de calor!

—Sim, minha senhora—disse o nosso pobre amigo, puxando pelo colchete da luva até arrancal-o com a pelica.

Corinna esperou ainda que o moço fosse além da affirmativa do calor, em que elle parecia estar mais [25] abafado que toda a outra gente: tão copiosas lhe borbulhavam na testa e faces as camarinhas do suor!

Antonio d'Azevedo viu-se tal qual estava sendo aos olhos da filha de Gastão de Noronha. Apiedou-se d'elle o seu bom anjo. Levantou-se aquelle espirito com todo o peso da sua amargura, e disse abruptamente, mas de compasso:

—Eu não solicitei a honra de ser apresentado a vossa excellencia. Um homem desgraçado não pede relações. Fui barbaro comigo mesmo entrando aqui; mas a desventura tem mil rodeios por onde me encaminha a tudo que me augmenta o desgosto da vida. Resta-me ainda uma sombra de vaidade... Custa-me que vossa excellencia fique fazendo de mim uma ideia injusta. Não sou absolutamente estupido: sou infeliz. Perdi o dom da palavra, e só sei fallar em lagrimas, ou com a minha consciencia, na solidão. Perdôe-me vossa excellencia este intempestivo desafogo.

E retirou-se, sem dar tempo a um monossyllabo.

Corinna da Soledade seguiu-o interdicta com os olhos, e estranhou aquella novidade romanesca de que não encontrára exemplo mesmo em Paris.

Antonio d'Azevedo sahiu do baile, que era na casa do quartel general, e tomou pela rua do Sol a passo vagaroso, até receber a bafagem fria do Douro, debruçando-se sobre o peitoril do passeio das Fontainhas. Pouco depois desenrolou-se do mar um denso nevoeiro que se estendeu rio acima, e logo despediu em nuvens a subir as fragosas ribas da margem direita, e espraiou-se [26] com taciturna presteza por sobre a cidade. A regélida neblina arrefecera a cabeça do moço. O que elle estava soffrendo era um d'aquelles phrenesis que, a longos espaços, atacam os misanthropos.

As pessoas nunca apalpadas por esta penosa enfermidade, cuidam que ou ella não existe, ou, se existe, em pouco está o combatel-a com os suaves linimentos da sociabilidade, ou pouco se deve doer de a não gosar o misanthropo que lhe foge.

Pouco sabe de tamanha desventura quem tal diz! Os accessos de vertiginosa raiva que padecem os feridos d'esta lepra moral são agonias mortaes. O esquivarem-se á sociedade, o ouvirem-se unicamente a si proprios nos monologos selvagens com que a si se amaldiçoam e amaldiçoam a humanidade, dispara por vezes em enfurecimentos e raivas, que só bem desafogam se o desgraçado, com as proprias unhas, se dilacera. O homem sem irmãos, sem familia, sem amigos, sem um mundo que lhe absorva a sua individualidade e n'elle se identifique, sáe tanto fóra das leis da natureza, que a sua angustia ha de superar todas as angustias inconsolaveis. D'estas horas tinha muitas Antonio d'Azevedo, e uma das mais longas e convulsivas estava elle penando n'aquella noite.

Havia de pensar a leitora que o infeliz ia para as Fontainhas scismar na imagem de Corinna da Soledade, contar-lhe os seus infortunios sem pejo d'ella nem das estrellas, consubstancial-a em sua alma pelo mais facil dos processos que usam amantes imaginativos; [27] em fim, haviam de pensar os meus amigos que Antonio d'Azevedo era um poeta como nós todos os que andamos de noite a namorar senhoras nos luzeiros do firmamento, como se isso servisse d'alguma coisa para o amanho da vida de cada um e de cada uma. Em minha boa e leal verdade hei de dizer-lhes que o bacharel de Barcellos era bastante desgraçado para entender em coisas do coração, que requerem contentamento e paz de espirito. Um homem que medita no presente e futuro de quatro irmans, reconcentra toda a sua sensibilidade no coração paternal. O coração dos amores conjugaes—alvo mais ou menos remoto dos affectos enamorados—esse não se compadece com as tristezas, que gelam e como que endurecem o espirito.

Em quanto, porém, o moço engolfava os olhos e o pensamento na alvacenta nuvem que mais e mais se condensava sobre a torrente, Corinna da Soledade relanceava inquieta os olhos á procura do cavalheiro que lhe tinha apresentado Antonio d'Azevedo. Ao vel-o, fez-lhe signal com vehemente interesse, e perguntou-lhe quem era o sujeito que lhe elle apresentara.

—É um doutor de Barcellos, que eu encontrei, ha dias, hospedado em casa dos Taveiras, riquissimos commerciantes. Estes meus amigos é que devem conhecel-o cabalmente, e só elles podem informar vossa excellencia... Dê-me licença...

O cavalheiro vira de relance um dos dois bachareis, condiscipulos de Antonio d'Azevedo, e apanhou pelos cabellos o ensejo d'uma apresentação. Instantes depois [28] voltava, e dizia ter a honra de apresentar á filha do nobilissimo Gastão de Noronha o doutor Felisberto Taveira, e deixou-os, segundo disse, para ir apresentar dois amigos da provincia á senhora condessa do Casal.

Este cavalheiro, alguns annos depois, á hora da morte, ainda apresentou ao seu confessor as testemunhas do testamento.



[29]

IV.



Corinna e Felisberto Taveira conversaram largo espaço. Gastão de Noronha, reparando no interesse e apparente intimidade com que sua filha, estranha ás dansas e a tudo, se entretinha, cuidou em averiguar quem fosse o cavalheiro. As informações deram em resultado que o fidalgo ficou contente. Houve alli um sujeito que respondeu assim arithmeticamente á pergunta do nobilissimo Gastão:

—João Bernardo Taveira, quando casou, dotou-se com cento e cincoenta contos; a mulher trouxe-lhe de dote cento e dez contos: somma duzentos e sessenta contos. Depois, o Taveira herdou de sua cunhada cento e dez contos: somma trezentos e setenta contos. O negocio d'esta casa tem ido sempre em crescente prosperidade. Dou-lhe que, feitas as despezas domesticas, o capital de trezentos e setenta contos, em trinta annos, tenha rendido nove por cento. Ahi tem vossa excellencia [30] que a casa de João Bernardo Taveira deve hoje valer perto de setecentos contos, que repartidos por dois filhos...

—Trezentos e cincoenta contos—atalhou o fidalgo—é uma fortunasita soffrivel em Portugal...

—Eu não se me dava de a soffrer em Londres—disse o outro.

Em vista do que, o condescendente pae estimou que sua filha gastasse o tempo com gente d'aquella bitola.

Ao abrir da manhan entrou Felisberto no quarto de Antonio d'Azevedo, e encontrou-o emmalando a sua roupa.

—Isso que é?—disse Taveira—onde vaes tu?

—Vou para Barcellos—respondeu serenamente o hospede—Basta de vida regalada: vamos ao trabalho, que é o unico regalo dos infelizes. Estou aqui deslocado, meu amigo. Esta vida do teu galhardo Porto não se fez para mim. Ha de ser-me mais consoladora a soledade e a tristeza de minhas irmans. Desgraçados com desgraçados.

—Mas—interrompeu Felisberto—que vaes fazer em Barcellos?

—Abrir um escriptorio de requerimentos, e nos dias em que merecer um tostão com o meu trabalho, dar a minhas irmans um banquete que valha um tostão; e nos dias em que a minha sciencia das leis não tiver que fazer com a paz em que vivem os homens, farei discursos a minhas irmans para persuadil-as á resignação. [31] De qualquer das maneiras carecem ellas de mim, e eu d'ellas.

—E porque não has de tu—atalhou o leal amigo—dizer ao teu Felisberto que tuas irmans estão precisadas, e que os prazeres da vida te amarguram em quanto ellas estão penando? Abre as minhas gavetas, e manda dinheiro a tuas irmans.

—Obrigado, meu bom irmão. Se a amizade te impõe o dever de ser generoso, a estima de mim proprio obriga-me a ser homem. Aquelle que vive de emprestimos, sem ter exhaurido as suas faculdades de aptidão para o trabalho, póde hypothecar a sua palavra, mas a dignidade, não, que a não tem.

—Faz a tua vontade, Azevedo; mas vê lá que o teu catonismo de dignidade te não leve até á ingratidão!...—disse com branda severidade o filho do millionario.

—Ingratidão!—acudiu o mancebo com sincera magoa.

—É ingratidão esconderes tua vida de quem está com a alma aberta convidando-te a dar-lhe o prazer de te ser util. É ingratidão privares-me da alegria de te fazer bem a ti e aos teus.

—Perdoa-me, pois...—interrompeu Azevedo, apertando-lhe estremecidamente a mão.

—Estás perdoado—tornou Felisberto abraçando-o; mas has de cumprir uma pena. Ficarás mais algum tempo comnosco. Tuas irmans não são felizes; mas necessidades creio que as não soffrem. Teu irmão [32] Joaquim reparte com ellas o seu ordenado, e bem sabes que quatrocentos mil reis abundam á subsistencia d'uma familia em Barcellos... Vou ajudar-te a desfazer a mala.

Felisberto ia desdobrando o pouco fato do seu hospede, e fallando ao mesmo tempo:

—Porque sahiste tão cedo do baile, Azevedo? Ás onze horas já te não vi...

—Estava triste...

—E que fizestes até ás seis horas e meia fóra de casa?

—Andei a fazer a digestão da felicidade com que sahi de lá—respondeu sorrindo amargamente Azevedo.

—Que te pareceu aquella mulher com quem falaste? a Corinna?

—Chama-se Corinna?

—Da Soledade! Vê tu que nome, que poesia, e que romance! Quanto daria o Eugenio Sue por um nome d'estes? Quando aquella menina fôr conhecida dos poetas menores do Porto, todas as poesias se chamam «Corinnas da Soledade.» Que te pareceu ella a ti, alma de gelo?

Antonio d'Azevedo córou, lembrando-se de que o seu amigo ouvira d'ella ou d'outra a singular sahida da sua apresentação, adornada comicamente de motejos feminis, os mais pungentes de quantos ha.

—Riram-se de mim?—perguntou elle—Tu de certo não ririas, meu Taveira!

[33] —Se riram! que desproposito! Que ha em ti provocador de riso?

—Entre-lembro-me de ter dito não sei quê a essa senhora... O que foi está-me fazendo a impressão de um mau sonho.

—Disseste-lhe que eras infeliz. Tu crês que a infelicidade faça rir alguem? Corinna ouviu-te, estranhou o infortunio que se confessa em bailes; mas não sorriu, condoeu-se, lastimou-te, e pediu-me que te levasse ámanhan ao baile da Torre da Marca.

—É curiosidade de mulher ociosa?

—Não: é sympathia...

—Com a desgraça?—atalhou Azevedo.

—E com o homem, creio eu; muito mais com o homem. Uma menina de vinte annos, bella, nobre, e não sei se rica, só por milagre sympathisa com o homem desgraçado.

—Então...—disse Antonio d'Azevedo, e sosteve-se.

—Então, ias tu perguntar-me se seria amor?

—Não: o infortunio estraga as faculdades da razão, mas não as cega, meu amigo.

—O que me espanta é o sangue frio com que tu ouves esta revelação, que faria endoidecer muitos felizes!—tornou Felisberto—Dar-se-ha caso que tu sejas aleijado de coração! Ó Azevedo, tu já amaste?

—Não tive ainda tempo. Quando a alma trabalha sempre, o coração nunca está ocioso. Bem sabes que fiz a minha formatura á custa de muitas vigilias. Acabei [34] de formar-me, e fui para Lisboa requerer. Estive lá nove mezes; e, n'este longo prazo de desgostos, o menor foi a fome, e o maior foi a convicção da minha nullidade. Uma vida assim, nem por descuido se acha illaqueada nas armadilhas do amor.

—Mas deves ter sentido uma aspiração que é commum: deves ter sonhado uma mulher.

—Não, porque adormecia sempre com a barra de ferro da desgraça sobre o peito. As mulheres que via nos meus sonhos eram minhas quatro irmans lindas, desamparadas e pobres. Tinha o coração cheio d'ellas. A Providencia divina tem-me feito a mercê de não ajuntar uma quinta imagem ás quatro infelizes que sobejam á minha sensibilidade.

—Ora vamos—tornou Felisberto Taveira—Corinna da Soledade não é mulher que algum homem veja isentamente. Não te havia ser penoso amal-a, pois não?

—Tem graça a pergunta!—respondeu Azevedo com affavel sorriso—Creio que me seria muito facil amal-a se eu fosse Felisberto Taveira, ou um d'esses mil que recebem um raio d'este sol universal da esperança ou da alegria. Como queres tu que a minha alma saia do seu abysmo escuro, e vá como doida banhar-se na luz immensa, n'este mar de paixões deliciosas que eu mal conheço dos romances que traduzi, como quem copía caracteres hebraicos, sem os entender? Meu amigo, eu creio que o amor só resiste ás lagrimas, que são suas: ha um chorar que vem d'outras angustias mais severas e profundas; e, a meu ver, estas lagrimas vão ao [35] coração, e devoram o sentimento melindroso do amor.

—É uma theoria, que estás compendiando para um futuro livro, meu Azevedo; estimo que desbanques o Balzac, o Ovidio, o Sthendal, o Castilho, e quantos escreveram do amor e da arte de amar; entretanto, convem-te recolher experiencias. Começas ámanhan a experimentar no baile da Torre da Marca.

—Tu és tão bom que me deixas ficar em casa!—disse Azevedo.

—Não posso: dei a minha palavra a Corinna, contando com a tua condescendencia.

—Iremos—acudiu Antonio d'Azevedo.

N'este mesmo dia, Joaquim, guarda-livros dos Taveiras, foi ao quarto de seu irmão, e disse-lhe:

—Trago-te uma boa nova, Antonio. O senhor Taveira chamou-me ao seu escriptorio, e augmentou o meu ordenado a um conto e duzentos, para que eu continuasse a dispender na minha decencia e pequenas negociações que faço a quantia que dava a nossas irmans. Beijei-lhe as mãos, e agradeci-lhe em nome d'ellas, e em teu nome. Agora vê tu se precisas d'alguma quantia para os teus arranjos, que eu tenho de sobra. Se queres tornar para Lisboa, vai, Antonio, que te não hão de faltar meios. D'aqui a meia duzia de annos as nossas irmans podem estar casadas com lavradores remediados, se eu tiver vida e saude. Dois mil cruzados é um bom dote para cada uma, e eu sinto-me com bastante aptidão e fortuna para os grangear de dois em dois annos, sem lhes diminuir a ellas a mesada. [36] Quero ver se tu agora com esta boa noticia te não alegras, Antonio! Andas ahi tão acabrunhado que pareces um velho! Quem te vir assim abatido e descuidado do teu aceio, ha de pensar que algum remorso te atormenta! Vive como toda a gente mais infeliz do que nós somos. Se foste contrariado, se trabalhaste muito para te formar, agradece a Deus a intelligencia com que venceste todos os obstaculos. Se não tens agora emprego, tu serás empregado. Os senhores Taveiras morrem por ti, e tem muitos amigos na capital. Já o pae me disse que, em cahindo este ministerio has de ser delegado ou administrador d'um bairro aqui do Porto. Depois, as nossas irmans se estiverem solteiras, veem para a nossa companhia, e vão comnosco aos bailes e aos theatros...

—Cala-te, criança!—interrompeu Antonio—Se as nossas irmans hão de ir comnosco aos bailes e aos theatros, como queres tu que ellas casem com lavradores, dotadas a dois mil cruzados! Vê se as dotas, Joaquim; e dá-lhes os seus maridos lavradores, e não as chames á cidade. Não te lembras d'aquelles choupos onde cantavam de madrugada e ao anoitecer os pintasilgos, debaixo da janella do nosso quarto?

—Lembra.

—Pois olha que não ha musica mais suave a corações felizes! Deixa que nossas irmans a gosem por muito tempo; que, se a esquecerem por outra, em vão te cansarás em dar-lhes novas alegrias. Faz por que ellas não tenham de vender o seu patrimonio, que está[37]na pequena propriedade onde os passarinhos cantam nos choupos, e onde o anjo da paz mora com ellas. Em quanto ao offerecimento que me fazes do teu dinheiro, meu bom irmão, póde ser que eu t'o acceite para uma longa viagem, visto que já não sou aqui preciso para meditar no futuro esteio da nossa familia.

—Pois onde queres tu ir?—atalhou Joaquim.

—Penso em ir ao Brazil. Dizem-me que ha alli trabalho para os braços de todas as nações, e particular amor e bem-querença para o portuguez que trabalha. O cansaço do espirito enfraqueceu-me os braços, é verdade; mas, ainda assim, quando eu puder acabar de todo com este incommodo hospede chamado a sciencia—a minha estupida e inutil sciencia!—então póde ser que os braços se revigorem, e eu restitua á minha propria dignidade, em trabalho, o que perdi na inactividade de doze estereis annos de lidas de pensamento e de vans ambições. Outras ambições me hão de levar ao Brazil: é ajudar-te, Joaquim; é ser, como tu, digno da estima dos nossos e da estima de estranhos. O homem inerte, aqui no Porto, é desconsiderado: devia sel-o assim em toda a parte onde fosse um e unico o padrão da honra. Não sei em que conta sou tido pelas raras pessoas que me conhecem aqui; mas escuto o que se diz dos pouquissimos que por ahi vagueiam de rua em rua, affectando com jactanciosa necedade que o Porto póde imitar Lisboa no seu peculiar caracteristico da vadiagem. Vexa-me a actividade d'esta boa gente, que parece trabalhar incessantemente para dar [38] nome de laborioso a este paiz! Ando como humilhado ao par do commerciante, do artista, do escriptor e do ultimo operario. Esta ancia de lavor e de fadiga chega a mortificar-me. É ver que benefica influencia tem a labutação dos mais materiaes mesteres sobre os espiritos exclusivamente dados ás funcções da intelligencia! Parece que todo o homem anda em competencia com o outro na sua esphera de trabalho. O commerciante agenceia grandes operações em poucas horas; as forjas convertem em fórmas maravilhosas milhares de arrobas de ferro em rapido tempo; o poeta, se outro fito o não descaminha, realça na facundia e selecção de seus poemas; o romancista, com este mesmo mundo de boas paixões e febril actividade, comporá livros sobre livros sem lhe ser mister explorar as sinuosidades do vicio para ser bem-quisto e lido. E que sou eu aqui, meu irmão? Que fiz eu do meu cabedal de intelligencia? Deixei-o congelar-se sob a mão do infortunio, quando devia rasgar umas cartas de bacharel affrontosas, e vestir a jaqueta do operario, em cujas lapelas o respeito publico aprezilha muitas vezes a condecoração, invisivel sim, mas venerada na consciencia dos que nobilitam o trabalho.



Eu tenho a sizudesa de poupar o leitor ao muito mais estirado discurso do bacharel. Fallou muito, como fallam os misanthropos quando uma luzinha de esperança lhes lampeja na sua escuridade. A sua esperança sorria-lhe d'além-mar, do ceo hospedeiro do novo-mundo.



[39]

V.



Dizia Gastão de Noronha á filha Corinna:

—Vi-te hontem á noite muito distrahida, menina, e gostei que te inclinasses áquelle rapaz...

—A qual, papá?

—A qual ha de ser?!—tornou o pae com um gesto de intelligencia e comprazimento—é o unico com quem te detiveste uma boa hora...

—Ah! já sei... o Taveira?

—Alli tens um excellente marido, Corinna! Trezentos e cincoenta contos... Não sabias?

—Não, meu pae—respondeu a menina, indecisa se devia desenganal-o, ou evadir-se á continuação das perguntas.

—É necessario—proseguiu Gastão em tom solemne—acabar com as distincções de raças. A velha nobreza é um merito relativo que o progresso acata, se outros meritos de natureza commum a sustentam [40] na altura d'onde procede. As altas linhagens predominavam, quando eram as representantes dos illustres nomes e das grandes riquezas. Porém, depois que as industrias abriram fontes de ouro, sem terem de o fazer á ponta da espada e da lança, a fidalguia baixou muito do seu quilate, e teve de associar-se com ellas para não ficar sósinha, estacionaria e dessociavel. Tu viste como em França as netas dos grandes titulares de Luiz XIV vão casando com os netos dos plebeus d'aquelle tempo. Ennobrecer-se de veneras e titulos custa tão pouco, ou vale tão pouco no bom juizo dos governos illustrados, que já hoje póde cada homem rico abrir a sua burra, e fazer com que ao mesmo tempo se abra o cofre das graças. Muita gente irreflectida diz que isto é um mal; e os atilados acham que a depreciação dos fóros de fidalguia é coisa de incalculaveis vantagens para o adiantamento da humanidade. Entendem elles avisadamente que só assim, egualando os homens pela nobilitação, já que elles não querem egualar-se pelo plebeismo, conseguiremos ser todos eguaes. Ora nós, filha, que vivemos em França, onde as fitinhas são respeitadas, porque todos as desejam e trabalham para ganhal-as, vencendo uma batalha, apedrejando um rei, ou inventando uma machina de fazer colchetes, devemos ter na devida conta de desprêso uma chimera que, felizmente, em Portugal preoccupa todas as cabeças para, a final, as nivelar todas na mesma linha...

Corinna da Soledade estava ouvindo e recolhendo [41] as sentenças do pae, com o proposito de responder com ellas ao mesmo apostolo da egualdade, se alguma vez carecesse d'isso.

Gastão continuou no mesmo tom de circumspecta gravidade:

—Accrescem razões d'outra ordem no caso especial em que estamos, Corinna. A nossa casa está desfalcada a ponto de eu não poder remediar com a mais apertada economia o mal que vem de avós, e eu continuei na emigração, para vos dar decencia, educação e prazeres. Moços eguaes a ti em nascimento muitos haverá; mas, pouco mais ou menos, empobrecidos como nós, e retirados como realistas á obscuridade dos seus solares e da sua inactividade. Uns por inercia, outros por ignorancia, todos se devem considerar formando á parte uma phalange de estatuas d'algum devastado jardim que não ha de mais florir. Já vês, Corinna, que ha difficuldade em achar-se um marido como teus bisavós o desejariam; mas facil te ha de ser encontral-o como teu pae t'o deseja. Felisberto Taveira, sobre ser rico, é um gentil moço, é doutor, revela fina educação, e... não é assim?

—Parece-me excellente sujeito—disse Corinna.

—Bem: eu não podia enganar-me—tornou com alegre semblante o pae—Já te disse elle que... sim... manifestou-se-te?

—Nada me disse com relação a casamento, papá.

—Não admira: era a primeira vez que fallava comtigo; mas que te amava...

[42] —Tambem não disse...

—Pois sim; convenho em que o respeito e a delicadeza o contivessem; porém tu deves conhecer, depois de uma hora de conversação...

—Não fallamos a nosso respeito, papá—disse candidamente Corinna.

—Pois então?!

—Eu lhe digo: apresentaram-me um sujeito que me disse umas palavras muito amarguradas, e sahiu do baile. Fiquei pasmada e curiosa de saber quem era o tal sujeito. O Antão de Menezes, que m'o tinha apresentado, trouxe-me o Taveira para me dar as informações que eu desejava. Ficamos a fallar d'elle todo aquelle tempo que o papá viu. Ahi tem vossa excellencia o que foi.

—E quem era o sujeito? que te disse elle? e porque ficaste tu assim curiosa de o conhecer?!—perguntou Gastão com demudado rosto.

—Era um doutor Azevedo Barbosa, de Barcellos, hospede do Felisberto Taveira...

—E que mais?—atalhou o pae precipitadamente.

—E que mais?! o papá que deseja que eu lhe diga mais?

—Se é rapaz de fortuna... Em Barcellos não sei que haja...

—É pobre, e vive muito penalisado, porque tem quatro irmans, e cuida que o persegue uma má estrella.

—Pois sim, não duvido que o persiga uma má estrella, e que seja pobre e tenha quatro irmans; mas [43] que tens tu que ver com isso? Em que se funda a tua interessante curiosidade?!

—Tive compaixão d'elle, papá.

—E gastaste uma hora a colher informações!... O Taveira havia de persuadir-se que tamanho interesse significava alguma coisa mais que simples curiosidade. Se assim foi, como havia de elle dizer-te que te amava?! Ora, minha filha, nunca faças praça d'essas tuas compaixões sem utilidade. Se o Taveira te procurar nos bailes, agradece-lhe a preferencia, e não lhe faças suspeitar que o escolhes por medianeiro: isso não só desanima, mas offende o amor-proprio. Teu pae pede-te que olhes com toda a seriedade ao teu futuro, que por em quanto se figura triste. Com um bom casamento davas-te, e davas á tua familia a felicidade.

Corinna da Soledade, ausente o pae, scismou largo tempo com muita tristeza, e meditou em fingir-se doente para não ir, na seguinte noite, ao baile da Torre da Marca.

O fingimento era facil; porém o bom ou mau anjo d'ella segredou-lhe seducções, que a deliberaram a conservar-se no goso de sua perfeita saude para ir ao baile dos condes de Terena.

Antonio d'Azevedo, sinceramente violentado, entrou na sala em que estava Corinna, e foi ao lado de Taveira cumprimental-a. Momentos depois, Felisberto ia retirar-se, crendo que assim comprazia a Corinna. Chamou-o ella, e disse-lhe a resguardo de Azevedo:

—Desagrado a meu pae, que está aqui defronte, [44] se ficar conversando com o seu amigo. Peço-lhe que me não deixe só com elle, e, quando meu pae estiver jogando, então...

E de feito, Gastão de Noronha fitava os olhos na filha, e perguntava á pessoa com quem fallava, se o sujeito que entrara com Taveira era um tal Azevedo, de Barcellos.

Dizia Taveira ao seu hospede:

—Aposto mil contra um... aposto!

—O que?—perguntou Azevedo.

—Que Corinna te ama, e te ama de véras! A esconder-se do pae para te fallar! ha nada mais persuasivo! Quando uma menina se confia n'um confidente, e desconfia de seu pae, e se esconde d'um terceiro para dizer ao medianeiro que volte com o outro quando o papá estiver jogando; e quando esse outro... és tu!...

Antonio d'Azevedo ergueu os hombros, e disse:

—Valha-te Deus! Cuidas tu que eu tenho espirito bem folgado para entrar n'estes brinquedos pueris, em que a tua seriedade corre perigo de sahir-se mal!... Queres tu que eu me capacite de que estamos figurando n'uma das graves comedias humanas? Pois sim, meu amigo: figuremos e discutamos. Tu já disseste áquella senhora que eu sou um pobre bacharel que consumiu sua sensibilidade, fazendo a côrte aos ministros da justiça?

—Não lhe disse tudo isso, nem parte d'isso. Como ella me não perguntou se eras rico, dispensei-me de ser o inventariante dos teus pares de botas e dos teus [45] camapheus. Perguntou-me se eras bom, e eu disse-lhe que eras um moço honrado, e o coração d'um anjo. Tudo o mais que dissemos foi commentar o que é ser-se honrado e ser-se anjo. Provavelmente Corinna, que viu tudo em Paris, não achou lá a exquisitice do anjo-coração, e está em ancias de saber em que tu te apartas do restante do genero humano. Esta curiosidade é já uma escolha, e a escolha, se a tua modestia m'o consente, é o amor com todos os seus recatos e astucias.

Proseguiram n'esta contenda, até que Taveira viu abancar ao jogo o pae de Corinna; mas, momentos antes, observara elle que o fidalgo segredara com sua mulher, olhando o bacharel de travéz com o sabido disfarce dos que olham de travéz. D. Mafalda fizera um gesto, que vinha a dizer que estava sciente.

—Vejo que a familia está de sobre-rolda!—disse Taveira ao seu amigo—mas ainda assim avisinhemo-nos cautelosamente da praça.

Corinna acabara de dansar, e passeava pelo braço do parceiro, que por fortuna era Antão de Menezes, o apresentante emérito. Este, que adivinhava todas as subtilezas do coração dos seus apresentados, approximou-se de Azevedo, e disse-lhe com mui galharda cortezania:

—O thesouro não me pertence. Aqui o tem, que eu sou apenas o indicador dos thesouros.... sou uma especie de S. Cyprianno, que descobre as riquezas encantadas.

[46] Antonio d'Azevedo deu o braço a Corinna, e Felisberto Taveira retirou-se com Antão.

Agora é que havia de ser umas delicias ouvil-os, se D. Mafalda, vigilante observadora da passagem innocente, não mandasse um cavalheiro dizer a sua filha que fosse fallar-lhe.

Corinna respondeu:

—Queira dizer á maman que eu vou já.

—Vá, minha senhora—disse Azevedo. Não seja eu causa de sua mãe a desgostar.

—Não importa.... Eu queria pedir-lhe que não fosse tão infeliz...

—A mim?!—atalhou Azevedo suavemente enleado pela musica d'aquella voz, em que o tom da supplica tinha o mavioso do carinho filial.

—Sim... pois não me disse que era muito desgraçado?...

—Sou.... era muito desgraçado; mas condoeu-se vossa excellencia a tal ponto de mim que....

—Que lhe peço com instancia que se não deixe vencer do tedio da sociedade; não fuja das pessoas que imagina felizes... Olhe que não encontra seis que o sejam n'estes centenares de pessoas. Eu, se fosse senhora das minhas acções, tambem aqui não vinha, e ficaria a soffrer sem nada remediar... Não posso demorar-me, que minha mãe está impaciente... Olhe que eu desejo a sua amizade... Conduza-me a minha mãe... e não se esqueça...

Este lance, que, a dar-se uma vez na vida do homem, [47] nunca se repete, foi uma especie de vertigem, que deixou o espirito de Azevedo na indecisão de quem, a sonhar, a si mesmo se pergunta se está sonhando.

Corinna sentou-se ao lado de sua mãe, e o bacharel com os braços pendentes e a boca descerrada para tragar fôlego que lhe alargasse o peito, ficou, tres passos distante, arrobado na contemplação da gentil menina.

Taveira, que não os perdera de vista, estava-se deliciando no espectaculo que só elle via. Quando achou que era tempo de acordar o amigo de um extasis desagradavel a D. Mafalda, tomou-o pelo braço, e disse-lhe simulando seriedade:

—Quando quizeres vamos embora. São duas horas da manhan.

—Já!—murmurou Azevedo.

—Vê lá.... se queres sonhar mais alguns minutos....

Azevedo comprehendeu a intenção de Taveira, e disse com uma voz que não era a sua, e com um brilho d'olhos que nunca tivera:

—Nasce o novo homem... Sinto o coração... Agora sei que ha uma felicidade commum de todos os desgraçados. Se isto não é uma sensação passageira, hei de beijar-te as mãos, que me arrancaram do meu abysmo.

—A beijares as mãos de alguem—disse Taveira, sorrindo—é melhor que beijes as mãos de Corinna.

Antonio d'Azevedo deteve-se um pouco de tempo em recolhimento silencioso, e disse de sobresalto:

[48] —Isto é uma nova desgraça!

—O quê? uma desgraça beijares as mãos de Corinna?

—Vê tu—proseguiu elle como se não ouvisse a pergunta galhofeira do amigo—que engenhosa é a minha funesta estrella! Hontem tive um pensamento que me deu vigor novo para crer e esperar. Projectei ir ao Brazil, e logo os horisontes do meu futuro se rasgaram, e não sei a que luz a esperança me mostrou dias ditosos. Sonhei com as alegrias do meu plano, e acordei hoje com um alvoroço estranho. A desgraça viu que eu tive algumas horas menos negras, e duvidou da sua omnipotencia. Trouxe-me aqui para eu sentir que o apartar-me hoje do local onde ouvi aquella mulher me ha de ser um tormento.

—Melhor!—interrompeu Felisberto—Ella e os teus amigos não querem que vás ao Brazil procurar a felicidade que deixas cá. Onde a procuramos é que ella não está.

