The Project Gutenberg EBook of Contos, by José Maria Eça de Queirós

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Title: Contos

Author: José Maria Eça de Queirós

Release Date: February 22, 2010 [EBook #31347]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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CONTOS

 

 

 

 

PORTO—Imprensa Moderna

{II}
{III}
{IV}

 

Eça de Queiroz

Eça de Queiroz

{V}

 

 

 

 

EÇA DE QUEIROZ

CONTOS

 

 

TERCEIRA EDIÇÃO

 

 

 

 

PORTO

LIVRARIA CHARDRON, DE LELO & IRMÃO,
EDITORES—RUA DAS CARMELITAS, 144
1913

Todos os direitos reservados

{VI}

 

 

Obras de EÇA DE QUEIROZ

 

O Crime do Padre Amaro, 1 vol. 1$200

O Primo Bazílio, 1 volume 1$000

O Mandarim, 1 volume 500

Os Maias, 2 grossos volumes 2$000

A Relíquia, 1 grosso volume 1$000

Correspondência de Fradique Mendes, 1 volume 600

A Ilustre Casa de Ramires, 1 volume 1$000

A Cidade e as Serras, 1 volume 800

Contos, 1 volume 600

Prosas Bárbaras, 1 volume 600

Cartas de Inglaterra, 1 volume 500

Ecos de Paris, 1 volume 500

Cartas Familiares, 1 vol. 500

Notas Contemporâneas, 1 volume 1$000

Últimas páginas (manuscritos inéditos), 1 vol. 1$000

Páginas esquecidas, com um largo estudo de José Sampaio (Bruno) no prélo

As Minas de Salomão, (tradução), 1 volume 600

Revista de Portugal, 4 grossos volumes (colaboração) 12$000

A propriedade literária e artística está garantida em todos os países que aderiram à convenção de Berne—(Em Portugal, pela lei de 18 de março de 1911. No Brasil pela lei n.º 2.577 de 17 de Jan. de 1912.) {VII}

 

 

 

 

A obra dispersa de Eça de Queiroz, desde os seus primeiros folhetins na Revolução de Setembro e na Gazeta de Portugal até à sua assídua colaboração na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, e na Revista Moderna, é muito vasta, muito variada e encerra algumas das mais maravilhosas páginas do grande e saudoso escritor.

Os seus editores começam, com a publicação do presente volume, a compilação da obra póstuma e dispersa, recolhendo cuidadosamente êsse riquíssimo espólio, para o salvar, pelo livro, do esquecimento a que o condenariam a dispersão das fôlhas diárias e a sua efémera vida.

Os Contos compreendem todos os escritos dêste género que Eça de Queiroz nos deixou, a partir das Singularidades duma rapariga loura. Os seus primitivos escritos na Revolução e na{VIII} Gazeta de Portugal, obra mixta de fantasia e de crítica, seguir-se hão a êste em outro volume, já no prelo, e a que uma feliz indicação do snr. Jaime Batalha Reis[1] nos revelou o próprio título que o autor determinara dar-lhe: Prosas Bárbaras.

Mais três volumes serão destinados a coligir as suas correspondências para os jornais brasileiros, conservando-se-lhes como títulos as rúbricas sob que ali eram publicadas: Cartas de Inglaterra, Ecos de Paris e Cartas Familiares; e outros dois encerrarão[2] a sua copiosa vária, onde se misturam impressões de literatura e de arte, artigos sôbre política geral, estudos biográficos,{IX} notas de viagem, ensaios, críticas, polémica, etc.

Completará esta série um derradeiro volume com o precioso inédito do S. Cristóvão,[3] tal como o admirável artista o deixou: um esbôço magnífico, um verdadeiro improviso, traçado com largueza numa primeira factura pronta e fluente, onde a sua imaginação e a sua prosa brotam em jorros impetuosos e borbulhantes, em contrário da falsa lenda que fazia de Eça de Queiroz um criador moroso, e um escritor sem espontaneidade.

A título de curiosidade, para mostrar o poder de desenvolvimento e ampliação das suas faculdades imaginativas e como um exemplo dos seus{X} processos de trabalho, inserimos no presente volume o conto intitulado Civilização, que o autor, amplificando-o, transformou depois na deliciosa novela A Cidade e as Serras.

Ao terminar estas linhas, os editores cumprem o grato dever de testemunhar o seu reconhecimento ao snr. Francisco Ramos Paz, co-proprietário da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, que, com o mais vivo interesse pela publicação dos escritos dispersos de Eça de Queiroz, lhes forneceu obsequiosamente toda a vasta colaboração do ilustre romancista no importante jornal fluminense.

 

Pôrto, 1903.

Lelo & Irmão.

(Da primeira edição)

 

[1] ANTHERO DE QUENTAL, In Memoriam, pag. 444.

[2] Publicado num só volume—Notas Contemporâneas—1909.

[3] Incluido no volume—Últimas páginas—1911.

{1}

SINGULARIDADES
DE
UMA RAPARIGA LOURA

I

Começou por me dizer que o seu caso era simples—e que se chamava Macário...

Devo contar que conheci êste homem numa estalagem do Minho. Era alto e grosso: tinha uma calva larga, luzidia e lisa, com repas brancas que se lhe erriçavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele em roda engelhada e amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singular clareza e rectidão—por trás dos seus óculos redondos com aros de tartaruga. Tinha a barba rapada, o queixo saliente e resoluto. Trazia uma gravata de setim negro apertada por trás com uma fivela; um casaco comprido côr de pinhão, com as mangas estreitas e justas e canhões de veludilho. E pela longa{2} abertura do seu colete de sêda, onde reluzia um grilhão antigo, saíam as pregas moles de uma camisa bordada.

Era isto em setembro: já as noites vinham mais cedo, com uma friagem fina e sêca e uma escuridão aparatosa. Eu tinha descido da diligência, fatigado, esfomeado, tiritando num cobrejão de listas escarlates.

Vinha de atravessar a serra e os seus aspectos pardos e desertos. Eram oito horas da noite. Os céus estavam pesados e sujos. E, ou fôsse um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar monótono da diligência, ou fôsse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influência da paizagem escarpada e árida, sob o côncavo silêncio noturno, ou a opressão da electricidade, que enchia as alturas—o facto é que eu—que sou naturalmente positivo e realista—tinha vindo tiranizado pela imaginação e pelas quimeras. Existe, no fundo de cada um de nós, é certo,—tam friamente educados que sejâmos—um resto de misticismo; e basta às vezes uma paizagem soturna, o vélho muro de um cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras de um luar, para que êsse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a idea, e fique assim o mais matemático ou o mais crítico—tam triste, tam visionário, tam idealista—como um vélho monge poeta. A mim, o que me lançara na quimera{3} e no sonho, fôra o aspecto do mosteiro de Rastelo, que eu tinha visto, à claridade suave e outonal da tarde, na sua doce colina. Então, emquanto anoitecia, a diligência rolava contínuamente ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e o cocheiro, com o capuz do gabão enterrado na cabeça, ruminava o seu cachimbo—eu pus-me, elegíacamente, ridículamente, a considerar a esterilidade da vida: e desejava ser um monge, estar num convento, tranqùilo, entre arvoredos ou na murmurosa concavidade dum vale, e emquanto a água da cêrca canta sonoramente nas bacias de pedra, ler a Imitação, e ouvindo os rouxinóis nos loireirais ter saudades do céu.—Não se pode ser mais estúpido. Mas eu estava assim, e atribuo a esta disposição visionária a falta de espírito—a sensação—que me fez a história daquele homem dos canhões de veludilho.

A minha curiosidade começou à ceia, quando eu desfazia o peito de uma galinha afogada em arroz branco, com fatias escarlates de paio—e a criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no copo, fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada. O homem estava defronte de mim, comendo tranqùilamente a sua geleia: perguntei-lhe, com a bôca cheia, o meu guardanapo de linho de Guimarães suspenso nos dedos—se êle era de Vila Rial.{4}

—Vivo lá. Há muitos anos—disse-me êle.

—Terra de mulheres bonitas, segundo me consta—disse eu.

O homem calou-se.

—Hein?—tornei.

O homem contraiu-se num silêncio saliente. Até aí estivera alegre, rindo dilatadamente; loquaz e cheio de bonomia. Mas então imobilizou o seu sorriso fino.

Compreendi que tinha tocado a carne viva de uma lembrança. Havia de-certo no destino daquele vélho uma mulher. Aí estava o seu melodrama ou a sua farça, porque inconscientemente estabeleci-me na idea de que o facto, o caso daquele homem, devera ser grotesco e exalar escárnio.

De sorte que lhe disse:

—A mim teem-me afirmado que as mulheres de Vila Rial são as mais bonitas do Norte. Para os olhos pretos Guimarães, para corpos Santo Aleixo, para tranças os Arcos: é lá que se vêem os cabellos claros côr de trigo.

O homem estava calado, comendo, com os olhos baixos.

—Para cinturas finas Viana, para boas peles Amarante—e para isto tudo Vila Rial. Eu tenho um amigo que veio casar a Vila Rial. Talvez conheça. O Peixoto, um alto, de barba loura, bacharel.{5}

—O Peixoto, sim,—disse-me êle, olhando gravemente para mim.

—Veio casar a Vila Rial como antigamente se ia casar à Andaluzia—questão de arranjar a fina flor da perfeição.—À sua saude.

Eu evidentemente constrangia-o, porque se ergueu, foi à janela com um passo pesado, e reparei então nos seus grossos sapatos de casimira com a sola forte e atilhos de coiro. E saiu.

Quando pedi o meu castiçal, a criada trouxe-me um candieiro de latão lustroso e antigo e disse:

—O senhor está com outro. É no n.º 3.

Nas estalagens do Minho, às vezes, cada quarto é um dormitório impertinente.

—Vá—disse eu.

O n.º 3 era no fundo do corredor. Às portas dos lados os hóspedes tinham posto o seu calçado para engraxar: estavam umas grossas botas de montar, enlameadas, com esporas de correia; os sapatos brancos de um caçador; botas de proprietário, de altos canos vermelhos; as botas de um padre, altas, com a sua borla de retroz; os botins cambados de bezerro, de um estudante; e a uma das portas, o n.º 15, havia umas botinas de mulher, de duraque, pequeninas e finas, e ao lado as pequeninas botas de uma criança, todas coçadas e batidas, e os seus canos de pelica-mór caíam-lhe para os lados com os atacadores desatados. Todos dormiam.{6} Defronte do n.º 3 estavam os sapatos de casimira com atilhos: e quando abri a porta vi o homem dos canhões de veludilho, que amarrava na cabeça um lenço de sêda: estava com uma jaqueta curta de ramagens, uma meia de lã, grossa e alta, e os pés metidos nuns chinelos de ourelo.

—O senhor não repare—disse êle.

—À vontade—e para estabelecer a intimidade tirei o casaco.

Não direi os motivos porque êle daí a pouco, já deitado, me disse a sua história. Há um provérbio eslavo da Galícia que diz: o que não contas à tua mulher, o que não contas ao teu amigo, conta-lo a um estranho, na estalagem. Mas êle teve raivas inesperadas e dominantes para a sua larga e sentida confidência. Foi a respeito do meu amigo, do Peixoto, que fôra casar a Vila Rial. Vi-o chorar, àquele vélho de quási sessenta anos. Talvez a história seja julgada trivial: a mim, que nessa noite estava nervoso e sensível, pareceu-me terrível,—mas conto-a apenas como um acidente singular da vida amorosa....

Começou pois por me dizer que o seu caso era simples—e que se chamava Macário.

Perguntei-lhe então se era de uma família que eu conhecera que tinha o apelido de Macário. E como êle me respondeu que era primo dêsses, eu tive logo do seu carácter uma idea{7} simpática, porque os Macários eram uma antiga família, quási uma dinastia de comerciantes, que mantinham com uma severidade religiosa a sua vélha tradição de honra e de escrúpulo. Macário disse-me que nesse tempo, em 1823 ou 33, na sua mocidade, seu tio Francisco tinha, em Lisboa, um armazêm de panos, e êle era um dos caixeiros. Depois o tio compenetrára-se de certos instintos inteligentes e do talento prático e aritmético de Macário, e deu-lhe a escrituração. Macário tornou-se o seu guarda-livros.

Disse-me êle que sendo naturalmente linfático e mesmo tímido, a sua vida tinha nesse tempo uma grande concentração. Um trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras merendas no campo, um apuro saliente de fato e de roupas brancas, era todo o interesse da sua vida. A existência nesse tempo era caseira e apertada. Uma grande simplicidade social aclarava os costumes: os espíritos eram mais ingénuos, os sentimentos menos complicados.

Jantar alegremente numa horta, debaixo das parreiras, vendo correr a água das regas—chorar com os melodramas que rugiam entre os bastidores do Salitre, alumiados a cera, eram contentamentos que bastavam à burguesia cautelosa. Alêm disso os tempos eram confusos e revolucionários: e nada torna o homem recolhido, conchegado à lareira, simples e fácilmente{8} feliz—como a guerra. É a paz que dando os vagares da imaginação—causa as impaciências do desejo.

Macário, aos vinte e dois anos, ainda não tinha—como lhe dizia uma vélha tia, que fôra querida do desembargador Curvo Semedo, da Arcádia,—sentido Vénus.

Mas por êsse tempo veio morar para defronte do armazêm dos Macários, para um terceiro andar, uma mulher de quarenta anos, vestida de luto, uma pele branca e baça, o busto bem feito e redondo e um aspecto desejável. Macário tinha a sua carteira no primeiro andar, por cima do armazêm, ao pé de uma varanda, e dali viu uma manhã aquela mulher com o cabelo preto solto e anelado, um chambre branco e braços nus, chegar-se a uma pequena janela de peitoril, a sacudir um vestido. Macário afirmou-se e sem mais intenção dizia mentalmente que aquela mulher, aos vinte anos, devia ter sido uma pessoa cativante e cheia de domínio: porque os seus cabelos violentos e ásperos, o sobr'ôlho espesso, o lábio forte, o perfil aquilino e firme, revelavam um temperamento activo e imaginações apaixonadas. No entanto, continuou serenamente alinhando as suas cifras. Mas à noite estava sentado fumando à janela do seu quarto, que abria sôbre o pátio: era em julho e a atmosfera estava eléctrica e amorosa: a rebeca de um vizinho{9} gemia uma chácara mourisca, que então sensibilizava, e era de um melodrama; o quarto estava numa penumbra doce e cheia de mistério—e Macário, que estava em chinelas, começou a lembrar-se daqueles cabelos negros e fortes e daqueles braços que tinham a côr dos mármores pálidos: espreguiçou-se, rolou mórbidamente a cabeça pelas costas da cadeira de vime, como os gatos sensíveis que se esfregam, e decidiu bocejando que a sua vida era monótona. E ao outro dia, ainda impressionado, sentou-se à sua carteira com a janela toda aberta, e olhando o prédio fronteiro onde viviam aqueles cabelos grandes—começou a aparar vagarosamente a sua pena de rama. Mas ninguêm se chegou à janela de peitoril, com caixilhos verdes. Macário estava enfastiado, pesado—e o trabalho foi lento. Pareceu-lhe que havia na rua um sol alegre, e que nos campos as sombras deviam ser mimosas e que se estaria bem vendo o palpitar das borboletas brancas nas madre-silvas! E, quando fechou a carteira, sentiu defronte correr-se a vidraça; eram de-certo os cabelos pretos. Mas apareceram uns cabelos louros. Oh! E Macário veio logo salientemente para a varanda aparar um lápis. Era uma rapariga de vinte anos, talvez—fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a brancura da pele tinha alguma coisa da transparência das vélhas porcelanas, e havia no seu perfil uma{10} linha pura como de uma medalha antiga, e os vélhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado—pomba, arminho, neve e oiro.

Macário disse consigo:

—É filha.

A outra vestia de luto, mas esta, a loira, tinha um vestido de cassa com pintas azuis, um lenço de cambraia traspassado sôbre o peito, as mangas perdidas com rendas, e tudo aquilo era asseado, môço, fresco, flexível e tenro.

Macário nesse tempo era louro com a barba curta. O cabelo era anelado e a sua figura devia ter aquele ar sêco e nervoso que depois do século XVIII e da revolução—foi tam vulgar nas raças plebeias.

A rapariga loura reparou naturalmente em Macário, e naturalmente desceu a vidraça, correndo por trás uma cortina de cassa bordada. Estas pequenas cortinas datam de G[oe]the e teem na vida amorosa um interessante destino: revelam. Levantar-lhes uma ponta e espreitar, franzi-la suavemente, revela um fim; corrê-la, pregar nela uma flor, agitá-la fazendo sentir que por trás um rosto atento se move e espera—são vélhas maneiras com que na realidade e na arte começa o romance. A cortina ergueu-se devagarinho e o rosto louro espreitou.