—Entendes tu—disse o bacharel—que se é feliz, amando, na minha posição, uma senhora na posição de Corinna de Noronha, filha do nobre Gastão de Noronha...

—Nobre e pobre, accrescenta. Se elle fosse rico como foi, dizia-te que, a não quereres renunciar aos teus austeros principios de dignidade, convinha-te esmagar o coração debaixo da barra d'oiro que ella valesse; mas, segundo as informações que hoje me deram, a filha do fidalgo não tem mais do que tu. Entre [49] ti e ella está estabelecida a egualdade humana, no maximo rigor da palavra.

—Ainda não—atalhou Azevedo—Eu sou filho de um lavrador de Barcellos.

—Vai tu perguntar aos lavradores de Barcellos se elles dão seus filhos ás filhas dos fidalgos que não tem terras que lavrar.

—Essa é outra questão, meu amigo. Não te esqueças que eu sou um homem sem occupação. Tão reprehensivel seria eu disputal-a ao pae sendo ella rica e eu pobre, como se quizesse associal-a á minha pobreza. Que faria eu d'aquella menina se me fosse permittido casar com ella?

—O que fazem das esposas os maridos que casam pobres. Amam-as como se costumam amar os pobres; por amor d'ellas redobram de vigor para luctarem com a adversidade; por amor dos filhos nunca esmorecem no desalento em que tantas vezes se nos deparam os celibatarios, que apenas luctaram um anno com as contrariedades. A familia é uma accumulação de forças no braço do seu chefe. O pae nunca succumbe; o marido tem uma força providencial que o ampara.

Este dialogo, o primeiro que n'este genero talvez se travou n'um baile entre dois rapazes menores de vinte e cinco annos, foi interrompido por Gastão de Noronha, que quiz ser apresentado a Felisberto Taveira.



[50]

VI.



Quiz o fidalgo do Minho apalpar o coração do filho do millionario, pessoalmente. A sua prosapia soffria-lhe que, ageitando-se o ensejo, elle mesmo se offerecesse para sogro, e poupasse o timido moço aos embaraços de pedir-lhe a filha, e aos receios de ser mal acolhido.

Ouviu Felisberto Taveira uma longa e não falsa descripção das virtudes e prendas de Corinna da Soledade. Aqui se dá um fragmento da paternal exposição:

—Minha filha, posto que vivesse na melhor roda de Paris, e a rodeassem os mais graduados moços d'aquelle viveiro da elegancia, nunca se captivou d'algum. Não lhe direi que ella se isentasse por soberba do seu nascimento, bem que pudesse tel-a, porque meu quinto avô sahiu da casa dos marquezes de Villa-Real, por onde somos Noronhas; todavia, não era vaidade a frieza de Corinna. Bem póde saber vossa senhoria que [51] o coração é de essencia democrata, e ao coração se deve o triumpho da democracia, em virtude de se irem a pouco e pouco amollecendo as durezas de que as antigas educações callejavam o coração da mulher de linhagem. O que minha filha tinha e tem, era um juizo prudencial á prova de todas as velleidades e pompas, que seduzem o vulgar das meninas. Os seus gostos foram sempre moderadissimos; riquezas nunca a deslumbraram; os bailes e os banquetes era preciso obrigal-a a gosal-os; tudo lhe era pesado, menos a solidão, a meditação e a obscuridade. Cuidei sempre que minha filha seria insensivel ao prazer de se ver amada, e mais ainda ao de receber satisfeita a côrte de algum moço. Em Portugal, principalmente, é que não devia esperar vel-a possuida de sentimentos amorosos; porque, sem desaire da nossa patria, devemos confessar que nós, os portuguezes, temos em amor uma certa gravidade, que toca a extrema do aborrecimento. Falta-nos um certo espirito pétillant, um não sei quê de que as mulheres se deixam seduzir. Não acha?

—Sim, senhor... nós temos isso...—respondeu Felisberto Taveira, descobrindo um grande fundo de ridiculez através do aspeito encanecido do fidalgo.

—Sem duvida nenhuma... Pois, meu caro senhor Taveira, penso poder affirmar-lhe que a minha filha está pagando o universal tributo. Descobri que ama! Só o Porto podia fazer tal milagre!

—É muita honra para o Porto, senhor Noronha! e muita mais ainda para o homem escolhido.

[52] —Que vossa senhoria conhece perfeitamente...

—Eu?...—balbuciou Taveira, quasi convencido de que o fidalgo alludia a Antonio d'Azevedo.

—Sim, senhor: conhece-o como ás suas mãos, porque vossa senhoria e elle formam dois seres n'um só ser: são inseparaveis.

Isto acabou de persuadir Taveira, que, na mais candida boa fé, accrescentou:

—E creia vossa excellencia que a pessoa preferida pela senhora D. Corinna tem virtudes e coração dignos d'ella.

—Creio, creio, e o meu maior prazer era vel-os unidos, em quanto eu tenho vida e alegria para poder felicitar-me de tão boa união.

—Agora me convenci—acudiu Felisberto—de que vossa excellencia ama sinceramente sua filha, e viu com benignos olhos a inclinação desegual que ella manifestou.

—Inclinação desegual! Eu não sou parvo de fidalgas desegualdades, senhor Taveira! Soberania ha uma só, que é a da virtude: o resto são convenções humanas sem criterio nem fundamento real. O que eu quero é ver minha filha feliz. Se os meus appellidos valem alguma coisa, meus netos hão de chamar-se Noronhas, e a todo tempo que elles queiram humilhar arrogancias d'outros nobres, poderão sempre abrir a historia, na certeza de que encontram o nome d'um avô em cada pagina. Os tempos são outros, senhor Taveira, porque são outros os corações. Violentar a vontade [53] de minha filha!... Deus me feche os olhos antes que eu tal faça! Respeito-lhe a inclinação, que ella manifestou, porque sei que a sua dignidade foi a primeira voz que lhe deu conselho.

—Admiro a grandeza de sua alma!—tornou Taveira com mui sizuda e admirativa satisfação—E mais me espanta que vossa excellencia, antes de acceder á vontade de sua filha, não curasse de saber se o homem escolhido é bastante rico a mantêl-a na decencia com que foi criada.

—Não, senhor, não quiz saber se era rico: o que perguntei foi se era bem comportado, se tinha grangeado a estima publica, se seria um bom marido e um bom pae. Unanimemente me disseram que sim.

—E disseram-lhe a verdade, senhor Gastão de Noronha—confirmou Taveira—A riqueza de Antonio d'Azevedo só bem lh'a podem avaliar os que mais perto vivem de sua nobre alma.

—A riqueza de quem?—atalhou Gastão de Noronha com um gesto de irrisorio espanto.

—De Antonio d'Azevedo Barbosa—tartamudeou Taveira, corrido do engano em que tinha estado.

—Não nos temos entendido!... Pois vossa senhoria cuida que eu estou fallando d'esse tal sujeito?

—Cuidava... Pois não é elle a pessoa distinguida por sua filha?!... Perdão! eu entendi mal.

—Vejo que sim; e eu peço tambem perdão de entender mal, cuidando que era outra a pessoa... Ora esta!... Pois não é o senhor Felisberto Taveira?

[54] —Eu!

—Sim, o senhor!

—Não pensei tal... e creio que vossa excellencia entendeu mal a propensão da senhora D. Corinna, posto que a escolha me daria muita gloria.

—Muito bem: façamos de conta que estivemos a fantasiar—tornou Gastão simulando um desenfado risonho, que lá por dentro era accesso de zanga e vergonha.—Pelo que diz respeito ao senhor Antonio de... como é?

—Antonio d'Azevedo.

—Ah! sim, d'Azevedo... filhote de Barcellos?

—Justamente.

—Não sei quem são os Azevedos de Barcellos... Sejam lá quem forem, meu caro senhor Taveira... tenho a dizer-lhe...

—Os Azevedos de Barcellos—interrompeu com louvavel desabrimento Felisberto—são tão nobres como os Taveiras do Porto. Meu pae veio da lavoira de Fafe para aqui; o pae do bacharel Antonio d'Azevedo morreu na lavoira de Barcellos.

—Sim, senhor: convenho em que tão nobres são uns como outros; mas a minha filha não ha de, creio eu, illudir-me mais uma hora. Queira desculpar um engano, em que vossa senhoria nada perdeu, e rogo-lhe que diga ao senhor Antonio d'Azevedo que se preoccupe com aspirações mais rasoaveis, se não interessa em dar graves desgostos a uma familia que vive tranquilla.

Quando as ultimas linhas d'este dialogo se trocavam [55] entre os dois, qual d'elles mais corrido do seu equivoco, outro dialogo terminava entre Corinna e Antonio d'Azevedo por estas palavras d'ella:

—Eu receio que meu pae se não demore no Porto, e Deus sabe se nos veremos mais! Olhe: se tiver precisão de queixar-se da sua má estrella, faça-o a mim, que sou, desde hontem, desde sempre, desde que nasci sua amiga, e talvez sua irman por sympathia de dores. Escreva-me: eu lhe direi de Vianna em que nome me ha de escrever. Vá visitar-me em espirito á minha soledade: lá me verá sósinha por entre as arvores, em quanto minhas irmans, quasi tão infelizes como eu, procuram ao menos entreter-se umas com as outras em volta das suas saudades de Paris... Eu nem isso trouxe de lá... Não se demore, que vejo meu pae...

Felisberto chegou diante de Antonio d'Azevedo, e disse com forçado riso:

—Estás outra vez somnambulo, Antonio? Eu estou peor, porque venho estupido de spasmo!

—Que é?

—Querem casar-me com a tua Corinna!

Azevedo ergueu a fronte avincada, e disse:

—Pois é costume offerecerem-se assim as filhas n'um baile ao homem a quem se é apresentado?!

—Não é costume: é moda agora... O Gastão vai sahir com a familia—ajuntou Felisberto—Podemos ir, e lá fóra conversaremos.

Ouviu o bacharel o dialogo em resumo; contou ao seu amigo as ultimas palavras de Corinna; e adorou a [56] imagem da primeira mulher amada nos alvores da aurora que repontava. O que elle então disse, em arrobos de poesia, era o sublime represado n'aquelle coração em sua primeira primavera.

Perguntou-lhe Taveira se pensava ainda em ir ao Brazil.

—Hoje mais que nunca—respondeu elle.

—Como assim?! Aquella mulher não te prende á patria?

—Prende-me sobre tudo a um sacratissimo dever. Até agora pensava em ir ao Brazil para segurar o futuro de quatro irmans pobremente criadas e boas de contentar com pouco; d'hora em diante hei de ver no horisonte das minhas ambições, além de minhas irmans, Corinna da Soledade, educada com as regalias da sua condição, e só digna do homem que a não obrigar a descer de posição aos olhos da sua sociedade.

—E quem te assevera—redarguiu Felisberto—que voltas rico a Portugal? De que genero de trabalho fias tu a tua prosperidade?

—De todos os generos honestos. Se não valer como advogado, valerei como caixeiro; se não tiver aptidão para o negocio, ensinarei o que sei; se tiver de descer, descerei sem vergonha; se descer tão baixo que nunca possa erguer-me d'entre os ultimos operarios, ahi ficarei, e lá morrerei: ninguem dirá, depois, que transigi com a minha inutilidade.

—Quer-me parecer—retorquiu Taveira—que a linda Corinna está sendo ainda pouquissima coisa na[57] tua alma! Dar-se-ha caso que, em verdade, tu sejas refractario ao amor, ou que a tua sensibilidade, como disseste, se consumisse em galantear os ministros da justiça!? Qualquer homem, que não fosse tu, forte do amor inspirado por um anjo como Corinna, e com as tuas habilitações, cuidava desde já em agenciar na patria uma mediania, que a doçura da vida intima convertesse em opulencia invejavel aos mais opulentos. Suppondo que tu não pudesses, n'um ou dois annos, alcançar emprego, ou clientela como advogado, é de crer que tivesses um amigo a quem pedisses um, dois, ou mais contos de reis para te estabeleceres aqui, em Lisboa, na tua terra, ou onde quizesses viver. Suppondo mais que tu me tivesses na conta do teu primeiro amigo, era a mim que tu pedias esse emprestimo, e eu com mil vontades te servia agora, e depois, e sempre.

Antonio d'Azevedo, após algum espaço de reflexão, respondeu:

—Meu caro amigo, se o verdadeiro amor é uma desordem da razão, esse não é o amor que eu sinto. Que a minha vida está passando por nova phase, é certo: esta excitação d'alma, que eu não sei se deva chamar alegria da juventude feliz, nunca a experimentei. Porém nenhuma das minhas faculdades, que pensam, julgam, e antevêem os successos, se escureceu: ouso até affirmar-te que o juizo se revigora, e a previdencia se aclara mais. Depois d'isto, imaginemos que tu me emprestas o cabedal necessario para eu ter uma casa, [58] uma esposa, e a subsistencia certa de algum tempo. A esposa devia ser necessariamente a filha de um homem que cahiu da sua dignidade offerecendo-t'a porque és rico, e que se dignou recommendar-me que não perturbasse o socego de uma familia, que vive tranquilla. Não foi isto?

—Pouco mais ou menos.

—Bem: e não entendes tu que seria uma indignidade ir eu perturbar o socego do pae de Corinna, casando-lhe com a filha, por meio d'um rapto ou da intervenção da justiça?

—Não entendo assim a dignidade. Se Corinna consentir em ser raptada para o mais santo dos intentos a que o coração a pode impellir; e, se ella rasoavelmente se não quizer sacrificar á ambição do pae, nem a tua honra, nem a sua, nem a da familia illustre ou não illustre, soffrem desaire.

—Discordamos—replicou Azevedo—Gastão de Noronha quer que sua filha case rica: entende elle que sua filha só póde ser feliz sendo rica. Será absurdidade uma tal opinião? Vai tu perguntar a qualquer pessoa estranha a Corinna, se a julga feliz na pobreza: ha de responder-te que a julga mais feliz sendo rica. Pois se os estranhos pensam assim, que fará um pae?

—Convenho; mas sobejam exemplos de mulheres sacrificadas por esse erro dos paes.

—Deixal-os sobejar: ainda mesmo que todos os exemplos fossem contra os paes, nem por isso a vontade bem intencionada d'elles deixava de ser respeitavel; [59] mas crê tu, meu amigo, que o maior numero de casos justifica o arbitrio dos paes. Eu tenho vivido muito arredado d'estes estudos da sociedade em que tu deves saber muito; assim mesmo, se tu quizeres posso recordar-te de os ter ouvido a ti e aos outros, alguns casamentos mal agourados por terem sido contra vontade das filhas, arrancadas por força a affeições de moços pobres para serem adjudicadas a homens odiados com toda a sua riqueza. Pois, com o rapido andar de alguns mezes, se não dias, as esposas violentadas apparecem radiosas de alegria nas suas carruagens, nos seus camarotes e nos seus salões; em quanto os mocinhos pobres e amantissimos, ou porque emmagrecem, ou porque engordam muito, chegam a passar por as noivas, que os poetas denominam martyres, sem ellas os conhecerem.

Felisberto riu-se do semblante grave com que o seu amigo proferiu as ultimas palavras.

Após breve pausa, Antonio d'Azevedo continuou:

—Estamos aqui a fallar de casamento, como se Corinna me tivesse dito que quer casar comigo!... O que ha entre nós é uma ligação das que se desligam no intervallo de dois bailes, meu amigo. Lembra-te que eu não sou de todo hospede n'estas materias: traduzi vinte ou mais volumes de romances, e acredito nos romances, cujas passagens a minha razão explica. Dado, porém, que a magîa é duradoura, e que este amor encerra em si um drama, que ha de fechar pelo casamento, eu só poderei ser marido de Corinna quando o[60]pae me acolher, sem equivoco, como te acolheu a ti ha poucas horas. É preciso que a justiça não interceda a favor do meu coração. Quando eu puder dizer a Corinna que sou bom, e ao pae de Corinna que sou rico, então verei se este presentimento da felicidade era mais que um sonho dos que os grandes desgraçados convertem logo em excruciante realidade da vida. Por ora, nem bom nem rico. Para a bondade falta-me ter esgotado as forças que ainda sinto em adquirir meios com que sustente uma grande porção do bem-estar, impossivel de alcançar-se sem elles. Eu não sei que merecimentos póde ter, no conceito d'uma mulher, o homem pobre que, em nome da sua desvairada paixão, a convida a ser pobre com elle, e a receber da sociedade as, talvez involuntarias, desattenções que necessariamente avexam o pobre, se elle não está santificado pela paciencia. Ora, a santificação n'estes nossos dias, meu amigo, nem o muito amor a póde dar aos casados pobres.

—Do teu arrazoado—disse Felisberto—concluo, e toda a gente ha de concluir, que amas Corinna como um inglez, estabelecido nas Antilhas, amaria a sua noiva, que elle nunca viu, estabelecida em Londres. Dentro de quinze dias estás mudado, ou então ha ahi grande aleijão na tua alma! Hei de dar-te um conselho, se não mudares.

—Então dá-m'o já, que eu fico pela minha constancia.

—Ordena-te, faz-te conego, bispo, patriarcha, cardeal, e não vás ao Brazil.



[61]

VII.



Gastão de Noronha, poucos dias depois do baile da Torre da Marca, sahiu do Porto apressadamente com a familia, por saber que chegara a Vianna um seu parente de Lisboa, com o intento de passar a estação da primavera na quinta das margens do Lima.

Momentos antes da partida, Corinna da Soledade escreveu esta carta:

«Vamos partir. Lembre-se d'esta sua outra irman para lhe contar os seus dissabores. Póde parecer-lhe que este desejo das suas cartas é desejo de quem vai viver na solidão da aldeia, e precisa distrahir-se seja com o que fôr. Talvez a sua bondade me não recusasse tal distracção, ainda mesmo tendo o meu amigo a certeza de ser tamanho e tão de gelo o meu egoismo. Não, não é assim. Eu, sem pejo, lhe confessei que o estimava quanto podia, e nenhum accidente da minha vida me fará mudar. Se vir o caminho da felicidade, [62] siga-o, meu irmão, e não volva a face lá para a minha soledade, para aquelles arvoredos onde eu hei de esconder-me com as suas cartas. Adeus.==«C. da S.»

Na carta ia incluido um bilhete com um nome de homem, a quem deviam ser subscriptadas as cartas de Antonio d'Azevedo.

Agora sabe a sensivel leitora se Corinna da Soledade tinha razão de estar triste mais que suas irmans, quando, idas do tumultuoso Porto, se viram outra vez no ermo, quando as arvores mal sacudido tinham os gelos do inverno, e começavam a abrolhar os gomos da sua nova folhagem.

O parente, que esperava em Vianna, Gastão, era um fidalgo sexagenario, filho de Lisboa, grande morgado no Alemtejo, e muito amigo de divertir-se, do que dera cabal prova no decurso de sua vida celibataria. Chamava-se D. João de Mattos e Noronha, e vinha a ser segundo primo de Gastão, ou coisa assim parecida. O ir elle ao Minho, na primavera d'aquelle anno, posso asseverar-lhes que não era movido por desejo de vêr florido o jardim de Portugal, nem se lhe a elle dava que as claras aguas do Lima corressem para baixo ou para cima. O caso era todo medicinal. Como sentisse as pernas fracas, e o estomago preguiçoso, consultou varios medicos, e todos lhe disseram que fizesse exercicio, e bebesse bons ares, especialmente os do Minho. Occorreu logo a D. João de Mattos que tinha um parente nos suburbios de Vianna; e, posto que[63]nunca se vissem nem correspondessem, entendeu elle que, a toda a hora, um Noronha seria bem recebido no solar do fidalgo minhoto. Outra razão vem condizendo para explicar a escolha da provincia, e era que o velho fidalgo de Lisboa, na ultima decada da vida, se fizera tão economico e aváro, quanto fôra prodigo e dissipado até aos cincoenta annos: d'onde resultava que o seu grande prazer seria achar bom gasalhado gratuito em casa de parentes, que se dariam por bem pagos com a honra de o terem hospede.

Cresceu de ponto a satisfação do velho, quando se viu alegremente acolhido nos braços de seu primo, dando a beijar a mão ás cinco formosas meninas, que lhe chamavam tio D. João.

A medicina teve um triumpho. O estomago de D. João activou admiravelmente suas digestões; as pernas pareciam recaldeadas de aço; movia-se o remoçado velho com a flexibilidade dos seus quarenta annos. A natureza brindou-o com as suas urnas aromaticas: eram tudo tapetes e doceis de flores a festejal-o; as calhandras e os rouxinoes desgarravam-se em cantilenas quando o velho passava com as sobrinhas pelos braços; até o Lima, recobrando a primitiva magîa de dar o esquecimento a quem o transpunha, parecia ter matado no sexagenario saudades, e renascido esperanças em novo começar de vida.

Esperanças! ora, esperanças aos sessenta annos, (diz o leitor) em que, a não ser na salvação de sua alma?

[64] Verão o que d'alli sáe. Hão de maravilhar-se do influxo d'aquelles ares e aguas do Minho, nas fibras revelhas de um peito ido de Lisboa, onde as cachexias do coração vem muito mais temporans—o que, a meu ver, se deve ao mau ar e á pessima agua, elementos importantissimos do sangue.

D. João de Mattos, conversando, uma vez, a sós com seu primo Gastão, disse ao correr do dialogo:

—Olha, primo, o celibato dá aos moços vantagens, que, no velho, são amargamente descontadas. Mil vezes, nos ultimos vinte annos, me tenho arrependido de não haver casado. Desprezei grandes fortunas, porque era rico, e formosas mulheres, porque era um estroina de pessimos costumes: parecia-me que a belleza é uma flor boa para se aspirar e deixal-a ainda viçosa para que nol-a invejem e furtem; em quanto que a obrigação de conservar em casa a flor murcha é um pesadelo. Isto é que eu pensava com a minha libertina philosophia dos vinte, dos trinta e dos quarenta annos. Quando orcei pelos cincoenta, lembrou-me que, aos sessenta, precisaria de uma familia, de uma esposa, de filhos, de carinhos e das doces illusões da velhice. Pensei em casar-me. Procurei as mulheres que amara aos trinta, e achei-as mães e avós; algumas que se conservavam solteiras estavam feias e velhas. Veja o primo o poder dos maus habitos!—quando assim as vi, ainda cá disse de mim para mim: «olha se eu tenho casado, que bonitas creaturas estas para me ajudarem a bem-morrer!» Muito custa a purgar a peçonha dos maus[65]principios, primo Gastão! Aqui tem, pois, vossa excellencia que por um triz não cedi á tentação de casar com uma menina de vinte e cinco annos, filha segunda da casa da Trofa em Evora, a qual os paes me davam com a melhor vontade, e ella tambem não mostrava sombra de constrangimento; mas um dia, não sei como, vou a casa d'um tenente de cavallaria, ainda nosso parente, e vejo-lhe sobre uma mesa um ramo de flores velhas atadas com uma fita de setim verde que eu mandara á minha futura, atando outro ramilhete, em dia dos seus annos. Pensei no que vi sem dizer nada. Faz lá ideia do castigo dos meus erros começados n'aquella hora de ciume! Ninguem imagina a dor de um velho ludibriado, se elle ainda conserva coração com bastante memoria para lembrar relances reprehensiveis de sua mocidade!... Fui para Lisboa sem me despedir da noiva, e de lá escrevi ao pae, dizendo-lhe que seria grande acerto casar sua filha com o tenente de cavallaria. Como de facto acertaram casando, e lá estão felizes com muitos filhos. O que eu nunca pude acabar de entender é como podia aquella menina acceitar-me, e com que vistas o faria? Dispunha-se a ser feliz comigo, e vai depois ser feliz com o outro! Entendam lá as mulheres d'agora tão differentes das do meu tempo! De maneira, meu caro primo, que a minha decrepitude será triste a mais não poder. Á hora da morte hei de ver-me rodeado dos successores do morgadio, sobrinhos que aborreço, porque os vejo sempre a contarem-me as rugas novas da cara, e sei que tem o lisongeiro cuidado [66] de perguntarem por mim, todos os dias, aos medicos. Tenho accumulado os rendimentos por não saber em que dispendel-os; e tudo isto ha de ir dar áquellas mãos ávidas de meus sobrinhos, e depois elles é que hão de saber gosar o que eu já não posso.... Triste, tristissima coisa, primo Gastão!

—Isso é assim, primo D. João....—murmurou com doloroso tregeito de beiços e olhos o pae das cinco meninas solteiras; e proseguiu—O primo, ainda assim, por causa de uma é injusto com as outras mulheres. As de hoje são como as de todos os tempos: ha bom e mau. Ora assim como D. João deu com uma das más, podia ter encontrado uma das muitas que ha boas, e estar a esta hora muito satisfeito, e ter já um herdeiro dos seus vinculos.

—Palavra de cavalheiro!—exclamou com alvoroço D. João—quando penso que podia ter um herdeiro dos meus vinculos, e arrancar a minha casa das garras famintas de meus sobrinhos, morro de desesperação por me não ter casado! Que contentamento seria o meu, ó primo! um filho! um herdeiro!

—Pois ainda está em tempo—atalhou Gastão—case-se; não hão de faltar-lhe noivas, sem sahir da sua qualidade. Ha de achal-as mesmo na sua parentella, dignas, formosas, capazes de lhe honrarem a velhice, e encherem de alegria e mocidade os seus ultimos annos.

D. João fitou os olhos descorados e franzidos no rosto do primo, estendeu-lhe a mão cortada de cordoveias, e tartamudeou:

[67] —Se eu tivesse vinte annos menos, pedia-lhe uma de minhas sobrinhas, primo Gastão.

—Escolha, primo—disse o pae de Corinna apertando-lhe affectuosamente a mão.

—Não escolho nem peço nenhuma—tornou o velho—Veja se me tira vinte annos das costas, e depois pedirei a nossa Corinna, que é um anjinho, mas não para mim, que posso ser avô d'ella. Nada, primo, nada: para desgraçado basto eu.

—Façamos um contracto. Eu tracto de sondar a vontade de minhas filhas, e especialmente de Corinna. Se esta, ou alguma das outras se mostrar bem disposta a ser sua esposa, o primo D. João não se nega.

—Palavra de D. João de Mattos e Noronha, que não me nego; pelo contrario, morrerei de felicidade, porque, além da esposa e da sobrinha, levo comigo a mulher, cujos costumes tenho apreciado em mez e meio de convivencia a todas as horas.

Fechou-se o dialogo com poucas mais palavras de reciproca satisfação dos dois fidalgos. Em quanto elles praticavam, lia Corinna da Soledade a decima carta de Antonio d'Azevedo, que dizia assim:

«Esta é a ultima carta que lhe escrevo em Portugal, minha amiga. O navio parte depois de ámanhan de tarde. Agora vou a Barcellos abraçar minhas irmans, e despedir-me das memorias da minha infancia. Sinto um prazer amargo em me ir approximando do seu ermo. Cinco leguas apenas nos hão de separar quando ler esta carta. Dê-me uma lagrima [68] como retribuição da angustia com que eu hei de lançar a derradeira vista ao ceo que cobre os seus arvoredos. Quando eu era criança, ia tantas vezes d'um alto, onde ha ruinas d'um castello, olhar para esses sitios! Que visão seria aquella da minha alma, então magoada como se presentisse a saudade de hoje!

«Mande-me ter coragem, minha querida amiga: diga-me antes, como tantas vezes me tem dito, que a dignidade excessiva me tem dado ao coração liga de bronze. Ai! quanto se engana, Corinna! quanto se enganam os mesmos amigos de quem não escondo um pensamento!

«Levo alegres esperanças. Os bons Taveiras tem-me dado cartas de summo valor de pessoas muito importantes d'aqui para outras do Rio de Janeiro. A mim não me ha de custar a merecer a bem-querença de todos: levo comigo a segurança no firme proposito que fiz de não sahir do caminho dos meus deveres. O que fui comsigo, minha amiga, hei de sêl-o em todas as situações da minha vida. Se esta estrada me não guiar á felicidade sem remorsos, é que não ha nenhuma.

«Vou no intento de advogar. Em poucos annos, com o auxilio de amigos e fervor de trabalho, posso ganhar a mediania que basta aos nossos moderados desejos. Poucos annos, Corinna, que rapidos hão de ir como vão os annos dos felizes. Verá que a esperança lhe aligeira o tempo, e as minhas cartas lhe hão de acudir nas más horas da desanimação. Temos[69]Deus por nós. Deus, minha Corinna! Escrevo-lhe estas quatro lettras com quanta uncção póde dar a fé ardente d'um homem sem culpa. O premio que Deus me dá é a consciencia de poder assim fallar de mim; e chego a crer que este dom me basta para valer muito em seu conceito. Se me não sentisse puro de vergonhas e remorsos, Corinna, julgar-me-ia indigno de si.

«Eu quizera poder dizer a todo o mundo, e a todos os desventurosos escravos de suas paixões, que nenhum amor, por mais desmedido que seja, carece de provar que o é com destinos e excessos censuraveis. É a primeira vez que amo, Corinna, e amo-a muito: pois, por sua vida lhe juro, que ainda leve sombra de intenção culposa me não nubelou a limpida esperança de a ver minha esposa. Estou chorando e estas lagrimas não sei se qualquer amante as verte. Sei que muitos as fariam chorar de sangue a outrem, para se esquivarem ao trance que me está fundamente doendo no coração. E eu, por mim, antes quero padecer agora, porque sei que hei de ser consolado. Os dias prosperos não vem do acaso: são grangeados, como as searas, a muita fadiga e com muitos intervallos de desalento: a final a colheita de fructos e de bençãos; o coração ainda novo para saborear os fructos, e o espirito cheio de santa vaidade por ter merecido as bençãos.

«Espere-me, minha doce amiga; seja o meu anjo [70] animador; mostre-me de cá sempre a patria á luz da sua alma allumiada de graça divina.

«Escreva-me, e mande as suas cartas ao nosso bom amigo Taveira; as minhas, por mediação d'elle, todas receberá, e muito longas, para lhe encurtar as horas, e dar alguma alegria ás minhas noites.

«Corinna, minha querida esposa, não posso continuar. Sejamos dignos um do outro. Offereço a Deus as lagrimas que hei de chorar, pedindo-lhe que enxugue as suas com as consolações da esperança. Tenha muito animo. A religião ha de dar-lhe o que o meu amor não puder. Estarei sempre com a sua alma, e Deus será sempre entre nós, porque muito do intimo creio que entre dois infelizes sem culpa está sempre um bom anjo. Adeus.»



[71]

VIII.



O jubilo de Gastão de Noronha, causado pela proposta de D. João de Mattos, foi, n'aquelle mesmo dia, aguado por extraordinaria e imprevista angustia.

Os vinculos que administrava o descendente dos marquezes de Villa Real, trouxera-os sua mulher, D. Mafalda de Athaide, natural de Ponte do Lima, havidos de um tio, que morrera sem descendencia directa.

Em quanto Gastão estivera no estrangeiro appareceu um filho natural do antecessor dos vinculos administrados por D. Mafalda, allegando o seu direito á successão dos bens de Fernão d'Athaide. O fidalgo não deu pezo ás consideraveis provas de habilitação do contendor. De mais a mais, como o seu nome de liberal valesse muito a favor do pretendente, o pleito decidiu-se contra Gastão em primeira instancia. Seguiu o processo os termos de appellação para as superiores instancias. Gastão tinha parentes nos altos cargos da [72] judicatura, liberaes rebuçados, que protegeram o réo ausente, contra o favorecido author. O pleito ficou alguns annos trancado no desembargo do paço, até que o emigrado voltou. Os primeiros annos, que seguiram a restauração, foram tumultuosos e favoraveis em todo o sentido para os que, mais ou menos prestantes, se diziam restauradores. Como em tudo assim era desleixado e imprevisto, o fidalgo não curou de rematar o litigio, destruindo as provas do filho natural, nem mesmo quiz averiguar a sua plausibilidade, ou fazer que o processo se perdesse.

Em 1840 requereu novamente o filho natural, documentando o seu arrasoado com uma carta de perfilhação concedida por D. João VI no Rio de Janeiro, para onde Fernão de Athaide, pae do habilitando, fôra com o rei em 1807. Ajuntava este aos autos reconstruidos cartas escriptas por seu pae, tanto a elle, como a sua mãe, portugueza de origem, que fallecera no Rio de Janeiro, casada e dotada pelo fidalgo de Ponte do Lima. Accrescia a isto o depoimento de doze testemunhas de ouvirem dizer ao moribundo Athaide que tinha no imperio do Brazil um filho natural, chamado Fernando de Athaide, ao qual testava todos os seus bens livres e vinculados.

Este legado, com quanto em principio devesse tornar duvidosa a successão de D. Mafalda aos vinculos de seu tio, foi pouco no conceito dos principaes lettrados, quando Gastão de Noronha os consultou: diziam que os bens vinculados não podiam ir ao filho natural, nem[73]a declaração do velho á ultima hora da vida podia esbulhar da successão a legitima descendencia.

Em 1829 viera Fernando de Athaide a Portugal a tomar conta da herança: achou sua prima empossada n'ella, e a favor d'elle os jurisconsultos que tinham dado por boa e legitima a espoliação.

Em 1832, enfadado das delongas da decisão e do patronato que sua prima tinha em Lisboa, voltou para o Brazil onde tinha o seu florente commercio de café, herdado de sua mãe, que morrera abastada, e universal herdeira de seu marido.

Voltara novamente Fernando á patria de seu pae, depois de visitar as capitaes da Europa, e mais por brio do seu appellido, que por necessidade de duas duzias de contos de reis, instaurou segunda vez o pleito, confiou-o a habeis advogados e procuradores, e seguiu viagem para o Rio de Janeiro.

Esta noticia, com os accessorios funestos de um presumivel perdimento da causa, foi surprender Gastão de Noronha, quando elle cogitava no melhor modo de fallar a Corinna em casamento com o tio D. João. Sahiu o fidalgo para Vianna a ouvir o parecer de advogados, que lhe foram desfavoraveis. Voltou a casa mais firme na resolução de segurar a futura subsistencia da familia, casando uma das filhas com o provecto primo, cuja abastança daria para viverem todos largamente.

Chamou Corinna a mui secreta prática, e contou-lhe em miudos a historia do filho natural, as probabilidades [74] da perda da demanda, a irremediavel pobreza da familia e a precisão de ella se sacrificar á decencia de seus paes e suas irmans, casando com o tio D. João, por ser das cinco a menina que elle preferia, posto que se não despedisse de casar com uma das outras.

—E nenhuma de minhas manas quer casar com o tio D. João?—perguntou Corinna.

—Ainda as não consultei; eu é que desejo que sejas tu.

—As boas intenções de meu pae são providenciar ao futuro de nossa familia por meio d'este casamento?

—Sim, minha filha.

—Eu com lagrimas lhe digo que não posso servir a esse bom intento.

—Porque?—atalhou o pae entre pasmado e colerico.

—Porque morro, porque hei de morrer antes de ser mulher do tio D. João. Não me recuso, meu pae: faça vossa excellencia o que quizer.

—Ora!—tornou o pae modificado em sua ira—Não morres, não, filha. Isso é o que te parece agora; tu verás que todos te ajudaremos a levar a cruz. E, depois, cuidas que teu tio ha de viver muito? Está alli e está na cova. As escripturas hão de ser feitas de modo que, ainda mesmo que tu fiques viuva sem filhos, has de ficar riquissima.

—O pae não quer acreditar-me...—atalhou, soluçante, Corinna.

—Acreditar o quê?

[75] —Que me mato, se Deus me não levar para si.

—Sei o que é isso...—tornou Gastão escarlate de ira—É o homemzinho de Barcellos que te ha de fazer perder de todo a minha estima. Não tem duvida: tu te arrependerás!... Cuidas que, por ser a mais velha, tens os vinculos? Já te disse que não tens nada. Quando quizeres um vestido, e não haja em casa um objecto que se venda para t'o comprar, veremos como te vestes com o amor do valdevinos de Barcellos.

Disse, e sahiu enfurecido.

A irman de Corinna, sua immediata em idade e formosura, era Emma. Esta menina parecia a mais meiga, docil e resignada. Devia estas virtudes á brandura de sua indole fleugmatica e um tanto fria. O seu prazer era a quietação, que parecia uma invencivel preguiça. Bem que estranhasse tanto como as outras a mudança de Paris para a quinta do Lima, foi a primeira a conformar-se, e achar certa suavidade no socego e silencio, que affligia as irmans. Era esta tambem a que dava mais trela ao palavriado do tio D. João, e por vezes se ria a bom rir das baforadas de juventude que ainda, a tempos, sahiam mornas lá das cinzas do coração do velhusco. Como amiga de estar em casa, sentada ao piano, ou amezendrada n'um tapete, D. João tinha sempre certa a palestra com aquella pachorrenta sobrinha.

Gastão foi ter com Emma, e encontrou-a aparando as unhas a D. João, e a rir-se muito das caretas, que o velho fazia, receando que a tesoura lhe entrasse pelo [76] sabugo. Gastão tomou como de bom agoiro a scena intima das unhas. Compoz o semblante de risos, avisinhou-se do grupo, e achou tambem graça aos chistes da filha e aos esgares do primo.

—Ahi está o nosso D. João—disse elle—gosando um dos milhares de prazeres da vida domestica. Quando era moço, e requestava damas, sentiu alguns d'esses innocentes jubilos, primo D. João?

—Já estive a pensar n'isso, primo Gastão; mas o diacho da Emma não me deixa pensar em nada se não em guardar os dedos da implacavel tesoura d'esta linda parca... Olhe que já me quiz cortar a ponta do nariz, a traquina, que só não tem preguiça para cortar narizes... e corações.

Accrescentou D. João ao galanteio um regougo de riso, com o que a menina desatou uma gargalhada tão pachorrenta, que acudiram as irmans, salvo Corinna, a rir sem saber de quê. D. João cuidou que ella se desmanchava assim, á conta da ultima e novissima careta que elle fizera.

Logo que o ensejo se proporcionou, Gastão de Noronha perguntou ao primo se Emma seria uma digna esposa d'elle. O velho acudiu logo, dizendo:

—Estava eu para lhe dizer, primo, que, a não ser Corinna, de boa vontade casaria com Emma. Acho-a mais dada que as outras; mais socegada e amiga da casa. A creatura passa horas e horas sentada no tapete, em quanto as outras me estão sempre a convidar a passeios, e querem que eu salte portellos e vallados como [77] ellas, senão fazem-me apupadas as doidinhas! Corinna agradou-me pelo seu juizo; mas, a dizer-lhe a verdade, acho-a triste de mais; e esposa triste não serve para velho, que bem lhe basta a rabugice e pezo dos annos. Em fim, primo, se Emma me quizer, aqui estou.

Poucas horas depois, Gastão encerrado com Emma, perguntava-lhe se ella quereria segurar uma enorme fortuna, casando com seu tio D. João.

—O papá está a mangar comigo!—disse ella rindo.

Com poucas palavras a convenceu da seriedade da proposta. Emma ouviu tudo com desusada seriedade. Viu no rosto do pae signaes não fingidos de atribulado, fallando da imminente ruina de seus haveres, e da recusação de Corinna. O tom com que elle pedia a Emma o sacrificio era já supplicante. A menina respondeu primeiro com lagrimas e depois com a promessa de satisfazer os desejos de seu pae.

Nunca pae algum beijou sua filha com tamanho transporte de ternura!

Foi logo avisado D. João da resposta de Emma. O velho desenvolveu de repente um pudor senil de muita graça! Estava, como noiva que se peja de apparecer ao noivo, na sala onde o papá a manda chamar, a fim de, em presença de ambos, confirmar vocalmente os anhelos de todos tres. Esquivava-se D. João de encontrar a sobrinha; e, quando lhe ouvia a voz, córava! Era a segunda infancia a fazer milagres de remoçar corações mumificados!

Desde este incidente, Corinna da Soledade nunca [78] mais viu um sorriso, nem ouviu palavra carinhosa de seu pae. As caricias, repetidas até ao extremo da ridiculez, eram todas para Emma, a quem elle chamava a salvadora da familia. Pensava já Gastão no processo de defraudar a filha mais velha dos vinculos, como esquecido da demanda em que os vinculos estavam tão arriscados, que nem o seu proprio advogado lhe dava esperanças de vencimento.

Cuidaram desde logo os fidalgos em requerer dispensa, que o Nuncio apostolico residente em Lisboa concedeu.

Em seguida usou o pae da noiva de ardilosos rodeios para levar o futuro genro a dotar a filha com os bens livres, que valiam muito, e grandes arrhas. D. João de Mattos, ao principio irresoluto, porque o animo sovina lhe inspirava duvidas, deu-se a final por vencido, e dotou a noiva com avultado cabedal em dinheiro depositado em bancos de Inglaterra, e estabeleceu-lhe arrhas mais que sobejas para uma viuva se não lembrar mais dos sessenta annos do seu defuncto marido, ao ver-se sósinha n'este valle de lagrimas.

Estava resolvido que as nupcias seriam celebradas em Lisboa, para onde iria toda a familia, excepto Corinna, que pedira licença ao pae, e facilmente a obtivera, de ficar n'um mosteiro de Vianna, em companhia de uma prima de sua mãe.

A noiva encarava o futuro com a salutar pachorra de sua compleição, e continuava a aparar as unhas do noivo e a rir-se das muito engenhosas visagens com [79] que o bom do velho julgava bem merecer da estimação da menina. As outras tres meninas, a cuidarem nos arranjos da partida para Lisboa, andavam alvoroçadas e felicissimas. Corinna esperava a vespera da partida, com não menos alvoroço, para entrar no mosteiro de Santa Anna.

Sorriam-lhe lá da sua cella as tristezas e a soledade em que o desafogado coração se gosaria livre, livre para ir-se além-mar, nas longas cartas, escriptas sem medo de ser surprendida, pedir ao digno moço que lhe acceitasse a reclusão, tão voluntaria, como prova de seu esperançado amor.

Estava marcado o dia da partida, tomadas as liteiras, as cavalgaduras, e convidado o prestito dos parentes, que desceriam do alto-Minho para acompanharem os noivos até ao Porto. Quatro dias antes do designado, D. João de Mattos e Noronha, assignadas as escripturas, foi para a mesa, que n'esse dia era lauta e muito concorrida.

Um dos pratos mais de cobiça, e ingratos a estomagos fatigados, era o salmão, o salmão de Vianna, famoso em toda a parte onde a gastronomia tem sacerdotes e martyres.

Entrou o noivo pelo salmão com a voracidade dos vinte e cinco annos, não obstante o cauteloso primo lhe haver dito que se abstivesse de competir com a sua Emma em materia tão indigesta. Parece que Emma gostava muito do appetitoso pescado, e devemos suppor que o velho, por comprazer com o paladar da noiva, [80] quiz fazer heroismos de deglutição. Perdoavel excesso para quem sabe o que é amar!

Declarou-se a indigestão, quando ainda se estava á sobremesa. D. João pediu genebra, bebeu em proporção com o volume do bolo indigesto, e, dando-se alta na incipiente molestia, comeu ovos mexidos em grande porção, e correspondeu a todos os brindes com absorvente enthusiasmo.

Estavam todos admirados do vigor digestivo do sexagenario, e do rubor juvenil que lhe ressumava nas faces, quando o velho se sentiu anciado, e pediu um vomitorio prompto. Cada pessoa de familia lhe ministrava um remedio, e Gastão, mais que todos, mostrava sua inquietação, mandando chamar medico a Vianna. Foram logo sensiveis os symptomas de apoplexia. D. João tinha os olhos injectados de sangue, e a cabeça em brazas vivas. Votaram todos pela sangria; mas não havia sangrador, nem sequer lanceta. O abbade da freguezia estava presente, e, como bom pastor, foi de parecer que seria muito util ministrar os sacramentos ao enfermo, visto que as apoplexias eram summarias n'aquellas idades e por taes causas.

Redobraram os sustos de Gastão de Noronha. A morte, anticipando-se quinze dias, dava um golpe terrivel em toda aquella familia. O menos damnificado seria de certo o morto. Quem mais soffria as angustias do moribundo era Gastão! Perguntou elle ao abbade se seria acertado dizer a D. João que recebesse as bençãos nupciaes.

[81] O clerigo encarregou-se de lh'o propor. O enfermo, já quasi desaccordado, ouviu a pergunta e estorceu-se em desesperada afflicção. Foi então que elle viu a morte na pessoa do inoffensivo abbade. Á segunda instancia, D. João fez um esgar repellente, e sacudiu vertiginosamente os braços e as pernas. Gastão disse a Emma que se approximasse do leito, e lhe dissesse algumas palavras confortadoras. Emma foi com semblante de medo. As feições do velho, já lassas e lividas, para assim o dizermos, cheiravam a cadaver. A pallida menina foi tremendo.

—Dá-lhe a mão—disse-lhe o pae ao ouvido.

Tocou ella na mão tepida e insensivel do agonisante com repugnancia.

O abbade, instado por Gastão, disse:

—Senhor D. João de Mattos, vossa excellencia recebe como sua legitima esposa a senhora D....

O velho deu um sacão, e esgazeou os olhos espavoridos.

Emma retrahiu-se aterrada, e o abbade sahiu a ir buscar os santos oleos.

—Vai-se embora, abbade?!—perguntou o fidalgo furioso de sua afflicção.

—Não ha que fazer aqui, senão cuidar-lhe da alma—disse o padre—O homem já não dá accordo de si: o casamento n'este estado ficaria canonicamente nullo, fidalgo!

Sahiu o abbade da egreja com o viatico, e recolheu logo, por lhe dizerem que D. João tinha expirado.



[82]

IX.

UMA CARTA DE CORINNA DA SOLEDADE A ANTONIO D'AZEVEDO BARBOSA.


«Na minha segunda carta lhe contei o que se passou até á morte do tio D. João. Agora é que eu bem comprehendo o desespero em que vive meu pobre pae. Quando elle me disse que iamos empobrecer, cuidei que se inventava um engano para eu consentir em ser a victima voluntaria da pobreza da nossa familia. Soube que a Emma fôra instada com as mesmas razões da pobreza: não a dissuadi; mas, em minha consciencia, julguei que era sacrificada ás ambições de continuar-se em Lisboa o fausto que tiveramos em Paris.

«É verdade o que meu pae me dizia. Os bens do vinculo, unicos que possuimos, estão em risco de se perderem. Imagine o meu querido amigo como será a nossa vida, ouvindo a cada hora o pae lastimar-se, enfurecer-se e lançar-nos injustamente em rosto que [83] fomos nós a causa da sua ruina, porque dissipara os bens livres para nos dar em Paris uma vida brilhante com esmerada educação! Minha mãe, que não tem culpa de ter sido herdeira do dote que lhe tiram, faz-me muita compaixão, quando o pae lhe diz que foi atrozmente enganado para casar com ella.

«Que será de nós, passados alguns mezes? Para onde iremos quando nos expulsarem d'esta casa? Minha mãe já pediu a parentas, que tem em differentes conventos, que nos recebam. Eu creio que irei para Vianna e mais a mana Felismina; outra irá para Vairão; e as outras duas para S. Bento do Porto. O pae diz que vai a Lisboa requerer um emprego, com que possa sustentar-se a si e á mãe. De maneira que estamos em vesperas de nos dispersarmos para nunca mais nos reunirmos! E eu, entre todas as minhas irmans, sou a menos infeliz, porque ha muito suspiro pela solidão do claustro, e sei que lá terei comigo a imagem compassiva do meu querido irmão; porém, eu queria ir para o convento, deixando a minha familia contente e feliz, e não assim a braços com a dependencia, e Deus sabe com quantas desventuras peores que a dependencia!

«Aqui me tem, pois, bem digna do seu amor por minha pobreza. Já me lembrou se Deus me deu esta virtude para merecer aos seus olhos, meu amigo. Tenho momentos em que o futuro se me allumia; sou eu a unica pessoa da minha familia que vê a felicidade através d'esta escuridade. Todos se lastimam, [84] e eu só me lastimo de os ver tão desanimados. Falta-lhes o amparo do amor, e talvez da fé na providencia divina. Eu rezo muito, e desafógo em consoladoras lagrimas; minhas irmans e meus paes abafam sem linitivo. Ás vezes quero consolar meu pae: o infeliz repelle-me, como se eu désse causa a seus desgostos, e não fosse capaz, para o salvar da queda, de me deixar esmagar no coração e na vida!

«Não estranhe que eu lhe diga tudo o que o coração me fôr dictando. Agora que eu estou assim pobre, e d'aqui a pouco obscura e esquecida n'um convento, haveria alguem que me quizesse para esposa? Poderia alguem invejar a sorte do homem que me acceitasse? Pois, é n'esta situação que eu mais confio do seu amor; é assim que eu me affoito a pedir-lhe que venha, que renuncie ao desejo de ser rico, e que... A riqueza para que a procurava? não era para poder ostentar o seu valimento aos olhos de meu pae? Era de certo; que, se fosse para valer em meu conceito, grande injustiça me fazia, meu caro amigo. Pois então faça de conta que estão cahidas as barreiras que só o ouro poderia arrazar. Ninguem me impedirá que eu seja sua mulher. Sejamos ambos pobres: não teremos que medir a desegualdade das nossas posições. A nossa fortuna principiará com a primeira moeda de cobre que empregarmos no primeiro pão. Depois eu lhe darei horas de alegria com a minha ditosa conformidade a tudo que os descontentes chamam infortunio.

[85] «Não cuide que a vida de convento me assusta, e que eu procuro aligeirar o tempo do supplicio. Não, meu amigo. O convento é o unico estado que me quadra, e a mais proxima ventura que se offerece á minha sêde de solidão. Se voltar cedo, lá me encontrará; se, passados muitos annos tornar para Portugal, no convento me encontrará ou desfigurada pela velhice, ou confundida nas cinzas das bemaventuradas, que alli acabaram contentes e amantes de mais seguras esperanças que as minhas.

«Póde ser que o meu irmão, n'essa outra sociedade, com outras relações, e com a mudança que fazem os annos, contra vontade mesmo de quem se transfigura, sinta diminuir-se a boa impressão que de mim levou. Não creio que me esqueça; mas póde ser que a distancia me vá descolorindo aos olhos da sua alma. Se tal acontecer, nem assim deixarei de esperar que em algum momento, entre as fugazes venturas d'este mundo, o seu espirito vá ver-me, no meu asylo, esperando-o ainda, e esperando sempre.

«Mas o meu coração lhe pede que não me esqueça, e que acceite as alegrias que elle lhe promette. Adeus, meu amigo, meu consolador. Sua C. da Soledade


[86]
A PRIMEIRA CARTA DE ANTONIO D'AZEVEDO A CORINNA, ESCRIPTA NO BRAZIL.


«21 de junho de 1843, onze horas da manhan.


«Aqui estou, minha querida Corinna. Cheguei ha meia hora. A minha tristeza tem uma negrura inexplicavel. Abafa-me mortalmente este ar. Estou como o desterrado que atiraram a uma praia onde não houvessem olhos humanos que me vissem chorar. Ó meu Deus, que atroz supplicio é a saudade! Que desolação em roda de mim, que terror me incute tudo isto que me vê com uma indifferença dolorosa como o escarneo! Sahirei eu d'esta febre que me está arrancando pedaços de vida a cada momento! Ó Corinna, eu não a vejo mais! Aqui é que sossobram as mais robustas almas... Eu não previra isto... É impossivel que haja piedade n'esta gente! A quem escrevo eu, meu Deus! Está a milhares de leguas distante, ó minha amiga! E esta carta só, passados quinze dias, sahirá d'aqui!




«Quatro horas da tarde.


«Sahi no afôgo de uma afflicção sem nome. Levei [87] a minha carteira, e entreguei uma carta do Taveira a um negociante, que, apenas leu a carta, me disse que eu seria hospede na sua chacara, para onde vou ámanhan. Acolheu-me com muito bom rosto, e, apertando-me a mão, disse: «O senhor vem muito recommendado: ha de ter muitos amigos, e eu o mais dedicado de todos.»

«Fizeram-me grande bem estas palavras. A maior oppressão vai desapparecendo. Já a vejo a outra luz, minha Corinna. Já a torno a ver ao meu lado com a missão de anjo do alento e da paciencia. Os desamparados são unicamente aquelles que não tem nenhum amor puro na terra, nem confiança na graça divina. Ha de tudo em minha alma, bemdito seja Deus! Eis-me outra vez forte para a lucta, e envergonhado da minha fraqueza. Não rasgo a primeira pagina d'esta carta porque a minha alma ha de mostrar-se-lhe sempre nas suas intercadencias de força e desanimação. Assim lh'o prometti, e tenho necessidade de cumprir. Toda a gente ha de ignorar os meus desfallecimentos, menos a minha Corinna para me dizer: «Levanta-te, fraco, se queres ser digno de mim!» Vou sahir para entregar outras cartas, antes da minha ida para o campo.


«Nove horas da noite.


«Todos os portuguezes me recebem nos braços. Suppunha eu que os negociantes me acolheriam com [88] a frieza da sua distancia d'um homem de tão diversa profissão. O que ahi se diz d'esta boa gente é uma calumnia. Os opulentos commerciantes a quem me apresentei parece que me estavam vendo nos olhos espelhadas as saudades da patria; e elles, tambem saudosos, sympathisavam mais com a minha dor, e queriam ouvir-me fallar das menores coisas de Portugal. Aqui é que se sabe o que é esse torrão de flores e alegrias. Em parte nenhuma a palavra «patria» tem tão doce, tão querida e esperançosa significação. Muitos ahi dizem que tem vergonha de serem portuguezes; aqui sente-se orgulho de ter lá nascido, e encontrar tão longe irmãos assim saudosos da mãe commum. Abençoados sejam estes homens que tem olhado compadecidos para mim! Devo-lhes esta serenidade com que lhe vou escrevendo... Mas o cansaço prostra-me, minha amiga. Até ámanhan.


«22 de junho, oito horas da manhan.


«O meu despertar foi afflictivo. Com os sonhos renasceram as saudades, e o descorçoamento. Assaltou-me a pusillanime ideia de voltar já para Portugal. Seduzia-me o receio de adoecer n'este clima, o terror das febres, a difficuldade de ser rico, onde nem todos são ricos, ainda os mais laboriosos. Adormecera pensando no caminho que devia encetar: todos se me afiguravam difficeis e escabrosos. Que fraqueza! [89] que inconstancia miseravel a do homem mais fervoroso no trabalho! Eu tinha perguntado ao dono do hotel se os advogados enriqueciam depressa; e elle, enumerando todas as profissões que enriqueciam, não mencionou a minha. Instei encarecendo as vantagens que se offerecem a um bom e honrado advogado: ouviu-m'as encolhendo os hombros, e disse que os caminhos direitos eram os mais tortos para quem procurava enriquecer-se. Isto desconsolou-me, amargurou-me os sonhos, e deu-me a hora má que precedeu estas linhas. Deixar fallar o descrente da honra. Se é forçoso, renunciarei á riqueza; contento-me que as muitas fadigas e vigilias me dêem honesta independencia, e o respeito de mim proprio.


«Cinco horas da tarde.


«Espera-me o amigo de quem vou ser hospede. Brevemente voltarei a dar começo á minha tarefa. Já me estão pezando as horas que vou passar de ocio sem prazer: parece-me que são horas que roubo á sua felicidade e á minha. A vontade energica é uma esperança meio realisada. Ha aqui n'este ar, n'este ceo, n'esta incessante labutação, um rumor mysterioso que eu escuto como o cantico victorioso dos que luctaram e venceram. Porque não hei de eu, a final, vencer tambem com esta ancia e força d'alma, com este amor e saudade, com esta voz prophetica promettedora de honrosos triumphos?...


[90]
«23 de junho, nove horas da manhan.


«A casa em que vivo, minha amiga, faz-me lembrar uma finissima e polida concha entre fofos de verdura e caules de gentis florinhas! As palmas, as tamarindeiras, os coqueiros, e muita especie de arvores do paraizo com sua explendida e agigantada folhagem, absorvem os raios abrazadores d'este sol, e elaboram-no em si, expedindo-o em frescura, que faz lembrar a da nossa terra, as auras das margens dos nossos rios, os salgueiraes do seu Lima, e os choupaes do meu Cávado! Mas que falta aqui da alegria dos nossos arvoredos, minha Corinna? Não sei: parecem-me tristes estas arvores; não me viram na infancia; não me conhecem; não me fallam. Que bello deve ser este diamante do mundo para os que nasceram aqui! Que abrasadas fantasias serão as dos poetas aquecidos a este vapor aromatisado por tantas urnas de florescencia peregrina! Que ar de primitiva magnificencia da creação tem isto tudo? Afigura-se-me que, á sahida do eden, este pedaço de mundo se desdobrou, com as entranhas arquejantes de riqueza, concitando o homem condemnado a trabalhar, a tressuar e a limpar mil vezes o rosto, calcinado sob os ardores do sol, á sombra d'estas arvores, que significam a misericordia divina ao lado da justiça inexoravel. É um como fantastico explendor que me está arrobando os sentidos; mas a minha alma está triste [91] porque esta verdura macilenta não é a da minha patria; estas folhas hirtas, apontadas ao ceo como flexas, ou largas, immoveis e enormes, não me dão o murmurio tremente das nossas selvas. Não oiço o rumorejo dos regatos, nem o gemer dos carros, nem a cadencia melancolica dos pegureiros das nossas serras. Ai! a patria, Corinna! como é linda a nossa tão rica e tão pobre terra! Que copiosas bençãos verte Deus sobre a cabana do pobre jornaleiro que achou a felicidade sem a procurar, formando d'um rochedo e da sebe d'alguns arbustos o seu palaciosinho ás abas da serra da Tranqueira, onde eu, em criança, tantas vezes subi para contemplar as boleadas serras do seu paraizo, minha filha. Tudo agora me lembra quanto é pequeno e pueril ao pé d'estes gigantes de verdura, que me assoberbam com a sua magestade! Ainda vos verei, ó opulentas pobrezas da minha mocidade! Ainda lá recordarei, a sós com o anjo da minha alegria, estas melancolicas horas, este deslumbrante espectaculo, que parece estar-me dizendo que para gosal-o é preciso ter aqui gosado os brinquedos de irmãos, os carinhos de mãe; e, sobre tudo, ter aqui sentido o coração a formar-se, e a desentranhar-se em amor e esperanças




«25 de junho.


«Brevemente, ámanhan talvez, volto para o Rio. [92] Vou praticar com um advogado portuguez de grandes creditos e fortuna, homem de muita idade, que reparte comigo os interesses, e me trespassa as obrigações muito lucrativas de defensor, em que está contractado com corporações commerciaes. Devo esta promettedora estreia ás cartas do pae de Felisberto Taveira, que d'aqui foi ha muitos annos, e deixou respeitado nome, e ainda grosso cabedal. Estou contente quanto, em minha situação, é possivel estar. Esta familia que me hospedou já me parece minha. A intimidade aqui é uma religião, como se um punhado de portuguezes, e não cincoenta mil almas, se encontrassem em torrão estrangeiro. Aqui é onde nós aprendemos o amor de conterraneos: lá, no seio da mãe, somos-lhe ingratos a ella, e maus uns com os outros; aqui suspiramos todos por ella, abençoamol-a, e religamos os corações de todos com vinculos da reciproca saudade.

«Espere, espere, minha querida Corinna, que havemos de ser felizes!



«27 de junho.


«O lettrado a quem vou associar-me é um ancião de semblante apostolico, viuvo, sem filhos, rico, muito esmoler e doente. Fallamos muito de Portugal, d'onde elle veio com D. João VI ha muitos annos. É filho de Lisboa, e está ha vinte annos com o [93] projecto feito de ir morrer á patria; porém os medicos aconselham-o a gosar-se do clima a que está affeito. É que toda esta gente o venera, e carece além d'isso da sua muita sciencia, e probidade na sciencia. Já aqui teve comsigo dous sobrinhos, que elle amava como seus unicos herdeiros. Morreram ambos por causa da irregularidade da sua vida, e o ancião chorava fallando-me d'elles. Ámanhan começo a praticar e a estudar o direito brazileiro: ser-me-ha preciso naturalisar-me; que importa? Eu serei voluntariamente natural de toda a parte onde encontro irmãos que fallam a minha lingua, com tanto que me deixem o coração, lá, onde tenho tudo que é d'elle.

»


A carta é extensa de mais, e o leitor contenta-se com as paginas transcriptas.



[94]

X.



Gastão de Noronha valia ainda muito com homens de alta graduação, seus companheiros de exilio.

O litigio, perdido em primeira instancia, foi appellado para o Porto; e com quanto uma espantosa actividade, esporeada pelo ouro do brazileiro, instasse com os juizes de segunda instancia, os padrinhos do fidalgo valeram mais para que o processo paralisasse na mão do relator. Este, porém, com maravilhosa consciencia fez saber ao réo que a sua perda era inevitavel, cedo ou tarde, e que parte da imprensa estava a favor da prompta decisão do pleito.

Decorridos quatro mezes, os tres jornaes portuenses d'aquelle tempo, e alguns de Lisboa, depois d'um prefacio de dez e mais artigos ácerca da corrupção da magistratura, fulminaram o juiz relator, já alcunhando-o de vendido, já de subornado pelas fidalgas influencias [95] que ladeavam Gastão de Noronha. Não houve remedio senão confirmar a sentença.

Recorreu de revista para o supremo tribunal o réo, acompanhando o processo, e cumulando embargos sobre embargos. Em Lisboa a presença de Gastão e a solicitude dos amigos promettiam um anno ou mais de esquecimento dos autos; mas as gazetas, ainda antes de tempo, já se mostravam espantadas da demora, e, por conta de seu espanto, lavraram logo alvará de corruptos a todos os juizes, pedindo ás leis, ao governo e ao universo que os esfollassem, como o tyranno de Siracusa fizera a um juiz venal.

Aproveitou Gastão o ensejo de requerer emprego em Lisboa, já mais que certo do resultado do pleito. Os seus amigos, que o julgavam rico, pasmavam de o verem com aquelle aspeito typico, immutavel, e unico de pretendente. Pedia elle a directoria d'uma alfandega de primeira ordem, posto que nenhuma estivesse vaga. O ministro achou absurdo o requerimento, e os amigos acharam importuno o requerente. Desceu Gastão de suas pretenções, e pedia um governo civil em Vianna, Braga ou Porto. Os funccionarios que exerciam taes commissões na provincia eram sujeitos affectos ao governo, e bons fabricantes de Fabricios e Codros sertanejos. O fidalgo foi esclarecido a este respeito, e azoou. Pediu ainda um logar de escrivão da mesa grande da alfandega de Lisboa; mas o ministro mostrou-se muito sentido de que o serventuario existente não tivesse dado causa a ser demittido.

[96] Ora Gastão de Noronha algumas vezes, em Paris, dera a um dos ministros pares de botas, e muitos jantares a outro. Assim lh'o lançou em rosto, e elles, pelos modos, ouviram a injuria com muito receio de que o fidalgo minhoto fizesse uso dos pulsos não menos rijos que as phrases. Era homem para isso o atribulado pae de cinco meninas, em vesperas de não ter sombra de arvore sua que o cobrisse!

Desanimado, e com o pensamento do suicidio a empeçonhar-lhe a alma, desamparou o processo, e foi para os seus.