Macário não me contou por pulsações—a história minuciosa do seu coração. Disse singelamente que daí a cinco dias—estava doido{11} por ela. O seu trabalho tornou-se logo vagaroso e infiel e o seu belo cursivo inglês firme e largo ganhou curvas, ganchos, rabiscos, onde estava todo o romance impaciente dos seus nervos. Não a podia ver pela manhã: o sol mordente de julho batia e escaldava a pequena janela de peitoril. Só pela tarde, a cortina se franzia, se corria a vidraça, e ela, estendendo uma almofadinha no rebordo do peitoril, vinha encostar-se mimosa e fresca com o seu leque. Leque que preocupou Macário: era uma ventarola chinesa, redonda, de sêda branca com dragões escarlates bordados à pena, uma cercadura de plumagem azul, fina e trémula como uma penugem e o seu cabo de marfim, donde pendiam duas borlas de fio de oiro, tinha incrustações de nácar à linda maneira persa.

Era um leque magnífico e naquele tempo inesperado nas mãos plebeias de uma rapariga vestida de cassa. Mas como ela era loura e a mãe tam meridional, Macário, com esta intuição interpretativa dos namorados, disse à sua curiosidade: será filha de um inglês. O inglês vai à China, à Pérsia, a Ormuz, à Austrália e vem cheio daquelas jóias dos luxos exóticos, e nem Macário sabia porque é que aquela ventarola de mandarina o preocupava assim: mas segundo êle me disse—aquilo deu-lhe no gôto.

Tinha-se passado uma semana, quando um dia Macário viu, da sua carteira, que ela, a{12} loura, saía com a mãe, porque se acostumara a considerar mãe dela aquela magnífica pessoa, magníficamente pálida e vestida de luto.

Macário veio à janela e viu-a atravessar a rua e entrarem no armazêm. No seu armazêm! Desceu logo trémulo, sôfrego, apaixonado e com palpitações. Estavam elas já encostadas ao balcão e um caixeiro desdobrava-lhes defronte casimiras pretas. Isto comoveu Macário. Êle mesmo mo disse.

—Porque emfim, meu caro, não era natural que elas viessem comprar, para si, casimiras pretas.

E não: elas não usavam amazonas, não quereriam de-certo estofar cadeiras com casimira preta, não havia homens em casa delas; portanto aquela vinda ao armazêm era um meio delicado de o ver de perto, de lhe falar, e tinha o encanto penetrante de uma mentira sentimental. Eu disse a Macário que, sendo assim, êle devia estranhar aquele movimento amoroso, porque denotava na mãe uma cumplicidade equívoca. Êle confessou-me que nem pensava em tal. O que fez foi chegar ao balcão e dizer estúpidamente:

—Sim senhor, vão bem servidas, estas casimiras não encolhem.

E a loura ergueu para êle o seu olhar azul, e foi como se Macário se sentisse envolvido na doçura de um céu.{13}

Mas quando êle ia dizer-lhe uma palavra reveladora e veemente, apareceu ao fundo do armazêm o tio Francisco, com o seu comprido casaco côr de pinhão, de botões amarelos. Como era singular e desusado achar-se o snr. guarda-livros vendendo ao balcão e o tio Francisco com a sua crítica estreita e celibatária podia escandalizar-se, Macário começou a subir vagarosamente a escada em caracol que levava ao escritório, e ainda ouviu a voz delicada da loura dizer brandamente:

—Agora queria ver lenços da Índia.

E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daqueles lenços, acamados e apertados numa tira de papel dourado.

Macário, que tinha visto naquela visita uma revelação de amor, quási uma declaração, esteve todo o dia entregue às impaciências amargas da paixão. Andava distraído, abstracto, pueril, não deu atenção à escrituração, jantou calado, sem escutar o tio Francisco que exaltava as almôndegas, mal reparou no seu ordenado que lhe foi pago em pintos às três horas, e não entendeu bem as recomendações do tio e a preocupação dos caixeiros sôbre o desaparecimento de um pacote de lenços da Índia.

—É o costume de deixar entrar pobres no armazêm—tinha dito no seu laconismo majestoso o tio Francisco.—São 12$000 réis de lenços. Lance à minha conta.{14}

Macário, no entanto, ruminava secretamente uma carta, mas sucedeu que ao outro dia, estando êle à varanda, a mãe, a de cabelos pretos, veio encostar-se ao peitoril da janela, e neste momento, passava na rua um rapaz amigo de Macário, que vendo aquela senhora afirmou-se e tirou-lhe, com uma cortesia toda risonha, o seu chapéu de palha. Macário ficou radioso: logo nessa noite procurou o seu amigo, e abruptamente, sem meia tinta:

—¿Quem é aquela mulher que tu hoje cumprimentaste defronte do armazêm?

—É a Vilaça. Bela mulher.

—E a filha?

—A filha!

—Sim, uma loura, clara, com um leque chinês.

—Ah! sim. É filha.

—É o que eu dizia....

—Sim, e então?

—É bonita.

—É bonita.

—É gente de bem, hein?

—Sim, gente de bem.

—Está bom. Tu conhece-las muito?

—Conheço-as. Muito não. Encontrava-as dantes em casa de D. Cláudia.

—Bem, ouve lá.

E Macário, contando a história do seu coração acordado e exigente e falando do amor{15} com as exaltações de então, pediu-lhe como a glória da sua vida, que achasse um meio de o encaixar lá. Não era difícil. As Vilaças costumavam ir aos sábados a casa de um tabelião muito rico na rua dos Calafates: eram assembleias simples e pacatas, onde se cantavam motetes ao cravo, se glosavam motes e havia jogos de prendas do tempo da senhora D. Maria I, e às 9 horas a criada servia a orchata. Bem. Logo no primeiro sábado, Macário, de casaca azul, calças de ganga com presilhas de trama de metal, gravata de setim roxo, curvava-se diante da espôsa do tabelião, a snr.ª D. Maria da Graça, pessoa sêca e aguçada, com um vestido bordado a matiz, um nariz adunco, uma enorme luneta de tartaruga, a pluma de marabout nos seus cabelos grisalhos. A um canto da sala já lá estava, entre um frou-frou de vestidos enormes, a menina Vilaça, a loura, vestida de branco, simples, fresca, com o seu ar de gravura colorida. A mãe Vilaça, a soberba mulher pálida, cochichava com um desembargador de figura apoplética. O tabelião era homem letrado, latinista e amigo das musas; escrevia num jornal de então, a Alcofa das Damas: porque era sobretudo galante, e êle mesmo se intitulava, numa ode pitoresca, môço escudeiro de Vénus. Assim, as suas reùniões eram ocupadas pelas belas-artes—e nessa noite um poeta do tempo{16} devia vir ler um poemeto intitulado Elmira ou a vingança do veneziano!... Começavam então a aparecer as primeiras audácias românticas. As revoluções da Grécia principiavam a atrair os espíritos romanescos e saídos da mitologia para os países maravilhosos do Oriente. Por toda a parte se falava no pachá de Janina. E a poesia apossava-se vorazmente dêste mundo novo e virginal de minaretes, serralhos, sultanas côr de ámbar, piratas do Arquipélago, e salas rendilhadas, cheias do perfume do aloés onde pachás decrépitos acariciam leões.—De sorte que a curiosidade era grande—e quando o poeta apareceu com os cabelos compridos, o nariz adunco e fatal, o pescoço entalado na alta gola do seu fraque à Restauração e um canudo de lata na mão—o snr. Macário é que não experimentou sensação alguma, porque lá estava todo absorvido, falando com a menina Vilaça. E dizia-lhe meigamente:

—¿Então, noutro dia, gostou das casimiras?

—Muito—disse ela baixo.

E, desde êsse momento, envolveu-os um destino nupcial.

No entanto, na larga sala a noite passava-se espiritualmente. Macário não pôde dar todos os pormenores históricos e característicos daquela assembleia. Lembrava-se apenas que um corregedor de Leiria recitava o Madrigal a Lídia: lia-o de pé, com uma luneta redonda aplicada{17} sôbre o papel, a perna direita lançada para diante, a mão na abertura do colete branco de gola alta. E em redor, formando círculo, as damas, com vestidos de ramagens, cobertas de plumas, as mangas estreitas terminadas num fofo de rendas, mitenes de retroz preto cheias da scintilação dos aneis, tinham sorrisos ternos, cochichos, doces murmurações, risinhos, e um brando palpitar de leques recamados de lantejoulas.—Muito bonito, diziam, muito bonito! E o corregedor, desviando a luneta, cumprimentava sorrindo—e via-se-lhe um dente pôdre.

Depois a preciosa D. Jerónima da Piedade e Sande, sentando-se com maneiras comovidas ao cravo, cantou com a sua voz roufenha a antiga ária de Sully:

Oh Ricardo, oh meu rei,
O mundo te abandona

o que obrigou o terrível Gaudêncio, democrata de 20 e admirador de Robespierre, a rosnar rancorosamente junto de Macário:

—Reis!... víboras!

Depois, o cónego Saavedra cantou uma modinha de Pernambuco muito usada no tempo do senhor D. João VI: lindas môças, lindas môças. E a noite ia assim correndo, literária, pachorrenta, erudita, requintada e toda cheia de musas.{18}

Oito dias depois, Macário era recebido em casa da Vilaça, num domingo. A mãe convidára-o, dizendo-lhe:

—Espero que o vizinho honre aquela choupana.

E até o desembargador apoplético, que estava ao lado, exclamou:

—Choupana?! diga alcáçar, formosa dama!

Estavam, nesta noite, o amigo do chapéu de palha, um vélho cavaleiro de Malta, trôpego, estúpido e surdo, um beneficiado da Sé, ilustre pela sua voz de tiple, e as manas Hilárias, a mais vélha das quais tendo assistido, como aia de uma senhora da casa da Mina, à tourada de Salvaterra, em que morreu o conde dos Arcos, nunca deixava de narrar os episódios pitorescos daquela tarde: a figura do conde dos Arcos de cara rapada e uma fita de setim escarlate no rabicho; o soneto que um magro poeta, parasita da casa de Vimioso, recitou quando o conde entrou, fazendo ladear o seu cavalo negro, arreado à espanhola, com um xairel onde as suas armas estavam lavradas em prata: o tombo que nesse momento um frade de S. Francisco deu da trincheira alta, e a hilaridade da côrte, que até a snr.ª condessa de Pavolide apertava as mãos nas ilhargas: depois el-rei o senhor D. José I, vestido de veludo escarlate, recamado de ouro, todo encostado ao rebordo do seu palanque, e fazendo girar entre{19} dois dedos a sua caixa de rapé cravejada, e por trás, imóveis, o físico Lourenço e o frade, seu confessor: depois o rico aspecto da praça cheia de gente de Salvaterra, maiorais, mendigos dos arredores, frades, lacaios, e o grito que houve, quando D. José I entrou—Viva el-rei, nosso senhor! E o povo ajoelhou, e el-rei tinha-se sentado, comendo doces, que um criado trouxe num saco de veludo, atrás dêle. Depois a morte do conde dos Arcos, os desmaios, e até el-rei todo debruçado, batendo com a mão no parapeito, gritando na confusão, e o capelão da casa dos Arcos que tinha corrido a buscar a extrema-unção. Ela, Hilária, ficara estarrecida de pavor: sentia os urros dos bois, gritos agudos de mulheres, os ganidos dos flatos, e vira então um vélho, todo vestido de veludo preto, com a fina espada na mão, debater-se entre fidalgos e damas que o seguravam, e querer atirar-se à praça, bramindo de raiva! «É o pai do conde!» explicavam em volta. Ela então desmaiara nos braços de um padre da Congregação. Quando veio a si, achou-se junto da praça; a berlinda rial estava à porta, com os bolieiros emplumados, os machos cheios de guisos, e os batedores a cavalo, à frente: via-se lá dentro el-rei, escondido ao fundo, pálido, sorvendo febrilmente rapé, todo encolhido com o confessor; e defronte, com uma das mãos apoiada à alta bengala, forte, espadaúdo, o aspecto{20} carregado, o marquês de Pombal falava devagar e intimativamente, gesticulando com a luneta. Mas os batedores picaram, os estalos dos bolieiros retiniram, e a berlinda partiu a galope, emquanto o povo gritava: Viva el-rei, nosso senhor!—e o sino da capela do paço tocava a finados! Era uma honra que el-rei concedia à casa dos Arcos.

Quando D. Hilária acabou de contar, suspirando, estas desgraças passadas, começou-se a jogar. Era singular que Macário não se lembrava o que tinha jogado nessa noite radiosa. Só se recordava que tinha ficado ao lado da menina Vilaça (que se chamava Luísa), que reparara muito na sua fina pele rosada, tocada de luz, e na meiga e amorosa pequenez da sua mão com uma unha mais polida que o marfim de Dieppe. E lembrava-se tambêm de um acidente excêntrico, que determinara nele, desde êsse dia, uma grande hostilidade ao clero da Sé. Macário estava sentado à mesa, e ao pé dêle Luísa: Luísa estava toda voltada para êle com uma das mãos apoiando a sua fina cabeça loura e amorosa, e a outra esquecida no regaço. Defronte estava o beneficiado, com o seu barrete preto, os seus óculos na ponta aguda do nariz, o tom azulado da forte barba rapada, e as suas duas grandes orelhas, complicadas e cheias de cabelo, separadas do crânio como dois postigos abertos. Ora, como era necessário{21} no fim do jôgo pagar uns tentos ao cavaleiro de Malta, que estava ao lado do beneficiado, Macário tirou da algibeira uma peça e quando o cavaleiro, todo curvado e com um ôlho pisco, fazia a sôma dos tentos nas costas dum az, Macário conversava com Luísa, e fazia girar sôbre o pano verde a sua peça de oiro, como um bilro ou um peão. Era uma peça nova que luzia, faiscava, rodando, e feria a vista como uma bola de névoa doirada. Luísa sorria vendo-a girar, girar, e parecia a Macário que todo o céu, a pureza, a bondade das flores e a castidade das estrêlas estavam naquele claro sorriso distraído, espiritual, arcangélico, com que ela seguia o giro fulgurante da peça de oiro nova. Mas de repente, a peça, correndo até à borda da mesa, caiu para o lado do regaço de Luísa, e desapareceu, sem se ouvir no soalho de tábuas o seu ruído metálico. O beneficiado abaixou-se logo cortêsmente: Macário afastou a cadeira, olhando para debaixo da mesa: a mãe Vilaça alumiou com um castiçal, e Luísa ergueu-se e sacudiu com pequenina pancada o seu vestido de cassa. A peça não apareceu.

—É celebre—disse o amigo de chapéu de palha—eu não ouvi tinir no chão.

—Nem eu, nem eu—disseram.

O beneficiado, curvado, buscava tenazmente, e a Hilária mais nova rosnava o responso de Santo António.{22}

—Pois a casa não tem buracos—dizia a mãe Vilaça.

—Sumiço assim!—resmungava o beneficiado.

No entanto Macário exalava-se em exclamações desinteressadas:

—Pelo amor de Deus! Ora que tem! Àmanhã aparecerá! Tenham a bondade! Por quem são! Então, snr.ª D. Luísa! Pelo amor de Deus! Não vale nada.

Mas mentalmente estabeleceu que houvera uma subtracção—e atribuiu-a ao beneficiado. A peça rolara, de-certo, até junto dêle sem ruido; êle pusera-lhe em cima o seu vasto sapato eclesiástico e tachado; depois, no movimento brusco e curto que tivera, empolgára-a vilmente. E, quando saíram, o beneficiado, todo embrulhado no seu vasto capote de camelão, dizia a Macário pela escada:

—¿Ora o sumiço da peça, hein? Que brincadeira!

—¿Acha, snr. beneficiado?!—disse Macário parando, pasmado da impudência.

—Ora essa! Se acho?! Se lhe parece! Uma peça de 7$000 réis! Só se o senhor as semeia... Safa! Eu dava em doido!

Macário teve tédio daquela astúcia fria. Não lhe respondeu. O beneficiado é que acrescentou:

—Àmanhã mande lá pela manhã, homem.{23} Que diabo... Deus me perdôe! Que diabo! uma peça não se perde assim. Que bolada, hein!

E Macário tinha vontade de lhe bater.

Foi neste ponto que Macário me disse, com a sua voz singularmente sentida:

—Emfim, meu amigo, para encurtarmos razões, resolvi-me casar com ela.

—Mas a peça?

—Não pensei mais nisso! Pensava eu lá na peça! Resolvi-me casar com ela!

II

Macário contou-me o que o determinara mais precisamente àquela resolução profunda e perpétua. Foi um beijo. Mas êsse caso, casto e simples, eu calo-o;—mesmo porque a única testemunha foi uma imagem em gravura da Virgem, que estava pendurada no seu caixilho de pau preto, na saleta escura que abria para a escada... Um beijo fugitivo, superficial, efémero. Mas isso bastou ao seu espírito recto e severo para o obrigar a tomá-la como espôsa, a dar-lhe uma fé imutável e a posse da sua vida. Tais foram os seus esponsais. Aquela simpática sombra das janelas vizinhas tornara-se{24} para êle um destino, o fim moral da sua vida e toda a idea dominante do seu trabalho. E esta história toma, desde logo, um alto carácter de santidade e de tristeza.

Macário falou-me muito do carácter e da figura do tio Francisco: a sua possante estatura, os seus óculos de oiro, a sua barba grisalha, em colar, por baixo do queixo, um tic nervoso que tinha numa asa do nariz, a dureza da sua voz, a sua austera e majestosa tranqùilidade, os seus princípios antigos, autoritários e tirânicos, e a brevidade telegráfica das suas palavras.

Quando Macário lhe disse, uma manhã, ao almôço, abruptamente, sem transições emolientes: «Peço-lhe licença para casar» o tio Francisco, que deitava o açúcar no seu café, ficou calado, remexendo com a colher, devagar, majestoso e terrível: e quando acabou de sorver pelo pires, com grande ruído, tirou do pescoço o guardanapo, dobrou-o, aguçou com a faca o seu palito, meteu-o na bôca e saíu: mas à porta da sala parou, e voltando-se para Macário, que estava de pé, junto da mesa, disse secamente:

—Não.

—Perdão, tio Francisco!

—Não.

—Mas oiça, tio Francisco...

—Não.{25}

Macário sentiu uma grande cólera:

—Nesse caso, faço-o sem licença.

—Despedido da casa.

—Sairei. Não haja dúvida.

—Hoje.

—Hoje.

E o tio Francisco ia a fechar a porta, mas voltando-se:

—Olá!—disse êle a Macário, que estava exasperado, apoplético, raspando nos vidros da janela.

Macário voltou-se com uma esperança.

—Dê-me daí a caixa do rapé—disse o tio Francisco.

Tinha-lhe esquecido a caixa! Portanto, estava perturbado.

—Tio Francisco...—começou Macário.

—Basta. Estamos a 12. Receberá o seu mês por inteiro. Vá.

As antigas educações produziam estas situações insensatas. Era brutal e idiota. Macário afirmou-me que era assim.

Nessa tarde Macário achava-se no quarto de uma hospedaria na Praça da Figueira com seis peças, o seu baú de roupa branca e a sua paixão. No entanto estava tranqùilo. Sentia o seu destino cheio de apuros. Tinha relações e amizades no comércio. Era conhecido vantajosamente: a nitidez do seu trabalho, a sua honra tradicional, o nome da família, o{26} seu tacto comercial, o seu belo cursivo inglês, abriam-lhe, de par em par, respeitosamente, todas as portas dos escritórios. No outro dia foi procurar alegremente o negociante Faleiro, antiga relação comercial da sua casa.

—De muito boa vontade, meu amigo—disse-me êle.—Quem mo déra cá! Mas, se o recebo, fico de mal com seu tio, meu vélho amigo de vinte anos. Êle declarou-mo categóricamente. Bem vê. Fôrça maior. Eu sinto, mas...

E todos, a quem Macário se dirigiu, confiado em relações sólidas, receavam ficar de mal com o seu tio, vélho amigo de vinte anos.

E todos sentiam, mas...

Macário dirigiu-se então a negociantes novos, estranhos à sua casa e à sua família, e sobretudo aos estrangeiros: esperava encontrar gente livre da amizade de vinte anos do tio. Mas, para êsses, Macário era desconhecido, e desconhecidos por igual a sua dignidade e o seu hábil trabalho. Se tomavam informações, sabiam que êle fôra despedido da casa do tio repentinamente, por causa duma rapariga loura, vestida de cassa. Esta circunstância tirava as simpatias a Macário. O comércio evita o guarda-livros sentimental. De sorte que Macário começou a sentir-se num momento agudo. Procurando, pedindo, rebuscando, o tempo passava, sorvendo, pinto a pinto, as suas seis peças.{27}

Macário mudou para uma estalagem barata, e continuou farejando. Mas, como fôra sempre de temperamento recolhido, não criara amigos. De modo que se encontrava desamparado e solitário—e a vida aparecia-lhe como um descampado.

As peças findaram. Macário entrou, pouco a pouco, na tradição antiga da miséria. Ela tem solenidades fatais e estabelecidas: começou por empenhar—depois vendeu. Relógio, aneis, casaco azul, cadeia, paletot de alamares, tudo foi levando pouco e pouco, embrulhado debaixo do chale, uma vélha sêca e cheia de asma.

No entanto via Luísa de noite, na saleta escura que dava para o patamar: uma lamparina ardia em cima da mesa: era feliz ali naquela penumbra, todo sentado castamente, ao pé de Luísa, a um canto de um vélho canapé de palhinha. Não a via de dia, porque trazia já a roupa usada, as botas cambadas, e não queria mostrar à fresca Luísa, toda mimosa nas suas cambraias asseadas, a sua miséria remendada: ali, àquela luz ténue e esbatida, êle exalava a sua paixão crescente e escondia o seu fato decadente. Segundo me disse Macário—era muito singular o temperamento de Luísa. Tinha o carácter louro como o cabelo—se é certo que o louro é uma côr fraca e desbotada: falava pouco, sorria sempre com os seus brancos dentinhos,{28} dizia a tudo pois sim: era muito simples, quási indiferente, cheia de transigências.

Amava de-certo Macário, mas com todo o amor que podia dar a sua natureza débil, aguada, nula. Era como uma estriga de linho, fiava-se como se queria: e às vezes, naqueles encontros noturnos, tinha sono.

Um dia, porêm, Macário encontrou-a excitada: estava com pressa, o chale traçado à tôa, olhando sempre para a porta interior.

—A mamã percebeu—disse ela.

E contou-lhe que a mãe desconfiava, ainda rabugenta e áspera, e que de-certo farejava aquele plano nupcial tramado como uma conjuração.

—¿Porque não me vens pedir à mamã?

—Mas, filha, se eu não posso! Não tenho arranjo nenhum. Espera. É mais um mês talvez. Tenho agora aí um negócio em bom caminho. Morríamos de fome.

Luísa calou-se, torcendo a ponta do chale, com os olhos baixos.

—¿Mas ao menos—disse ela—emquanto eu te não fizer sinal da janela, não subas mais, sim?

Macário rompeu a chorar, os soluços saíam violentos e desesperados.

—Chut!—dizia-lhe Luísa.—Não chores alto!...

Macário contou-me a noite que passou, ao{29} acaso pelas ruas, ruminando febrilmente a sua dor, e lutando, sob a friagem de janeiro, na sua quinzena curta. Não dormiu, e logo pela manhã, ao outro dia, entrou como uma rajada no quarto do tio Francisco e disse-lhe abruptamente, secamente:

—É tudo o que tenho—e mostrava-lhe três pintos.—Roupa, estou sem ela. Vendi tudo. Daqui a pouco tenho fome.

O Tio Francisco, que fazia a barba à janela, com o lenço da Índia amarrado na cabeça, voltou-se e, pondo os óculos, fitou-o.

—A sua carteira lá está. Fique—e acrescentou, com um gesto decisivo—solteiro.

—Tio Francisco, ouça-me!...

—Solteiro, disse eu—continuou o tio Francisco, dando o fio à navalha numa tira de sola.

—Não posso.

—Então, rua!

Macário saíu, estonteado. Chegou a casa, deitou-se, chorou e adormeceu. Quando saiu, à noitinha, não tinha resolução, nem idea. Estava como uma esponja saturada. Deixava-se ir.

De repente, uma voz disse de dentro de uma loja:

—Eh! pst! olá!

Era o amigo do chapéu de palha: abriu grandes braços pasmados.

—Que diacho! desde manhã que te procuro{30}

E contou-lhe que tinha chegado da província, tinha sabido a sua crise e trazia-lhe um desenlace.

—Queres?

—Tudo.

Uma casa comercial queria um homem hábil, resoluto e duro, para ir numa comissão difícil e de grande ganho a Cabo-Verde.

—Pronto!—disse Macário.—Pronto! Àmanhã.

E foi logo escrever a Luísa, pedindo-lhe uma despedida, um último encontro, aquele em que os braços desolados e veementes tanto custam a desenlaçar-se. Foi. Encontrou-a toda embrulhada no seu chale, tiritando de frio. Macário chorou. Ela, com a sua passiva e loura doçura, disse-lhe:

—Fazes bem. Talvez ganhes.

E ao outro dia Macário partiu.

Conheceu as viagens trabalhosas nos mares inimigos, o enjôo monótono num beliche abafado, os duros sóis das colónias, a brutalidade tirânica dos fazendeiros ricos, o pêso dos fardos humilhantes, as dilacerações da ausência, as viagens ao interior das terras negras e a melancolia das caravanas que costeiam por violentas noites, durante dias e dias, os rios tranqùilos, donde se exala a morte.

Voltou.

E logo nessa tarde a viu a ela, Luísa, clara,{31} fresca, repousada, serena, encostada ao peitoril da janela, com a sua ventarola chinesa. E ao outro dia, sôfregamente, foi pedi-la à mãe. Macário tinha feito um ganho saliente—e a mãe Vilaça abriu-lhe uns grandes braços amigos, cheia de exclamações. O casamento decidiu-se para daí a um ano.

—Porquê?—disse eu a Macário.

E êle explicou-me que os lucros de Cabo-Verde não podiam constituir um capital definitivo: eram apenas um capital de habilitação. Trazia de Cabo-Verde elementos de poderosos negócios: trabalharia, durante um ano, heróicamente, e ao fim poderia, sossegadamente, criar uma família.

E trabalhou: pôs naquele trabalho a fôrça criadora da sua paixão. Erguia-se de madrugada, comia à pressa, mal falava. À tardinha ia visitar Luísa. Depois voltava sôfregamente para a fadiga, como um avaro para o seu cofre. Estava grosso, forte, duro, fero: servia-se com o mesmo ímpeto das ideas e dos músculos: vivia numa tempestade de cifras. Às vezes Luísa, de passagem, entrava no seu armazêm: aquele pousar de ave fugitiva dava-lhe alegria, fé, reconforto para todo um mês cheiamente trabalhado.

Por êsse tempo o amigo do chapéu de palha veio pedir a Macário que fôsse seu fiador por uma grande quantia que êle pedira para{32} estabelecer uma loja de ferragens em grande. Macário, que estava no vigor do seu crédito, cedeu com alegria. O amigo do chapéu de palha é que lhe dera o negócio providencial de Cabo-Verde. Faltavam então dois meses para o casamento. Macário já sentia, por vezes, subirem-lhe ao rosto as febris vermelhidões da esperança. Já começara a tratar dos banhos. Mas um dia o amigo do chapéu de palha desapareceu com a mulher de um alferes. O seu estabelecimento estava em comêço. Era uma confusa aventura. Não se pôde nunca precisar nítidamente aquele embróglio doloroso. O que era positivo é que Macário era fiador, Macário devia reembolsar. Quando o soube, empalideceu e disse simplesmente:

—Liquído e pago!

E quando liquidou, ficou outra vez pobre. Mas nesse mesmo dia, como o desastre tivera uma grande publicidade, e a sua honra estava santificada na opinião, a casa Peres & C.ª, que o mandara a Cabo-Verde, veio propor-lhe uma outra viagem e outros ganhos.

—Voltar a Cabo-Verde outra vez!

—Faz outra vez fortuna, homem. O senhor é o diabo!—disse o snr. Eleutério Peres.

Quando se viu assim, só e pobre, Macário desatou a chorar. Tudo estava perdido, findo, extinto; era necessário recomeçar pacientemente a vida, voltar às longas misérias de{33} Cabo-Verde, tornar a tremer os passados desesperos, suar os antigos suores! E Luísa? Macário escreveu-lhe. Depois, rasgou a carta. Foi a casa dela: as janelas tinham luz: subiu até ao primeiro andar, mas aí tomou-o uma mágoa, uma covardia de revelar o desastre, o pavor trémulo de uma separação, o terror de ela se recusar, negar-se, hesitar! ¿E quereria ela esperar mais? Não se atreveu a falar, explicar, pedir; desceu, pé-ante-pé. Era noite. Andou ao acaso pelas ruas: havia um sereno e silencioso luar. Ia sem saber: de repente ouviu, de uma janela alumiada, uma rabeca que tocava a xácara mourisca. Lembrou-se do tempo em que conhecera Luísa, do bom sol claro que havia então, e do vestido dela, de cassa com pintas azuis! Estava na rua onde eram os armazêns do tio. Foi caminhando. Pôs-se a olhar para a sua antiga casa. A janela do escritório estava fechada. Quantas vezes dali vira Luísa, e o brando movimento do seu leque chinês! Mas uma janela, no segundo andar, tinha luz; era o quarto do tio. Macário foi observar mais de longe: uma figura estava encostada, por dentro, à vidraça: era o tio Francisco. Veio-lhe uma saudade de todo o seu passado simples, retirado, plácido. Lembrava-lhe o seu quarto, e a vélha carteira com fecho de prata, e a miniatura de sua mãe, que estava por cima da barra do leito; a sala de{34} jantar e o seu vélho aparador de pau preto, e a grande caneca de água, cuja asa era uma serpente irritada. Decidiu-se, e impelido por um instinto, bateu à porta. Bateu outra vez. Sentiu abrir a vidraça, e a voz do tio perguntar:

—Quem é?

—Sou eu, tio Francisco, sou eu. Venho dizer-lhe adeus.

A vidraça fechou-se, e daí a pouco a porta abriu-se, com um grande ruído de ferrolhos. O tio Francisco tinha um candieiro de azeite na mão. Macário achou-o magro, mais vélho. Beijou-lhe a mão.

—Suba—disse o tio.

Macário ia calado, cosido com o corrimão.

Quando chegou ao quarto, o tio Francisco poisou o candieiro sôbre uma larga mesa de pau-santo, e de pé, com as mãos nos bolsos, esperou.

Macário estava calado, anediando a barba.

—Que quer?—gritou-lhe o tio.

—Vinha dizer-lhe adeus; volto para Cabo-Verde.

—Boa viagem.

E o tio Francisco, voltando-lhe as costas, foi rufar na vidraça.

Macário ficou imóvel, deu dois passos no quarto, todo revoltado, e ia sair.

—¿Onde vai, seu estúpido?—gritou-lhe o tio.

—Vou-me.{35}

—Sente-se ali!

E o tio Francisco continuou, com grandes passadas pelo quarto:

—O seu amigo é um canalha! Loja de ferragens! Não está má! O senhor é um homem de bem. Estúpido, mas homem de bem. Sente-se ali! Sente-se! O seu amigo é um canalha! O senhor é um homem de bem! Foi a Cabo-Verde! Bem sei! Pagou tudo. Está claro! Tambêm sei! Àmanhã faz o favor de ir para a sua carteira, lá para baixo. Mandei pôr palhinha nova na cadeira. Faz favor de pôr na factura Macário & Sobrinho. E case. Case, e que lhe preste! Levante dinheiro. O senhor precisa de roupa branca e de mobília. Levante dinheiro. E meta na minha conta. A sua cama lá está feita.

Macário, estonteado, radioso, com as lágrimas nos olhos, queria abraçá-lo.

—Bem, bem. Adeus!

Macário ia sair.

—¿Oh! burro, pois quer-se ir desta sua casa?

E, indo a um pequeno armário, trouxe geleia, um covilhete de doce, uma garrafa antiga do Pôrto e biscoitos.

—Côma!

E sentando-se ao pé dêle, e tornando a chamar-lhe estúpido, tinha uma lágrima a correr-lhe pelo engelhado da pele.

De sorte que o casamento foi decidido para{36} dali a um mês. E Luísa começou a tratar do seu enxoval.

Macário estava então na plenitude do amor e da alegria.

Via o fim da sua vida preenchido, completo, feliz. Estava quási sempre em casa da noiva, e um dia andando a acompanhá-la, em compras, pela lojas, êle mesmo lhe quisera fazer um pequeno presente. A mãe tinha ficado numa modista, num primeiro andar da rua do Ouro, e êles tinham descido, alegremente, rindo, a um ourives que havia em baixo, no mesmo prédio, na loja.