Que ia elle fazer alli? que destino ia dar ás filhas? que remedio esperava elle haurir das lagrimas da pobre Mafalda, que em seis mezes envelhecera vinte annos?

A sua entrada em casa denunciou, sem palavras, a desesperança e suprema desgraça que o trazia. As meninas cuidaram logo nos preparos para se recolherem ao claustro, e D. Mafalda, sem consultar o marido, resolvera entrar com Corinna no mosteiro de Vianna. No tocante a si, dizia Gastão de Noronha que as suas tenções estavam deliberadas.

As tenções do fidalgo eram incendiar o palacete no dia em que chegasse de Lisboa a noticia do ultimo arranco da sua fortuna. O que elle faria de si depois era segredo que não deixou transpirar dos seus furores recalcados no peito.

A noticia que o seu procurador lhe deu passados dias foi consolativa. O supremo tribunal annullara o[97]processo desde a appellação por falta de intimação ao réo. Queria isto dizer que a demanda ia recomeçar desde a sentença de primeira instancia.

Recobrou-se Gastão; as meninas descontinuaram os preparativos de convento; aquietou-se o animo de todos, e volveram á casa das margens do Lima alguns parentes, que fugiam para não presenciarem as angustias d'aquella nobilissima familia. Boas almas, não tem duvida nenhuma!

De pouco tempo foi este repousar para maiores angustias. Os zelosos procuradores de Fernando de Athaide obtiveram despacho para embargo dos fructos pendentes, fundamentando sua justiça em artigos que o leitor curioso póde ver de seu vagar no codigo.

Foi, para este effeito, citado Gastão de Noronha. Era de mais: foi uma faisca que atiraram áquella alma cheia de rancor, que ameaçava explosão! O fidalgo chamou os criados, armou-os, postou-os ao portão da quinta, e sentou-se no muro para capitanear a defeza.

Os officiaes de justiça, idos de Vianna, quando avistaram os homens armados, retrocederam. Os criados, vencedores sem consumo de polvora, deram-lhes uma bateria de apupos e assovios, que nunca a justiça d'estes reinos foi tão ridiculamente escorraçada.

Gastão preparou-se para mais pugnaz arremettida. Chamou os caseiros em grande numero, armados de foices, enxadas e escopetas vesadas a matar uma andorinha no ar.

Sahiram de Vianna os mesmos esbirros e outros [98] mais afoitos, com doze soldados e um sargento. As inculcas do fidalgo anticiparam-se com a noticia. Gastão fechou toda a sua familia n'uma sala interior da casa nova, e postou-se com trinta homens nas janellas do edificio solarengo.

A diligencia viu aberto o portão, e receou cilada. Os aguazis incitaram o exercito a ir na dianteira. O bravo sargento, direito como um Giraldo-sem-pavor, entrou com o dedo no gatilho, bradando: «preparar!» com voz tão marcial, que fazia lembrar os bons tempos de Nuno Alvares e João de Castro. Os soldados compassaram-se em atiradores ao longo das alas de cilindras e acacias.

As avesinhas, que se aninhavam calorosas por entre a folhagem, crepitavam em bandos, e fugiam para o lado da casa, como a pedirem abrigo ás cinco meninas, suas unicas visitas áquelles pacificos caramancheis.

Parou a tropa no terraço fronteiro á casa. O sargento viu uma cabeça entre as duas columnatas mosarabes d'uma janella, e disse:

—Cuidado! que lá está um!

—É o fidalgo!—disse o escrivão, aventurando uma espreitadella por entre as franças de uma olaia—Está sósinho?

—Está, pelo menos não vejo mais ninguem—disse o sargento.

Animou-se o executor a sahir em claro, e cortejou de baixo Gastão.

—Que quer vossê?—perguntou o fidalgo.

[99] O escrivão tartamudeou palavras inaudiveis. Sahiu á frente um official de chibança, e disse stentorosamente:

—Vimos a fazer embargos nos fructos a requerimento de Fernando d'Athaide, e com mandado do senhor doutor juiz de direito. Está vossa excellencia citado na presença de todas estas testemunhas. Agora vamos cumprir a diligencia: somos mandados. Vossa excellencia, se quizer, ponha embargos ao embargo.

—Eu não lhe tolero conselhos, su miseravel!—bradou Gastão—Já, e sem perda de tempo, meia volta á direita, e fóra da minha quinta, quando não vão debaixo de fogo!

—Auto de resistencia!—exclamou o escrivão, desentarrachando um tinteiro de osso negro, e examinando na unha do pollegar esquerdo os bicos da penna.

Mal o scriba proferira a bombastica exclamação, o fidalgo deixou ver o cano de um bacamarte, e vinte se não mais bocas de fogo romperam das differentes janellas. O escrivão escoou-se ao longo d'um massiço de murtas e acocorou-se. Os esbirros tomaram a retaguarda do exercito, e o sargento, em vez de arengar á tropa enfiada de pavor, sahiu do seu posto de honra e foi perguntar ao agachado escrivão se devia dar voz de fogo.

O escrivão ouviu a sibylla do medo, e disse que o melhor seria não haver sangue, e retirarem-se a lavrar o auto de resistencia.

—Meia volta á direita, rodar!—bradou o sargento. [100] Os soldados voltaram costas ao inimigo, e obedeceram ás vozes «braço-arma!» e «marcha!»

A victoria, posto que incruenta, seria uma ridicula derrota para as armas e para as lettras juridicas, se alguns dos caseiros de mais rópia e chulice, como lá dizem, não sahissem por portas travessas contra vontade do amo, e não cortassem por atalhos a retirada á corrida justiça. Mal precatada ia esta, quando o tiroteio lhe rompeu á frente e pelo flanco direito, com grande algazarra de gritos, e de balas, cujo assovio encrespava de horriveis titilações as orelhas do escrivão. Os soldados viam, a intervallos, surgirem umas cabeças por detraz das moitas, ou deslizarem rapidos os vultos sobre uma clareira de dois troncos seculares do escuro arvoredo. Um soldado mais afoito rompeu ao bosque, e voltou de lá a manquejar com um raspão de bala n'um artelho. O esbirro chibante, que queria dar o exemplo da bravura, viu-se de repente na boca d'uma clavina, e metteu a coragem debaixo dos joelhos, que poz em terra, pedindo misericordia.

Gastão, logo que ouvira o tiroteio, mandou chamar os seus bravos, mas não a tempo de aggravar a resistencia com o ferimento do soldado. Cessou o fogo. Os escaramuceiros recolheram á cidadella com um chapeo de aguazil arvorado no gancho d'uma foice, e o escrivão com os seus chegaram a Vianna com aspecto livido como aquelle soldado unico dos trezentos de Leonidas que foi annunciar a Sparta a morte de todos os seus camaradas nas Thermopylas.

[101] O regimento de infanteria aquartelado em Vianna, quando viu o soldado ferido, quiz sahir em pezo a vingar a affronta. Conteve o commandante a soldadesca, promettendo em nome da justiça mais legal e solemne vingança.

Póde dizer-se, sem injuria ao fidalgo, que a pobre cabeça d'elle estava perdida. Era aquillo tudo um cavar abismos em abismos. De hora a hora mandava atalaiar a estrada, em quanto recolhia gente armada das aldeias proximas, munições de guerra e vitualhas. Aquella casa, tão quieta dias antes, a remirar-se no crystal do Lima, estava sendo um castello de antigo barão em guerra com rei, ou senhor feudal inimigo de velhos odios de raça. As pallidas meninas e sua mãe aconchegavam-se umas das outras, e tremiam a cada estrondo de cronha d'armas no sobrado ou tinnir de varetas no cano das espingardas.

Mafalda ia supplicar ao marido que fugisse e as deixasse a ellas recolher aos conventos para se pouparem á desgraça de o verem a elle morto ou preso.

Gastão enfurecia-se contra as lagrimas; e, no auge de sua demencia, chegava a bradar que elle e sua familia morreriam no incendio da casa para não sobreviverem ao opprobrio da indigencia.

Os espias, ao terceiro dia de providencias para formal assedio, foram avisar o fidalgo de que vinham na estrada tres cavalheiros com um lacaio.

Momentos depois apearam no pateo os pacificos invasores [102] da fortaleza, passando por entre fileiras de homens armados.

Gastão da sua janella-guarita reconheceu um parente de Vianna e Felisberto Taveira, já então visconde da Cruz, cujo era o lacaio.

Felisberto abraçou effusamente o pae de Corinna, maravilhando-se do aspeito bellicoso do castello, e pedindo licença para cumprimentar as damas castellans.

Appareceram as meninas com sua mãe. Corinna não se teve que não abraçasse expansiva e lagrimosa o amigo de Antonio d'Azevedo.

Ditos os logares communs, que eram para pouco em lances tão extraordinarios, o visconde da Cruz disse que lêra no Periodico dos Pobres do Porto uma correspondencia contando com negras cores a primeira resistencia que o fidalgo fizera á acção judiciaria, e os motivos que promoviam o embargo. Ajuntou que resolvera desde logo sahir caminho de Vianna para, como bom amigo de tão sympathica familia, offerecer o seu valimento. Accrescentou que chegara a Vianna quando se tomavam violentas medidas para vingar o aggravo feito á justiça e á força armada; e então, de accordo com o cavalheiro parente da casa, e advogado d'um tal Fernando de Athaide, conseguira, mediante um deposito equivalente ao rendimento dos bens litigados, cancellar os processos crimes instaurados e mandados de prisão.

Não ficou assim mesmo Gastão de Noronha extremamente satisfeito de tal serviço; mas agradeceu-o com um sorriso, e as meninas com lagrimas.

[103] A parecer do visconde, os caseiros depozeram as armas e os criados voltaram ao seu trabalho. O chapeo do aguazil, em testemunho de alegria, foi arcabusado e sacudido em farrapos aos quatro ventos do ceo.

O restante do dia e noite correu tranquillo e alegre. Corinna recebeu furtivamente a segunda carta de Antonio d'Azevedo, e sentiu ancias de oscular a mão do visconde, que lh'a entregou com estas palavras:

—O nosso Antonio está n'um largo caminho de venturas. Ha de vel-o em Portugal dentro em pouco, e rico. Tenha orgulho de ser amada por tal homem.

—Tenho! Deus sabe que tenho!—murmurou ella.



[104]

XI.



O incansavel estudo, auxiliado pelo muito saber e prática do doutor Valentim da Costa, habilitou Antonio d'Azevedo a grangear renome em poucos mezes de exercicio.

O velho presava o praticante com mais que a vulgar estima captada pela probidade. Quantos ganhos podia declinar em lavor do laborioso moço todos lhe dava, não exceptuando mesmo os resultantes de seu proprio e exclusivo trabalho. Os clientes não distinguiam entre os dois, e alguns iam mais contentes da linguagem e escripta concisa e vigorosa do doutor novo.

—Já póde o senhor Azevedo, quando quizer, estabelecer-se sobre si—lhe disse o velho um dia—Ha de sobejar-lhe clientela, e está na carreira que leva á consideração e á fortuna. De mim é que já não precisa, meu caro amigo.

[105] —E vossa senhoria assim me dispensa da sua companhia?—atalhou Azevedo—Fiz sempre quanto pude por que esta sociedade lhe não fosse onerosa.

—Ora ahi está! Eu a cuidar que o senhor desejava estar sósinho em seu escriptorio, como todos desejam, e vai agora sae-me o Azevedo o contrario de toda a gente! Pois, em sua boa verdade, o senhor quer ficar na minha companhia?

—Desejo-o; e nunca me lembrou que havia de sahir.

—Pois fique, Azevedo, fique, se o não move o interesse de mais algum punhado de oiro no fim de cada anno. Bem vê como este meu trabalho é interrompido pela gota, pelo rheumatismo e por outros achaques, contra os quaes não tenho que allegar nos nossos reinicolas. Isto está acabado, e acabada estava ha muito a minha tarefa, se não fossem velhos amigos que me tiram da cama para a cadeira, e ás vezes conseguem arrastar-me, em holocausto á amizade, aos tribunaes. Agora os novos que trabalhem, e cá se avenham com o seculo, com o qual eu já me não entendo. Tome o Azevedo conta das minhas procurações, dos meus livros, dos meus amigos, e, se quizer, do meu rheumatismo e da minha gota.

O velho doutor era mui faceto, e mettia sempre a riso a sua gota e o seu rheumatismo.

Estavam elles n'uma d'estas feriadas praticas, quando entrou um cliente de Valentim da Costa.

—Muito bem apparecido seja—disse este—o senhor [106] Fernando de Athaide, fidalgo em Portugal e fazendeiro no Brazil. Vem-me dizer que está de posse dos seus vinculos de S. Torquato, de Alvites e de Ameixoal? Parabens!

—Quaes parabens, meu caro senhor doutor!—disse Fernando de Athaide—Aquillo tem dente de coelho! Tenho gasto o valor dos bens; tenho cinco sentenças a favor, e ainda pelo ultimo barco recebi uma carta do advogado e outra do procurador. Veja lá vossa senhoria o que por lá vai!

Leu o doutor mentalmente, e interrompeu-se em meio com esta exclamação:

—Magnifico bruto é o seu advogado, e o seu procurador outro bruto magnifico! Pois não deixam de intimar ao réo a primeira sentença! Esta, esta é das que desbancam a propria estupidez!...

—Pois olhe que tenho pago a rios de oiro essas brutalidades—disse Fernando.

—Não que ellas valem-no pela raridade!—disse o doutor limpando os oculos e proseguindo na leitura mental.

—Isto agora é que tem graça!—exclamou o velho, arfando em risadas—Está-se lá em Portugal na edade media. Recebem a justiça a fogo e ferro! Ó Azevedo, oiça lá isto, que é perdido em pouca gente.

E leu:

«A diligencia que sahiu de Vianna, retirou apupada e não fez o embargo; a outra que foi com a tropa, retirou debaixo de fogo, e recolheu com um soldado [107] ferido. Á hora que lhe escrevo consta-me que mais de cem homens armados fazem sentinella ao palacio artilhado de Gastão de Noronha....»

—Como? de quem?—exclamou Azevedo.

—De Gastão de Noronha—disse o velho—Conhece-o?

—Conheço!—disse mui alvoroçado e pallido Antonio d'Azevedo—Mas que tiros são esses?

—É muito simples—respondeu Fernando d'Athaide, eu sou o directo successor dos vinculos que retem D. Mafalda de Athaide, mulher de Gastão de Noronha e minha prima. Ha muitos annos que tracto de senhorear-me do que é legitimamente meu. Tenho vencido em todas as instancias; obtive despacho para embargo nos fructos até á final decisão do pleito, annullado por um estupido descuido; e quando os officiaes de justiça vão cumprir a lei, o senhor Gastão dá-lhe fogo, e diz que a casa é sua. Ora vejam o que é Portugal! que civilisação aquella! Com que então o senhor doutor conhece meu primo Gastão de Noronha?

Azevedo, de abstrahido que ficou, não ouviu a pergunta. Fernando encarou em Valentim, como perguntando-lhe se era surdo o praticante.

—Diz o senhor Fernando se o meu amigo conhece Gastão de Noronha—tornou o velho.

—Conheço, creio que já disse.

Esta resposta foi dada com enfadado franzimento de sobr'olho, estranho ao velho.

Azevedo, vencido insolitamente de sua nobre paixão, [108] fitou em cheio o rosto de Fernando, e perguntou:

—O senhor é pobre?

—Graças a Deus, não.

—É rico?

—Assim, assim.

—É muito rico—accrescentou o doutor Valentim.

—E não carece dos bens de sua prima D. Mafalda para ser feliz?—tornou Azevedo.

—Os bens são meus; não são de minha prima Mafalda—redarguiu Fernando com desabrimento.

—Convenho que são seus. Os bens que legitimamente possue sua prima são cinco filhas. Se o senhor tirar áquella familia as terras de que viviam, sua prima e seu primo e cinco meninas terão fome; ao passo que o senhor Fernando de Athaide não saberá que fazer d'essa parcella, que accrescenta á sua abundancia.

—Pode ser que assim seja—disse Fernando descommovido—mas a pobreza não é orgulhosa. Eu escrevi duas cartas a Gastão de Noronha, quando elle estava em Paris, propondo-lhe uma conciliação, e elle nem sequer desceu do seu orgulho a responder ao filho natural de Fernão de Athaide. Ora o filho natural quer desforçar-se como seu pae se desforçaria lançando fóra de sua casa os miseraveis que o não reconhecem como dono, nem sequer como parente. Colloque-se lá na minha posição, e diga-me o que faria?

—Tinha commiseração—respondeu Azevedo, e fingiu-se occupado a folhear uns autos.

[109] —Commiseração com o senhor castellão que manda despejar balas sobre os executores do meu direito!—volveu Fernando—Olha em que postas eu era talhado se vivesse lá n'aquellas serras, em que os ladrões fidalgos se acastellam!

Antonio d'Azevedo pegou do chapeo, e disse que ia jantar e voltaria depois. Ao sahir cortejou urbanamente Fernando, como a pedir-lhe desculpa no sorriso.

—Este homem é exquisito!—disse Fernando ao doutor.

—É um modêlo de honra e virtude—tornou o velho—Não imagina que puro oiro é o d'aquella alma! Foi a commiseração que o excitou a tal estranheza de phrases. Desculpe-o, que o pobre moço, no fim de tudo, disse-lhe uma augusta verdade. Olhe que é triste coisa um homem que educou cinco filhas com todo o mimo e regalias de fidalgas, vel-as privadas de pão e de respeitos sociaes.

—Então que quer o senhor doutor?—atalhou Fernando.

—Eu de mim não quero senão absolver a compaixão de Antonio d'Azevedo, e lembrar ao senhor Fernando, que a caridade e o perdão são as virtudes fundamentaes do doutrinamento de Jesus Christo.

—E achava vossa senhoria acertado—acudiu Fernando—que eu perdesse contos de reis, que tenho gastado n'este capricho, e deixasse os meus vinculos na posse e direitos de minha prima?

—Eu não aconselho, senhor Fernando. Isto de [110] bem fazer não se lê nem se ensina: está dentro do coração, é foro intimo, é materia de tractar com Deus. Faça o que bem quizer; mas de modo se haja que nunca venha a sentir-se mal comsigo proprio.

—A minha consciencia está tranquillissima—retorquiu Fernando.

—Quantas vezes a consciencia está quieta, e o coração inquieto? A consciencia é a inspiradora dos deveres; e o coração da piedade, da humanidade, e d'outras virtudes menos pautadas que os meros deveres e obrigações de uma recta razão. Faça o que quizer, senhor Fernando...

—Como eu me enganei!—atalhou Athaide.

—Enganou-se!? Com quê e com quem?

—Com o seu socio de escriptorio.

—Ora essa! pois...

—Eu lhe digo, senhor doutor. Disseram-me que este Antonio d'Azevedo era um advogado esperto.

—Não lhe mentiram.

—Será; não duvido. Ora, como eu queria acabar com isto á custa de mais alguns contos de reis, vinha com o fito posto em offerecer tres ou quatro contos ao doutor Azevedo para elle ir a Portugal tomar posse dos vinculos em meu nome, removendo todos os embaraços com a sua esperteza. Vinha n'esta ideia, e, quando menos o cuido, acho um prégador de caridade...

—Gratuito...—accrescentou, sorrindo, o velho.

—O que faltava era ter de lhe pagar o sermão que não lhe encommendei!

[111] —Pois olhe que valeu dinheiro! Vossa senhoria, se for scismar no que ouviu, ámanhan está melhor de coração que hoje. Acha que não vale dinheiro um melhoramento moral? Oh! se vale! Até eu lhe devo, a elle mui salutares conselhos para a caduquez, e quando o escuto estou como pezaroso de não ter sido o que elle é. Pois que lhe disse o meu Antonio d'Azevedo? Cifra n'isto: «O senhor é muito rico: deixe essas migalhas que está disputando á familia, que não tem mais nada: faça de conta que pegou de sete pessoas pobres de sua familia, e deu a cada uma sua subsistencia.» Não lhe sôa bem isto ao animo desassombrado, senhor Fernando de Athaide? O seu bom sangue de fidalgo não se azedaria nas veias, se lhe cá viessem dizer que uma porção tão chegada de seus parentes andava lá por Portugal arrastada sobre os espinhos da pobreza, da miseria, e talvez da deshonra? Tem o senhor em Portugal cinco primas. Onde cuida vossa senhoria que as póde levar a indigencia?...

Valentim, fallando d'este theor, tinha os olhos embaciados de lagrimas. Fernando olhava-o em certa estupefacção, que umas vezes é dureza de sentimento, e muitas encendimento de renascida sensibilidade. O velho calou-se, e o primo de D. Mafalda, tomando o chapeo, sahiu sem proferir palavra, cortejando o doutor com um aceno.

—Adeus, meu amigo—disse o velho—Pense no fim da vida. Lembre-se que, no inverno d'ella, costumam [112] os velhos lembrar-se das flores d'alma, que esmagaram na primavera.

Fernando ouviu, no patamar da escada, as ultimas palavras, e sahiu tanto ou quanto abalado.

Pouco depois entrou Antonio d'Azevedo. Viam-se-lhe nos olhos os residuos das lagrimas. É que elle acabava de escrever a seguinte lauda d'uma carta a Corinna:

«



«2 d'Abril de 1844—quatro horas da tarde.


«Acabo de saber as desventuras que vão em tua casa. Ouvi-as da boca do mesmo homem que vos quer privar d'essas arvores e do berço onde te embalaste, minha querida Corinna. Eu alcanço a profundeza das vossas amarguras, pobres meninas e pobre mãe! Que tremenda afflicção hallucinou teu pae ao ponto de resistir á justiça impiedosa, que não entende de infortunios, nem de lagrimas! Quantas vezes te voaria ao coração angustiado a imagem invalida do teu amigo! Tardias exclamações, filha! Deixa-me ver o que posso conseguir a bem de teu pae, cujas mãos eu espero beijar ainda. Talvez que á hora em que receberes esta carta, começada com tanta alegria, e tão atormentada agora, tudo esteja sanado, e teu pae olhe como suas para sempre essas reliquias de uma grande fortuna mal desbaratada. Tenho um presentimento de que hei de merecer a intervenção da providencia nas minhas intenções. Talvez que, a [113] estas horas, estejas orando, e o anjo do nosso amor me segrede os dons que Deus te concede. Vou sahir, minha Corinna. Vou ouvir o santo varão a quem devo tudo. É tempo de eu lhe mostrar que anjo tu és para o fazer teu amigo, e bemfeitor de ambos. Até logo.»

Valentim observou o ar magoado do seu estremecido amigo, e quiz ver uma extraordinaria causa áquelle compungir-se pela familia portugueza.

—Olhe que eu cá fiquei prégando com o homem—disse o velho—As suas palavras foram o thema do sermão; mas, a fallar-lhe a verdade, não vejo lura d'onde saia coelho. Este Fernando de Athaide, cujo pae e mãe conheci, se não fosse a balda da fidalguia, havia de ser um homem muito estimavel. Está muito rico, e acha-se pobre quando veste a casaca sem o habito de cavalleiro ou official da Roza. Ha pouco arranjou em Portugal não sei que fitinha, que ellas por lá são tantas e tão bastas que não ha saber estremar os fidalgos pelas fitas. Mas o pobre homem não se contenta com ser condecorado pelo que faz (que eu, a bem dizer, não sei o que elle faz ou fez) quer tambem que a sua fidalguia lhe proceda em linha direita dos godos. Para isso precisa justificar-se tomando posse das quintas vinculadas e dos pardieiros que, pelos modos, tem ameias, adarves, barbacans e brazões com corôas e mitras. Isto é o que explica a crua insensibilidade de Fernando com os seus parentes. Ora diga lá, Azevedo, vossê conhece pessoalmente o tal Gastão de Noronha?

[114] —Conheço-o de vista apenas; mas Gastão de Noronha está tão identificado á minha vida, que por causa d'elle estou hoje no Brazil. O senhor doutor Valentim já sabe que o meu coração tem lagrimas de saudade. Eu era na patria o que ainda sou aqui: um rapaz sem bens e sem futuro; e Gastão de Noronha era o fidalgo não rico, mas de sobra ambicioso e soberbo para me não dar sua filha. A mulher que eu amo e choro é filha de Gastão de Noronha.

—É notavel a coincidencia!—disse Valentim—Agora é que a sua mágoa me parece racional, e digna me pareceria de todo o modo. Entretanto, meu Azevedo, na sua mão está salvar essa menina, e desde já, das contingencias da pobreza. O senhor já sabe que tem bastos recursos no Brazil. Vá a Portugal, que a soberba do fidalgo deve estar amollecida. Case com a sua dama, e volte, que os seus amigos cá o ficam esperando.

Riram os olhos de Antonio d'Azevedo; mas este clarão de alegria foi instantaneo.

—Seria a felicidade perfeita para mim, mas não para ella—disse o bacharel, após instantes de reflexão.

—Como assim?—perguntou o velho—que mais póde ella desejar?!

—Que seus paes e irmans não soffram as horriveis privações tanto mais amargas, quanto a vida lhes correu abundante e respeitada. Calcule o senhor doutor que desgosto não seria o d'ella ao lembrar-se que suas [115] quatro irmans ficaram encerradas em conventos, e dependentes da esmola de parentas! e que sua mãe, privada d'ellas, e talvez do marido... como poderia eu ser assim feliz, meu amigo?!...

Antonio d'Azevedo deixava cahir as lagrimas para que o velho não lh'as visse enxugar! Ha lagrimas que tem um como pudor, e recato que é talvez o medo de serem mal avaliadas. O chorar do homem ha de ser assim, ou ficará sendo miseravel alardo de sua feminil fraqueza.



[116]

XII.



—Valha-me Deus!—disse o doutor, esfregando as palmas das mãos tremulas—como ha de a gente remediar isto? O que o meu Antonio queria é que todos vivessem contentes. Christan utopia, que ha de realisar-se no ceo!

—Eu vinha animado d'um pensamento quando aqui entrei—tornou Azevedo—porém desanimei logo que o senhor me disse que Fernando de Athaide queria os vinculos para mostrar a sua fidalga genealogia.

—É o que é; e se não fosse, que ideia era a sua? Vamos discutil-a.

—A minha ideia era contrahir eu um emprestimo aqui: sei que o obtinha.

—Tambem eu sei que o meu amigo obtem o emprestimo. E depois?

—Avaliavam-se os bens vinculados e as despezas [117] feitas para os liquidar: eu dava o valor de tudo a Fernando de Athaide, e elle desistia do direito por conciliação.

—E o Antonio ficava pobre e a trabalhar toda a sua vida para remir a divida?

—Necessariamente.

—Com effeito!—exclamou o doutor—e dizem lá que já não ha santos! Sabe vossê, Azevedo, como é que o mundo, desde que perdeu a fé nos milagres, chama aos santos da sua virtude? Chama-lhes mentecaptos. Assim devia de ser, porque a philosophia inscreveu tambem como demencia o amor divino dos crucificados por sua lealdade a Deus, e d'estes vejo que ainda os ha devotados á sublime loucura da cruz. Queria então vossê adjudicar o trabalho de toda a vida ao pagamento do dinheiro com que pretende restabelecer o bem-estar da familia da sua futura senhora?... Vamos meditar. Este Fernando de Athaide, como já lhe disse, o que quer é provar urbi et orbi que é fidalgo de raça por seu pae. A herança não lhe importa. Poderemos conseguir que elle convença o universo da sua fidalguia, sem se apossar dos vinculos de D. Mafalda? Aqui é que bate o ponto. E poderemos conseguil-o sem que o meu amigo hypotheque o seu trabalho á solvencia da divida? Invoquemos as musas das entalações, e vejamos o que ellas nos decretam em coisa tão prosaica, já que os praxistas nos tapam todas as sahidas. Poderemos pensar no modo de approximar Fernando de Athaide de uma das primas, casando-os? Este expediente [118] bem se vê que é inspiração de musas, porque é de todo em todo poetico. Que diz a isto, meu rapaz?

—Creio que por parte de Gastão de Noronha seria um negocio concluido, ainda mesmo que Fernando de Athaide fosse do mais baixo plebeismo—disse Azevedo.

—Feliz genio de homem para os nossos fins! Mas vossê sabe que a renuncia d'um direito transmissivel, como é o dos vinculos, é nulla; e que os descendentes do renunciante estão sempre ao abrigo da lei. É preciso que Fernando de Athaide case com a menina successora dos vinculos, na hypothese de serem elles legitimamente de sua mãe...

—Essa é Corinna!—interrompeu Azevedo—Corinna é a que eu amo!

—Ah! sim? então muda de figura o negocio.... Deixe-me pensar... E se nós conseguissemos que Fernando casasse com uma das outras senhoras? Leval-o-iamos a deixar aos sogros a administração dos vinculos, melhorados e desembaraçados de dividas com liberalisado capital pelo ricasso, e sobre tudo pelo fidalgo, orgulhoso de reedificar os pardieiros de seus avoengos. Que lhe parece?

—Gastão de Noronha não acceitaria a humilde posição de mordomo de seu genro—disse Azevedo—Por parte d'este a reconciliação seria impossivel. Só vejo um meio.

—Diga lá.

—Fernando obteria uma filha de Gastão, se, antes [119] de pedir-lh'a, rasgasse as provas com que se diz successor dos vinculos.

—Não se rasgam assim facilmente as provas. A perfilhação está archivada, e as cartas e testamento que o legitimam filho de Fernão de Athaide estão em notas de tabelliães de Portugal e do Brazil.

—A desistencia, portanto, é invalida?—tornou Azevedo.

—É, a menos que o senhor me não assevere que a descendencia directa de Fernão de Athaide acaba em seu filho.

Proseguiram largo tempo dialogando juridicamente, e ultimaram indecisos no que deviam fazer.

Antonio d'Azevedo desvelou aquella noite em hypotheses que se combatiam e destruiam. Amanheceu-lhe o dia seguinte para incessante inquietação e dolorosa perplexidade. Voltou ás onze horas ao escriptorio de Valentim da Costa, e encontrou-o encerrado com Fernando de Athaide.

—Já se demorava—disse-lhe o doutor—Sente-se aqui.

O velho, voltado a Fernando, proseguiu:

—Dá-se o caso, amigo e senhor Athaide, que este Antonio d'Azevedo veio ao Brazil ganhar alguns punhados de oiro para poder voltar a Portugal e casar com uma das cinco primas de vossa senhoria, filhas de Gastão de Noronha.

—Pois conhece minhas primas?!—atalhou Fernando.

[120] —Especialmente a mais velha, a senhora D. Corinna—disse Azevedo.

—Alguem me disse que é muito galante essa—tornou o millionario.

—São todas galantes: são cinco anjos, que fariam o orgulho d'um pae menos infeliz que o senhor Gastão, e teriam sido felizes se nascessem em menos elevada condição.

—Alguem as viu em Paris—tornou Fernando—e achou-as educadas muito á franceza.

—Por força devia achal-as assim educadas: as mais novas lá nasceram.

—Mas desenvoltas... é o que eu quero dizer.

—Não senhor: enganaram-o: vi-as em alguns bailes do Porto com quanta gravidade e compostura se póde desejar na mulher que se ama para nos felicitar e honrar a vida.

—Agora fallo eu—atalhou o velho—O senhor Azevedo affligiu-se quando vossa senhoria nos contou a situação em que ficou seu tio; é natural; porque a senhora que elle ama, até ao sacrificio de vir grangear-lhe aqui o pão futuro, está lá n'essa casa, d'onde vossa senhoria vai expulsar toda a familia.

—Minhas primas devem odiar-me de morte!—interrompeu Fernando em tom de desagradavel ironia.

—Fazem ellas muito bem—disse o velho, sorrindo.

—Que lhe diz de mim a prima Corinna?—tornou Athaide com prasenteiro semblante.

[121] —A carta que ella me escreveu n'este ultimo navio contém uma pagina com referencia a vossa senhoria. Queira lêl-a, que ella de certo me perdoa a confidencia.

Fernando de Athaide leu a penultima lauda da carta, dobrou-a vagarosamente, e restituiu-a sem fitar os olhos no bacharel.

—Aqui não ha odio de morte n'estas palavras, senhor Fernando de Athaide—disse Azevedo.

—Então isso é segredo cá para o velho, heim?—disse o doutor.

—Ha meia hora que recebi a carta—respondeu o moço, entregando-lh'a.

—Sempre quero ver o juizo que ella faz do priminho. Mostre lá o sitio onde vem a catillinaria.

—Antonio indicou-lhe a pagina, e o velho leu alto:

«Ouvi dizer ao nosso amigo Felisberto que o primo de minha mãe é muito rico, e não precisa d'estes poucos bens. Que triste gloria reduzir á ultima pobreza uma familia tão numerosa! Ha corações muito duros, meu querido Antonio! Ás vezes penso com tristeza e ao mesmo tempo consolação, no differente modo de pensar que Deus dá ás suas creaturas tão semelhantes no exterior. Não se lembrar esse homem das afflicções que nos dá sem proveito nenhum para si mesmo! Não saberá elle que a subsistencia de sete pessoas, creadas na opulencia, era só isto que nos tira!? Se um dia lhe disserem que meu [122] pae morre de desgosto e miseria, a voz do sangue não lhe gritará como um remorso ao coração? Ai! como os felizes gosam, ó meu pobre Antonio!

»


—Estas palavras, senhor Fernando—continuou o veneravel doutor—podem mais que tudo quanto eu lhe dissesse, se as lagrimas que eu vejo nos seus olhos não são uma illusão dos meus. Olhe fito cá para mim, Athaide! Não se envergonhe de ser bom: tenha só pezar de o não ter sido. Vamos! deixe lá fallar esse coração! Sente-se disposto a salvar esta familia?

—Responderei—disse Fernando de Athaide, erguendo-se de golpe.

—Uma resposta, n'este caso, não é operação diplomatica que demande vigilias e subtilezas de engenho. Sente-se!—disse com gracioso imperio o velho.

—Mas que quer de mim o doutor?

—Quero que se meça em bizarria d'alma com este cavalheiro que aqui está. Antonio d'Azevedo quiz contrahir um emprestimo de trinta contos, ou mais, caucionados com a sua honra e trabalho. Estes trinta excedem em doze, segundo vossa senhoria me tem dito, o valor dos vinculos. O restante será o que Fernando de Athaide tem gasto no costeio da demanda. Antonio d'Azevedo queria offerecer a vossa senhoria esta quantia como gratificação pela desistencia da demanda.

Sorriu Fernando, e atalhou:

—O doutor não disse a este senhor que eu dou trinta contos pelo menor dos meus caprichos, e que [123] ainda fico bastantemente rico para dar de esmola o valor dos vinculos ao soberbo Gastão de Noronha?

—Esmola que elle não acceitará—disse com altivez o amado de Corinna.

—Nem eu estou pedindo esmola para o marido de sua tia—accrescentou o doutor.

—Então que pede?!—tornou Fernando com philaucioso sobrecenho.

—Peço ao fidalgo que tenha uma alma fidalga; que, se a não tiver, que importam os seus brazões em confronto da caridade com que o escravo nu levanta da rua o seu irmão prostrado de fome?! Quer saber o que lhe fica bem? O cavalheiro manda suspender a execução, sem desistencia dos seus direitos, que as leis e todos lhe reconhecem. O seu vencimento foi completo: agora é preciso coroal-o com a generosidade, se quer o triumpho. Está vencida a questão: está reconhecido Fernando de Athaide o successor dos vinculos de seu pae. São seus os vinculos, e é sua a honra de os deixar administrar por sua prima. Isto é que é nobreza! De resto, as armas dos portões das suas quintas são pedaços de pedra lavrada, onde as aranhas fazem seus ninhos como entre a palhiça que colma a cabana do jornaleiro! Que diz?

—Responderei!—repetiu Fernando—tenho de dar satisfação á minha dignidade. Entre coração e pundonor vai larga distancia: preciso de explicar o despreso com que foram recebidas as minhas cartas por Gastão de Noronha. É preciso que o mundo não pense [124] que os meus direitos se atemorisaram diante do arcabuz do valentão.

—É preciso, primeiro que tudo, respeitar o infortunio!—disse brandamente Antonio d'Azevedo.

—Digno de respeito—accrescentou o neto dos Athaides sahindo de má sombra.



[125]

XIII.



Lembra-se o leitor de eu lhe ter dito, no primeiro capitulo, que, por uma tarde de Agosto, estava Corinna da Soledade, nas margens do Lima, reclinada n'um dos bancos circumpostos á fonte do tôpo da sombria avenida?

Agora é que o romance prende com aquella tarde! Vejam que desconcerto este! Chega uma novella ao meio, e torna a começar. Parece que é isto um abuso da indulgencia com que o leitor costuma indultar-me os desarranjos do meu engenho. Ora queira perdoar mais este, attendendo a que as coisas, na vida como ella é, tambem assim vão desordenadas, e começam não só pelo meio, mas até pelo fim.

A carta, que Corinna lia e regava de lagrimas, era de Antonio d'Azevedo. A pagina que mais a enternecia a prantos dizia assim:

[126]
«

Eu não sei que deva esperar de Fernando de Athaide. Pareceu-me bom quando lhe vi lagrimas, e mau quando se despediu. Será tudo, ou não será nada do que me pareceu: os individuos vulgares são os menos intelligiveis. O melhor, Corinna, é nada esperar que bom seja.

«Entretanto, eu posso mandar á tua familia o bom coração que tu fizeste, e não póde ser teu sem ser dos teus. Prézo teu pae e tua mãe, quero ás tuas irmans como ás minhas. Tenho-vos a todos no mais sagrado dos meus affectos e ardentes desejos de ser util.

«Os meus haveres, por em quanto, não merecem tal nome; porém a minha palavra vale muito com os amigos que me deram os Taveiras. É-me facil possuir alguns contos de reis, e mandal-os a teu pae para ter uma casa e segura subsistencia de sua familia, até que a minha posição seja mais solida. Mas como hei de eu, e com que pretexto, remetter-lhe este dinheiro? Como ha de elle acceital-o? Pensei n'isto muitos dias; e, a final de desanimados arbitrios, tomei um expediente que tu, minha Corinna, applaudirás, porque, sobre tudo, és a minha irman. Remetti seis contos de reis ao nosso Felisberto Taveira, pedindo-lhe que fosse elle offerecel-os a teu pae como coisa sua. Contrariou-me logo a conjectura de que teu pae os não acceitaria, por não poder dar abona «Os meus haveres, por em quanto, não merecem tal nome; porém a minha palavra vale muito com os amigos que me deram os Taveiras. É-me facil possuir alguns contos de reis, e mandal-os a teu pae para ter uma casa e segura subsistencia de sua familia, até que a minha posição seja mais solida. Mas como hei de eu, e com que pretexto, remetter-lhe este dinheiro? Como ha de elle acceital-o? Pensei n'isto muitos dias; e, a final de desanimados arbitrios, tomei um expediente que tu, minha Corinna, applaudirás, porque, sobre tudo, és a minha irman. Remetti seis contos de reis ao nosso Felisberto Taveira, pedindo-lhe que fosse elle offerecel-os a teu pae como coisa sua. Contrariou-me logo a conjectura de que teu pae os não acceitaria, por não poder dar abonação; mas tão cansado estava eu já de ser contrariado, [127] que fechei os olhos, e deixei ao meu bom amigo o desapressar-se das difficuldades. Aqui tens o que fiz: Deus fará o resto.

«Pedi ao Taveira que aconselhasse a sahida de teu pae para o Porto ou Lisboa. A especial situação em que elle se collocou é muito violenta. Digam-lhe todos que abandone as terras que já não são suas. Em toda a parte ha sol e arvores e paz. Todas as flores te hão de festejar, minha filha, e o meu coração te será companhia onde quer que vás.

»


Era bem para lagrimas este singelo dizer e extremo amar do pobre ausente!

Expiravam nas cristas das serras fronteiras os ultimos raios de sol, que Corinna contemplava, coroando de escarlate os pinhaes, quando um barquinho abicou á margem relvada, mesmo no ancoradoiro pertencente á quinta de Gastão de Noronha.

Corinna viu saltar e subir por entre as aleas das ramosas arvores um homem, seguido d'um criado com uma mala. Como a fuga, sem ser vista, seria extemporanea, a menina, escondendo a carta, esperou que o adventicio chegasse.

A certa distancia descobriu-se o sujeito, e perguntou se estava em casa o senhor Gastão de Noronha.

—Meu pae está para Vianna—disse Corinna—mas deve chegar ao escurecer: não tardará.

—Poderei esperar que elle chegue para lhe apresentar uma carta do senhor visconde da Cruz?

[128] —Sim, senhor: queira subir, que eu dou parte a minha mãe, posto que ella está recolhida no seu quarto por doença.

Chamou Corinna um criado que encaminhou o hospede á sala.

Pouco depois entrou a menina na sala, desculpando sua mãe em não poder ir receber um amigo do senhor visconde, e pedindo ao cavalheiro o favor de esperar seu marido, que voltaria breve.

Corinna retirou-se, ouvidos os termos cortezãos com que o hospede agradecia a delicadeza da senhora D. Mafalda.

Não se demorou Gastão. Foi logo á sala, e recebeu a seguinte carta:

«Illustrissimo e excellentissimo senhor, e meu respeitavel amigo de minha maior consideração e respeito. Amigos de meu pae, e muito da nossa estima, nos recommendam o cavalheiro portador d'esta carta, brazileiro nato, que anda visitando a Europa, e quer ver o nosso Minho, e mais ainda o Minho de vossa excellencia, symbolisado na sua formosa quinta. Confiados na amizade de vossa excellencia, ousamos pedir-lhe o favor de recebel-o, e indicar-lhe as principaes bellezas que enfeitam as margens do Minho e Lima. Digne-se vossa excellencia acolhel-o com a sua costumada delicadeza, e dar-nos a honra de lhe devermos esta nova consideração. De vossa excellencia etc.==Visconde da Cruz.

«P. S. Passados dias terei o prazer de visitar vossa [129] excellencia e sua amavel familia, para quem peço respeitos e saudades.»

—Offereço-lhe esta casa como a offereceria ao senhor visconde—disse o fidalgo com palaciana graça—Queira sentar-se. Temos alguns locaes bonitos na nossa provincia; mas se vossa senhoria viu a Suissa, a Italia e alguns departamentos de França, de certo achará encarecida a pintura que lhe fizeram do Minho. Eu viajei muito com a minha familia antes de estabelecer casa em Paris, no tempo das nossas guerras intestinas! Sinceramente lhe digo que lá fóra vi a natureza mais adornada, e por isso mesmo mais bella: tudo assim é. O artista quer achar a nudez para enfeital-a com a poesia do pincel ou do buril; mas o mero curioso sente melhor o bello onde elle realmente é.

Proseguiram em conversação sobre viagens, até horas do chá. Já o hospede, a esse tempo, sabia que o seu quarto de dormir era contiguo á sala, e que o seu criado dormia na alcova inferior correspondente ao pavimento do quarto.

Antes de servir-se o chá, mandou Gastão chamar as cinco meninas, e apresentou-as a Carlos Zuzarte, que assim disse chamar-se o hospede. Felismina tocou piano para acompanhar Emma; seguiu-se Elisa a cantar, acompanhada por Leonor: Corinna estava no quarto de sua mãe. Carlos sentia-se como encantado entre aquellas meninas, que fallavam um portuguez feiticeiro em suas incorrecções, como fallariam anjos, se descessem a tractar com portuguezes, circumstancia [130] de idioma que os poetas nunca observaram, que me lembre. Em quanto a ellas, o dizer do hospede, puro brazileiro, era coisa de muita graça, com o que ellas francamente riam, e de modo o faziam, que o viajante folgava de lhes dar motivo a rirem. É onde póde chegar a condescendencia com meninas galantes!

A noite correu ligeira para todos. Ao dia seguinte madrugou Zuzarte, e desceu ao jardim. Argentava o sol a serra d'Arga, e lá em cima os montados d'aquella mystica selva dos franciscanos, onde ainda rumorejam os psalmos das singelas almas que d'alli, tão visinhas do ceo, se alaram para Deus. Com que pena, leitor, eu acho o meu frei Luiz de Sousa estranhamente trivial e despoetico na descripção d'aquelle ermo e dos seus moradores! Elle, o dulcissimo panegyrista das solidões de Bemfica, passou por entre os cenobitas de mais ignorada vida, nas chronicas monasticas, e apenas disse: «É convento de religiosos entregues mais á vida contemplativa, que aos cuidados e trabalhos da activa.» E mais nada d'aquellas brenhas, e grutas e lageas sem nome que...

Se eu me deixava ir agora á vontade da penna, lá me ficava o romance enredado nos silveiraes da mata de S. Francisco de Vianna, por onde já passei um dia, lá muito no alto, d'onde eu avistava a casa acastellada de Gastão de Noronha, em quanto outro anachoreta me ia contando o romance d'aquella familia.

O hospede estacou surprezo á entrada d'um pavilhão de olaias. Estava lá dentro uma como estatua de[131]alabastro, que poderia chamar-se o anjo da meditação. A estatua, porém, se o era, dos jardins do ceo devia de ser, porque tinha luz nos olhos e celestial graça no sorriso, quando Zuzarte a viu. Era Corinna da Soledade.

Cortejou-a o sujeito com certa turvação, e retirou-se. A menina correspondeu ao cumprimento, e sahiu do jardim logo que o hospede se distanceou da gruta.

Por alli se deteve contemplativo o brazileiro até horas de almoço. Lá veio procural-o Gastão de Noronha, e se andaram ambos conversando ainda sobre coisas que tendiam todas, por parte do fidalgo, a averiguar se o hospede era rico.

—Tenho trinta e oito annos—disse o brazileiro—e principío agora ainda a pensar nas delicias que tem o mundo. Até agora cuidei em fazer-me rico, pensando que bastava sel-o para ser feliz. Como me enganei, cuido d'hoje ávante em dar nova applicação á fortuna.

—Na sua idade—atalhou Gastão—quando se é rico, acham-se abertas as portas do mundo para todos os gosos.

—Não é tanto assim—replicou o hospede—A riqueza é muitas vezes um estorvo á felicidade do coração; e o coração, aos trinta e oito annos, é quasi sempre enganado pela juventude que o reflexo do oiro lhe dá. Quando me proponho um programma de vida nova, o meu primeiro pensamento é casar. A felicidade do celibatario, se elle não fôr monge ou santo, ou [132] temperamento excepcional, é uma concatenação de deleites viciosos com muito desconto de amarguras. Para além d'este difficil passo do casamento rasgam-se-me novos horisontes, encantam-me as alegrias da vida domestica, vejo os bens que Deus concede na velhice aos que dignamente consumiram suas forças nos annos em que as forças carecem de ser subordinadas ao dever...

—Pensa muito acertadamente, senhor Zuzarte—interrompeu o fidalgo.

—O quadro delicioso que vim achar em sua casa, senhor Gastão de Noronha, redobrou-me o encanto, porque é elle a mais sublime realidade das minhas imaginações. Que ditosa velhice a do pae que vê em volta de si cinco filhas, cinco amores de filha a florescerem-lhe a alma com as suas primaveras! Assim não se deve sentir o pezo dos annos, nem o temor da morte. O caminho final, a ultima jornada deve ser suave entre os anjos. Não é muito feliz, senhor Gastão de Noronha?

—Sou infeliz—disse, em boa consciencia, o fidalgo.

—Infeliz?! Com familia tão querida e extremosa, n'este paraizo, é infeliz!? Então lá se vão as minhas chimeras!...

—Fui ditoso até ao momento em que uma inesperada desventura me bateu á porta para me dizer que esta casa não era minha, e que as minhas filhas teriam um futuro de dependencia, obscuridade, e... Deus sabe que futuro!...

—Pois não é de vossa excellencia esta casa?—perguntou [133] o hospede com um ar de espanto, que denotava artificio por demasia de naturalidade.

—A herança de minha mulher foi-me disputada por um parente; são vinculos que as leis concederam a um filho natural do antecessor de minha mulher. Passados alguns mezes terei de sahir com minha familia. Um descendente dos marquezes de Villa Real não terá choupana onde se abrigue com suas filhas e mulher. Aqui tem o senhor Zuzarte a razão da minha amargura. As filhas, que eram minhas delicias, estão sendo um constante incentivo de soffrimento. Eduquei-as em França, dei-lhes uma infancia de rainhas, premeditava casal-as nas primeiras familias d'esta provincia: muito fidalgas, muito prendadas e muito pobres, quem as quer, a não serem maridos de quem eu de certo as não fiava assim mesmo pobres?...

Carlos ouvia Gastão com semblante mais assombrado que compungido: dir-se-ia que aquelle homem, conscio da indole soberba do fidalgo, pasmava de ouvil-o abrir-se em palavras tão brandas, francas e humildes. De si para si dizia Gastão, vendo o aspecto indefinivel do seu hospede, que, depois da revelação da pobreza, o rico o estava olhando com menos prestigio, e talvez reflectindo no modo de esquivar-se a alguma petição de dinheiro. Esta hypothese, beliscando o orgulho do fidalgo, fel-o proromper n'estas palavras destoantes das ultimas que proferira:

—Ainda assim, as pessoas que se hospedam em casa de Gastão de Noronha, por em quanto, são recebidas [134] como em todo o tempo. A revelação que lhe fiz, senhor Zuzarte, não é lastimas de quem acaba pedindo um favor. Tenha vossa senhoria muita confiança na minha independencia, que eu hei de morrer Gastão de Noronha. Ha mezes que o nosso amigo visconde da Cruz depositou um capital de dois contos de reis para evitar um embargo nos fructos pendentes d'estes bens: quando eu tal sube, vendi as joias de minhas filhas para embolsar o senhor visconde do seu deposito.

—Vossa excellencia está-me fazendo revelações que me confundem—atalhou o hospede—e ao mesmo tempo fere-me com suspeitas que eu não mereço! Por ventura crê-me capaz de o julgar abatido e desmerecido em seu infortunio? Que disse eu para vossa excellencia passar de uma tão nobre confissão dos seus desgostos a prevenir-me de que os hospedes em sua casa são recebidos como nos tempos prosperos?!

—Desculpe-me—acudiu Gastão—é que eu não nasci para estas queixas, e cuido sempre que a pobreza me abate aos olhos dos estranhos, desde que me vi desconsiderado dos parentes.

Entraram na casa do almoço, e encontraram D. Mafalda, que os esperava com as cinco meninas. Carlos foi apresentado á fidalga, e deteve-se conversando especialmente com ella durante o almoço. A polidez assim o mandava ao hospede: mas o familiar affecto com que elle a tratava era por demais. Notaram as meninas que elle não desfitava os olhos de sua mãe senão [135] quando encontrava os d'ella, já tambem admirada da fixidez attenta do brazileiro.

Da casa do almoço passaram á sala do piano. Felismina foi cantar modinhas brazileiras com o requebro e mimo das ardentes e languidas filhas do Brazil. Felismina era uma formosa morena, com olhos negros, cabellos curtos e annelados como spiraes de ebano, esbelta de corpo, alta mais que todas, muito agil e inquieta, relanceando sempre a vista a todos e a tudo, a mais diserta e chistosa de todas, e a menos dada ás flores, á poesia, e ás bellezas campezinas que suas irmans encareciam umas mais que outras, e Emma, a pachorrenta Emma, esta mais que nenhuma.

Felismina estava gracejando com Zuzarte a respeito das damas brazileiras, cujas graças o hospede, sem favor, elogiava, quando um criado entrou á sala onde estavam todos, e entregou uma carta ida de Lisboa para Gastão de Noronha. Era a carta do procurador.

—Teremos golpe?—disse o fidalgo a D. Mafalda.

—Não sei qual possa ser!—respondeu a senhora—As dores mais de temer estão todas passadas.

Leu Gastão a carta, e disse com alvoroço:

—O Fernando manda suspender a execução, e retirar o processo de julgamento com desistencia! Que significa isto?

—O quê, papá?—exclamou Felismina, que mal ouvira, de entretida que estava com o brazileiro.

—É o primo Fernando que desiste da demanda—disse Mafalda.

[136] —Foi elle!—exclamou Corinna.

Voltaram-se todos para a menina que soltara o brado, e viram-a muito escarlate.

—Elle! quem?—perguntou o pae.

Corinna balbuciou confusas palavras, e não soube como explicar aquelle disparate, que parecia o despertar subito d'um arrobamento semelhante a somnambulismo!

Se não existissem os pronomes este e elle, Corinna teria exclamado:

—Foi Antonio d'Azevedo!

E, se ella tal dissesse, ninguem a entenderia, excepto o leitor.



[137]

XIV.



Pediu Zuzarte licença para compartir do contentamento da familia. Em breves e alegres termos, D. Mafalda disse que seu primo Fernando de Athaide desistia da acção que tinha vencida, quando menos se esperava. Sem rebuço de vão orgulho, a fidalga enumerou quantas desventuras estavam eminentes á sua familia, e a ella, pobre mãe e esposa, que, ao mesmo tempo, se havia de separar de marido e filhas para ir quinhoar o pão da caridade de parentes, que, muitas vezes, lh'o atirariam á cara com a cruel censura aos desperdicios da emigração.

O brazileiro mostrava-se jubiloso do successo; e, cada vez que as meninas bem-diziam seu primo Fernando, era muito de notar-se que o hospede guardava um silencio indelicado.

Instado por Felismina a dar explicação do seu silencio, e mais ainda d'um certo tregeito de fria admiração, [138] disse o brazileiro, como surprendido em mysterioso sentimento, qualquer que fosse:

—Eu não sei de que hei de louvar esse senhor Fernando de Athaide, posto que o respeito muito por ser tão proximo parente de vossas excellencias.

—Não sabe?!—disse Mafalda com vehemencia.

—Não, minha senhora.

—Pois a desistencia d'uma fortuna, que era já sua...—tornou a fidalga.

—Minha senhora—replicou Zuzarte—eu conheço o primo de vossa excellencia.

—Conhece!—exclamaram todos.

—Fernando de Athaide desistindo de algumas dezenas de contos, obedeceu talvez a um sentimento de vaidade, o mais barato de quantos lhe tenho conhecido. Seu primo, minhas senhoras, é hoje um millionario. A balança do seu oiro não ergueu duas linhas com o desfalque do valor d'estes vinculos. Não ha virtude que deva espantar-nos na desistencia d'um objecto inutil.

—Não quero pensar assim, nem consinto que minhas filhas assim pensem—tornou Mafalda.

—Pois bem—retorquiu o brazileiro—convenho que em vossas excellencias a superabundancia de sensibilidade reverta em gratidão; aposto, porém, que o senhor Gastão de Noronha não pensa assim.

—Penso como minha mulher—disse o fidalgo—Penso que lhe devemos muito ao generoso Fernando, porque eu fui mau para com elle. Quando estavamos [139] em Paris, recebi duas cartas suas, muito attenciosas, ás quaes não respondi. Chamava-me primo, e eu tive a estupida arrogancia de rejeitar o parentesco de um homem que, por delicados termos, me convidava a entrar com elle em negociações ácerca dos vinculos, que eu illegalmente administrava. Depois d'isso, tenho rejeitado todas as conciliações propostas, e, no arrasoado de minha defeza, fiz que os lettrados empregassem termos injuriosos contra a sua pretendida filiação de nosso tio Fernão de Athaide. Era de crer que fosse implacavel o odio do vencedor, depois que eu, á força d'armas, lhe resisti ainda em ultimo lance. Ora, senhor Zuzarte, seja embora millionario Fernando, força nos é confessar que ha sangue muito fidalgo n'aquellas veias! Se eu pudesse apertal-o ao coração n'este momento, exultaria do nobre orgulho com tal parente!

Carlos Zuzarte fez um signal de assentimento ás calorosas razões de Gastão, e derivou a prática a outro assumpto. Felismina, porém, teimou em fallar de seu primo Fernando, pedindo ao brazileiro que lhe contasse o que sabia d'elle.

—Que interesse, minha senhora!—disse Zuzarte com ar de maravilhado—O primo de vossa excellencia é um homem de bigode grisalho, olhos pretos, alto, debil, muito trigueiro, alegre ás vezes, outras muito triste, com muitos amigos e muitos inimigos...

—É solteiro?—atalhou Felismina.

—É solteiro, e já agora assim morrerá, porque, se me não engano, deve ter trinta e oito annos.

[140] —Justamente—disse Mafalda—Meu tio Fernão morreu ha vinte e dois, e lembra-me elle dizer-me que Fernando teria dezoito. Queria meu tio que eu casasse com o primo; mas como falleceu quasi repentinamente, não chegou a mandal-o chamar.

—Se vossa excellencia tem casado com elle—disse Zuzarte—esta scena, em que todos figuramos, estava na massa dos impossiveis! Ora vejam vossas excellencias que em bem pouco está o não virem á luz da vida magnificos espectaculos! Que quer vossa excellencia saber mais de seu primo, senhora D. Felismina?

—Diga tudo o que souber—respondeu a menina.

—Eu não sei mais nada, minha senhora. A ultima vez que o vi no Rio de Janeiro foi no escriptorio de um velho jurisconsulto, onde tinha banca de advogado um moço portuguez chamado Antonio d'Azevedo Barbosa.

Corinna da Soledade estremeceu expansivamente, como se ninguem a visse, e como por influição magnetica, a cadeira per si mesma se arrastou algumas pollegadas para mais perto do brazileiro. A leitora de certo não acredita n'este magnetismo da cadeira.

Gastão de Noronha relanceou os olhos a Corinna, e as irmans tambem.

—Eu não sei que influencia teve este nome no meu auditorio!—disse o brazileiro, sorrindo.

—Em que consiste a fortuna de Fernando?—interrompeu Gastão com mal disfarçada zanga.

[141] —Em terras, dinheiro, escravos, navios e predios—respondeu Zuzarte—Esta grande labutação demanda um bom zelador, que o primo de vossas excellencias, por natural preguiça, não póde ser. Ouvi-lhe então dizer, que tendo de sahir para demorada viagem na Europa, deixava seu advogado no Brazil o honrado Antonio d'Azevedo, com um ordenado bastante ás suas despezas. Bem escolhido patrono! Em poucos mezes, o doutor conquistou, no Brazil, um nome que vale muito grande fortuna, conservando-se lá seis annos. Alguem me disse que Antonio d'Azevedo amara em Portugal uma menina nobre, e fôra ao Brazil enriquecer-se para voltar a casar-se com ella. Se isto é verdade, devem dar-se os parabens á noiva, que o laborioso moço tinha lá uma boa fada á sua espera.

Gastão de Noronha ergueu-se, e disse com impetuosa acrimonia:

—O senhor sabe que está em casa do pae d'essa senhora, que Antonio d'Azevedo cuida comprar com o dinheiro ganhado no Brazil?

—Como?!—exclamou Carlos com a mais magistral naturalidade—Vossa excellencia assombra-me! Dar-se-ha caso que seja alguma d'estas senhoras a menina que... Com effeito! Parece que estamos compondo um romance!

—Romances d'uma minha filha...—tornou o fidalgo—Não fallemos mais d'isso... que a ferida ainda sangra...

—Eu peço perdão se avivei dores e saudades, sem [142] a menor intenção, nem suspeita de....—disse Carlos.

—Pois está claro que vossa senhoria ignorava tudo...—replicou o fidalgo.

E voltando-se a Corinna, soltou um frouxo de mau riso, riso de repreza cólera, porque lhe vira as lagrimas correrem nas faces a fio.

Carlos não pôde conter esta exclamação:

—Que grande e digno amor!

Gastão fitou-o com certo espanto e azedume, e disse, em occasião opportuna, ao ouvido de sua mulher:

—Não sei o que hei de pensar d'este homem! O acaso não faz d'estas coincidencias senão nas novellas...

O incidente passara. O brazileiro encostara-se ao peitoril d'uma janella com Felismina, e ahi conversaram largo tempo ácerca dos amores de Corinna e Antonio d'Azevedo. Parece que o apologista do bacharel se saboreava muito em discorrer de amores alheios, e não perdia azo de invocar o coração da menina a decidir em theses amorosas, que elle muito de industria estabelecia. A direcção que levou o dialogo, não a sei eu cabalmente dizer; é certo, porém, que Felismina, conversando n'aquelle dia com sua mãe muito á puridade, lhe disse que o brazileiro lhe perguntara se ella poderia amal-o. N'essa mesma noite Mafalda revelou ao marido a pergunta. O marido pensou na resposta, e disse que tinha razões para suppor que Carlos Zuzarte era homem muito rico. A senhora entendeu as clausulas [143] de tal resposta, e disse a Felismina que o pae ouvira a noticia com agrado.

—E tu, filha—accrescentou D. Mafalda—gostas do Carlos?

—Não desgosto, maman.

—E querias casar com elle?

—Se o papá quizesse... Mas olhe que elle não me disse que queria casar comigo, maman!

—Bem sei, filha, bem sei; mas assim é que se principiam os casamentos. Como o visconde da Cruz cá vem, elle nos dirá quem é o brazileiro, e depois, se o partido fôr de vantagem e tu quizeres, o que ha de fazer-se ao tarde, faça-se ao cedo.

Em quanto esta scena, nem edificante, nem rara, se passava no quarto de Mafalda, Corinna fôra sentar-se na varanda mais solitaria do palacete, e o proposito levara alli Carlos Zuzarte, acompanhado de Emma e Leonor, que lhe andavam mostrando a porção antiga do edificio. O brazileiro approximou-se de Corinna em quanto as duas meninas desceram ao jardim a colher agua em pequenas bilhas, e disse-lhe:

—Minha senhora! alegre-se que ha de ser feliz! Antonio d'Azevedo ha de ser seu marido, porque Deus é justo com os corações corajosos sem deshonra. Espere, e vencerá. Faça de conta que esta revelação lhe vem do ceo!

—Bem haja!—disse Corinna apertando-lhe a mão.

No dia seguinte chegou o visconde da Cruz, o bem-vindo [144] para todos, e particularmente para Corinna. Carlos Zuzarte, ao apertar-lhe a mão, murmurou estas palavras:

—Seja discreto, quanto lhe pedi!

—Pois duvída?!—respondeu o visconde.

Gastão, logo que pôde, apartou-se com o visconde, e teve com elle o seguinte dialogo:

—Será censuravel pedir eu a vossa excellencia algumas informações ácerca d'este meu hospede?

—Não é, senhor Gastão—disse o visconde—Direi o que souber.

—Este sujeito parece-me excellente creatura.

—Não sei: recommendaram-m'o como pessoa muito rica. Em materia de costumes nada me disseram.

—Mas muito rico, sim?

—Já tive a honra de dizer a vossa excellencia que é muito. Viaja em navio proprio, e podia viajar com estado de quatro navios...

—Oh! é muito!—interrompeu Gastão abrindo os olhos ao tamanho da boca.

—Estou quasi a adivinhar que vossa excellencia observou que elle amava alguma de suas filhas!...

—Quem lh'o disse?—acudiu alegremente o fidalgo.

—Ninguem m'o disse, meu nobre amigo, nem eu me orgulho de adivinhal-o: quem quer o faria. Qual é a menina predilecta? Naturalmente a senhora D. Corinna.

—Ora... Corinna! não sei que distincção é a de [145] minha filha Corinna! Não são tão formosas como ella as outras?

—São formosissimas todas—respondeu o visconde—mas aquella tem mais que as outras um cunho de melancolia...

—De tolice, meu amigo, o cunho é de tolice... Não é ella; ainda bem que não é... Corinna tem de dar má sahida com os taes amores... Deus perdoe a quem contribuiu para aquella demencia...