O dia estava de inverno, claro, fino, frio, com um grande céu azul-ferrete, profundo, luminoso, consolador.

—Que bonito dia!—disse Macário.

E com a noiva pelo braço, caminhou um pouco, ao comprido do passeio.

—Está!—disse ela.—Mas podem reparar; nós sós...

—Deixa, está tam bom...

—Não, não.

E Luísa arrastou-o brandamente para a loja do ourives. Estava apenas um caixeiro, trigueiro, de cabelo hirsuto.

Macário disse-lhe:

—Queria ver aneis.

—Com pedras—disse Luísa—e o mais bonito.{37}

—Sim, com pedras—disse Macário.—Ametista, granada. Emfim, o melhor.

E, no entanto, Luísa ia examinando as montres forradas de veludo azul, onde reluziam as grossas pulseiras cravejadas, os grilhões, os colares de camafeus, os aneis, as finas alianças frágeis como o amor, e toda a scintilação da pesada ourivesaria.

—Vê, Luísa—disse Macário.

O caixeiro tinha estendido, na outra extremidade do balcão, em cima do vidro da montre, um reluzente espalhado de aneis de ouro, de pedras, lavrados, esmaltados; e Luísa, tomando-os e deixando-os com as pontas dos dedos, ia-os correndo e dizendo:

—É feio... É pesado... É largo...

—Vê este—disse-lhe Macário.

Era um anel de pequenas pérolas.

—É bonito—respondeu ela.—É lindo!

—Deixa ver se serve—tornou Macário.

E tomando-lhe a mão, meteu-lhe o anel devagarinho, docemente, no dedo; e ela ria, com os seus brancos dentinhos finos, todos esmaltados.

—É muito largo—disse Macário.—Que pena!

—Aperta-se, querendo. Deixe a medida. Tem-no pronto àmanhã.

—Boa idea—disse Macário—sim senhor. Porque é muito bonito. Não é verdade? As{38} pérolas muito iguais, muito claras. Muito bonito! E êstes brincos?—acrescentou, indo ao fim do balcão, a outra montre.—¿Êstes brincos com uma concha?

—Dez moedas—disse o caixeiro.

E, no entanto, Luísa continuava examinando os aneis, experimentando-os em todos os dedos, revolvendo aquela delicada montre, scintilante e preciosa.

Mas, de repente, o caixeiro fez-se muito pálido, e afirmou-se em Luísa, passeando vagarosamente a mão pela cara.

—Bem—disse Macário, aproximando-se—então àmanhã temos o anel pronto. A que horas?

O caixeiro não respondeu e começou a olhar fixamente para Macário.

—A que horas?

—Ao meio dia.

—Bem, adeus—disse Macário.

E iam sair. Luísa trazia um vestido de lã azul, que arrastava um pouco, dando uma ondulação melodiosa ao seu passo, e as suas mãos pequeninas estavam escondidas num regalo branco.

—Perdão!—disse de repente o caixeiro.

Macário voltou-se.

—O senhor não pagou...

Macário olhou para êle gravemente.

—Está claro que não. Àmanhã venho buscar o anel, pago àmanhã.{39}

—Perdão!—insistiu o caixeiro—mas o outro...

—Qual outro?—exclamou Macário com uma voz surpreendida, adiantando-se para o balcão.

—Essa senhora sabe—afirmou o caixeiro.—Essa senhora sabe...

Macário tirou a carteira lentamente.

—Perdão, se há uma conta antiga...

O caixeiro abriu o balcão, e com um aspecto resoluto:

—Nada, meu caro senhor, é de agora. É um anel com dois brilhantes que aquela senhora leva.

—Eu!—disse Luísa, com a voz baixa, toda escarlate.

—Que é? Que está a dizer?

E Macário, pálido, com os dentes cerrados, contraído, fitava o caixeiro coléricamente.

O caixeiro disse então:

—Essa senhora tirou dali um anel.

Macário ficou imóvel, encarando-o.

—Um anel com dois brilhantes—continuou o rapaz.—Vi perfeitamente.

O caixeiro estava tam excitado, que a sua voz gaguejava, prendia-se espessamente.

—Essa senhora não sei quem é. Mas tirou o anel. Tirou-o dali...

Macário, maquinalmente, agarrou-lhe no braço, e voltando-se para Luísa, com a palavra{40} abafada, gotas de suor na testa, lívido:

—Luísa, dize...

Mas a voz cortou-se-lhe.

—Eu...—balbuciou ela, trémula, assombrada, enfiada, decomposta.

E deixou cair o regalo no chão.

Macário veio para ela, agarrou-lhe no pulso fitando-a: e o seu aspecto era tam resoluto e tam imperioso, que ela meteu a mão no bôlso, bruscamente, apavorada, e mostrando o anel:

—Não me faça mal!—suplicou, encolhendo-se toda.

Macário ficou com os braços caidos, o ar abstracto, os beiços brancos; mas de repente, dando um puxão ao casaco, recuperando-se, disse ao caixeiro:

—Tem razão. Era distracção... Está claro! Esta senhora tinha-se esquecido. É o anel. Sim, senhor, evidentemente... Tem a bondade. Toma, filha, toma. Deixa estar, êste senhor embrulha-o. Quanto custa?

Abriu a carteira e pagou.

Depois apanhou o regalo, sacudiu-o brandamente, limpou os beiços com o lenço, deu o braço a Luísa, e dizendo ao caixeiro: desculpe, desculpe, levou-a, inerte, passiva, aterrada, semi-morta.

Deram alguns passos na rua, que um largo sol iluminava intensamente: as seges cruzavam-se, rolando ao estalido do chicote: figuras risonhas{41} passavam, conversando: os pregões subiam em gritos alegres: um cavaleiro de calção de anta fazia ladear o seu cavalo, enfeitado de rosetas; e a rua estava cheia, ruidosa, viva, feliz e coberta de sol.

Macário ia maquinalmente, como no fundo de um sonho. Parou a uma esquina. Tinha o braço de Luísa passado no seu; e via-lhe a mão pendente, a sua linda mão de cera, com as veias docemente azuladas, os dedos finos e amorosos: era a mão direita, e aquela mão era a da sua noiva! E, instintivamente, leu o cartaz que anunciava, para esta noite, Palafoz em Saragoça.

De repente, soltando o braço de Luísa, disse-lhe baixo:

—Vai-te.

—Ouve!...—rogou ela, com a cabeça toda inclinada.

—Vai-te.—E com a voz abafada e terrível:—Vai-te! Olha que chamo. Mando-te para o Aljube. Vai-te.

—Mas ouve, Jesus!

—Vai-te!—E fez um gesto, com o punho cerrado.

—Pelo amor de Deus, não me batas aqui!—disse ela, sufocada.

—Vai-te! Podem reparar. Não chores. Olha que vêem. Vai-te!

E chegando-se para ela, disse baixo:

—És uma ladra!{42}

E voltando-lhe as costas, afastou-se, devagar, riscando o chão com a bengala.

A distância, voltou-se: ainda viu, através dos vultos, o seu vestido azul.

Como partiu nessa tarde para a província, não soube mais daquela rapariga loura.{43}

UM POETA LÍRICO

Aqui está, simplesmente, sem frases e sem ornatos, a história triste do poeta Korriscosso. De todos os poetas líricos de que tenho notícia, é êste, certamente, o mais infeliz. Conheci-o em Londres, no hotel de Charing-Cross, uma madrugada regelada de dezembro. Tinha eu chegado do continente, prostrado por duas horas de Canal da Mancha... Ah! que mar! E era só uma brisa fresca de Noroeste: mas ali, no tombadilho, sob uma capa de oleado de que um marujo me tinha coberto, como se cobre um corpo morto, fustigado da neve e da vaga, oprimido por aquela treva tumultuosa que o paquete ia rompendo aos roncos e aos encontrões—parecia-me um tufão dos mares da China...{44}

Apenas entrei no hotel, gelado e estremunhado, corri ao vasto fogão do perístilo, e ali fiquei, saturando-me daquela paz quente em que a sala estava adormecida, com os olhos beatamente postos na boa brasa escarlate... E foi então que vi aquela figura esguia e longa, já de casaca e gravata branca, que do outro lado da chaminé, de pé, com a taciturna tristeza duma cegonha que scisma, olhava tambêm os carvões ardentes, com um guardanapo no braço. Mas o porteiro tinha rolado a minha bagagem, e eu fui inscrever-me ao bureau. A guarda-livros, tesa e loura, com um perfil antiquado de medalha safada, pousou o seu crochet ao lado da sua chávena de chá, acariciou com um gesto doce os dois bandós louros, assentou correctamente o meu nome, de dedinho no ar, fazendo rebrilhar um diamante, e eu ia subir a vasta escadaria,—quando a figura magra e fatal se dobrou num ângulo, e murmurou-me num inglês silabado:

—Já está servido o almôço das sete...

Mas eu não queria o almôço das sete. Fui dormir.

Mais tarde, já repousado, fresco do banho, quando desci ao restaurante para o lunch, avistei logo, plantado melancólicamente ao pé da larga janela, o indivíduo esguio e triste. A sala estava deserta numa luz parda; os fogões flamejavam; e fóra, no silêncio do domingo,{45} nas ruas mudas, a neve caía sem cessar dum ceu amarelento e baço. Eu via apenas as costas do homem; mas havia na sua linha magra e um pouco dobrada uma expressão tam evidente de desalento, que me interessei por aquela figura. O cabelo comprido, de tenor, caído sôbre a gola da casaca, era, manifestamente, dum meridional; e toda a sua magreza friorenta se encolhia ao aspecto daqueles telhados cobertos de neve, na sensação daquele silêncio lívido... Chamei-o. Quando êle se voltou, a sua fisionomia, que apenas entrevira na véspera, impressionou-me: era um carão longo e triste, muito moreno, de nariz judaico e uma barba curta e frisada, uma barba de Cristo em estampa romântica; a testa era destas que, em boa literatura, se chama, creio eu, fronte; era larga e era lustrosa. Tinha o olhar encovado e vago, com uma indecisão de sonho nadando num fluido enternecido... E que magreza! quando andava, a calça curta torcia-se em tôrno da canela como pregas de bandeira em tôrno dum mastro: a casaca tinha dobras de túnica ampla; as duas abas compridas e agudas eram desgraçadamente grotescas. Recebeu a ordem do meu almôço, sem me olhar, num tédio resignado: arrastou-se para o comptoir onde o maître de hotel lia a Bíblia, passou a mão pela testa com um gesto errante e dolente, e disse-lhe numa voz surda:{46}

—Nùmero 307. Duas costeletas. Chá...

O maître de hotel afastou a Bíblia, inscreveu o menu—e eu acomodei-me à mesa, e abri o volume de Tennyson que trouxera para almoçar comigo—porque, creio que lhes disse, era domingo, dia sem jornais e sem pão fresco. Fóra continuava a nevar sôbre a cidade muda. A uma mesa distante, um vélho côr de tijolo e todo branco de cabelo e de suíças, que acabara de almoçar, dormitava de mãos no ventre, bôca aberta, e luneta na ponta do nariz. E o único som vinha da rua, uma voz gemente que a neve abafava mais, uma voz pedinte que à esquina defronte garganteava um psalmo... Um domingo de Londres.

Foi o magro que me trouxe o almôço—e apenas êle se aproximou, com o serviço do chá, eu senti logo que aquele volume de Tennyson nas minhas mãos o tinha interessado e impressionado: foi um olhar rápido, gulosamente fixado na página aberta, um estremecimento quási imperceptível,—emoção fugitiva, de-certo, porque depois de ter pousado o serviço, rodou sôbre os calcanhares e foi plantar-se, melancólicamente, à janela, de ôlho triste e posto na neve triste. Eu atribuí aquele movimento curioso ao esplendor da encadernação do volume, que eram os Idílios de El-Rei, em marroquim negro, com o escudo de armas de Lançarote do Lago—o pelicano de oiro sôbre um mar de sinopla.{47}

Nessa noite parti no expresso para a Escócia, e ainda não tinha passado York, adormecida na sua gravidade episcopal, já me esquecera o criado romanesco do restaurante de Charing-Cross. Foi só daí a um mês, ao voltar a Londres, que entrando no restaurante, e revendo aquela figura lenta e fatal atravessar com um prato de roast-beef numa das mãos e na outra um puding de batata, senti renascer o antigo interesse. E nessa noite mesmo, tive a singular felicidade de saber o seu nome e de entrever um fragmento do seu passado. Era já tarde e eu voltava do Covent-Garden, quando no perístilo do hotel encontrei, majestoso e próspero, o meu amigo Bracolletti.

¿Não conhecem Bracolletti? A sua presença é formidável; tem a amplidão pançuda, o negro cerrado da barba, a lentidão, o cerimonial dum pachá gordo; mas esta ponderosa gravidade turca é temperada, em Bracolletti, pelo sorriso e pelo olhar. Que olhar! Um olhar doce, que me faz lembrar o dos animais da Síria: é o mesmo enternecimento. Parece errar no seu fluido macio a religiosidade meiga das raças que dão os Messias... Mas o sorriso! O sorriso de Bracolletti é a mais complexa, a mais perfeita, a mais rica das expressões humanas; há finura, inocência, bonomia, abandono, ironia doce, persuasão, naqueles dois lábios que se descerram e que deixam brilhar um esmalte de dentes{48} de virgem... Ah! mas tambêm êste sorriso é a fortuna de Bracolletti.

Moralmente, Bracolletti é um hábil. Nasceu em Esmirna de pais gregos; é tudo o que êle revela: de resto, quando se lhe pergunta pelo seu passado, o bom grego rola um momento a cabeça de ombro a ombro, esconde sob as palpebras cerradas com bonomia o seu ôlho maometano, desabrocha o sorriso duma doçura de tentar abelhas, e murmura, como afogado em bondade e em enternecimento:

Eh! mon Dieu! Eh! mon Dieu!...

Nada mais. Parece, porêm, que viajou,—porque conhece o Perú, a Crimeia, o Cabo da Boa-Esperança, os países exóticos—tam bem como Regent-Street: mas é evidente para todos que a sua existência não foi tecida, como a dos vulgares aventureiros do Levante, de oiro e estôpa, de esplendores e pelintrices: é um gordo e, portanto, um prudente: o seu magnífico solitário nunca deixou de lhe brilhar no dedo: nenhum frio jàmais o surpreendeu sem uma pelissa de dois mil francos: e nunca deixa de ganhar, todas as semanas, no Fraternal Club, de que é um membro querido, dez libras ao whist. É um forte.

Mas tem uma debilidade. É singularmente guloso de rapariguinhas de dôze a catorze anos: gosta delas magrinhas, muito louras, e com o hábito de praguejar. Coleciona-as{49} pelos bairros pobres de Londres, com método. Instala-as em casa, e ali as tem, como passarinhos na gaiola, metendo-lhes a papinha no bico, ouvindo-as palrar todo baboso, animando-as a que lhe roubem os shillings da algibeira, gozando o desenvolvimento dos vícios naquelas flores, pondo-lhes ao alcance as garrafas de gin para que os anjinhos se embebedem;—e quando alguma, excitada de álcool, de cabelo ao vento e face acesa, o injuría, o arrepela, baba obscenidades,—o bom Bracolletti, encruzado no sofá, de mãos beatamente cruzadas na pança, o olhar afogado em êxtase, murmura no seu italiano da costa síria.

Piccolina! Gentilleta!

Querido Bracolletti! Foi, realmente, com prazer, que o abracei, nessa noite, em Charing-Cross: e como nos não víamos há muito, fomos cear juntos ao restaurante. O criado triste lá estava no seu comptoir, curvado sôbre o Journal des Debats. E apenas Bracolletti apareceu, na sua majestade de obeso, o homem estendeu-lhe silenciosamente a mão; foi um shake-hands solene, enternecido e sincero.

Bom Deus, eram amigos! Arrebatei Bracolletti para o fundo da sala, e vibrando de curiosidade, interroguei-o com sofreguidão. Quis primeiro o nome do homem.

—Chama-se Korriscosso—disse-me Bracolletti, grave.{50}

Quis depois a sua história. Mas Bracolletti, como os deuses da Ática que, nos seus embaraços no mundo, se recolhiam à sua nuvem, Bracolletti refugiou-se na sua vaga reticência.

Eh! mon Dieu!... Eh! mon Dieu!...

—Não, não, Bracolletti. Vejâmos. Quero-lhe a história... Aquela face fatal e baironeana deve ter uma história...