—Fui eu?...

—Bem sabe que foi, senhor visconde...

—Pois Deus ha de não só perdoar-me, mas glorificar-me com a satisfação de ter approximado dois anjos...

—Não sei para quê...

—Para se amarem e darem um exemplo de sacrificio raro, sublime e invejavel... Não vim a enfadal-o, senhor Gastão... Começa vossa excellencia a enrugar a testa, e tão bom hospedeiro merece melhor recompensa. Como estão os seus negocios?

—Acabou a questão com meu primo.

—Sim?! e como acabou?

—Desistiu.

—Bello! mil parabens! Não tem, pois, vossa excellencia nada que o penalise?

—Estou contentissimo. A minha casa volta a ser, se não invejavel pela ostentação, ao menos pacifica e bastante ás minhas despezas em agradavel mediania.

[146] —Precisa vossa excellencia de dinheiro para remir-se de algumas dividas?

—Mil graças; ainda tenho algum do producto das joias.

—Mas quer vossa excellencia resgatar as joias de suas filhas? Abro-lhe com franqueza o coração e a bolsa.

—Dispenso o seu obsequio. Minhas filhas enfeitam-se com flores: cá n'estas montanhas o melhor joalheiro é a natureza. Cada primavera é um milhar de cofres de pedrarias preciosas abertos por esses montes e veigas.

—Santa e bella poesia!—disse o visconde—Queria vel-o coherente comsigo mesmo, meu amigo! Se a natureza lhe dá tantas riquezas em flores, porque não ha de querer acceitar das mãos d'ella um genro dotado com quantas virtudes podem adornar o rei da creação?

—Um genro! de quem me falla?—acudiu enleado o fidalgo.

—Fallo-lhe d'um Antonio de Azevedo Barbosa, que sabedor dos infortunios de vossa excellencia...

O visconde reteve a exuberancia do coração, talvez indignado, e doeu-se de levar tão longe seu zelo.

Gastão ia pedir-lhe explicações, quando o visconde, turbado de sua irreflexão, recorreu, ao avisinharem-se duas meninas, a ir ter com ellas, pedindo-lhes flores dos seus canteiros.

Emma e Leonor desceram ao jardim, e o visconde seguiu-as. Carlos Zuzarte passeava n'uma rua abobadada [147] de arvoredo, com Felismina; no tôpo d'esta rua estava Corinna da Soledade corrigindo umas trepadeiras que descahiam da direcção que a sua cultora lhes dera.

O visconde estugou o passo; quando a viu, approximou-se, e disse-lhe:

—A sua felicidade está a chegar. Exulte, minha amiga. São mais alguns mezes: doire-os com a esperança, que é um bem quasi egual á mais querida realidade, quando se tem a certeza.

—A certeza!—exclamou ella.

—Sim, a certeza.

—Ó senhor visconde, meu bom amigo, diz-me uma coisa? Como sabe este brazileiro que eu vou ser feliz?...

—Sabe-o: tem a quasi certeza, e eu tenho a certeza completa. Deus não ha de querer desmentir-nos.

Appareceu Gastão ao fundo da rua, e logo o visconde dirigiu em voz alta perguntas ás meninas que cortavam perto as flores.

Gastão, ao vêl-o perto de Corinna, disse a Mafalda:

—Estes populares são uns pelos outros! Parece que andam conjurados a darem cabo dos titulos e das raças distinctas!

—Porque dizes isso, Gastão?—perguntou Mafalda.

—Porque o digo?! Pois não vês o interesse que este visconde tem em que a nossa Corinna case com o [148] homem de Barcellos! É teima que me ha de fazer chegar a mostarda ao nariz!

Chegaram á curva da rua onde estavam Felismina e Carlos.

Gastão sorriu-se e passou ávante, dizendo a Mafalda:

—Tenho a certeza de que é riquissimo o brazileiro.

—Mas plebeu, não é?

—Não averiguei: ha de ser naturalmente. Mas que pensas tu? Do modo como por cá está isto, o homem, se quizer, é conde ámanhan. Tem cinco navios! cinco navios, Mafalda!... Que te parece? as intenções d'elle serão boas?

—Creio que sim. A pequena sympathisa verdadeiramente com elle. Pareciam dois tolos a brincar á róda do tanque, e assim que o Carlos lhe pede que cante modinhas brasileiras, ella ahi vai logo ao piano, e elle morre por ouvil-a. Quando isto é de quatro dias, que fará se elle se demorar?

—Era uma felicidade, Mafalda! Fortuna de milhões! Então é que diziamos um adeus á aldeia e a estes parvos cá do Minho, que fazem consistir a sua grandeza nobliarchica em terem dois cyprestes á porta, quatro patos reaes n'um tanque, e um lacaio com grandes botas... Ainda tenho esperanças de voltarmos a Paris! Aquillo é que é viver!

—Ai! Paris!—suspirou Mafalda, reclinando a cabeça sobre o hombro do marido—ai! Paris!



[149]

XV.



Decorreram alguns dias de excursões pelo Minho e Lima. O visconde acompanhou o festivo rancho. As meninas iam felizes: a propria Corinna, com as suas esperanças, egualava as irmans em contentamento. A espaços, Zuzarte ou o visconde lhe diziam uma palavra confortadora, de modo que o desconfiado Gastão não désse fé. No que elle muito reparava era nas repetidas conversações dos dois hospedes, que se apartavam da caravana para fallarem com certos visos de mysterio.

—Em quanto a mim—dizia o fidalgo a D.Mafalda—o brazileiro consulta o visconde a respeito de Felismina. Seria bom prevenil-o.

Chegaram a Ponte do Lima. D. Mafalda quiz visitar o carneiro de seu tio Fernão de Athaide. Ajoelharam todos a orar por alma do fidalgo. Carlos Zuzarte com tal devoção o fez, que deu nos olhos de todos.

[150] —Parece que é bom christão!—disse Mafalda a Felismina—Vê tu que o homem tinha lagrimas nos olhos, e veio perguntar-me se eu ajoelhara por formalidade, se por sincero sentimento de respeito ás cinzas de meu tio! Que pergunta!...

Alojaram-se n'um velho palacio das margens do Minho, onde tinham nascido os avoengos de Mafalda: era a casa onde expirara Fernão. As meninas riram muito, e andavam a reboque umas das outras nos vastos salões esburacados. No quarto onde morreu o camarista de D. João VI estava um retrato d'elle, roido de traça e pó, com as feições quasi apagadas. O brazileiro disse a Gastão de Noronha que Fernando d'Athaide havia de apreciar grandemente o mimo d'aquella carunchosa lona. Prometteu Noronha mandar retocar o retrato, e presentear-lh'o.

Nem Mafalda, nem alguma das meninas quiz pernoitar no quarto, onde morrera o tio, e estivera inhabitado desde então. Dormiram n'elle o visconde e o brazileiro.

Dois dias depois proseguiram o passeio desandando para o palacete das margens do Lima. O visconde recolheu-se ao Porto, e Carlos Zuzarte ficou ainda sem designar destino.

Abriu-se o theatro lyrico no Porto. O brazileiro convidou a hospedeira familia a visitarem a galera que elle tinha fundeada no Douro, e a gosarem-se de algumas noites de theatro. As quatro meninas iam endoidecendo de alegria com o convite, e mais ainda com a [151] condescendencia do pae. Corinna entristeceu-se. A felicidade adoçava-lhe a solidão agora mais que nunca. Os sitios onde nos afizemos a scismar e soffrer com a nossa saudade dão-nos a sombra do ausente que choramos sempre que a mágoa lá se vai carpir. Se depois nos afastamos d'aquelles sitios, a saudade já é dupla: parece que os novos logares, onde imos, nos não conhecem, nem sabem porque choramos. A nossa dor dera-nos além um clima nosso; aqui tudo estranhamos, tudo nos parece em dobro apartado. Esta sensação amarga adivinhava Corinna da Soledade, quando pediu a sua mãe licença para ficar com o governo da casa. Gastão deu a licença sem constrangimento; mas Carlos Zuzarte não prescindiu da companhia de Corinna, e de modo lh'o disse a ella, que a menina não hesitou.

Esperava-os no Porto uma casa nobre mobilada com riqueza. Pasmou Gastão das rapidas providencias do seu hospede: este disse que, tencionando residir alguns mezes no Porto, incumbira o seu amigo visconde da decoração da casa.

Pediu o brazileiro a D. Mafalda se convidava as suas relações no Porto para lhe honrarem as salas por occasião d'um baile, que elle queria dar ao visconde da Cruz. Deu-se um baile explendido, como o fidalgo portuguez os dava em Paris.

Concorreram as senhoras de primeira sociedade e formosura.

Carlos Zuzarte afigurou-se a muitas meninas um [152] bom marido; todas, porém, excepto uma, se abstiveram de revelar o seu parecer n'um sorriso ao brazileiro, por verem que eram cinco, e todas bellas, as filhas do fidalgo commensal do ricasso; ora a exceptuada não deu pêso a isso, e distinguiu-se em branduras e cortezias que deram na vista.

Felismina foi quem primeiro as viu. Podera não! O seu amor era verdadeiro, porque disparatou em ciumes. Sahiu das salas, recolheu-se ao seu quarto, e, nem com ordem do pae, sahiu de lá. O brazileiro soube isto, e sorriu-se como a vaidade do coração sorri. Foi elle, em pessoa, pedir a Felismina que voltasse á sala: estava fechada por dentro, e disse pela fechadura da porta que não ia servir de escarneo á sua rival. Carlos sustentou o dialogo á fechadura, foi eloquente quanto se póde ser por um tal systema de embocadura de suspiros, e conseguiu que Felismina promettesse voltar á sala.

O brazileiro levou á evidencia de todos que amava a filha de Gastão, desde que o seu perdoavel orgulho se inflou com os ciumes, acintemente provocados.

No dia immediato jantaram a bordo da galera, que se chamara Aurora, e n'aquelle dia appareceu chrismada em Felismina. Este successo para Gastão de Noronha teve o valor do terceiro proclame lido á missa conventual.

Á noite não sahiram de casa, nem receberam visitas, excepto o visconde da Cruz, e seu irmão Luiz Taveira, que, desde o baile, scismava muito com Leonor, [153] filha de Gastão, a mais mimosa de todas em structura, coisa assim como sonho, sylpho, ou quer que era de imponderavel, que parecia nas walsas uma borboleta de azas iriadas.

Que esperto era aquelle Gastão de Noronha! Deu logo pela ternura dos olhares de Luiz, e de si para si disse: «Mudam os ventos, mudam os tempos!»

Estava, pois, reunida a familia, o dono do palacete, e os dois Taveiras convidados ao desembarque.

Ao retirarem os taboleiros do chá, o brazileiro convidou Felismina a jogar o xadrez, sob condição de ficar sujeita á vontade do vencedor a liberdade do vencido. Felismina annuiu. Todos cercaram os jogadores com anciosa curiosidade.

—Gósto de ver a attenção que nos prestam—disse Zuzarte—porque não é brincadeira isto. Esquecia-me, porém, ouvir o senhor Gastão de Noronha, antes de acceitar a annuencia de sua filha. Vossa excellencia não vem com embargos, se a sorte fôr funesta á senhora D. Felismina?

—Quaes embargos!—exclamou Gastão rindo estrondosamente—E se ella vencer? haverá embargos por parte do cavalheiro Zuzarte?

—Ninguem se importa com o meu destino.

—Quem sabe!...—disse Felismina—Tenho medo....

—Que teme, minha senhora?—perguntou Zuzarte com meiguice.

Felismina sorriu e córou.

[154] Jogaram. Os peões, os delfins, o castello, o rei e rainha do brazileiro, foram todos derrotados e assoprados miseravelmente. Felismina venceu.

—Estou á sua disposição, minha senhora!—disse Zuzarte.

—Está?—acudiu ella com as morenas faces retinctas de escarlate.

—Estou: que determina?

—Que fique sendo o nosso amigo sempre; que não torne para o Brazil.

—Ficarei. Quer-me então como um parente, sim? Irmão, tio, primo... veja lá: qual parentesco lhe quadra mais?

—Seja primo—disse Felismina.

—Pois, sim, seja primo—disseram todas as meninas.

—Pois então venham dar todas um abraço em seu primo—tornou o brazileiro erguendo-se—O primeiro abraço ha de ser o de minha prima Mafalda, sobrinha de meu pae Fernão de Athaide.

Houve um spasmo em todas as senhoras, que pareciam, ao encarar-se mutuamente, perguntarem umas ás outras se tinham entendido o dizer do brazileiro.

—Então, prima Mafalda!—tornou Fernando de Athaide—se não acceita o parentesco que sua filha nos dá, acceite o que nos deu a natureza. Aqui tem o mau, o perseguidor, o implacavel Fernando de Athaide! Vingue-se agora, dando-lhe um abraço de abafar-lhe o ruim coração que trasborda de felicidade!

[155] Mafalda correu aos braços de Fernando; Corinna, Emma, Felismina, Elisa, Leonor, todas a um tempo, pareciam contentar-se com apertar-lhe os braços. O proprio Gastão abrindo os seus queria abraçar o grupo d'um amplexo.

Fernando de Athaide, beijado e abraçado por todas, sentou-se extenuado, e murmurou:

—Devo esta felicidade a Corinna. Dê-me um outro abraço, minha prima Corinna: a si devo o que sou agora; a si é que toda esta familia deve a felicidade que eu posso dar-lhe.

—A mim?!—disse Corinna.

—Como assim, primo Fernando?—acudiu Mafalda—a gente não sabe como é que Corinna deu causa a isto!...

—Eu lhe digo, prima: se Antonio d'Azevedo não tivesse amado Corinna, nunca o eu conheceria no Rio de Janeiro; e, se eu não viesse a encontrar o amigo, o anjo, o honrado amante de Corinna, creia vossa excellencia que seria hoje o perseguidor d'estas pobres meninas. Foi elle quem me ensinou, com duas palavras, como o Christo as dizia aos maus, a ser bom, compassivo e misericordioso. Vi-lhe lagrimas mal abafadas no coração; e quiz Deus que ellas me cahissem no meu. D'ellas se gerou a felicidade de todos nós, de todos, menos a d'elle... Adiante... Elle está debaixo da mão de Deus... A sua hora de premio ha de tambem chegar... Meu primo Gastão, eu perdi o jogo com minha prima: perdi o direito de me revoltar contra as [156] suas decisões; mas, ainda assim, o coração põe embargos, e vossa excellencia será o juiz, e minha prima Mafalda tambem. Eu peço-lhe para minha esposa sua filha Felismina: antes quero ser irmão que primo d'estas meninas; hei de sentir alguma vez o prazer de chamar a vossa excellencia pae. Dá-me sua filha?

—Com orgulho, com soberba, como a não daria ao primeiro sangue de Portugal!—exclamou Gastão, conduzindo Felismina aos braços de Fernando.

O visconde da Cruz felicitou Gastão, e discorreu com enthusiasmo sobre o pathetico lance, a respeito do qual tambem eu faria aqui de vontade um discurso, se o leitor quizesse medir sua paciencia com o meu fôlego oratorio. A chave de oiro com que o visconde fechou a parlanda foi apresentar todas as licenças necessarias para os noivos se receberem na egreja parochial de Cedofeita, com dispensa de proclames e attestados canonicos do imperio do Brazil. Isto deu realces de alegria á sobre-excitação em que todos estavam. Mafalda queria manter-se em sua gravidade dos quarenta annos; mas parecia irman de suas filhas. Gastão andava a querer levantar toda a gente nos braços, e, a fallar a verdade, não só levantava, mas apertava as costellas franzinas do noivo com todo o amor dos seus musculos d'aço, musculos que desmentiam a fidalga placidez, que é condição das finas raças. N'estas idas e voltas, Luiz Taveira não perdia Leonor de olho, e a espiritual menina, com quanto mui angelica, d'esta vez dava semelhanças d'aquelles anjos despenhados por crime [157] de inveja. O deliquio com que ella o fitava parecia dizer: «A mim não se me dava de me parecer com os mortaes n'estas alegrias da mana Felismina!» A pachorrenta Emma é que se movia menos n'aquella geral vertigem. Sentou-se a conversar com o visconde, e teve o descôco de dizer que já se não podia ter em pé, e que estava saudosa das suas almofadas de relva nas margens do Lima.

Seguiu-se, dias depois, o casamento. Não foi fallado, nem estrondoso. Até os jornaes o ignoraram, ou, se o souberam, vingaram-se da sovinice dos noivos, deferindo para mais galhardas bodas as quatro phrazes ramalhudas do costume.

Ao jantar concorreram unicamente o visconde, seu irmão, e o velho pae dos Taveiras, ancião de muita gravidade e respeito, um dos velhos modelos do commerciante portuense, coberto de honradas cans, com muita consciencia em logar de sciencia, e poucas palavras, mas pesadas a oiro, e authorisadas como se fossem maximas que encerrassem a experiencia d'uma longa vida.

Terminado o jantar, apagado o afôgo dos brindes, e travada serena pratica ácerca dos verdadeiros bens da vida, Bernardo Taveira fallou assim:

—Eu, se tivesse uma filha, havia de procurar-lhe marido dotado com os verdadeiros bens da vida: que vem a ser saude, honra, trabalho e religião; religião bastaria dizer, porque ella encerra tudo. No meu tempo achavam-se moços bons, que não tinham outro dote; [158] e o homem que acertava com um, dava-se por feliz, se tinha filha a casar, ou grandes cabedaes a administrar. Eu não sei se ha muitos d'estes moços n'estes ruins tempos; o que de véras sei é que os poucos que ha, batem ás portas dos ricos, e estes não lh'as abrem, sem que elles mandem adiante a certeza de que o seu honrado trabalho está já em bom fructo de acções bancarias; e, se elles mostram o fructo, sem dar ideia da arvore boa ou má que os deu, isso tambem não importa... Senhor Gastão de Noronha, eu hospedei em minha casa um moço chamado Antonio d'Azevedo Barbosa. Era pobre, e sem occupação. Tinha a sua formatura, a sua habilidade; mas, apesar de amigos protectores, não tinha que fazer. Muitas vezes eu disse em mim: «Se eu tivesse uma filha, dava-a a este moço pobre.» O meu hospede teve razões para sahir de Portugal e ir ao Brazil: dei-lhe lá as relações dos meus amigos, e a alguns disse eu que o recebessem como receberiam meu filho. Ia recommendado por sua honra: foi o que mais lhe valeu lá. Azevedo principiou a trabalhar e logo a ser conhecido como lettrado. Advoga, e ha de ser rico; e, se não fôr rico, ha de ser sempre mais do que isso: ha de ser um thesouro de virtudes. Peza-me realmente não ter uma filha; mas quando vejo que vossa excellencia tem quatro solteiras, não resisto á vontade de lhe pedir uma em nome de Antonio de Azevedo.

Gastão de Noronha ficou estupefacto. Fernando de Athaide avisinhou-se d'elle, e disse-lhe:

[159] —O homem veneravel que lhe falla, tem inspiração do ceo, meu primo. Acceite a felicidade da nossa Corinna.

—Demora-se a responder, senhor Gastão!—disse o velho com ar triste—Eu não queria que os rogos dos moços valessem mais com vossa excellencia, que as minhas singelas palavras. Se alguem aqui pedir mais do que eu, ha de ser a noiva. Senhora D. Corinna, venha comigo: ha de ajoelhar aos pés de seu pae.

Ergueu-se o tremulo ancião, e tomou a mão de Corinna, que era toda purpura e lagrimas.

Gastão, sem balbuciar um monosyllabo, fez signal affirmativo, recebeu a filha nos braços, e osculou-a na testa.

—Bravo!—exclamou o brazileiro, apertando convulsamente ao peito o velho Taveira. A esposada e as outras meninas, salvo Emma, foram beijar soffregamente a irman; Emma, porém, lá da sua cadeira de espaldas, disse lentamente:

—Ó Corinna, vem cá abraçar-me, que eu não posso bolir comigo de cansada!

Este milagre de inercia fez rir a todos, e desfranziu o semblante de Gastão. Voltaram á mesa do toast a brindar Antonio de Azevedo. O fidalgo concordou sem repugnancia nas saudes propostas, e agradeceu a ultima do negociante, em nome de sua filha, futura esposa de Antonio d'Azevedo.

Quando Gastão proferiu estas palavras com enthusiasmo, [160] Corinna da Soledade descahiu sobre o hombro de sua mãe, e desmaiou. Era um deliquio de felicidade, um arrobamento de bemaventurança como as santas os sentem em seus extasis de amor divino.



[161]

XVI.



Antonio de Azevedo recebeu, ao mesmo tempo, tres cartas, afinadas todas pelo mesmo tom de felicidade.

Abriu primeiro a de Corinna da Soledade: era uma surpreza desde o principio. Noticiava o casamento de Felismina com Fernando de Athaide, e os miudos successos decorridos até ás palavras proferidas por seu pae na occasião do brinde.

A ultima pagina continha o seguinte:

«Ainda estamos do Porto; mas brevemente vamos para Lisboa. O primo Fernando quer que te esperemos lá, onde se hão de realisar os nossos sonhos, mais cedo do que eu e tu suppúnhamos, ó meu querido Antonio! Vem, vem no primeiro navio que sahir Ás vezes receio morrer antes da tua chegada. Temo que me acordem d'este sonho. As pessoas infelizes [162] não podem familiarisar-se com a ideia de já o não serem! Imaginas tu que terrores me atormentam, agora, que tão ditosa me sinto, e tão grata levanto as mãos ao Senhor! Lembra-me que já podes amar-me com menos ardor; lembra-me que estás embevecido na ambição das riquezas... Ó meu amigo, até me lembra se terás morrido! Vê tu se ha mais cruel imaginação! Nem agora me deixa o mau destino! Parece que se está assim vingando por não poder aniquilar-me! Acode aos meus receios, vem sem demora, sim? Fernando é um anjo de bondade; sobra-lhe riqueza para dar abundancia e alegria a muita gente. Não será vergonha recebermos tudo de sua mão. Que lhe diria o visconde a teu respeito, que elle ficou pensativo?! Perguntei-lhe o que tinha, e respondeu-me que o teu caracter, por demasia de austeridade, talvez se não dobrasse á vontade d'elle. Comprehendo estas palavras: suspeitam que tu recusarás favores de posição, devida a influencia estranha. É porque não sabem quanto me amas, meu querido amigo! Eu disse a meu primo que ficava pela tua docilidade: não me deixes ficar mal, não?
»


A carta de Fernando de Athaide rezava assim:

«O meu amigo espera que eu de Londres lhe escreva, explicando a surpreza de uma procuração que lhe deixei, a fim de tomar conta na direcção dos meus haveres ahi, no caso de eu me demorar na Europa. Escrevo-lhe de Portugal, onde estou casado [163] com minha prima Felismina. Ja vê que me compuz com Gastão de Noronha o mais amigavelmente que vossa senhoria podia desejar. Antonio de Azevedo com duas palavras decidiu do meu destino; e, se não me engano, abriu uma época de muita ventura para esta familia, que é hoje a minha, e que deve ser a sua tão brevemente, quanto depende da sua vinda para Portugal.

«Eu não lhe peço, apenas lhe digo que venha. Se necessario fosse pedir, Corinna e eu duvidariamos do seu amor. Bem sei que ha uma certa dignidade humana, que tem a ferrea inflexibilidade dos corações duros. Essa, Deus permittirá que não seja a sua: se o fosse, a minha gloria seria imperfeita, e essa nuvem bastaria a toldar esta festiva luz que me alegra a alma.

«Não discutamos tal ponto. Venha, meu irmão. Os meus negocios deixe-os entregues ao senhor Valentim da Costa, a quem escrevo.

«Minha mulher offerece uma prenda de noivado a sua futura esposa: quiz, porém, (caprichos feminis!) que vossa senhoria fosse o portador da prenda, que ahi lhe ha de ser dada.

«Na proxima semana partimos para Lisboa. Na sua chegada alli encontrar-me-ha logo.

«Corinna tem as tristezas da duvida. Venha dar-lhe a ventura que a mais ridente esperança não póde dar-lhe
»


A carta do visconde da Cruz incluia a ordem devolvida [164] dos seis contos de reis, e a historia minudenciosa que Antonio lêra na carta de Corinna. Como avaliador profundo do caracter do seu amigo, o visconde combatia de antemão os argumentos de independencia com que esperava ser contrariado; rematava, porém, a carta censurando-se a si proprio por ter julgado tão frio amante o homem que, por amor d'um anjo, se expatriara alanceado de desgostos......

Entendam lá o coração humano!

Antonio de Azevedo lêra as tres cartas surprendido, mas não alegre! Que nuvem negra lhe cobria o quadro bello a que o chamavam as tres cartas! Que presagio d'alma lhe antepunha ás delicias convidativas da patria uma visão triste em que elle parecia cravar os olhos espavoridos!

Valentim da Costa, que raro sahia de casa, entrou n'este momento.

—A alegria dá forças!—exclamou elle—aqui está o velho a dar os emboras ao mancebo, que foi mais cedo compensado do que ordinariamente costumam sêl-o os bons!... Que é isso?! vossê está triste, Antonio?! As suas cartas que lhe dizem?

—Que Fernando de Athaide casara com uma de suas primas.

—E que mais?... Não é chamado para ir casar com a sua Corinna?

—Sou.

—E então? vossê não está ainda louco de alegria? Não cuida em preparar-se para a ida?

[165] —Não, senhor; cuido em ganhar a minha independencia. Corinna é a filha de Gastão de Noronha, e eu sou quem era, quando sahi de Portugal. Estou pobre como vim. A patria para mim é meramente a terra onde nasci; não é independencia. Quando aqui vim, foi a legitima vaidade de homem pundonoroso que me aconselhou; o pundonor aconselha-me agora que não vá acceitar de mãos estranhas a subsistencia de minha mulher e de meus filhos. A maior alma é sempre insignificante ao pé da pequenissima alma em cuja dependencia está. Eu não quero dizer a Corinna que lisonjeie seu cunhado pelos favores que lhe devemos. Ser-me-ia um permanente infortunio recebel-os de Gastão ou Fernando. Sou homem: devo-me a mim proprio. E os homens que não podem viver com muito, vão ás inferiores escaleiras sociaes procurar a mulher que quadra á sua mediania, e não devem pensar que o amor os desculpa de irem ás altas classes convidar uma senhora a descer onde elles estão. Não caso pobre com Corinna, e tambem não a faço quinhoeira da minha dependencia. Quando eu tiver ganhado pollegada a pollegada o torrão que me sustente na patria, então irei. Agora, meu bom amigo, vou dar-lhe conta da minha amargura, que é mais que tristeza. Corinna, ao receber esta resposta, dirá que eu a não amo. Fernando dirá que sou indigno d'ella. O fidalgo arrancará do orgulho ferido injurias contra o meu plebeismo. As irmans hão de dizer-lhe que eu a sacrifico á bruteza das minhas ambições. A final só terei por mim a minha [166] consciencia pura, se é que me não ha de pungir a mágoa de ser assim organisado. Aqui tem, senhor Valentim, que a minha estrella é má!

—Má!?—exclamou o velho—É uma estrella de santificação a sua, meu Azevedo! Sabe o que eu podia fazer? era argumentar comsigo, e leval-o a convencer-se de que a dependencia só é vergonhosa quando o dependente abdica de sua dignidade á força de fazer-se inutil; dir-lhe-ia que vossê com o seu trabalho de jurisconsulto, embora mal remunerado, havia de adquirir na patria o torrão mais que abundante á sua subsistencia, e que sua senhora e seus filhos viveriam todos felizes á sombra da mesma arvore; mas...

Antonio de Azevedo interrompeu:

—Os seus argumentos não me moveriam: perdôe á minha rebeldia, meu caro amigo. A mediocridade, e ainda mesmo a pobreza, podem parecer delicias á mulher que ama contrariada por obstaculos de nascimento ou de fortuna: o amor faz milagres taes, desfigurando tudo o que está feito e refeito pelos seculos, e pelo consenso universal. Quando, porém, o amor cede ao tempo, á intimidade, aos mais serios deveres da maternidade, e aos preceitos e preconceitos inexoraveis da sociedade—que acham sempre traça de se insinuarem mesmo através do colmado do trabalhador de enxada—a mãe, que se vê pobre, é já mulher muito diversa da noiva que almejava a pobreza do homem amado. As flores da poesia fructificaram já em filhos que pedem alimento, educação e futuro. As amigas de infancia, [167] que pareceram baixas almas por se terem victimado voluntariamente ao oiro d'um velho e aos epigrammas da mocidade, lá estão ricas, respeitadas e vaidosas de seus filhos; e com quanto já não conheçam a amiga pobre que se deu de coração ao coração, culpam-na e condemnam-na do alto da sua severa abundancia. Ora a mulher, na posição de Corinna, quando se vê pobre, dois annos depois de casada, e vê ricas suas irmans, lembra ao marido que peça o amparo d'ellas; e se esse marido é Antonio de Azevedo, a verdadeira desgraça domestica principia para ambos desde esse momento. Aqui tem o que sou e o que penso. Julgue-me e condemne-me o mundo como puder e quizer. O meu pensamento era salvar a dignidade de Gastão sem lhe dar riqueza, por me ser impossivel adquiril-a; depois eu levaria o meu pouco á familia que vivia de pouco, e seriamos felizes todos. Não póde já ser assim. Estão ricos, ou vivem á sombra do homem rico. Não serei eu quem vá pedir um logar entre pessoas que se haviam de acotovellar com o plebeu. Que levaria eu que me recommendasse? Se eu fosse nobre, daria como merito a minha inutil e inerte nobreza; assim, filho do povo e pobre, todos, menos a generosa Corinna, a seu tempo perguntariam uns aos outros: «De que serve este homem?» Ora um homem sabe pontualmente quando os outros perguntam o para que elle serve... Em summa, cá estou no começo da minha tarefa: Deus dá-me este pensar para que eu o leve a cabo. Outra cousa, meu amigo. O visconde da Cruz devolve-me a lettra dos [168] seis contos: aqui a tem vossa senhoria para rehaver os quatro que benignamente me emprestou. Beijo-lhe segunda vez as mãos.

Valentim ia replicar com razões de muita força, que lhe suggeriu o talvez injusto juizo que Azevedo expendera a respeito das mulheres devotadas á pobreza dos maridos, quando o bacharel foi procurado por um negociante.

Disse o negociante que recebera ordem de entregar trinta contos de reis fracos a Antonio d'Azevedo, por mandado de Fernando de Athaide, accrescentando que era tal quantia a prenda de noivado que a senhora D. Felismina offerecia a sua irman.

O bacharel disse ao negociante que conservasse em sua mão a quantia, até lhe ser pedida.

Sahiu o depositario dos trinta contos, e o doutor exaltou a bizarria de Fernando de Athaide, aconselhando Antonio d'Azevedo a não dar á sua dignidade umas parecenças de soberba.

—É o dote de Corinna, que seu primo lhe dá—disse Azevedo—Quando eu tiver egual quantia, não me pejarei de ir levantar o deposito. Em verdade, é grande a alma de Fernando, e por isso mesmo se faz digno de lidar com almas eguaes á sua.

O velho sahiu captivo do moço; mais extremoso que captivo; sentia-se amar como pae; ser-lhe-ia doloroso apartar-se d'elle desde aquella hora. No termo da vida, longa vida em contacto com as pustulas sociaes, aquella paragem, áquem da eternidade, era-lhe uma [169] como prelibação das alegrias dos justos. Pensava o ancião em dar um adeus á existencia, contente d'ella, e de si: parecia-lhe que as palavras do consolador lhe suavisariam o trance. Era já egoista da amizade do seu Azevedo: disputal-o-ia á mesma Corinna, se o visse em preparativos de viagem.