Bracolletti então tomou todo o ar cândido que lhe permitem a sua pança e as suas barbas—e confessou-me, deixando cair as frases às gotas, que tinham viajado ambos na Bulgária e no Montenegro... Korriscosso foi seu secretário... Boa letra... Tempos difíceis... Eh! mon Dieu!...

—De onde é êle?

Bracolletti respondeu sem hesitar, baixando a voz com um gesto repassado de desconsideração:

—É um grego de Atenas.

O meu interesse sumiu-se como a água que a areia absorve. Quando se tem viajado no Oriente e nas escalas do Levante, adquire-se fácilmente o hábito, talvez injusto, de suspeitar do grego: aos primeiros que se vêem, sobretudo tendo uma educação universitária e clássica, o entusiasmo acende-se um pouco, pensa-se em Alcibíades e em Platão, nas glórias duma raça estética e livre, e perfilam-se na imaginação as linhas augustas do Pártenon.{51} Mas, depois de os ter freqùentado, às mesas redondas e nos tombadilhos das Messageries, e principalmente depois de ter escutado a lenda de velhacaria que êles tem deixado desde Esmirna até Túnis, os outros que se vêem provocam, apenas, êstes movimentos: abotoar rápidamente o casaco, cruzar fortemente os braços sôbre a cadeia do relógio, e aguçar o intelecto para rechassar a escroquerie. A causa desta reputação funesta é que a gente grega, que emigra para as escalas do Levante, é uma plebe torpe, parte pirata e parte lacaia, bando de rapina astuto e perverso. A verdade é que apenas soube Korriscosso um grego, lembrei-me logo que o meu belo volume de Tennyson, na minha última estada em Charing-Cross, me desaparecera do quarto, e recordei o olhar de gula e de prêsa que cravara nele Korriscosso... Era um bandido!

E durante a ceia não falamos mais de Korriscosso. Serviu-nos outro criado, rubro, honesto e são. O lúgubre Korriscosso não se afastou do comptoir abismado no Journal des Debats.

Nessa noite aconteceu, ao recolher-me ao meu quarto, que me perdi... O hotel estava atulhado, e eu tinha sido alojado naqueles altos de Charing-Cross, numa complicação de corredores, escadas, recantos, ângulos, onde é quási necessário roteiro e bússola.{52}

De castiçal na mão, penetrei num passadiço onde corria um bafo morno de viela mal arejada. As portas aí não tinham números, mas pequenos cartões colados onde estavam inscritos nomes: John Smith, Charlie, Willie... Emfim, eram evidentemente as habitações dos criados. De uma porta aberta saía a claridade de um bico de gás; adiantei-me, e vi logo Korriscosso, ainda de casaca, sentado a uma mesa alastrada de papeis, de testa pendida sôbre a mão, escrevendo.

—¿Pode-me indicar o caminho para o número 508?—balbuciei.

Êle ergueu para mim um olhar estremunhado e ennevoado; parecia ressurgir de muito longe, de um outro universo; batia as pálpebras, repetindo:

—508? 508?...

Foi então que eu avistei, sôbre a mesa, entre papeis, colarinhos sujos e um rosário—o meu volume de Tennyson! Êle viu o meu olhar, o bandido! e acusou-se todo numa vermelhidão que lhe inundou a face chupada. O meu primeiro movimento foi não reconhecer o livro: como era um movimento bom, e obedecendo logo à moral superior do mestre Talleyrand, reprimi-o; apontando o volume com um dedo severo, um dedo de Providência irritada, disse-lhe:

—É o meu Tennyson...{53}

Não sei que resposta êle tartamudeou, porque eu, apiedado, retomado tambêm pelo interesse que me dava aquela figura picaresca de grego sentimental, acrescentei num tom repassado de perdão e de justificação:

—¿Grande poeta, não é verdade? Que lhe pareceu? Tenho a certeza que se entusiasmou...

Korriscosso corou mais: mas não era o despeito humilhado do salteador surpreendido: era, julguei eu, a vergonha de ver a sua inteligência, o seu gôsto poético adivinhados—e de ter no corpo a casaca coçada de criado de restaurante. Não respondeu. Mas as páginas do volume, que eu abri, responderam por êle; a brancura das margens largas desaparecia sob uma rêde de comentários a lápis: Sublime! Grandioso! Divino!—palavras lançadas numa letra convulsiva, num tremor de mão, agitada por uma sensibilidade vibrante...

No entanto, Korriscosso permanecia de pé, respeitoso, culpado, de cabeça baixa, com o laço da gravata branca fugindo para o cachaço. Pobre Korriscosso! Compadeci-me daquela atitude, revelando todo um passado sem sorte, tantas tristezas de dependência... Lembrei-me que nada impressiona o homem do Levante como um gesto de drama e de palco; estendi-lhe ambas as mãos num movimento à Talma, e disse-lhe:{54}

—Eu tambem sou poeta!...

Esta frase extraordinária pareceria grotesca e impudente a um homem do Norte; o levantino viu logo nela a expansão de uma alma irmã. ¿Porque, não lhes disse? o que Korriscosso estava escrevendo, numa tira de papel, eram estrofes: era uma ode.

Daí a pouco, com a porta fechada, Korriscosso contava-me a sua história—ou antes fragmentos, anedotas desirmanadas da sua biografia. É tam triste, que a condenso. De resto, havia na sua narração lacunas de anos;—e eu não posso reconstituir com lógica e seqùência a história dêste sentimental. Tudo é vago e suspeito. Nasceu com efeito em Atenas; seu pai parece que era carregador no Pireu. Aos 18 anos Korriscosso servia de criado a um médico, e nos intervalos do serviço freqùentava a Universidade de Atenas; estas coisas são freqùentes là-bas, como êle dizia. Formou-se em leis: isto habilitou-o, mais tarde, em tempos difíceis, a ser um intérprete de hotel. Dêsse tempo datam as suas primeiras elégias num semanário lírico intitulado Ecos da Ática. A literatura levou-o directamente à política e às ambições parlamentares. Uma paixão, uma crise patética, um marido brutal, ameaças de morte, forçaram-no a expatriar-se. Viajou na Bulgária, foi em Salónica empregado numa sucursal do Banco Otomano, remeteu endechas{55} dolorosas a um jornal da província—a Trombeta da Argólida. Aqui há uma dessas lacunas, um buraco negro na sua história. Reaparece em Atenas, com fato novo, liberal e deputado.

Êste período de glória foi breve, mas suficiente para o pôr em evidência; a sua palavra colorida, poética, recamada de imagens engenhosas e lustrosas, encantou Atenas: tinha o segredo de florir, como êle dizia, os terrenos mais áridos; duma discussão de imposto ou de viação fazia saltar éclogas de Teócrito. Em Atenas êste talento leva ao poder: Korriscosso era indicado para gerir uma alta administração do Estado: o ministério, porêm, e com êle a maioria de que Korriscosso era o tenor querido, caíram, sumiram-se sem lógica constitucional, num dêstes súbitos desabamentos políticos tam comuns na Grécia, em que os governos se aluem, como as casas em Atenas—sem motivo. Falta de base, decrepitude de materiais e de individualidades... Tudo tende para o pó num solo de ruinas...

Nova lacuna, novo mergulho obscuro na história de Korriscosso...

Volta à superfície, membro de um club rèpublicano de Atenas, pede num jornal a emancipação da Polónia, e a Grécia governada por um concílio de génios. Publíca então os seus Suspiros da Trácia. Tem outro romance{56} de coração... E emfim—e isto disse-mo sem explicações—é obrigado a refugiar-se em Inglaterra. Depois de tentar em Londres várias posições, coloca-se no restaurant de Charing-Cross.

—É um pôrto de abrigo—disse-lhe eu, apertando-lhe a mão.

Êle sorriu com amargura. Era de-certo um pôrto de abrigo, e vantajoso. É bem alimentado; as gorgetas são razoáveis; tem um vélho colxão de molas,—mas as delicadezas da sua alma são, a todo o momento, dolorosamente feridas...

Dias atribulados, dias crucificados, os daquele poeta lírico, forçado a distribuir numa sala, a burgueses estabelecidos e glutões, costeletas e copos de cerveja! Não é a dependência que o aflige; a sua alma de grego não é particularmente ávida de liberdade, basta-lhe que o patrão seja cortês. E, como êle me disse, é-lhe grato reconhecer que os fregueses de Charing-Cross nunca lhe pedem a mostarda ou o queijo sem dizer if you please; e quando saem, ao passar por êle, levam dois dedos à aba do chapéu: isto satisfaz a dignidade de Korriscosso.

Mas o que o tortura é o contacto constante com o alimento. Se êle fôsse um guarda-livros de um banqueiro, primeiro caixeiro de um armazêm de sêdas... Nisso há uma sombra de poesia—os milhões que se revolvem, as frotas{57} mercantes, a brutal fôrça do oiro, ou então dispôr ricamente os estofos, os cortes de sêda, fazer correr a luz nas ondulações dos moirés, dar ao veludo as molezas da linha e da prega... Mas num restaurante como se pode exercer o gôsto, a originalidade artística, o instinto da côr, do efeito, do drama—a partir nacos de roast-beef ou de presunto de York?!... Depois, como êle disse, dar a comer, fornecer alimento, é servir exclusivamente a pança, a tripa, a baixa necessidade material: no restaurante, o ventre é Deus: a alma fica fóra, com o chapéu que se pendura no cabide ou com o rôlo de jornais que se deixou no bôlso do paletot.

E as convivências, e a falta de conversação! Nunca se voltarem para êle senão para lhe pedirem salame ou sardinhas de Nantes! Nunca abrir os seus lábios, de onde pendia o parlamento de Atenas, senão para perguntar:—Mais pão? mais bife?—Esta privação de eloqùência é-lhe dolorosa.

Alêm disso o serviço impede-lhe o trabalho. Korriscosso compõe de memória; quatro passeios pelo quarto, um repelão ao cabelo, e a ode sai-lhe harmoniosa e doce.... Mas a interrupção glutona da voz do freguês, pedindo nutrição, é fatal a esta maneira de trabalhar. Às vezes, encostado a uma janela, de guardanapo no braço, Korriscosso está fazendo uma elégia; são tudo luares, roupagens alvas de virgens pálidas,{58} horizontes celestes, flores de alma dolorida... É feliz; está remontado aos céus poéticos, nas planícies azuladas onde os sonhos acampam, galopando de estrêla em estrêla... De repente, uma grossa voz faminta berra dum canto:

—Bife e batatas!

Ai! as aladas fantasias batem o vôo como pombas espavoridas! E aí vem o infeliz Korriscosso, precipitado dos cimos ideais, de ombros vergados e as abas da casaca balouçando, perguntar com o sorriso lívido:

—¿Passado ou meio crú?

Ah! é um amargo destino!

—¿Mas—perguntei-lhe eu—porque não deixa êste covil, êste templo do ventre?

Ele deixou pender a sua bela cabeça de poeta. E disse-me a razão que o prende: disse-ma, quási chorando nos meus braços, com o nó da gravata branca no cachaço: Korriscosso ama.

Ama uma Fanny, criada de todo o serviço em Charing-Cross. Ama-a desde o primeiro dia em que entrou no hotel: amou-a no momento em que a viu lavando as escadas de pedra, com os braços roliços nus, e os cabelos louros, os fatais cabelos louros, dêste louro que entontece os meridionais, cabelos ricos, de um tom de cobre, dum tom de oiro mate, torcendo-se numa trança de deusa. E depois a carnação,{59} uma carnação de inglesa do Yorkshire—leite e rosas...

E o que Korriscosso tem sofrido! Toda a sua dor exala-a em odes—que passa a limpo ao domingo, dia de repouso e dia do Senhor! Leu-mas. E eu vi quanto a paixão pode perturbar um ser nervoso: que ferocidade de linguagem, que lances de desespero, que gritos de alma dilacerada arremesados dali, daqueles altos de Charing-Cross, para a mudez do céu frio! É que Korriscosso tem ciumes. A desgraçada Fanny ignora aquele poeta a seu lado, aquele delicado, aquele sentimental, e ama um policeman. Ama um policeman, um colosso, um alcides, uma montanha de carne erriçada duma floresta de barbas, com o peito como o flanco de um couraçado, com pernas como fortalezas normandas. Êste Polifemo, como diz Korriscosso, tem, ordináriamente, serviço no Strand; e a pobre Fanny passa o seu dia a espreitá-lo de um postigo, dos altos do hotel.

Todas as suas economias as gasta em quartilhos de gin, de brandy, de genebra, que à noite lhe leva em copinhos debaixo do avental: mantem-no fiel pelo álcool; o monstro, plantado enormemente a uma esquina, recebe em silêncio o copo, atira-o de um golpe às fauces tenebrosas, arrota cavamente, passa a mão cabeluda pela barba de hércules, e segue taciturnamente, sem um obrigado, sem um amo-te, batendo o lagedo{60} com a vastidão das suas solas sonoras. A pobre Fanny admira-o babosa... E talvez nesse momento, à outra esquina, o magro Korriscosso, fazendo no nevoeiro um esguio relêvo de poste telegráfico, soluce com a face magra entre as mãos transparentes.

Pobre Korriscosso! Se êle ao menos a pudesse comover... Mas quê! Ela despreza-lhe o corpo de tísico triste: e a alma não lha compreende... Não que Fanny seja inacessível a sentimentos ardentes, expressos em linguagem melodiosa. Mas Korriscosso só pode escrever as suas elégias na sua língua materna... E Fanny não compreende grego... E Korriscosso é só um grande homem—em grego...

Quando desci ao meu quarto, deixei-o soluçando sôbre o catre. Tenho-o visto depois, outras vezes, ao passar em Londres. Está mais magro, mais fatal, mais mirrado de zelos, mais curvado quando se move pelo restaurante com a travessa do roast-beef, mais exaltado no seu lirismo... Sempre que êle me serve dou-lhe um shilling de gorgeta: e depois, ao retirar, aperto-lhe sinceramente a mão.{61}

NO MOINHO

D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como «uma senhora modêlo». O vélho Nunes, director do correio, sempre que se falava nela, dizia, acariciando com autoridade os quatro pêlos da calva:

—É uma santa! É o que ela é!

A vila tinha quási orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino, a pele eburnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada sôbre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria. Poucas{62} vezes saía. O marido, mais vélho que ela, era um inválido, sempre de cama, inutilizado por uma doença de espinha; havia anos que não descia à rua; avistavam-no às vezes tambêm à janela murcho e trôpego, agarrado à bengala, encolhido na robe-de-chambre, com uma face macilenta, a barba desleixada e com um barretinho de sêda enterrado melancólicamente até ao cachaço. Os filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram tambêm doentes, crescendo pouco e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. A casa, interiormente, parecia lúgubre. Andava-se nas pontas dos pés, porque o senhor, na excitação nervosa que lhe davam as insónias, irritava-se com o menor rumor; havia sôbre as cómodas alguma garrafada da botica, alguma malga com papas de linhaça; as mesmas flores com que ela, no seu arranjo e no seu gôsto de frescura, ornava as mesas, depressa murchavam naquele ar abafado de febre, nunca renovado por causa das correntes de ar; e era uma tristeza ver sempre algum dos pequenos ou de emplastro sôbre a orelha, ou a um canto do camapé, embrulhado em cobertores com uma amarelidão de hospital.

Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua existência fôra triste. A mãe era uma criatura desagradável e azêda; o pai, que se empenhara pelas tavernas e pelas batotas, já{63} vélho, sempre bêbedo, os dias que aparecia em casa passava-os à lareira, num silêncio sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. Todas as semanas desancava a mulher. E quando João Coutinho pediu Maria em casamento, a-pesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação, quási com reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo telhado. Não amava o marido, de-certo; e mesmo na vila tinha-se lamentado que aquele lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fôsse pertencer ao Joãosinho Coutinho, que desde rapaz fôra sempre entrevado. O Coutinho, por morte do pai, ficára rico; e ela, acostumada por fim àquele marido rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a álcôva, ter-se-ia resignado, na sua natureza de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos. Mas aquela família que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências hesitantes, que depois pareciam apodrecer-lhe nas mãos, a-pesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam-na. Às vezes só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas pela face: uma fadiga da vida invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a alma.