—Se eu pudesse dar-lhe desde já a independencia!—dizia entre si o velho—Oh! se podia!... Mas, a dar-lh'a, eil-o ahi está dependente de mim, e a rejeitar-m'a, e a fugir-me as instancias, e a ser menos meu amigo! É preciso respeital-o muito para o prender á minha affeição.

Aqui está a resposta de Antonio d'Azevedo a Corinna:

«Folgo com as venturas de teu pae, e louvo a Deus por me ter dado uma casual influencia no melhor remedio de seus males. Tudo me faz crer que tendes em Fernando um bom irmão. Dá um abraço, por mim, na tua Felismina, e agradece-lhe o valioso deposito que confiou de mim. Em vez das joias, que vale este dinheiro, pedir-te-ia, minha Corinna, se estivesses no Lima, que te adornasses de flores; mas, como vives em Lisboa, os enfeites das flores valem nada ahi, porque o clima as requeima logo. Esse sol quer reverberar nas facetas dos brilhantes, senão ninguem dá por elle.

«Não tens amor aos teus campos e ao teu rio? Ó minha amiga, ainda me doem saudades das minhas arvores, ainda peço a minhas irmans que m'as guardem [170] e cultivem com amor! Não me culpes, se a minha saudade ainda vai por esse formoso Portugal fóra, para além do ponto onde estás, em busca d'outros amores. Amores são, que eram já muito em minha alma, antes que tu m'a reformasses para olhar a futuros. Tinha de meu, quando te vi, um passado de innocentes alegrias. A idade, cortada de penas, pôde tudo, menos despojar-me do que lá está, e está para sempre, nas relvas, nas arvores, nas serras, e no meu Cávado! Vê tu como a criança ainda se gosa das lagrimas do homem!

«Que estou eu a devanear, se tu já tens pressa de saber porque vai esta carta, e não vou eu!

«Não vou, Corinna, porque é cedo para ser feliz. O puro e duradouro contentamento custa a merecer, e leva tempo. As alegrias improvisadas vão como vem. Sobre que bases assentam as nossas convenções de coração, minha amiga? Voltar eu a Portugal com o necessario para a decencia da posição em que te conheci. Se eu fosse, faltava-te: tu perdoavas-m'o; eu é que não podia perdoal-o a mim proprio. A decencia da tua posição não a tenho ainda. Sei que anjo és, que doce conformidade seria a tua: mas o mau, o intractavel, e irreconciliavel com os tremendos nadas da vida positiva, sou eu. Venho da desgraça, e conheço-a: as minhas relações em Lisboa foram os desgraçados, e estudei-os. Deus confiou-te de mim como d'um encaminhador e guarda. É forçoso dizer-te que o bom rosto da fortuna só [171] está sorrindo aos teus olhos, porque és innocente. Se comigo não tem sido boa, tambem já se abstem de querer enganar-me. A nossa riqueza, Corinna, é a esperança: esta, juro-te eu, que vale mais que os milhões de tua irman. Felismina tem tudo que desejava: Deus sabe o que ella agora deseja!...

«O que tu queres de mim não é muito amor, e uma casinha além no nosso Minho, e as serenas alegrias, promettedoras d'um fim de vida socegada? Lá me tens o coração, e eu cá o espirito a grangear o mais. Não o tenho ainda: poucos annos bastarão a esta opulencia, que tão pouco vale aqui e lá. Então, sim, então verás que vai aqui n'este peito a ufania d'um principe, o santo orgulho d'um operario, que não inveja principes. Hei de ir procurar-te, não aos bailes de Lisboa, mas sim aos arvoredos do Lima. De lá irás comigo, sem atravessares pompas de cidades, nem magnificencias onde te fique prêso um desejo. Lá temos ainda á margem do meu rio a casa de meus paes: que pobre e formosa vivenda! Augmental-a-hemos para vivermos todos: plantarás novas arvores, e irás tomar o teu quinhão das flores de nossas irmans. As tuas arvores virão a tempo com suas sombras para nossos filhos; e estes, creados nas asperezas dos montados, e nas asperezas da religião, ir-se-hão fazendo e formando entre as duas sublimes e unicas poesias: a da fé e a da natureza.

«A vida, que me tu pedes, é mui diversa, Corinna. Teu cunhado é um grande em Portugal, quando [172] o quizer ser. Teu pae e tua mãe anhelam muita luz para serem vistos, e embriagam-se nos perfumes da lisonja. Esse ar a mim empeçonhava-me a vida, e não sei se o coração. Ahi amava-te menos, porque perderia o amor de mim proprio, o amor que me extrema do vulgo, o illustre vulgo, que é o derradeiro plebeismo, sem individualidade, sem classe, sem mais religião que a das sensações.

«Corinna, não te aviltes em te julgares menos amada. Adoro-te respeitosamente; porque sei que rejeitas o sacrificio da minha dignidade.

«Estamos no ponto onde ha quatro mezes estavamos: a mulher corajosa espera; e o homem, nobilitado por teu amor, quer ennobrecer-se para a tua mão. Nada mudou, salvo a posição de tua familia. Mas que temos nós que entender com a riqueza de Fernando de Athaide? A riqueza é d'elle. A mim era-me egual depender de teu cunhado, ou do visconde da Cruz, ou do primeiro encontradiço que me offerecesse um obulo. Quando sahi de Portugal, Felisberto Taveira emprestava-me alguns contos de reis para eu me estabelecer e casar comtigo. Se então rejeitei um emprestimo sem desaire, como hei de ir hoje acceitar uma delicada esmola d'um sugeito que escassamente conheço?

«Isto será amar-me demasiadamente a mim; e não é menos amar a mulher que está identificada em minha vida e honra.

«Adeus, Corinna. A tua alma ha de conservar-se [173] immaculada ahi em Lisboa, como lá na solidão das nossas terras. Se o mundo te não respeitar, tu saberás respeitar-te a ti mesma. Ahi e em toda a parte encontrarei sempre a minha Corinna, cuja animadora imagem eu vejo em tudo que é adoravel e santo. Adeus.»



[174]

XVII.



As cartas de Antonio de Azevedo a Corinna e Fernando produziram o que elle até certo ponto vaticinara, fallando com Valentim.

Corinna duvidou do amor, que se desafogava em dissertações mysticas, e bucolicas saudades d'arvores e de rios.

As irmans de Corinna, com o louvavel intento de a consolarem, abundavam no parecer d'ella.

Fernando de Athaide dizia a sua mulher que não podia caber amor em coração tão cheio de orgulho.

D. Mafalda dizia ao marido que era moda a gente baixa fingir philaucia de fidalgos.

Gastão, acidulado pelo dito da esposa, deu para baixo na peonagem, e declarou que sempre esperava que sua filha levasse uma boa lição.

Acontecera estar n'este ensejo em Lisboa, e hospede [175] de Fernando, o visconde da Cruz e seu irmão Luiz. A declamação do fidalgo ferira acremente a dedicada alma do visconde. Tambem este havia de ter uma carta explicativa do proceder de Antonio d'Azevedo: esperava-a do Porto, e, sem a ter lido, não queria arvorar-se defensor do ausente. Tanto, porém, subiu Gastão em sarcasmos contra o homem de Barcellos, que o visconde ergueu-se irado, e exclamou:

—Senhor Gastão de Noronha! o homem de Barcellos, quando vossa excellencia estava em risco de extrema pobreza...

Corinna correu contra o visconde, e poz-lhe a mão na boca, supplicando silencio. A prevista menina sabia que duro vexame o pae ia soffrer com tal revelação. Calou-se o visconde, e o fidalgo insistiu na continuação da phrase, com tregeitos iracundos. O visconde ia pegar do chapeo, quando Emma lhe disse:

—Não saia assim irritado, visconde. Sou eu que lh'o rogo.

Parece que Emma podia muito no animo do visconde.

Fernando travou do braço do cavalheiro, e passou á sala immediata.

—Vossê—disse elle—ha de dizer-me o resto da phrase. Que fez Antonio d'Azevedo, quando meu primo estava em risco de extrema pobreza?

—Mandou-me seis contos de reis para —Mandou-me seis contos de reis para eu lhe valer, sem declarar a seu primo que os mandava elle. No mesmo paquete em que recebi tal ordem, veio vossê. [176] Logo que me revelou quem era e o intento com que vinha, entendi que a posição de seu primo estava mudada. Ainda assim, fui a Vianna, e offereci dinheiro a Gastão. Como não precisava, devolvi a ordem a Antonio d'Azevedo.

—Bem—disse Fernando—é forçoso o segredo?

—É. Corinna valeu-me n'um impeto de cólera; agora confio de vossê que a minha palavra, dada ao Azevedo, se não quebrante.

—Confia bem, visconde. Que admiraveis virtudes as d'este moço! Sabe vossê que um homem, conhecedor de taes exemplos de honra, nunca está bem com a sua consciencia!? Eu não sei o que já hei de fazer a favor de Antonio d'Azevedo!... Aqui me diz o meu correspondente que elle deixou ficar o dinheiro em deposito até nova ordem. Está claro que o não acceita...

—Clarissimo. Se elle não vem, como iria levantar a prenda da noiva?!—disse o visconde.

—Que se ha de fazer, meu amigo?

—Não sei: é esperar que elle tenha o que julga necessario á sua independencia.

—Vou dar um passo decisivo!—tornou Fernando, depois de breve meditação.

—Qual?

—Vossê verá. Vamos á sala. Receio que meu primo diga alguma grosseria a Corinna.

Quando entraram, a pobre menina estava chorando, e Felismina, lançando-lhe os braços sobre os hombros, segredava-lhe consolações.

[177] Fernando approximou-se de ambos, e disse a Corinna:

—Está tudo remediado. É questão de alguns dias.

E, voltado a Gastão, disse jovialmente:

—Olé, primo! o incidente passou: torna tudo ao seu curso regular. Aqui não se falla bem nem mal de Antonio d'Azevedo. Defendel-o seria ultrajal-o. Accusal-o seria um vilipendio. Ninguem ficou mais nem menos do que era.

Na noite d'esse dia estava Corinna no seu quarto com Felismina, quando entrou Gastão de affavel semblante. Sentou-se entre ambas, e disse com mellica entoação:

—Tu és minha filha, és o meu sangue, tens pundonor de raça, e deves estar curada, Corinna. Ha muito quem te pretenda; e teu cunhado deixa-te a administração dos vinculos para tu poderes escolher marido. Tens tres bons partidos a escolher. O morgado de Villar da Rocha está aqui em Lisboa, viu-te, e perguntou-me se não estavas promettida. Um filho segundo do marquez de Travassos, familia mais antiga que a Lusitania, fez-me egual pergunta. O barão da Teixeira, vindo ha pouco da Bahia, com mais de quinhentos contos, fallou em ti ao Fernando. Escolhe.

—Não escolho ninguem—disse resolutamente Corinna—O que eu escolhia era a morte.

—Antes isso que a vergonha da familia!—replicou o pae.

—Que vergonhas dá ella á familia?—perguntou [178] Felismina com os geitos especiaes de quem tem dois milhões.

Gastão involuntariamente respeitou a interpellação da filha millionaria. A bem dizer, a pergunta era irrespondivel.

D'ahi a pouco estava febril Corinna, e as ancias e soluços tão frequentes a opprimiram, que a familia houve medo d'algum accesso de loucura.

Fernando de Athaide, conscio da brevidade do insulto nervoso, disse ao primo:

—Não volte a injuriar a pobre menina, que a mata a ella, e perde a minha estima. Eu hei de necessariamente fazel-a feliz. Se o não conseguir, maldigo a hora em que a conheci.

Dias depois, Corinna sahira do seu quarto, pallida, desolhada e triste. O sangue mal lhe acudia ao pulso. As palavras sahiam á força de caricias. Era preciso fazel-a chorar para que as lastimas subissem do coração aos labios. Fallavam-lhe em Antonio de Azevedo, e as faces retingiam-se-lhe; mostravam-lhe o anjo da esperança a voejar para ella, e o sorriso volitava-lhe em toda a face até se confundir com as lagrimas de jubilo. Mas este mesmo jubilo era um accesso de febre. Os medicos tinham-se enganado: aquelle quebranto de forças e feições eram prenuncios de morte. A gente experimentada facilmente diagnostíca estas insaneaveis doenças: os medicos é que, do cocuruto da sciencia, o que ordinariamente palpam n'estes symptomas é uma doença que entende com o estomago ou com o figado. [179] De coração só conhecem lezões, turgecencias, hypertrophias, aneurismas, &c. Tem assim, e por conta da sciencia, morrido muita gente, que se curava com um raio de alegria e um pouco de compaixão do mundo.

Fernando encerrou-se com Gastão, e disse-lhe:

—Vou liquidar a minha casa ao Rio de Janeiro. Mandei crenar a galera. Parto na proxima semana. Minha mulher vai comigo; e Corinna irá tambem, se o primo a ama e me estima a mim. Se ficar, morre; e se morrer, Felismina não quer voltar a Portugal.

—Vai procurar o noivo minha filha?—disse Gastão ironicamente.

—Vai procurar a vida; e se Antonio d'Azevedo lh'a dér, bem haja o salvador da nossa Corinna!

—Pois que vá: nós partiremos para o Minho.

—Pedia-lhes que ficassem em Lisboa, e não alterassem os costumes de minha casa. Tenho relações que desejo conservar. Meu primo honrará os nossos amigos, recebendo-os. Em seu poder fica a porção da fortuna que tenho em Portugal. A sua estima por mim ha de chegar ao sacrificio de esperar em Lisboa a nossa volta do Brazil.

Não se fez rogar o fidalgo. Sujeitou-se plenamente á vontade do genro.

Recebeu Corinna da Soledade a nova da viagem. Alvoroçou-se até recahir na febre; mas a crise foi leve, e rapida a convalescença.

A galera de Fernando, construida em Inglaterra, era garbosa, linda e leveira como um cysne. A tolda [180] era um camaranchel de sedas, como o das antigas gondolas de Veneza. O chrisma para «Felismina» fadou-lhe mais ricos destinos. O amor lhe inventara os adornos, os perfumes, as graças e garridices que só o amor desentranha de suas fantasias. A sala de ré era uma ante-camara de sultana. Ia por esses mares fóra aquella concha de perolas, namorada das auras que ciciavam no velame, imitando as branduras de suas irmans derramadas pelas moitas dos gestaes. Que vontade fazia aquella gentil galera de ir ter um mundo na vastidão do oceano, e não vêr mais que ella e ceo, e um ente amado, debaixo das estrellas a espelharem-se nos paramos azues das aguas! Como alli o coração, golpeado na terra, se iria contente, se cá d'estes abysmos levasse ainda a salvo o condão da poesia que faz sahir mundos sobre mundos dos abysmos do mar!

A galharda galera, como ovante da gentil alma que levava, sahiu barra fóra com todo o panno e prospera monção. A festival menina, por esses mares fóra, sobre a tolda, a scismar, com os olhos lá no infinito horisonte, d'onde a chamava o esposo, e os favonios a enfunarem-lhe as roupas alvissimas... que linda ia! julgareis ver a pomba sobre a arca fluctuante nas aguas já serenas do diluvio!

Ao vigesimo nono dia de viagem avistaram pharoes das terras de Santa Cruz.

Corinna, ao repontar da alva, subiu ao tombadilho, e viu a cidade d'oiro, a rainha do novo mundo, espreguiçando-se do ultimo somno entre os ceruleos [181] coxins do seu immenso leito com pavilhão de mil flammulas e bandeiras. Parecia-lhe ver caminhar a terra, mar dentro, a recebel-a; mas tardio era o avançar da galera a encontral-a.

—D'aqui a meia hora?—disse ella a Fernando.

—Sim, d'aqui a meia hora, minha egoista!—respondeu o primo, e continuou sorrindo—D'aqui a meia hora já não tens patria, nem irman, nem cunhado! O Antoninho, que, a estas horas está escrevendo uns provarás, com o supremo tedio de que é susceptivel a creatura humana, vai receber um golpe d'alegria mortal!... Haverá no genero humano um segundo homem a ponto de experimentar prazer egual?! É impossivel que elle te não adivinhe, mana Corinna! salvo se o coração de um jurisconsulto é tapado a toda a casta de inspiração divina!




A este tempo, chegava Antonio d'Azevedo Barbosa, ao caes.

Adivinhou, com effeito?—pergunta o leitor.

Nem sombra de presentimento, meu amigo! O que trazia ao caes, e a bordo de um navio, Antonio d'Azevedo, é successo infausto que tem uma historia concisa, mas necessaria.

Um dos irmãos do bacharel, Francisco d'Azevedo, era caixeiro, em Lisboa, n'uma casa de cambio da rua dos Capellistas. Merecera um bom nome, e cahira em tentação depois de o ter merecido. As desordens da vida, as demasias de luxo, a ancia de mostrar-se rico [182] aos olhos d'uma mulher que distinguia os moços ricos, induziram-no a subtrahir, com intenção de os repor, capitaes, que excediam os seus ordenados de dois annos. Francisco jogou na esperança de resgatar-se, e cavou mais no abysmo de sua perdição. Quasi a ponto de ser descoberto, quando o patrão dava o balanço, o caixeiro desappareceu, e fugiu caminho do Brazil, confiado na reforma de seus costumes, e na possibilidade de ganhar depressa com que restituir o furto.

Chegou ao Rio, e procurou o irmão. Deu explicações inventadas da sua ida, e conseguiu logo, mediante Antonio d'Azevedo, boa casa, bom ordenado e muita estimação dos patrões.

O bacharel estava contente do expediente de seu irmão. Lembrava-se que assim mais cedo as irmans teriam bom amparo.

Lia, passados trinta dias, Antonio d'Azevedo o Commercio do Rio de Janeiro, e casualmente parou os olhos sobre esta correspondencia, intitulada: Cautela com os ladrões.

E seguia d'este theor:

«Fugiu de Lisboa, com direcção ao Brazil, um caixeiro do cambista F***. Chama-se Francisco de Azevedo, natural de Barcellos. Desfalcou o patrão em dois contos de reis. Para que o ladrão não logre o bom resultado das suas manhas, avisa-se o commercio do Brazil.»

Antonio d'Azevedo viu entre si e o jornal um redemoinho de scintillas de lume, e, ao levar as mãos[183]aos olhos, tinha perdido os sentidos. Este lance passára-se no escriptorio de Valentim da Costa.

Entrara o velho, e ouvira o soluçar cortante do seu amigo. Interrogou-o com paternal carinho. Azevedo ergueu-se como atordoado, e, ao sahir, murmurou estas palavras:

—A infamia está ahi escripta n'esse jornal.

Foi ao armazem onde Francisco era guarda-livros; entrou no gabinete particular do negociante, e encontrou-o lendo o jornal.

O negociante estava correndo a primeira pagina, e a noticia vinha na segunda.

—Por cá, doutor!—disse alegremente o patrão de Francisco—Vem saber como vai o nosso homem? Optimamente. Estou contentissimo. É seu irmão, e basta!

Eram frechas que varavam o peito de Antonio de Azevedo! A dor rompeu-lhe em lagrimas. O negociante viu-as, e exclamou:

—Que tem o doutor?! Alguma desgraça de familia lá na terra? Morreu-lhe algum de seus irmãos?

—Morreu Francisco—balbuciou o bacharel.

—O quê? morreu Francisco! O doutor está a sonhar! Pois não o viu quando entrou?!

—Morreu para a honra—tornou já serenamente Antonio—Ahi está na segunda pagina d'esse jornal o ignominioso epitaphio do desgraçado.

—O quê? que diz o doutor de epitaphio?

Azevedo collocou o dedo indicador sobre a correspondencia. [184] O commerciante leu, e fez-se amarello. Depoz o jornal, levou as mãos aos raros cabellos brancos, e disse:

—Tem razão, doutor! seu desgraçado irmão está morto!

—Vim para o levar comigo. Queira o senhor dar-lhe ordem de sahir. Rogo-lhe a generosidade de não lhe dizer a causa por que o despede.

Deteve-se a scismar o negociante, e disse com energia de boa alma:

—Vamos ver se o salvamos.

—Salval-o como?

—Vai com outro nome para o Pará.

—O nome não é o infamado; é elle. Creia o meu amigo que eu não vim pedir-lhe a sua protecção para salvar o homem indigno d'ella. Vim buscar meu irmão.

Foi chamado Francisco.

—Dá contas ao senhor Silva, que vaes sahir de sua casa.

O guarda-livros fez-se roixo.

—Não ha explicações previas—tornou Antonio—Apresenta os livros a teu cargo ao senhor Silva.

—Os livros estão vistos—disse o negociante—Não tenho a menor suspeita da probidade do senhor Francisco.

—Suspeita?—atalhou este.

—Silencio!—disse imperiosamente Antonio—Vamos.

[185] O commerciante apertou a mão do bacharel, e lançou ao irmão um olhar compassivo.

Francisco hospedou-se com Antonio. Dois dias depois, recebeu de repente a noticia da sua volta a Portugal, accrescentada d'estas palavras:

—Entrega esta carta em Lisboa. A pessoa a quem a entregas irá comtigo a casa do cambista F***, teu patrão que foi. Darás ao cambista o dinheiro em que elle se disser roubado por ti. Cobrarás recibo, que me enviarás. Feito isto, recolhe-te a Barcellos, e pede a tuas irmans que te dêem um quinhão da sua subsistencia.

Francisco, lavado em lagrimas, quiz ajoelhar aos pés de seu irmão, e contar a historia dos seus desatinos.

—Não ha historia que absolva um roubo—disse o bacharel.

E no dia seguinte, quando elle acompanhava ao navio o irmão, é que a vistosa galera Felismina se baloiçava, como odalisca, sobre a camilha azul das aguas que reverberavam o sol nascente, e se cobriam de scintillante lhama de oiro.

Olhem a felicidade de Corinna e a felicidade de Antonio de Azevedo!



[186]

XVIII.



Antonio de Azevedo foi abrir a reprêsa de lagrimas no seio do ancião que o esperava com as suas, unico balsamo das supremas afflicções.

—Veja a minha vida!—disse entre soluços o bacharel—Pensar eu que o muito trabalhar me daria um quieto contentamento, e que, além dos dissabores do coração, nunca teria outros!... E agora estes! os da ultima deshonra! uma vergonha irremediavel que me priva de olhar de frente para os homens que estimaram meu irmão por amor de mim!

O velho, combatendo os escrupulos do moço, teve a admiravel e inspirada eloquencia da verdade. Declinou a deshonra sobre quem a praticara, e provou ser aquella desgraça mais uma prova para aquilatar as virtudes do bacharel. Verdadeiros, mas, ainda assim, inconsolativos argumentos!

Fallaram longo tempo. Valentim não deixara sahir [187] o amigo n'aquella manhan, receoso de que a solidão lhe amargurasse a mais as apprehensões.

Quando o moço se impunha a si mesmo o preceito da força para o trabalho, e o velho insistia nos seus dictames insinuativos de coragem, entrou no escriptorio Fernando de Athaide.

Antonio de Azevedo, como a desentorpecer-se de um glacial spasmo, estendeu-lhe machinalmente a mão e deixou-se abraçar. Valentim fazia um alarido de exclamações de espanto, que não deixavam ouvir o adventicio.

—Vejo-o triste e demudado, senhor Azevedo!—disse o primo de Corinna.

—É oiro que está ainda ardendo da ultima prova!—respondeu o velho—A desgraça cuidou que o fulminava; mas a honra venceu.

Antonio d'Azevedo fez um gesto supplicante de silencio ao doutor, e disse a Fernando:

—Ninguem o esperava no Rio, senhor Athaide.

—Foi uma partida repentina. Assim é que se fazem as coisas!

—Como ficou Corinna?—perguntou Azevedo; e logo as lagrimas lhe saltaram a quatro, e uma ancia lhe ressumou á face em suor frio.

Sentou-se quebrantado, e murmurou:

—Desculpem-me: estou-me fazendo mulher... Estas lagrimas, se as não chorasse, matavam-me.

—São de saudade?—disse Fernando.

[188] —São de desesperança, cuido eu—respondeu Azevedo, escondendo os olhos com as mãos.

—Anime-se!—exclamou Athaide—Que descorçoamento é esse, improprio d'uma alma de bronze! Azevedo, saia d'essa lethargia! Olhe que Corinna ama-o como sempre, e espera-o com a anciedade d'um anjo consolador de todas as suas mágoas.

—Tardia virá a consolação!—balbuciou o moço—Deus me livre de a condemnar a soffrer debaixo da minha estrella... Escreveu-me ella?

—Que pergunta! Tenho em casa uma carta sem fim, que o meu amigo ha de lêr como se ella mesma a estivesse fallando! Venha comigo, e cuidará que tem entre mãos, não uma carta, mas o proprio coração da sua Corinna!

—Agora consinto que vá!—disse o velho.

—E o doutor vem tambem—acudiu Fernando.

—Vamos lá!—voltou o velho—Vossês os rapazes andam comigo d'aqui p'r'ali, como se esta gotta não merecesse respeito nenhum á geração nova! Ora esperem ahi, que eu vou vestir a dalmacia, a casaca circumspecta! Sua senhora veio?

—Veio, sim.

—Ah!—disse Azevedo—está cá a senhora D. Felismina?!

—Pois eu havia de deixar lá a alma! Então vossê não sabe que marido eu sou! Minha mulher sou eu—disse com festivo semblante o millionario.

Sahiram.

[189] —Isto veio do ceo!—disse Valentim—Quem distrahiria o meu pobre Antonio, se lhe não chegassem os bons amigos da patria! Vai ter um dia cheio, meu amigo! Quem lhe fallaria com mais ternura da sua Corinna que a irman querida! Felismina se chama ella: hoje é que é feliz mina de consolações para o meu desterrado!

Assim, com estes dizeres affectuosos do alegre ancião, chegaram ao grandioso predio, que Fernando habitava.

Na primeira sala esperava-os Felismina. O doutor, que subia na dianteira, ao vêl-a, exclamou:

—Sim, senhores! É muito linda! Ha muito que não vi d'estes fructos da minha terra! Quero e gosto que as senhoras brazileiras vejam o que lá ha por Portugal!

Felismina sorriu-se ao galanteio do velho, e abraçou Antonio d'Azevedo.

—Como está abatido!—disse ella.

—Abatido no rosto, mas Sansão na alma!—acudiu Valentim.

—Acha-me velho?—disse Azevedo—N'este paiz acaba-se depressa o homem que se não exercita muito, e endurece ao fogo do sol. A sua familia, minha senhora, ficou boa? A senhora D. Corinna?

—Como faz essa pergunta, senhor Azevedo!...—disse Felismina—Que frialdade! Dar-se-ha caso que vossa senhoria não ame já minha irman?

—Por Deus, minha senhora!—respondeu o moço—Todos [190] os infortunios podem menos sobre mim que uma injustiça, que deixa de ser injuria por ser dita por vossa excellencia.

—Se elle ama sua irman!—atalhou o velho—Ó minha senhora, se os meus cabellos brancos inspiram confiança, creia vossa excellencia que o meu Azevedo ama tanto sua irman que, por amor d'ella, excede-se a si proprio na prática das virtudes. Grande e distincto deve ser o amor que faz o virtuoso! Vicios e crimes é o que eu tenho visto resultar dos amores vulgares...

—Está o senhor Azevedo ancioso por que lhe entreguem a carta de Corinna—disse Fernando—Vai tu buscal-a, Felismina.

Abriu-se uma porta, e appareceu Corinna, exclamando:

—Não preciso que me tragam!

E cuidam que ella impallideceu, desmaiou, ou, pelo menos, expediu um ai de procedencia dramatica?

Não, senhores. Corinna entrou de corrida, leve como um gnomo, a rir e a chorar, purpureada, com os olhos a saltar-lhe fóra da face, os braços abertos e convulsos, a respiração como tomada, e os labios crispando nervosamente, sem poderem proferir o quer que era de que só os dramaturgos acham sempre uma expressão insipida, incolor e inverosimil.

Antonio de Azevedo é que (sem desaire seja dito) deu uns ares de idiotismo, que, na scena, seriam lastimaveis! Abraçou Corinna, como a medo: era a primeira vez que a sentia nos braços. Fitou-a como quem duvída; [191] remirou-a, como quem teme um engano dos sentidos; estava-se acordando do sonho; invocava a sua razão; e, quando a razão lhe mostrou em volta d'elle todas as faces orvalhadas de lagrimas, é que Azevedo pôde exclamar:

—Bem hajas, anjo de Deus!...

Imagine agora a minha leitora os successos indescriptiveis d'este lance. Por pouco imaginativa que seja, vossa excellencia ha de avultal-o melhor em sua fantasia do que eu poderia dar-lh'o n'esta pagina. Uma só poesia creou a natureza para taes quadros: é a poesia da pintura.

Foram cinco minutos de febre, de delirio, de silencio, de ouvir-se o bater forte e descompassado de cinco corações. Ora pintem lá isto, a não ser em expressão de olhos, de labios, de feições que só, em casos d'estes, se vos deparam em pinturas christans, onde os enlevos são ceo, bemaventurança e alegria de santos. E haveis de notar que o proprio pincel profano antes se quer a pintar expressões angustiosas, porque as visagens da afflicção mais se prestam ao relevo, como em Niobe, em Laocoonte, em Ugolino. Quer tudo isto dizer que tenho diante dos olhos aquelle espectaculo de jubilos, e desisto de descrevel-o para de todo em todo me não capacitar de minha inhabilidade.

Porque hei de eu dizer tão affoitamente «espectaculo de jubilos», se Antonio d'Azevedo, momentos depois, se deixava senhorear da lembrança do irmão, banido do numero dos honrados! A candida Corinna encarava [192] n'elle com olhos aguados, e no lacerante silencio de sua alma perguntava a si mesma, que fizera ella para ser menos amada! De que outro modo se explicaria a tristeza do moço n'aquella primeira hora!

Não pôde ter-se que o não chamasse a um ponto mais afastado da sala onde se tinham ficado Valentim e Fernando, em quanto Felismina sahira a dar ordens.

—Tu estás melancolico, Antonio!—disse ella, tomando-lhe a mão com estremecida ternura—Viria eu contrariar a tua vontade? Estaria eu enganada comtigo?...

—Vejo-me indigno de ti...—respondeu Azevedo.

—Indigno de mim!—tornou ella crescendo no afago da expressão convulsa de lagrimas—Pois tu não tens sido mais que nobre para seres digno da mais nobre e pura mulher! Quererás que eu te recorde as tuas virtudes, meu querido amigo!?

—As minhas virtudes—replicou o moço—tão frageis eram, que talvez a esta hora tenham sido reputadas hypocrisia.

—Ó filho!—exclamou ella—desconfio da tua razão! Muito deves ter padecido para te considerares assim, quando em volta de mim os teus merecimentos são louvados com admiração de todos!...

—Escuta-me para me consolares, Corinna. Deus quiz que tu viesses á hora em que toda a esperança me ia fugindo...

Antonio d'Azevedo contou a Corinna a ignominia de seu irmão, e levantou a voz de modo que Valentim, [193] no angulo opposto da sala, ouviu tudo. Ergueu-se o velho, caminhou para elles, e interrompeu a exposição do bacharel.