Mas se o marido de dentro chamava desesperado,{64} ou um dos pequenos choramingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranqùila, com alguma palavra consoladora, compondo a almofada a um, indo animar o outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo bem tratado e bem acarinhado. Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada a interessava na terra senão as horas dos remédios e o sono dos seus doentes. Todo o esfôrço lhe era fácil quando era para os contentar: a-pesar de fraca, passeava horas trazendo ao colo o pequerrucho, que era o mais impertinente, com as feridas que faziam dos seus pobres beicinhos uma crosta escura: durante as insónias do marido não dormia tambêm, sentada ao pé da cama, conversando, lendo-lhe as Vidas dos Santos, porque o pobre entrevado ia caíndo em devoção. De manhã estava um pouco mais pálida, mas toda correcta no seu vestido preto, fresca, com os bandós bem lustrosos, fazendo-se bonita para ir dar as sopas de leite aos pequerruchos. A sua única distracção era à tarde sentar-se à janela com a sua costura, e a pequenada em roda, aninhada no chão, brincando tristemente. A mesma paizagem que ela via da janela era tam monótona como a sua vida: em baixo a estrada, depois uma ondulação de campos, uma terra magra plantada aqui e alêm de oliveiras e, erguendo-se ao fundo, uma colina{65} triste e nua, sem uma casa, uma árvore, um fumo de casal que pusesse naquela solidão de terreno pobre uma nota humana e viva.

Vendo-a assim tam resignada e tam sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata: todavia ninguêm a avistava na igreja, a não ser ao domingo, com o pequerrucho mais vélho pela mão, todo pálido no seu vestido de veludo azul. Com efeito, a sua devoção limitava-se a esta missa todas as semanas. A sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir pelas preocupações do céu: naquele dever de boa mãe, cumprido com amor, encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava adorar santos ou enternecer-se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, todo o tempo gasto em se arrastar pelo confessionário ou junto do oratório, seria uma diminuição cruel no seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos: e aquele pobre marido pregado numa cama, todo dependente dela, tendo-a só a ela, parecia-lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa cruz, tendo para o amar toda uma humanidade pronta. Alêm disso, nunca tivera estas sentimentalidades de alma triste que levam à devoção. O seu longo hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser ela o centro, a fôrça, o amparo daqueles inválidos,{66} tornára-a terna, mas pràtica: e assim era ela que administrava agora a casa do marido, com um bom senso que a afeição dirigira, uma solicitude de mãe próvida. Tais ocupações bastavam para entreter o seu dia: o marido, de resto, detestava visitas, o aspecto de caras saudáveis, as comiserações de cerimónia; e passavam-se meses sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse outra voz estranha à família, a não ser a do Dr. Abílio—que a adorava, e que dizia dela com os olhos esgazeados:

—É uma fada! é uma fada...

 

 

Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma carta de seu primo Adrião que lhe anunciava que em duas ou três semanas ia chegar à vila. Adrião era um homem célebre, e o marido de Maria da Piedade tinha naquele parente um orgulho enfático. Assinára mesmo um jornal de Lisboa, só para ver o seu nome nas locais e na crítica. Adrião era um romancista: e o seu último livro, Madalena, um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, duma análise delicada e subtil, consagrara-o como um mestre. A sua fama, que chegara até à vila, num vago de legenda, apresentava-o como uma personalidade interessante, um herói de Lisboa, amado das fidalgas, impetuoso e brilhante, destinado a uma{67} alta situação no Estado. Mas realmente na vila era sobretudo notável por ser primo do João Coutinho.

D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em confusão com a presença do hóspede extraordinário. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar a hora do jantar, de conversar com um literato, e tantos outros esforços crueis!... E a brusca invasão daquele mundano, com as suas malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de são, na paz triste do seu hospital, dava-lhe a impressão apavorada duma profanação. Foi por isso um alívio, quási um reconhecimento, quando Adrião chegou, e muito simplesmente se instalou na antiga estalagem do tio André, à outra extremidade da vila. João Coutinho escandalizou-se: tinha já o quarto do hóspede preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sôbre a cómoda, e queria-o todo para si, o primo, o homem célebre, o grande autor... Adrião porêm recusou:

—Eu tenho os meus hábitos, vocês teem os seus... ¿Não nos contrariemos, hein?... O que faço é vir cá jantar. De resto, não estou mal no tio André... Vejo da janela um moinho e uma reprêsa que são um quadrosinho delicioso... ¿E ficamos amigos, não é verdade?

Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por quem choravam{68} mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um sujeito extremamente simples,—muito menos complicado, menos espectaculoso que o filho do recebedor! Nem formoso era: e com o seu chapéu desabado sôbre uma face cheia e barbuda, a quinzena de flanela caíndo à larga num corpo robusto e pequeno, os seus sapatos enormes, parecia-lhe a ela um dos caçadores de aldeia que às vezes encontrava, quando de mês a mês ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Alêm disso não fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negócios. Viera por êles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava devorada, ou abominavelmente hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila, que andava alêm disso mal arrendada... O que êle desejava era vendê-la. Mas isso parecia-lhe a êle tam difícil, como fazer a Ilíada!... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil sôbre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos a dar com os proprietários da vila. Foi por isso, com grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe que a mulher era uma administradora de primeira ordem, e hábil nestas questões como um antigo rábula!...

—Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo... E na questão de preço, deixa-a a ela!...{69}

—Mas que superioridade, prima!—exclamou Adrião maravilhado.—Um anjo que entende de cifras!

Pela primeira vez na sua existência Maria da Piedade corou com a palavra dum homem. De resto prontificou-se logo a ser a procuradora do primo...

No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de março fresco e claro, partiram a pé. Ao princípio, acanhada por aquela companhia de um leão, a pobre senhora caminhava junto dêle com o ar de um pássaro assustado: a-pesar de êle ser tam simples, havia na sua figura enérgica e musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos pequenos e luzidios alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava. Tinha-se-lhe prendido à orla do seu vestido um galho de silvado, e como êle se abaixára para o desprender delicadamente, o contacto daquela mão branca e fina de artista na orla da sua saia incomodou-a singularmente. Apressava o passo para chegar bem depressa à fazenda, aviar o negócio com o Teles, e voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento próprio, no ar abafado e triste do seu hospital. Mas a estrada estendia-se, branca e longa, sob o sol tépido—e a conversa de Adrião foi-a lentamente acostumado à sua presença.

Êle parecia desolado daquela tristeza da{70} casa. Deu-lhe alguns bons conselhos: o que os pequenos necessitavam era ar, sol, uma outra vida diversa daquele abafamento de alcôva...

Ela tambêm assim o julgava: mas quê! o pobre João, sempre que se lhe falava de ir passar algum tempo à quinta, afligia-se terrívelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes horizontes: a natureza forte fazia-o quási desmaiar; tornára-se um ser artificial, encafuado entre os cortinados da cama...

Êle então lamentou-a. De-certo poderia haver alguma satisfação num dever tam santamente cumprido... Mas, emfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra cousa alêm daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo da doença...

—¿Que hei-de eu desejar mais?—disse ela.

Adrião calou-se: pareceu-lhe absurdo supôr que ela desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que êle pensava era noutros apetites, nas ambições do coração insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tam delicado, tam grave de dizer àquela criatura virginal e séria—que falou da paizagem...

—Já viu o moinho?—perguntou-lhe ela.

—Tenho vontade de o ver, se mo quiser ir mostrar, prima.

—Hoje é tarde.

Combinaram logo ir visitar êsse recanto de verdura, que era o idílio da vila.{71}

Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e Maria da Piedade. Aquela venda que ela discutia com uma astúcia de aldeã, punha entre êles como que um interesse comum. Ela falou-lhe já com menos reserva quando voltaram. Havia nas maneiras dêle, dum respeito tocante, uma atracção que a seu pesar a levava a revelar-se, a dar-lhe a sua confiança: nunca falára tanto a ninguêm: a ninguêm jàmais deixara ver tanto da melancolia oculta que errava constantemente na sua alma. De resto as suas queixas eram sôbre a mesma dor—a tristeza do seu interior, as doenças, tantos cuidados graves... E vinha-lhe por êle uma simpatia, como um indefinido desejo de o ter sempre presente, desde que êle se tornava assim depositário das suas tristezas.

Adrião voltou para o seu quarto, na estalagem do André, impressionado, interessado por aquela criatura tam triste e tam doce. Ela destacava sôbre o mundo de mulheres que até ali conhecera, como um perfil suave de anjo gótico entre fisionomias de mesa redonda. Tudo nela concordava deliciosamente: o oiro do cabelo, a doçura da voz, a modéstia na melancolia, a linha casta, fazendo um ser delicado e tocante, a que mesmo o seu pequenino espírito burguês, certo fundo rústico de aldeã e uma leve vulgaridade de hábitos davam um encanto: era{72} um anjo que vivia há muito tempo numa vilota grosseira e estava por muitos lados prêso às trivialidades do sítio: mas bastaria um sôpro para o fazer remontar ao céu natural, aos cimos puros da sentimentalidade...

Achava absurdo e infame fazer a côrte à prima... Mas involuntáriamente pensava no delicioso prazer de fazer bater aquele coração que não estava deformado pelo espartilho, e de pôr emfim os seus lábios numa face onde não houvesse pós de arroz... E o que o tentava sobretudo era pensar que poderia percorrer toda a província em Portugal, sem encontrar nem aquela linha do corpo, nem aquela virgindade tocante de alma adormecida... Era uma ocasião que não voltava.

O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot, sobretudo à hora do meio dia em que êles lá foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e toda a sorte de murmúrios de água corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras, levando e espalhando no ar o frio da folhagem, da relva, por onde corriam cantando. O moinho era dum alto pitoresco, com a sua vélha edificação de pedra secular, a sua roda enorme, quási pôdre, coberta de ervas, imóvel sôbre a gelada limpidez da água escura. Adrião achou-o digno duma scena de romance, ou{73} melhor, da morada duma fada. Maria da Piedade não dizia nada, achando extraordinária aquela admiração pelo moinho abandonado do tio Costa. Como ela vinha um pouco cansada, sentaram-se numa escada desconjuntada de pedra, que mergulhava na água da reprêsa os últimos degraus: e ali ficaram um momento calados, no encanto daquela frescura murmurosa, ouvindo as aves piarem nas ramas. Adrião via-a de perfil, um pouco curvada, esburacando com a ponteira do guarda-sol as ervas bravas que invadiam os degraus: era deliciosa assim, tam branca, tam loura, duma linha tam pura sôbre o fundo azul do ar: o seu chapéu era de mau gôsto, o seu mantelete antiquado, mas êle achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silêncio dos campos em redor isolava-os—e, insensívelmente, êle começou a falar-lhe baixo. Era ainda a mesma compaixão pela melancolia da sua existência naquela triste vila, pelo seu destino de enfermeira... Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se achar ali tam só com aquele homem tam robusto, toda receosa e achando um sabor delicioso ao seu receio... Houve um momento em que êle falou do encanto de ficar ali para sempre na vila.

—Ficar aqui? Para quê?—perguntou ela sorrindo.{74}

—Para quê? para isto, para estar sempre ao pé de si...

Ela cobriu-se de um rubor, o guarda-solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la ofendido, e acrescentou logo rindo:

—¿Pois não era delicioso?... Eu podia alugar êste moinho, fazer-me moleiro... A prima havia de me dar a sua freguesia...

Isto fê-la rir: era mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a côr do cabelo. Êle continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro, e de ir pela estrada tocando o burro, carregado de sacas de farinha.

—E eu venho ajudá-lo, primo!—disse ela, animada pelo seu próprio riso, pela alegria daquele homem a seu lado.

—Vem?—exclamou êle.—Juro-lhe que me faço moleiro! Que paraíso nós aqui ambos no moinho, ganhando alegremente a nossa vida, ouvindo cantar êstes melros!

Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se êle fôsse já arrebatá-la para o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela idea, pintava-lhe na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica, naquele esconderijo de verdura: de manhã, a pé cedo, para o trabalho; depois o jantar na relva à beira de água; e à noite as boas palestras ali sentados, à claridade{75} das estrêlas ou sob a sombra cálida dos céus negros de verão...

E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sôbre os lábios, dum só beijo profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu peito, branca, como morta: e duas lágrimas corriam-lhe ao comprido da face. Era assim tam dolorosa e fraca, que êle soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o guarda-solinho e ficou diante dêle, com o beicinho a tremer, murmurando:

—É mal feito... é mal feito...

Êle mesmo estava tam perturbado—que a deixou descer para o caminho: e daí a um momento, seguiam ambos calados para a vila. Foi só na estalagem que êle pensou:

—Fui um tolo !

Mas no fundo estava contente da sua generosidade. À noite foi a casa dela: encontrou-a com o pequerrucho no colo, lavando-lhe em àgua de malvas as feridas que êle tinha na perna. E então, pareceu-lhe odioso distrair aquela mulher dos seus doentes. De resto um momento como aquele no moinho não voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província, desmoralizando, a frio, uma boa mãe... A venda da fazenda estava concluída. Por isso, no dia seguinte, apareceu de tarde, a dizer-lhe adeus: partia à noitinha na diligência: encontrou-a na sala, à{76} janela costumada, com a pequenada doente aninhada contra as suas saias... Ouviu que êle partia, sem lhe mudar a côr, sem lhe arfar o peito. Mas Adrião achou-lhe a palma da mão tam fria como um mármore: e quando êle saíu, Maria da Piedade ficou voltada para a janela, escondendo a face dos pequenos, olhando abstractamente a paizagem que escurecia, com as lágrimas, quatro a quatro, caíndo-lhe na costura...

Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus olhos luzidios, toda a virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado da imaginação. O que a encantava nele não era o seu talento, nem a sua celebridade em Lisboa, nem as mulheres que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago e pouco compreensível: o que a fascinava era aquela seriedade, aquele ar honesto e são, aquela robustez de vida, aquela voz tam grave e tam rica: e antevia, para alêm da sua existência ligada a um inválido, outras existências possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda, em que as noites se não passam a esperar as horas dos remédios... Era como uma rajada de ar impregnado de todas as fôrças vivas da natureza, que atravessava, súbitamente, a sua alcôva abafada: e ela respirava-a deliciosamente... Depois, tinha ouvido{77} aquelas conversas em que êle se mostrava tam bom, tam sério, tam delicado: e à fôrça do seu corpo, que admirava, juntava-se agora um coração terno, duma ternura varonil e forte, para a cativar... Êste amor latente invadiu-a, apoderou-se dela uma noite que lhe apareceu esta idea, esta visão—Se êle fosse meu marido! Toda ela estremeceu, apertou desesperadamente os braços contra o peito, como confundindo-se com a sua imagem evocada, prendendo-se a ela, refugiando-se na sua fôrça... Depois êle deu-lhe aquele beijo no moinho.

E partira!

 

 

Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo de repente em volta dela—a doença do marido, achaques dos filhos, tristezas do seu dia, a sua costura—lhe pareceu lúgubre. Os seus deveres, agora que não punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardos injustos. A sua vida representava-se-lhe como desgraça excepcional: não se revoltava ainda: mas tinha dêsses abatimentos, dessas súbitas fadigas de todo o seu ser, em que caía sôbre a cadeira, com os braços pendentes, murmurando:

—¿Quando se acabará isto?{78}

Refugiava-se então naquele amor como uma compensação deliciosa. Julgando-o todo puro, todo de alma, deixava-se penetrar dêle e da sua lenta influência. Adrião tornara-se, na sua imaginação, como um ser de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e que dá razão à vida. Não quis que nada do que era dêle ou vinha dêle lhe fôsse alheio. Leu todos os seus livros, sobretudo aquela Madalena que tambêm amara, e morrera dum abandono. Estas leituras calmavam-na, davam-lhe como uma vaga satisfação ao desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio às suas.

Lentamente, esta necessidade de encher a imaginação dêsses lances de amor, de dramas infelizes, apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia-se assim criando no seu espírito um mundo artificial e idealizado. A realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se impaciente e áspera. Não suportava ser arrancada aos episódios sentimentais do seu livro, para ir ajudar a voltar o marido e sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos emplastros, das feridas dos pequenos a lavar. Começou a ler versos. Passava horas só, num mutismo, à{79} janela, tendo sob o seu olhar de virgem loura toda a rebelião duma apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões, entre o canto dos rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério de noite romântica...

O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se, estendeu-se a um ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis de novela; era um ente meio príncipe e meio facínora, que tinha, sobretudo, a fôrça. Porque era isto que admirava, que queria, porque ansiava nas noites cálidas em que não podia dormir—dois braços fortes como aço, que a apertassem num abraço mortal, dois lábios de fogo que, num beijo, lhe chupassem a alma. Estava uma histérica.

Às vezes, ao pé do leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico, numa imobilidade de entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe apressar a morte...

E no meio desta excitação mórbida do temperamento irritado, eram fraquezas súbitas, sustos de ave que pousa, um grito ao ouvir bater uma porta, uma palidez de desmaio se havia na sala flores muito cheirosas... À noite abafava; abria a janela; mas o cálido ar, o bafo môrno da terra aquecida do sol, enchiam-na dum desejo intenso, duma ânsia voluptuosa, cortada de crises de chôro...

A Santa tornava-se Vénus.{80}

E o romantismo mórbido tinha penetrado tanto naquele ser, e desmoralizára-o tam profundamente, que chegou ao momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe caír nos braços:—e foi o que sucedeu emfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era o praticante da botica.

Por causa dêle escandalizou toda a vila. E agora deixa a casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido a gemer abandonado na sua alcôva, toda a trapagem dos emplastros por cima das cadeiras, tudo num desamparo torpe—para andar atrás do homem, um maganão odioso e cebento, de cara balôfa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha, e bonésinho de sêda posto à catita. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo: cheira a suor: e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obêsa, a quem chamam na vila a bola de unto.{81}

CIVILIZAÇÃO

I

Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto) que nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado.

Desde o berço, onde sua mãe, senhora gorda e crédula de Trás-os-montes, espalhava, para reter as Fadas Benéficas, funcho e âmbar, Jacinto fôra sempre mais resistente e são que um pinheiro das dunas. Um lindo rio, murmuroso e transparente, com um leito muito liso de areia muito branca, reflectindo apenas pedaços lustrosos de um céu de verão ou ramagens sempre verdes e de bom aroma, não ofereceria, àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de Champanhe gelada, mais doçura e facilidades do que a vida{82} oferecia ao meu camarada Jacinto. Não teve sarampo e não teve lombrigas. Nunca padeceu, mesmo na idade em que se lê Balzac e Musset, os tormentos da sensibilidade. Nas suas amizades foi sempre tam feliz como o clássico Orestes. Do Amor só experimentára o mel—êsse mel que o amor invariavelmente concede a quem o pratíca, como as abelhas, com ligeireza e mobilidade. Ambição, sentira sómente a de compreender bem as ideas gerais, e a «ponta do seu intelecto» (como diz o vélho cronista medieval) não estava ainda romba nem ferrugenta... E todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto já se vinha repastando de Schopenhauer, do Eclesiastes, doutros Pessimistas menores, e três, quatro vezes por dia, bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sôbre as faces, como se nela só palpasse palidez e ruína. Porquê ?

Era êle, de todos os homens que conheci, o mais complexamente civilizado—ou antes aquele que se munira da mais vasta sôma de civilização material, ornamental e intelectual. Nesse palácio (floridamente chamado o Jasmineiro) que seu pai, tambêm Jacinto, construira sôbre uma honesta casa do século XVII, assoalhada a pinho e branqueada a cal—existia, creio eu, tudo quanto para bem do espírito ou da matéria os homens teem criado, através da incerteza e dor, desde que abandonaram{83} o vale feliz de Septa-Sindu, a Terra das Águas Fáceis, o doce país Ariano. A biblioteca, que em duas salas, amplas e claras como praças, forrava as paredes, inteiramente, desde os tapetes de Caranânia até ao teto de onde, alternadamente, através de cristais, o sol e a electricidade vertiam uma luz estudiosa e calma—continha vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate. Só sistemas filosóficos (e com justa prudência, para poupar espaço, o bibliotecário apenas colecionára os que irreconciliavelmente se contradizem) havia mil oito centos e dezassete!

Uma tarde que eu desejava copiar um ditame de Adam Smith, percorri, buscando êste economista ao longo das estantes, oito metros de economia política! Assim se achava formidavelmente abastecido o meu amigo Jacinto de todas as obras essenciais da inteligência—e mesmo da estupidez. E o único inconveniente dêste monumental armazêm do saber era que todo aquele que lá penetrava, inevitavelmente lá adormecia, por causa das poltronas, que provídas de finas pranchas móveis para sustentar o livro, o charuto, o lápis das notas, a taça de café, ofereciam ainda uma combinação oscilante e flácida de almofadas, onde o corpo encontrava logo, para mal do espírito, a doçura, a profundidade e a paz estirada de um leito.{84}

Ao fundo, e como um altar-mór, era o gabinete de trabalho de Jacinto. A sua cadeira, grave e abacial, de couro, com brazões, datava do século XIV, e em tôrno dela pendiam numerosos tubos acústicos, que, sôbre os panejamentos de sêda côr de musgo e côr de hera, pareciam serpentes adormecidas e suspensas num vélho muro de quinta. Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda de sagazes e subtis instrumentos para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de um manejo laborioso e lento: alguns, com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas fôlhas de papel Whatman em que êle escrevia, e que custavam 500 réis, eu por vezes surpreendi gotas de sangue do meu amigo. Mas a todos êle considerava indispensáveis para compôr as suas cartas (Jacinto não compunha obras) assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais, e as enciclopédias, e os guias, e os directórios, atulhando uma estante isolada, esguia, em forma de tôrre, que silenciosamente girava sôbre o seu pedestal, e que eu denominára o Farol. O que, porêm, mais completamente imprimia àquele gabinete um portentoso carácter de civilização eram, sôbre{85} as suas peanhas de carvalho, os grandes aparelhos, facilitadores do pensamento,—a máquina de escrever, os auto-copistas, o telégrafo-Morse, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, outros ainda, todos com metais luzidios, todos com longos fios. Constantemente sons curtos e secos retiniam no ar morno daquele santuário. Tic, tic, tic! Dlin, dlin, dlin! Crac, crac, crac! Trrre, trrre!... Era o meu amigo comunicando. Todos êsses fios mergulhavam em fôrças universais, transmitiam fôrças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservavam domadas e disciplinadas! Jacinto recolhera no fonógrafo a voz do conselheiro Pinto Pôrto, uma voz oracular e rotunda, no momento de exclamar com respeito, com autoridade:

—«Maravilhosa invenção! ¿Quem não admirará os progressos dêste século?»

Pois, numa doce noite de S. João, o meu supercivilizado amigo, desejando que umas senhoras parentas de Pinto Pôrto (as amáveis Gouveias) admirassem o fonógrafo, fez romper do bocarrão do aparelho, que parece uma trompa, a conhecida voz rotunda e oracular.

¿Quem não admirará os progressos dêste século?

Mas, inábil ou brusco, certamente desconcertou alguma mola vital—porque de repente o fonógrafo começa a redizer, sem descontinuação,{86} interminavelmente, com uma sonoridade cada vez mais rotunda, a sentença do conselheiro:

¿Quem não admirará os progressos dêste século?

Debalde Jacinto, pálido, com os dedos trémulos, torturava o aparelho. A exclamação recomeçava, rolava, oracular e majestosa:

¿Quem não admirará os progressos dêste século?

Enervados, retiramos para uma sala distante, pesadamente revestida de panos de Arraz. Em vão! A voz de Pinto Pôrto lá estava, entre os panos de Arraz, implacável e rotunda:

¿Quem não admirará os progressos dêste século?

Furiosos, enterramos uma almofada na bôca do fonógrafo, atiramos por cima mantas, cobertores espessos, para sufocar a voz abominável. Em vão! sob a mordaça, sob as grossas lãs, a voz rouquejava, surda mas oracular:

¿Quem não admirará os progressos dêste século?

As amáveis Gouveias tinham abalado, apertando desesperadamente os chales sôbre a cabeça. Mesmo à cozinha, onde nos refugiamos, a voz descia, engasgada e gosmosa:

¿Quem não admirará os progressos dêste século?{87}

Fugimos espavoridos para a rua.

Era de madrugada. Um fresco bando de raparigas, de volta das fontes, passava cantando com braçados de flores:

Todas as ervas são bentas
Em manhã de S. João...

Jacinto, respirando o ar matinal, limpava as bagas lentas do suor. Recolhemos ao Jasmineiro, com o sol já alto, já quente. Muito de manso abrimos as portas, como no receio de despertar alguêm. Horror! Logo da ante-câmara percebemos sons estrangulados, roufenhos: «admirará... progressos... século!...» Só de tarde um electricista pôde emmudecer aquele fonógrafo horrendo.

Bem mais aprazível (para mim) do que esse gabinete temerosamente atulhado de civilização—era a sala de jantar, pelo seu arranjo compreensível, fácil e íntimo. À mesa só cabiam seis amigos que Jacinto escolhia com critério na literatura, na arte e na metafísica, e que, entre as tapeçarias de Arraz, representando colinas, pomares e portos da Ática cheias de classicismo e de luz, renovavam ali repetidamente banquetes que, pela sua intelectualidade, lembravam os de Platão. Cada garfada se cruzava com um pensamento ou com palavras{88} dextramente arranjadas em forma de pensamento.

E a cada talher correspondiam seis garfos, todos de feitios dissemelhantes e astuciosos:—um para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para a fruta, outro para o queijo. Os copos, pela diversidade dos contornos e das côres, faziam, sôbre a toalha mais reluzente que esmalte, como ramalhetes silvestres espalhados por cima de neve. Mas Jacinto e os seus filósofos, lembrando o que o experiente Salomão ensina sôbre as ruínas e amarguras do vinho, bebiam apenas em três gotas de água uma gota de Bordeus (Chateaubriand, 1860). Assim o recomendam—Hesíodo no seu Nereu, e Diocles nas suas Abelhas. E de águas havia sempre no Jasmineiro um luxo redundante—águas geladas, águas carbonatadas, águas esterilizadas, águas gasosas, águas de sais, águas minerais, outras ainda, em garrafas sérias, com tratados terapêuticos impressos no rótulo... O cozinheiro, mestre Sardão, era daqueles que Anaxágoras equiparava aos Retóricos, aos oradores, a todos os que sabem a arte divina de «temperar e servir a Idea»: e em Sybaris, cidade do Viver Excelente, os magistrados teriam votado a mestre Sardão, pelas festas de Juno Lacina, a coroa de fôlhas de ouro e a túnica Milésia que se devia aos bemfeitores cívicos.{89} A sua sopa de alcachofra e ovas de carpa; os seus filetes de veado macerados em vélho Madeira com purée de nozes; as suas amoras geladas em éter, outros acepipes ainda, numerosos e profundos (e os únicos que tolerava o meu Jacinto) eram obras de um artista, superior pela abundância das ideas novas—e juntavam sempre a raridade do sabor à magnificência da forma. Tal prato dêsse mestre imcomparável, parecia, pela ornamentação, pela graça florida dos lavores, pelo arranjo dos coloridos frescos e cantantes, uma joia esmaltada do cinzel de Cellini ou Meurice. Quantas tardes eu desejei fotografar aquelas composições de excelente fantasia, antes que o trinchante as retalhasse! E esta superfinidade do comer condizia deliciosamente com a do servir. Por sôbre um tapete, mais fôfo e mole que o musgo da floresta da Brocelândia, deslizavam, como sombras fardadas de branco, cinco criados e um pagem preto, à maneira vistosa do século XVIII. As travessas (de prata) subiam da cozinha e da copa por dous ascensores, um para as iguarias quentes, forrado de tubos onde a água fervia; outro, mais lento, para as iguarias frias, forrado de zinco, amónia e sal, e ambos escondidos por flores tam densas e viçosas que era como se até a sopa saísse fumegando dos românticos jardins de Armida. E muito bem me lembro de um domingo de maio em que, jantando{90} com Jacinto um bispo, o erudito bispo de Chorazin, o peixe emperrou no meio do ascensor, sendo necessário que acudissem, para o extrair, pedreiros com alavancas.

II

Nas tardes em que havia «banquete de Platão» (que assim denominávamos essas festas de trutas e ideas gerais), eu, vizinho e íntimo, aparecia ao declinar do sol, e subia familiarmente aos quartos do nosso Jacinto—onde o encontrava sempre incerto entre as suas casacas, porque as usava alternadamente de sêda, de pano, de flanelas Jaegher, e de foulard das Índias. O quarto respirava o frescor e aroma do jardim por duas vastas janelas, providas magnificamente (alêm das cortinas de sêda mole Luís XV) de uma vidraça exterior de cristal inteiro, duma vidraça interior de cristais miudos, dum tôldo rolando na cimalha, dum estore de sedinha frouxa, de gases que franziam e se enrolavam como nuvens, e duma gelosia móvel de gradaria mourisca. Todos êstes resguardos (sábia invenção de Holland & C.ª, de Londres) serviam a guardar a luz e o ar—segundo os avisos de termómetros, barómetros e higrómetros, montados em ébano, e a que um{91} meteorologista (Cunha Guedes) vinha, todas as semanas, verificar a precisão.

Entre estas duas varandas rebrilhava a mesa de toilette, uma mesa enorme de vidro, toda de vidro, para a tornar impenetrável aos micróbios, e coberta de todos êsses utensílios de asseio e alinho que o homem do século XIX necessita numa capital, para não desfear o conjunto suntuário da civilização. Quando o nosso Jacinto, arrastando as suas engenhosas chinelas de pelica e sêda, se acercava desta ara—eu, bem aconchegado num divã, abria com indolência uma Revista, ordináriamente a Revista Electro-Pática, ou a das Indagações Psíquicas. E Jacinto começava... Cada um dêsses utensílios de aço, de marfim, de prata, impunham ao meu amigo, pela influência omnipoderosa que as cousas exercem sôbre o dono (sunt tyranniæ rerum) o dever de o utilizar com aptidão e deferência. E assim as operações do alindamento de Jacinto apresentavam a prolixidade, reverente e insuprimível, dos ritos dum sacrifício.

Começava pelo cabelo... Com uma escôva chata, redonda e dura, acamava o cabelo, corredio e louro, no alto, aos lados da risca; com uma escôva estreita e recurva, à maneira do alfange dum persa, ondeava o cabelo sôbre a orelha; com uma escôva côncava, em forma de telha, empastava o cabelo, por trás, sôbre a{92} nuca... Respirava e sorria. Depois, com uma escôva de longas cerdas, fixava o bigode; com uma escôva leve e flácida acurvava as sobrancelhas; com uma escôva feita de penugem regularizava as pestanas. E dêste modo Jacinto ficava diante do espelho, passando pêlos sôbre o seu pêlo, durante catorze minutos.

Penteado e cansado, ia purificar as mãos. Dois criados, ao fundo, manobravam com perícia e vigor os aparelhos do lavatório—que era apenas um resumo dos maquinismos monumentais da sala de banho. Ali, sôbre o mármore verde e róseo do lavatório, havia apenas duas duches (quente e fria) para a cabeça; quatro jactos, graduados desde zero até cem graus; o vaporizador de perfumes; a fonte de água esterilizada (para os dentes); o repuxo para a barba; e ainda torneiras que rebrilhavam e botões de ébano que, de leve roçados, desencadeavam o marulho e o estridor de torrentes nos Alpes... Nunca eu, para molhar os dedos, me cheguei àquele lavatório sem terror—escarmentado da tarde amarga de janeiro em que bruscamente, dessoldada a torneira, o jacto de água a cem graus rebentou, silvando e fumegando, furioso, devastador... Fugimos todos, espavoridos. Um clamor atroou o Jasmineiro. O vélho Grilo, escudeiro que fôra do Jacinto pai, ficou coberto de empôlas na face, nas mãos fieis.{93}

Quando Jacinto acabava de se enxugar laboriosamente a toalhas de felpo, de linho, de corda entrançada (para restabelecer a circulação), de sêda frouxa (para lustrar a pele) bocejava, com um bocejo cavo e lento.

E era êste bocejo, perpétuo e vago, que nos inquietava a nós, seus amigos e filósofos. ¿Que faltava a êste homem excelente? Êle tinha a sua inabalável saúde de pinheiro bravo, crescido nas dunas; uma luz da inteligência, própria a tudo alumiar, firme e clara sem tremor ou morrão; quarenta magníficos contos de renda; todas as simpatias duma cidade chasqueadora e scéptica; uma vida varrida de sombras, mais liberta e lisa do que um céu de verão... E todavia bocejava constantemente, palpava na face, com os dedos finos, a palidez e as rugas. Aos trinta anos Jacinto corcovava, como sob um fardo injusto! E pela morosidade desconsolada de toda a sua acção parecia ligado, desde os dedos até à vontade, pelas malhas apertadas duma rêde que se não via e que o travava. Era doloroso testemunhar o fastio com que êle, para apontar um enderêço, tomava o seu lápis pneumático, a sua pena eléctrica—ou, para avisar o cocheiro, apanhava o tubo telefónico!... Neste mover lento do braço magro, nos vincos que lhe arrepanhavam o nariz, mesmo nos seus silêncios, longos e derreados, se sentia o brado constante{94} que lhe ia na alma;—Que massada! Que massada! Claramente a vida era para Jacinto um cansaço—ou por laboriosa e difícil, ou por desinteressante e ôca... Por isso o meu pobre amigo procurava constantemente juntar à sua vida novos interêsses, novas facilidades. Dois inventores, homens de muito zêlo e pesquiza estavam encarregados, um em Inglaterra, outro na América, de lhe noticiar e de lhe fornecer todas as invenções, as mais miudas, que concorressem a aperfeiçoar a confortabilidade do Jasmineiro. De resto, êle proprio se correspondia com Edison. E, pelo lado do pensamento, Jacinto não cessava tambêm de buscar interêsses e emoções que o reconciliassem com a vida—penetrando à cata dessas emoções e dêsses interêsses pelas veredas mais desviadas do saber, a ponto de devorar, desde janeiro a março, setenta e sete volumes sôbre a evolução das ideas morais entre as raças negróides. Ah! nunca homem dêste século batalhou mais esforçadamente contra a séca de viver! Debalde! Mesmo de explorações tam cativantes como essa, através da moral dos negróides, Jacinto regressava mais murcho, com bocejos mais cavos!