—Senhor Antonio d'Azevedo, antes do infortunio de seu irmão, vossê, no Rio de Janeiro, gosava nome de intelligente, laborioso e honesto; depois do infortunio de seu irmão, o nome de Antonio d'Azevedo é proferido com o acatamento de que homem nenhum de sua idade se tem gosado. Os velhos honrados da sociedade brazileira querem conhecel-o: os portuguezes citam o seu glorioso procedimento com orgulho. O facto é de ha tres dias, e tem corrido de bôca em bôca como raras vezes acontece a uma boa acção. Ora pois! Eu sei bem o que é dignidade; achei que a sua se manteve sempre na altura dos mais dignos homens d'outros tempos; admirei-o e louvei-o pelo que outros chamariam demasias de orgulho sob capa de independencia; agora, porém, é chegada a hora de eu lhe dizer que, assim como a suave religião se descaminha até ao fanatismo execravel, assim a briosa dignidade, se perde o rumo do bom juizo, vai dar comsigo n'uns excessos rudes, insociaveis e repellentes. A sociedade applaude os virtuosos, mas desadora os que fazem de sua virtude uma tribuna para lhe censurar as fraquezas. O excesso do bem é um mal que não me aproveita a mim, nem a outrem. Eu quero que Antonio d'Azevedo se mostre alegre para que o mundo não diga que a honra tem uns pavores interiores refractarios ao contentamento. A [194] boa consciencia é alegre, senhor. E o melhor beneficio que vossê póde fazer aos homens é convencel-os de que vai indo seu caminho, arrancando os espinhos dos pés, e sorrindo ás novas desventuras que o impecem. Fallou o velho. Diga agora o anjo, a nossa Corinna, o que será preciso fazer-se a esta criança decrepita para a levantarmos do seu abatimento?

—Se eu pudesse...—balbuciou Corinna.

Antonio d'Azevedo levou aos labios a mão de Corinna, e murmurou:

—Emenda tu os defeitos da minha desgraçada indole... Dá-me paz, Corinna; dá-me a uncção do teu amor, e eu me salvarei de mim proprio...

—Primeiro passo a dar!—exclamou Valentim da Costa—O primeiro passo a dar é casarem-se, meus filhos!

N'este momento entrou Felismina, e disse:

—Está o almoço na mesa.

Valentim continuou:

—Visto que está o almoço na mesa, o primeiro passo a dar, meus filhos, é... almoçar!

No decurso da conversação durante o almoço, disse Fernando de Athaide:

—Ahi vão novidades, meu caro Azevedo. O visconde da Cruz casa brevemente com Emma, e Luiz Taveira com Leonor. Eliza tem doze annos, e já é pretendida. Quem de certo nos fica solteira é a nossa Corinna! que pena!

Riram todos, e Valentim exclamou:

[195] —Solteira! essa é boa! Não consentirei eu que a belleza assim seja ultrajada! Aqui está a minha mão, senhora D. Corinna! É um sacrificio que faço da minha isempção; mas faço-o para que suas manas se não riam de vossa excellencia.



[196]

XIX.



Tres mezes depois dos grandes successos froixamente descriptos no anterior capitulo, Fernando de Athaide e sua mulher vinham caminho de Portugal; e Corinna da Soledade e seu marido Antonio d'Azevedo habitavam, nos arrabaldes do Rio de Janeiro, uma chacara de modestas regalias.

O bacharel era ainda o mesmo laborioso jurisconsulto, associado no escriptorio de Valentim da Costa. Corinna, simplesmente ajudada d'uma negra, cuidava do lavor domestico, singelo lavor, que isso mesmo tem de bom a mediania.

Quizera Fernando que seus cunhados ficassem habitando a casa onde se hospedaram, e Azevedo, já receoso de desagradar com suas isempções, mal se atrevia a rejeitar os offerecimentos; porém Corinna, avaliadora dos secretos desejos de seu marido, simulou vontade de viver no campo, e assim o desembaraçou [197] do desgosto de acceitar a magnifica vivenda na melhor praça da capital. Valentim, aconselhando Athaide no melhor modo de haver-se com seu cunhado, repetia o que no livro divino de frei Luiz de Sousa se lê, que o cardeal de Lorena dizia, ao embaixador de Portugal, com referencia ao santo arcebispo bracharense: «.....se o quereis ter contente, não lhe deis a comer mais que dois ovos duros.»

Corinna recebêra de Felismina a prenda dos trinta contos depositados ainda em poder do commerciante. Foi-lhe, porém, mister guardal-os como cofre de joias, sem lhe dar destino conducente a alliviar os encargos do marido. Era um dinheiro que não existia para o bacharel, nem Corinna buscava occasião de fallar d'elle.

No tocante a felicidade, alguns periodos de uma carta de Azevedo ao visconde da Cruz dizem o que basta a convencer-nos de que a possuiam, quanto ella, n'este desterro, se deixa gosar.

«


«Ás seis horas da tarde, quando vou do escriptorio, encontro sempre a minha Corinna sentada n'um pequenino ressaio, como se lá diz no meu Barcellos, que tenho á porta da chacara. Alli é a minha primeira paragem, em que o espirito se desfadiga do pesadello das leis: o coração toma absoluto imperio sobre as minhas outras faculdades, e todo me deixo adormecer na quietação d'um bem-estar, que só podem conhecer os operarios d'um dia inteiro, quando ao cahir da noite, se repousam ao lado da companheira, [198] por amor da qual se cansam e recobram. Os nossos frugaes jantares são rapidos, e assazoados dos infantis gracejos da minha Corinna, que os tem sempre novos para encarecer a profusão das iguarias. Depois vamos por esses caminhos fóra, admirando tudo que nos vem ao encontro a sorrir: são as arvores e flores de todas as ricas vivendas d'este luxoso torrão: tudo é nosso, porque, meu amigo, nada ambicionamos do que vamos vendo.

«Corinna está-me sempre repetindo a historia dos nossos amores, que eu acho sempre nova. Os dois bailes do Porto em que a vi; as primeiras palavras que eu lhe disse, com destemperada lamuria; os seus pensamentos lá no Lima, dia por dia, e hora por hora. Sinto-me duplicadamente viver na sua vida passada; parece-me que estou tomando posse d'uma existencia que devia ser minha desde então.

«Deito-me cedo para me levantar com a aurora. Corinna lê até tarde: lê alto em quanto vê que eu a escuto; depois, vai diminuindo gradualmente a voz até me ver adormecido. Rirás tu d'esta miudeza de traços no quadro da felicidade domestica? Se ris, visconde, mal de ti, que os não has de saber gosar. Uma coisa magnifica, estrondosa, e apparatosa, que vai pelo mundo, chamada Felicidade, feitas as contas, sabes o que é? É isto, são os singellos prazeres, que não valem nada descriptos, e são a bemaventurança sentidos. E não valem nada, porque a gente que os lê, pensa que pouco vai de desejal-os a tel-os. [199] Que engano! A mais facil felicidade é a que requer mais grande coração e pura consciencia. Se estes bens fossem communs, todos eramos felizes. Nós antes queremos ser todos ricos.
»


Valentim da Costa foi, um domingo, jantar com os seus filhos, termo de muita amizade com que elle os acarinhava. N'esse dia se completavam os setenta e nove annos do ancião. Depois do jantar, desceram a sentarem-se debaixo das quatro palmeiras, que davam o usurpado titulo de chacara á casinha dos venturosos. Ahi fallou sempre o velho, com a perdoavel vaidade de quem sabe tudo do passado, e possue a chave dos futuros. Ora! por onde elle andou! Foi cavar na raiz da revolução franceza, contou a vida de Napoleão, a fuga de D. João VI, as anecdotas da côrte, a infancia e juventude do senhor D. Pedro IV, a mocidade estudiosa e as virtudes civicas do actual imperador do Brazil, e tudo isto para concluir que o presente era melhor que o passado, e que o futuro será melhor que o presente. E a tal proposito ajuntou:

—Vossês não façam caso do que eu disser, quando elogiar as coisas e pessoas do meu tempo. O seu tempo é a balda dos velhos, que, ao verem-se carregados de tempo, não só querem que seja seu—o que ninguem lhes contesta—; mas até querem que o tempo d'elles fosse a melhor quadra dos dezenove seculos que já lá vão. Ora eu, que sou velho e ao mesmo passo rasoavel, se duvidasse das virtudes d'este tempo, duvidaria das vossas, meus filhos. Dizem que a velhice é egoista, [200] e morre devorada de odientos ciumes da geração nova, não só porque é boa de indole, que tambem por ser inventora das regalias que vieram tarde para ella. Deus me livre de ir á eternidade com este trambolho agarrado ás pernas: bem me basta a gotta! Eu cá de mim até folgo de acabar, quando começa uma transfiguração na face da terra, coisa nem sequer sonhada ha quarenta annos, quando eu e os meus contemporaneos motejavamos o desconfortavel viver de nossos paes. Não me dirão o que nós tinhamos mais do que elles, ha quarenta annos?! Vossês é que podem rir-se de mim e dos meus; mas nem por isso lhes quero mal de inveja. O meu amor á gente nova chega a ponto de eu me desejar morrer no meio d'ella. Querem-me os meus filhos trazer para sua casa? Eu estou por alli sósinho n'aquella rua do Ouvidor, muito rica, e muito bulhenta. Tenho lá tres pretos e tres pretas a quem quero dar a liberdade, e os diachos não a querem! Olhem que é forte mania a dos que dizem que a escravidão é o antagonismo permanente com a ideia de Jesus! Se os meus pretos fossem novos, e eu lhes désse liberdade, os pobresinhos, em vez de irem aos seus sertões respirar ar livre, assoldadavam-se a senhor que os carregava de trabalho; ora, como os meus escravos são velhos, os coitados não querem a liberdade, que para os de sua especie é uma palavra van. Pois se eu me não posso, nem devo desfazer d'elles, peço-vos que m'os deixeis trazer comigo para a vossa companhia. Verdade é que esta casa é mui estreita para tanta negraria, [201] e commodidades d'um hospede octogenario. Aqui é que o meu Azevedo ha de mostrar-se amigo do seu velho. Está alli abaixo uma boa casa, com muito arvoredo em roda. Vai o meu filho arrendar aquella casa, e recolher-se a ella com o seu mestre de leis. Faça de conta que eu sou um pulvereo praxista que vossê tem na sua livraria... O ingrato não me responde. Vou voltar-me para a minha filha Corinna. Faz-se o que eu peço?

—Faz—disse Corinna, sorrindo ao esposo.

—Pois então—tornou o velho—já d'aqui não saio. Onde me dais agasalho esta noite? Quero já saber onde está o meu quarto.

No dia seguinte, Azevedo arrendou a chacara magnifica, mudou para ella com o ancião, e com os seis velhos escravos e amigos de Valentim. Logo ao segundo dia, o hospede chamou Azevedo, e disse-lhe:

—Eu tambem tenho a minha dignidade, a minha vaidade e o meu orgulho. Quero entrar com a minha quota parte para as despezas da casa, minhas e da minha pretaria. Arrendamento da chacara, a meias; o importante da cozinha, isso é cá com o anjo dos lares, com a nossa Corinna.

Antonio d'Azevedo ia contrariar o velho, e reteve-se ante um gesto de desagrado, e logo esta risonha exclamação:

—Vossê cuida que tem mais pundonor que eu!

Este viver continuou assim seis mezes. Corinna tinha ouvinte certo ás suas leituras em quanto o marido [202] dormia. Valentim repousava tres horas em cada noite, e velava as outras, folheando papeis, e dando expediente a negocios attinentes aos seus haveres. Algumas vezes ia á cidade em carruagem que comprara n'este ultimo praso da vida, não tanto para elle, como para os passeios de Corinna. Valera-lhe a gotta para colorir o presente aos seus queridos commensaes.

N'este tempo as cartas vindas de Portugal davam a noticia confirmada dos casamentos de Emma e Leonor. As duas noivas tinham ido para o Porto com seus maridos, e Felismina com seu marido e o primogenito estavam nas margens do Lima, ou no palacio reconstruido de Fernão de Athaide, onde o filho natural mandara acastellar os telhados. Fernando era já visconde do Ameixial, e estava pasmado da barateza da coisa, em comparação do muito que dera por uma commenda cinco annos antes. Tinha sido logrado pelo procurador.

Gastão de Noronha, D. Mafalda e a menina mais nova tinham ido a Paris comprar mobilia para renovar a decoração do palacio de Lisboa. Esta era a razão ostensiva que o publico deve acceitar por ser melhor, se não a mais ajuizada; mas os indiscretos portuguezes que então estavam em França, disseram que o ainda robusto Gastão de Noronha fôra espairecer saudades de uma duqueza, ou duas duquezas, ou mais seriam, que, pelos modos, em Paris, isto de amar quatro duquezas é coisa mais que frequente a quantos portuguezes lá vão, como eu tenho visto nos apontamentos de pessoas [203] que lá estiveram quinze dias. D. Mafalda é que ha de saber a verdade de tudo.

Com estas noticias chegou outra concernente a Francisco d'Azevedo. O caixeiro chegou a Lisboa, pagou a sua divida, mandou o recibo ao irmão, foi a Barcellos, vendeu a pequena legitima, abraçou suas irmans, e tornou a Lisboa, d'onde partiu para a Africa.

As quatro meninas das margens do Cávado viviam abundantemente. Seu irmão Joaquim, já estabelecido e coadjuvado pelos Taveiras, occorria-lhes a todas as necessidades, dava-lhes tudo, menos o prazer de leval-as ao Porto, porque o irmão do Brazil, em todas as cartas recommendava instantemente, que as deixasse estar em Barcellos com as arvores e flores da casa paterna. Outros dois irmãos de Azevedo, sem importancia n'esta chronica de familia, exerciam probamente a profissão do commercio.

—Todos felizes!—exclamou o velho, que ouvira attentamente lêr as cartas, como se fossem de familia sua—Todos felizes! Só o meu pobre Azevedo ainda a trafegar para o pão de cada dia! Os dois contos de reis, ganhados nos primeiros mezes, lá se foram na restituição do Francisco. Desde então para cá as economias são impossiveis! Esta Corinna é uma grande avára! Tem alli na gaveta trinta contos, que ella chama os seus alfinetes de noiva, e não os quer arriscar nas despezas da cozinha! Ora deixa-te estar, minha sovina, que te não hei de deixar em testamento as minhas tres pretas velhas!

[204] —O Antoninho não quer o dinheiro...—disse ella, afagando o cabello do marido, que ria muito do sainete comico do velho—Ha que tempos—continuou ella—eu não vi o meu thesouro! Vou-lhe desafiar a inveja, doutor, a mostrar-lhe as minhas notas! ora espere...

Foi Corinna a uma gaveta de sua commoda, e voltou pallida, exclamando:

—Ó Antoninho! mudaste o dinheiro da gavetinha do meio?

—Eu nunca soube onde tinhas o teu dinheiro—respondeu placidamente o marido.

—Não está lá... roubaram-m'o—bradou ella.

Dias antes tinha fugido uma negra, alugada para a cozinha.

—Seria a preta?—perguntou tranquillamente o bacharel—Póde proclamar-se rainha nas suas senzalas a negrinha!

Corinna mostrava-se afflicta. O marido chamou-a a si, encostou-a ao seio, e disse-lhe com muita meiguice:

—A tua grande alma, minha filha? Então! ha ahi dinheiro que valha uma lagrima tua, Corinna? Imagina que Deus te experimentava, privando teu marido da saude de tres dias! Que farias então, minha amada?... Quantas vezes darias os teus trinta contos por uma tisana que me restaurasse?! Quero só ver-te lagrimas, quando eu as chorar.

—Tens razão!—exclamou ella—Estou alegre! [205] perdoa á minha fraqueza de mulher, sim? Quem me visse chorar, julgaria que eu amava aquelle dinheiro inutil!

—Pois sim; tudo isso é muito admiravel—exclamou o velho—mas é necessario annunciar a fuga da ladra, agarral-a e despedaçal-a com o azorrague!

Antonio de Azevedo ergueu os hombros e sorriu. Corinna fitou os seus humidos e negros olhos em Valentim, e murmurou:

—Despedaçal-a! Coitada da infeliz!

—Essa agora é que não é piedade irreprehensivel, menina!—redarguiu o velho—Chama coitada infeliz á negra que lhe rouba uma quantia que em Portugal se chama uma fortuna!... Eu tomo a negra á minha conta! Ha de ser cortada pelo azorrague!

—Não deixes, Antoninho!—clamou Corinna, tomando-lhe o rosto entre as mãos.

—Não deixo, não, filha. O doutor está feroz; mas aquillo passa-lhe.

—Ora, senhores—tornou o velho tregeitando espanto—O nome, que isso tem em boa hermeneutica, é fomentar o crime! A sociedade não se serve assim! É preciso que cada qual contribua com o cauterio para lhe extirpar os cancros que a corroem.

—Parece que está no tribunal, doutor!—disse Azevedo—A velha eloquencia é ainda brilhante; mas a lei nova, a lei do justo que os fariseus azorragaram, manda cahir o azorrague das mãos do offendido, e castigar moralmente o culpado.

[206] —Moralmente!—retorquiu o doutor—Com que então vossê crê no moral dos negros?!

—Creio na alma dos negros.

—Isso é uma impiedade!

Azevedo riu-se, e, por momentos, duvidou do concerto intellectual do velho.

Mas, a esta injuriosa duvida, ergueu-se o velho, e caminhando para elles, com os braços abertos, exclamou:

—Não calumniemos a negra, meus filhos! Abraçai-me, anjos! Eu quiz experimentar a vossa caridade! Abraçai-me, —Não calumniemos a negra, meus filhos! Abraçai-me, anjos! Eu quiz experimentar a vossa caridade! Abraçai-me, santos da honra e da misericordia, que os vossos trinta contos quem os furtou fui eu!



[207]

XX.



Em uma tarde de maio de 1849, ao oitavo mez de ceo sem nuvens n'aquella chacara, onde á competencia os tres ditosos moradores se davam alegrias, chegou o anjo pallido da morte, e sentou-se no limiar d'aquelle éden, como para vedar o accesso ao anjo do contentamento.

A um lado do leito de Valentim da Costa estava Corinna da Soledade, com o cotovello apoiado no travesseiro e a face na palma da mão esquerda, orvalhada de lagrimas.

Do outro lado Antonio de Azevedo, com as mãos entrelaçadas debaixo do rosto que encostava á borda do leito, erguia a espaços os olhos lagrimosos, e cravava-os nas faces emaciadas e lividas do ancião.

Aos pés do leito estavam sentadas duas velhas negras soluçantes, com os rostos escondidos entre os joelhos.

[208] Na ante-camara moviam-se pé ante pé os restantes dos antigos servos de Valentim, e cada um por sua vez, de instante em instante, vinha, por entre os cortinados de cassa, espreitar o enfermo, e retirava com as mãos postas e o coração em ancias e suspiros.

Valentim da Costa tinha sido confessado e ungido n'aquella tarde. A sciencia retirara ante a irremediavel decomposição dos oitenta annos.

Mas Corinna e Azevedo não podiam convencer-se de que o seu amigo havia de morrer assim, quando, a intervallos, o ouviam discorrer com o socego e energia moral dos mais saudaveis dias. Era a alma imperecedoira allumiada já pela claridade do empyreo: era a prova suprema que ella estava dando de sua immortalidade. A cryzalida desfazia-se, e a borboleta do ceo, n'aquelles assomos de intelligencia, ensaiava seu voejar para o alto.

O moribundo descerrara as palpebras, e dissera:

—Não devia eu esperar tão suave morrer. Homem que viveu sósinho os annos da juventude e força, morrera sósinho. Não quiz o Altissimo que eu pagasse amargosamente a minha incuria. Eis-me com filhos e amigos em volta do meu leito. Bemdito seja o Senhor!

Falleceram-lhe forças, e descahiram as palpebras transparentes, flacidas e azulejadas.

D'ahi a pouco reabriu os olhos, fez signal a Antonio d'Azevedo, e indicou-lhe o travesseiro, que forcejou por levantar.

Azevedo correu a mão por debaixo do travesseiro [209] e tirou papeis, que offereceu ao ancião. Este não pôde erguer os braços quebrantados, e disse:

—Um é o meu testamento; o outro papel é a minha despedida de vós. Está escripto ha quinze dias: escrevi-o quando conheci o fim. Lêde-o vós, filhos; quero ouvil-o; o coração quer ainda o goso de se escutar.

Antonio d'Azevedo abriu vagarosamente a folha dobrada em oitavo, e leu com tremor de suspiros:

«Um secreto aviso me manda preparar. Não posso dizer como o santo:—O meu coração está prompto—; mas vejo o termo da viagem sem susto. A face do Juiz transluz misericordia. O meu Creador foi para si que me creou.

«É dôr deixar-vos, filhos; porém saudades haverá mais pungentes entre os vivos que se apartam. A providencia divina permitte que o aspeito da morte seja menos afflictivo, quando em verdade ella está comnosco. Ai de nós, se este desapego da terra, onde se é feliz ou se espera sel-o, não existisse! O morrer custa ruins quebrantos da materia; mas a alma como que se está despenando e alegrando para ir ao seu destino.

«Vou deixar-vos, meus amigos. Chorai-me, porque vos quiz muito, e vos fui grato ás doces horas que me déstes. Chorai-me, porque ao moribundo é consolador o pranto dos que lhe deram os risos da ventura.

[210] «Ficaes novos e ricos. Pela vida além haveis de encontrar muita gente affligida: sêde valedores de todos, e associai sempre o meu nome á vossa beneficencia. Assim viverá comvosco uma faisca d'esta chamma, que não póde ser toda vossa, por ser de Deus.

«Dai-me sepultura, e ide depois para a patria e para os vossos. Empregai lá a vossa actividade menos em accumular, que em repartir a sobejidão de vossa riqueza. Quando houverdes filhos não lhes ensineis a honra do rico, que essa é facil: ensinai-lhes a honra do pobre, a honra de Antonio d'Azevedo e a abnegação de Corinna. Vivei de modo que a vossa descendencia se glorifique do exemplo, quando vossos nomes estiverem já esquecidos.

«Estou a dar-vos conselhos, como se carecesseis d'elles: desculpai ao velho este fraco da muita idade. É uma missão paternal que cumpro. Se eu tivesse dois filhos, exemplares em virtudes, havia de fallar-lhes assim. Deixai-me acabar n'esta abençoada illusão. Admoesto-vos, meu Antonio d'Azevedo, a que deis de mão ao grande pezo do trabalho. O que hontem era precisão, será ámanhan sêde sobre sêde de riquezas inuteis. O bastante é muito pouco. Da riqueza de vossa alma é que deveis ser grande dissipador: derramai-a em preceitos, conselhos, allivios e censuras. O solitario virtuoso é um egoista do ceo. Ide ao meio do povo e fallai. O homem sósinho póde ter muito de que alegrar-se; mas não alegra os milhares [211] de infelizes que gemem, e a gemer se vão despedaçando.

«Sabei que eu, á custa de sessenta annos de trabalho, cheguei a esta hora podendo dizer que não tenho um ceitil. Tudo dei a uns, e perdoei a outros. Os bens de fortuna, que vos lego, deu-m'os uma herança, no ultimo quartel da vida. Ahi vol-a transmitto. Foi sempre meu intento deixal-a a pobres: sei que fica sendo vossa e d'elles.

«Agora abraçai-me, e dai-me o vosso adeus.»

Antonio d'Azevedo fôra algumas vezes embargado pelas lagrimas, e Corinna, com os labios postos na mão do moribundo, soluçava mui anciada. No final da leitura, Valentim fez um vão esforço de levantar os braços para receber os dois filhos que se achegaram ao seio d'elle. Os escravos tinham entrado todos de roldão, e beijavam-lhe os pés por cima da coberta. O agonisante relanceou os olhos de sobre elles para a face d'Azevedo, e murmurou:

—Serão vossos amigos tambem... Levai-os... Os pobrezinhos morreriam de saudade... e miseria.

Os negros ajoelharam de mãos postas, e oraram. Corinna insensivelmente ajoelhou tambem, conservando entre as su Os negros ajoelharam de mãos postas, e oraram. Corinna insensivelmente ajoelhou tambem, conservando entre as suas a mão do moribundo.



[212]

CONCLUSÃO.



Passados seis mezes, á porta do quinteiro de uma pequena granja, visinha de Barcellos, parou uma liteira, d'onde apearam Antonio d'Azevedo e Corinna da Soledade. Logo em seguida, chegaram algumas cargas, acompanhadas por negros, em volta dos quaes o rapazio de Barcellinhos fizera grande alarido de apupos e espirros. Das tres escravas, uma só resistira á saudade do senhor; os pretos viviam todos, amparados pelo bom tracto dos novos amos.

As irmans do bacharel vestiam as suas mais vistosas e secias galas. Eram quatro frescas moças, robustas, côr escarlate de quem vende saude, alegria a desbordar do coração aos olhos, e um rir franco e aberto de innocencia, e felicidade expansiva.

Corinna abraçou-se n'ellas, que a levaram em andor para o primeiro sobrado. N'este sobrado, algum [213] tanto escuro, rescendia um acre de rosmaninho e alecrim, como em festividade de presbyterio. Por cima de mesas, commodas, e banzos das janellas, tudo eram jarras de louça ordinaria com grandes feixes de dhalias, rozas e folhudos gira-soes. O oratorio estava aberto, e allumiado o crucifixo com a lampada usual, e mais duas vellas de cera de meio arratel, voto da mais nova das meninas. Os frizos do sanctuario eram grinaldas de flores, atadas pelas hastes umas n'outras, enfeite de menos engenho que apparato.

Antonio d'Azevedo entrou depois de sua mulher; sentou-se em um tamborete de coiro; descobriu-se, quando deu pela imagem do Christo, e murmurou:

—Finalmente!

Corinna da Soledade sentou-se á sua beira, e disse-lhe:

—Que celestial graça tem isto tudo, ó filho!

—Aqui tens a pobre casa onde nasci. Corinna!...—disse Azevedo, relanceando em redor os olhos humidos—Isto póde explicar a estreiteza das minhas ambições. Moldou-se-me a alma nas dimensões acanhadas d'esta casinha. Olha as flores de que eu tinha tantas saudades! Alli tens a minha banca de estudo... Lá estão ao lado do oratorio os meus primeiros livros... Mas como isto é pequeno! Como caberemos aqui!

—Perfeitamente, Antoninho!—disse Corinna.

Entrou, n'este ensejo, Joaquim d'Azevedo, o negociante [214] do Porto, que ficara arrumando n'outro sobrado os bahus.

—Não sei, não sei como hão de caber aqui, meus irmãos—disse elle, rindo—Tu já sabes, Antonio, que, além d'esta saleta, e dois quartos, segue-se um casarão velho, e umas oito alcovas, de que os ratos estão de posse immemorial. Ora vem ver! Estou certo que a nossa Corinna vai ficar espavorida!

Abriu Joaquim de Azevedo a porta que abria para o casarão. Antonio fez pé atraz de maravilhado. Tinha diante de si uma sala luxuosamente trastejada, com janellas lateraes rasgadas em arco, e envidraçadas a cores. A jardineira central estava cogulada de flores raras, e ricas encadernações de albuns. A um lado o piano. A outro a othomana e as cadeiras de respaldo em setim amarello. No centro, o lustre pendente do estuque primorosamente lavrado da mais engenhosa filagrana. Ao fundo d'esta sala estava um quarto com recamara, espaçoso, alegre, com alfaias de muito valor e gosto.

—É o vosso quarto, meus irmãos—disse Joaquim—Ao lado tendes outro: será o do vosso primeiro filho. Quando os filhos augmentarem, iremos rompendo com o edificio pelo campo, ou daremos á casa a largura que precisa para corresponder ao comprimento. O defeito não foi do mestre architecto: foi meu por tua causa. Era preciso, cá para o meu plano um pouco de peça magica, que tu visses a frontaria da velha casa, e não podesses ver o fundo. O que era de nossos paes, [215] está em pé; tens que farte onde ver o teu passado; tudo se conservou por amor de ti, que tens lá essa poesia das casas velhas. Mas has de perdoar que eu tenha destruido o casarão, antes que os ratos devorassem as nossas irmans.

Antonio abraçou Joaquim de Azevedo com fervorosa alegria, e este, com o outro braço, apertou Corinna ao peito.

Seguiu-se um dia e muitos dias de contentamento incessante. A cada hora em que se encontravam juntos, á mesa, no jardim, nos campos, ou á margem do Cávado, era uma festa, uma alegria de crianças!

Gastão de Noronha estava já em Lisboa, de volta de França, onde se deteve um anno a comprar a mobilia. Aquellas duquezas eram os seus peccados!

Fernando de Athaide desceu do alto-Minho a receber seus cunhados na quinta do Lima. Tambem Corinna queria ir reconhecer os arvoredos de sua infancia, e mostrar ao marido os logares onde chorara mais lagrimas de saudade. N'esta quinta se reuniram as quatro irmans casadas.

Emma, viscondessa da Cruz, tinha nutrido muito; e, com quanto o jubilo lhe désse azas, não cessava de queixar-se dos incommodos de tamanha viagem, desde o Porto alli! Leonor, casada com Luiz Taveira, ria muito da irman gorda, chamava-lhe o ideal da preguiça, e saltava muito, pendurada no braço do marido, que era doido por ella. O velho Bernardo Taveira seguiu os filhos, e fazia discursos, que ninguem lhe ouvia, [216] excepto Antonio d'Azevedo, que via n'elle um dos classicos velhos talhados a molde das virtudes de Valentim da Costa. Dias depois, chegou Gastão de Noronha, Mafalda e Elisa, a mais nova, e ainda solteira das meninas. Gastão, com todo o aprumo de sua fidalga altivez, approximou-se do genro Azevedo, abraçou-o cordialmente, e disse-lhe:

—Meu caro commendador!

—Vossa excellencia está enganado!—disse o attonito Azevedo—Eu sou, salvo a pequena differença de alguns cabellos brancos, o Antonio de Azevedo de 1844.

Gastão tirou da algibeira uma chapa refulgente da ordem de Christo, e disse:

—Aqui tem! É o meu presente de noivado.

—Muito agradecido a vossa excellencia—disse Antonio d'Azevedo—Qualquer dadiva de vossa excellencia me alegra; e esta, que tanto luz, deve ser muito agradavel entre os brinquedos de meu primeiro filho.

—Mas eu quero que a use—tornou o sogro.

—Na minha aldeia?—perguntou o genro.

—Em Lisboa, para onde eu quero que o senhor vá gosar a vida e a riqueza que tem. A minha Corinna não se fez para o mato de Barcellos. Não é assim menina?

—Respeito muito a vontade de meu pae—disse Corinna com submissão—mas a nossa casa é em Barcellos, e as minhas flores estão lá por aquelles matos. Tenho lá uma segunda familia que me chama, e á [217] qual eu tenho escrupulos de roubar por mais dias o seu irmão querido. Ámanhan partiremos.

Antonio de Azevedo, sem temer reparos, cedeu á alma reconhecida, e deu um beijo na face de sua mulher.



[218]

EPILOGO.



Lá vão quatorze annos.

Não me consta que tenha morrido algum dos personagens que ha instantes vimos tão alegres nas margens do Lima.

Conhecem romance em que tenha morrido tão pouca gente? Eu não! Se aquelle santo do Rio de Janeiro não vergasse debaixo dos oitenta annos, ainda agora podia estar no seio da patriarchal familia de Barcellos, onde elle tencionava acabar seus dias.

As irmans de Antonio de Azevedo estão todas casadas, e senhoras de boas casas de lavoira e numerosa descendencia.

Está ainda solteira Eliza, a irman mais nova de Corinna. Tem hoje trinta e um annos. É ainda formosa. Se o leitor é solteiro e rico... (não será mau que seja rico, para maior segurança) póde dar a este romance um supplemento, casando com aquella senhora, [219] que está aqui em Lisboa. Eu de muito boa vontade, na segunda edição d'este romance, darei a possivel immortalidade ao acto.

Pude tambem saber que o menino mais velho de Antonio d'Azevedo amolgou a commenda na borda de um tanque, e acabou por atirar com ella a um poço. Que grande democrata se está alli criando!

FIM.



Notas:

[1] O Snr. Antonio Pereira da Cunha.

[2] O Snr. José Barbosa e Silva, author do romance==Viver para soffrer.



Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 65 Ningnem ... Ninguem
#pág. 164 pimas ... primas
#pág. 178 ao labios ... aos labios
#pág. 184 nogociante ... negociante


Foram mantidas as variações de nomes próprios.








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Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco

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