E era então que êle se refugiava intensamente na leitura de Schopenhauer e do Eclesiastes. Porque? Sem dúvida porque ambos êsses pessimistas o confirmavam nas conclusões{95} que êle tirava de uma experiência paciente e rigorosa: «que tudo é vaidade ou dor, que quanto mais se sabe, mais se péna, e que ter sido rei de Jerusalêm e obtido os gózos todos na vida só leva a maior amargura...» ¿Mas porque rolara assim a tam escura desilusão—o saùdável, rico, sereno e intelectual Jacinto? O vélho escudeiro Grilo pretendia que «S. Ex.ª sofria de fartura!»

III

Ora justamente depois dêsse inverno, em que êle se embrenhara na moral dos negróides e instalara a luz eléctrica entre os arvoredos do jardim, sucedeu que Jacinto teve a necessidade moral iniludível de partir para o Norte, para o seu vélho solar de Torges. Jacinto não conhecia Torges, e foi com desusado tédio que êle se preparou, durante sete semanas, para essa jornada agreste. A quinta fica nas serras—e a rude casa solarenga, onde ainda resta uma tôrre do século XV, estava ocupada, havia trinta anos, pelos caseiros, boa gente de trabalho, que comia o seu caldo entre a fumaraça da lareira, e estendia o trigo a secar nas salas senhoriais.{96}

Jacinto, logo nos começos de março, escrevera cuidadosamente ao seu procurador Sousa, que habitava a aldeia de Torges, ordenando-lhe que compuzesse os telhados, caiasse os muros, envidraçasse as janelas. Depois mandou expedir, por combóios rápidos, em caixotes que transpunham a custo os portões do Jasmineiro, todos os confortos necessários a duas semanas de montanha—camas de penas, poltronas, divãs, lâmpadas de Carcel, banheiras de níquel, tubos acústicos para chamar os escudeiros, tapetes persas para amaciar os soalhos. Um dos cocheiros partiu com um copé, uma vitória, um breque, mulas e guizos.

Depois foi o cozinheiro, com a bateria, a garrafeira, a geleira, bocais de trufas, caixas profundas de águas mineráis. Desde o amanhecer, nos pátios largos do palacete, se pregava, se martelava, como na construção de uma cidade. E as bagagens, desfilando, lembravam uma página de Heródoto ao narrar a invasão persa. Jacinto emmagrecera com os cuidados daquele Êxodo. Por fim, largamos numa manhã de junho, com o Grilo, e trinta e sete malas.

Eu acompanhava Jacinto, no meu caminho para Guiães, onde vive minha tia, a uma légua farta de Torges: e íamos num vagom reservado, entre vastas almofadas, com perdizes e Champanhe num cêsto. A meio da jornada{97} devíamos mudar de combóio—nessa estação, que tem um nome sonoro em ola e um tam suave e cândido jardim de roseiras brancas. Era domingo de imensa poeira e sol—e encontrámos aí, enchendo a plata-forma estreita, todo um povaréu festivo que vinha da romaria de S. Gregório da Serra.

Para aquele trasbôrdo, em tarde de arraial, o horário só nos concedia três minutos avaros. O outro combóio já esperava, rente aos alpendres, impaciente e silvando. Uma sineta badalava com furor. E, sem mesmo atender às lindas môças que ali saracoteavam, aos bandos, afogueadas, de lenços flamejantes, o seio farto coberto de ouro, e a imagem do santo espetada no chapéu—corremos, empurrámos, furámos, saltámos para o outro vagom, já reservado, marcado por um cartão com as iniciais de Jacinto. Imediatamente o trem rolou. Pensei então no nosso Grilo, nas trinta e sete malas! E debruçado da portinhola avistei ainda junto ao cunhal da estação, sob os eucaliptos, um monte de bagagens, e homens de boné agaloado que, diante delas, bracejavam com desespêro.

Murmurei, recaindo nas almofadas:

—Que serviço!

Jacinto, ao canto, sem descerrar os olhos, suspirou:

—Que massada!{98}

Toda uma hora deslizamos lentamente entre trigais e vinhedo; e ainda o sol batia nas vidraças, quente e poeirento, quando chegamos à estação de Gondim, onde o procurador de Jacinto, o excelente Sousa, nos devia esperar com cavalos para treparmos a serra até ao solar de Torges. Por trás do jardim da estação, todo florido tambêm de rosas e margaridas, Jacinto reconheceu logo as suas carruagens ainda empacotadas em lona.

Mas quando nos apeamos no pequeno cais branco e fresco—só houve em tôrno de nós solidão e silêncio. Nem procurador, nem cavalos! O chefe da estação, a quem eu perguntara com ansiedade «se não aparecera ali o snr. Sousa, se não conhecia o snr. Sousa», tirou afavelmente o seu boné de galão. Era um moço gordo e redondo, com côres de maçã camoesa, que trazia sob o braço um volume de versos. «Conhecia perfeitamente o snr. Sousa! Três semanas antes jogara êle a manilha com o snr. Sousa! Nessa tarde porêm, infelizmente, não avistara o snr. Sousa!» O comboio desaparecera por detrás das fragas altas que ali pendem sôbre o rio. Um carregador enrolava o cigarro, assobiando. Rente da grade do jardim, uma vélha, toda de negro, dormitava agachada no chão, diante duma cêsta de ovos. ¿E o nosso Grilo, e as nossas bagagens?... O chefe encolheu risonhamente os ombros nédios.{99} Todos os nossos bens tinham encalhado, de-certo, naquela estação de roseiras brancas que tem um nome sonoro em ola. E nós ali estávamos, perdidos na serra agreste, sem procurador, sem cavalos, sem Grilo, sem malas.

¿Para que esfiar miudamente o lance lamentável? Ao pé da estação, numa quebrada da serra, havia um casal foreiro à quinta, onde alcançamos, para nos levarem e nos guiarem a Torges, uma égua lazarenta, um jumento branco, um rapaz e um podengo. E aí começamos a trepar, enfastiadamente, êsses caminhos agrestes—os mesmos, de-certo, por onde vinham e iam, de monte a rio, os Jacintos do século XV. Mas, passada uma trémula ponte de pau que galga um ribeiro todo quebrado por fragas (e onde abunda a truta adorável) os nossos males esqueceram, ante a inesperada, incomparável beleza daquela terra bemdita. O divino artista que está nos céus compuzera, certamente, êsse monte numa das suas manhãs de mais solene e bucólica inspiração.

A grandeza era tanta como a graça... Dizer os vales fôfos de verdura, os bosques quási sacros, os pomares cheirosos e em flor, a frescura das águas cantantes, as ermidinhas branqueando nos altos, as rochas musgosas, o ar de uma doçura de paraíso, toda a majestade e toda a lindeza—não é para mim, homem de pequena arte. Nem creio mesmo que fôsse para{100} mestre Horácio. ¿Quem pode dizer a beleza das cousas, tam simples e inexprímivel? Jacinto adiante, na égua tarda, murmurava:

—Ah! que beleza!

Eu atrás, no burro, com as pernas bambas, murmurava:

—Ah! que beleza!

Os espertos regatos riam, saltando de rocha em rocha. Finos ramos de arbustos floridos roçavam as nossas faces, com familiaridade e carinho. Muito tempo um melro nos seguiu, de choupo para castanheiro, assobiando os nossos louvores. Serra bem acolhedora e amável... Ah! que beleza!

Por entre ahs maravilhados chegamos a uma avenida de faias, que nos pareceu clássica e nobre. Atirando uma nova vergastada ao burro e à égua, o nosso rapaz, com o seu podengo ao lado, gritava:

—Aqui é que estêmos!

E ao fundo das faias havia, com efeito, um portão de quinta, que um escudo de armas de vélha pedra, roída de musgo, grandemente afidalgava. Dentro já os cães ladravam com furor. E mal Jacinto, e eu atrás dêle no burro de Sancho, transpuzemos o limiar solarengo, correu para nós, do alto da escadaria, um homem branco, rapado como um clérigo, sem colete, sem jaleca, que erguia para o ar, num assombro, os braços desolados. Era o caseiro,{101} o Zé Brás. E logo ali, nas pedras do pátio, entre o latir dos cães, surdiu uma tumultuosa história, que o pobre Brás balbuciava, aturdido, e que enchia a face de Jacinto de lividez e de cólera. O caseiro não esperava S. Ex.ª Ninguêm esperava S. Ex.ª (Êle dizia sua inselência).

O procurador, o snr. Sousa, estava para a raia desde maio, a tratar a mãe que levára um couce de mula. E de-certo houvera engano, cartas perdidas... Porque o snr. Sousa só contava com S. Ex.ª... em setembro, para a vindima. Na casa nenhuma obra começára. E, infelizmente para S. Ex.ª, os telhados ainda estavam sem telhas, e as janelas sem vidraças...

Cruzei os braços, num justo espanto. ¿Mas os caixotes—êsses caixotes remetidos para Torges, com tanta prudência, em abril, repletos de colchões, de regalos, de civilização?... O caseiro, vago, sem compreender, arregalava os olhos miudos onde já bailavam lágrimas. Os caixotes?! Nada chegára, nada aparecera. E na sua perturbação o Zé Brás procurava entre as arcadas do pátio, nas algibeiras das pantalonas... Os caixotes? Não, não tinha os caixotes!

Foi então que o cocheiro de Jacinto (que trouxera os cavalos e as carruagens) se acercou, gravemente. Êsse era um civilizado—e{102} acusou logo o govêrno. Já quando êle servia o snr. visconde de S. Francisco se tinham assim perdido, por desleixo do govêrno, da cidade para a serra, dous caixotes com vinho vélho da Madeira, e roupa branca de senhora. Por isso êle, escarmentado, sem confiança na nação, não largára as carruagens—e era tudo o que restava a S. Ex.ª: o breque, a vitória, o copé e os guizos. Sómente, naquela rude montanha, não havia estradas onde elas rolassem. E como só podiam subir para a quinta em grandes carros de bois—êle lá as deixára em baixo, na estação, quietas, empacotadas na lona...

Jacinto ficára plantado diante de mim, com as mãos nos bolsos:

—E agora?

Nada restava senão recolher, cear o caldo do tio Zé Brás, e dormir nas palhas que os fados nos concedessem. Subimos. A escadaria nobre conduzia a uma varanda, toda coberta, em alpendre, acompanhando a fachada do casarão e ornada, entre os seus grossos pilares de granito, por caixotes cheios de terra, em que floriam cravos. Colhi um cravo. Entramos. E o meu pobre Jacinto contemplou, emfim, as salas do seu solar! Eram enormes, com as altas paredes rebocadas a cal que o tempo e o abandôno tinham ennegrecido, e vazias, desoladamente nuas, oferecendo apenas como vestígio{103} de habitação e de vida, pelos cantos algum monte de cestos ou algum mólho de enxadas. Nos tetos remotos de carvalho negro alvejavam manchas—que era o céu já pálido do fim da tarde, surpreendido através dos buracos do telhado. Não restava uma vidraça. Por vezes, sob os nossos passos, uma tábua pôdre rangia e cedia.

Paramos, emfim, na última, a mais vasta, onde havia duas arcas tulheiras para guardar o grão; e aí depuzemos, melancólicamente, o que nos ficára de trinta e sete malas—os paletós alvadios, uma bengala e um Jornal da Tarde. Através das janelas desvidraçadas, por onde se avistavam copas de arvoredos e as serras azuis de alêm-rio, o ar entrava, montesino e largo, circulando plenamente como em um eirado, com aromas de pinheiro bravo. E, lá debaixo, dos vales, subia, desgarrada e triste, uma voz de pegureira cantando. Jacinto balbuciou:

—É horroroso!

Eu murmurei:

—É campestre!{104}

IV

O Zé Brás, no entanto, com as mãos na cabeça, desaparecera a ordenar a ceia para suas inselências. O pobre Jacinto, esbarrondado pelo desastre, sem resistência contra aquele brusco desaparecimento de toda a civilização, caíra pesadamente sôbre o poial duma janela, e daí olhava os montes. E eu, a quem aqueles ares serranos e o cantar do pegureiro sabiam bem, terminei por descer à cozinha, conduzido pelo cocheiro, através de escadas e becos onde a escuridão vinha menos do crepúsculo do que de densas teias de aranha.

A cozinha era uma espessa massa de tons e formas negras, côr de fuligem, onde refulgia ao fundo, sôbre o chão de terra, uma fogueira vermelha que lambia grossas panelas de ferro, e se perdia em fumarada pela grade escassa que no alto coava a luz. Aí um bando alvoroçado e palreiro de mulheres depenava frangos, batia ovos, escarolava arroz, com santo fervor... Do meio delas o bom caseiro, estonteado, investiu para mim jurando que «a ceia de suas inselências não demorava um credo». E como eu o interrogava a respeito de{105} camas, o digno Brás teve um murmúrio vago e tímido sobre «enxergasinhas no chão».

—É o que basta, snr. Zé Brás—acudi eu para o consolar.

—Pois assim Deus seja servido!—suspirou o homem excelente, que atravessava, nessa hora, o transe mais amargo da sua vida serrana.

Voltando a cima, com estas consolantes novas de ceia e cama, encontrei ainda o meu Jacinto no poial da janela, embebendo-se todo da doce paz crepuscular, que lenta e caladamente se estabelecia sôbre vale e monte. No alto já tremeluzia uma estrêla, a Vesper diamantina, que é tudo o que neste céu cristão resta do esplendor corporal de Vénus! Jacinto nunca considerára bem aquela estrêla—nem assistira a êste majestoso e doce adormecer das cousas. Êsse ennegrecimento de montes e arvoredos, casais claros fundindo-se na sombra, um toque dormente de sino que vinha pelas quebradas, o cochichar das águas entre relvas baixas—eram para êle como iniciações. Eu estava defronte, no outro poial. E senti-o suspirar como um homem que emfim descansa.

Assim nos encontrou nesta contemplação o Zé Brás, com o doce aviso de que estava na mesa a ceiasinha. Era adiante, noutra sala mais nua, mais negra. E aí, o meu supercivilizado{106} Jacinto recuou com um pavor genuíno. Na mesa de pinho, recoberta com uma toalha de mãos, encostada à parede sórdida, uma vela de cebo meio derretida num castiçal de latão, alumiava dous pratos de louça amarela, ladeados por colheres de pau e por garfos de ferro. Os copos, de vidro, grosso e baço, conservavam o tom rôxo do vinho que neles passára em fartos anos de fartas vindimas. O covilhete de barro com as azeitonas deleitaria, pela sua singeleza ática, o coração de Diógenes. Na larga brôa estava cravado um facalhão... Pobre Jacinto!

Mas lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia. Provou, e levantou para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada de caldo, mais cheia, mais lenta... E sorriu, murmurando com espanto:

—Está bom!

Estava realmente bom: tinha figado e tinha moela: o seu perfume enternecia. Eu, três vezes, com energia, ataquei aquele caldo: foi Jacinto que rapou a sopeira. Mas já, arredando a brôa, arredando a vela, o bom Zé Brás pousára na mesa uma travessa vidrada,{107} que transbordava de arroz com favas. Ora, a-pesar da fava (que os gregos chamaram cibória) pertencer às épocas superiores da civilização, e promover tanto a sapiência que havia em Sycio, na Galácia, um templo dedicado a Minerva Ciboriana—Jacinto sempre detestára favas. Tentou todavia uma garfada tímida. De novo os seus olhos, alargados pelo assombro, procuravam os meus. Outra garfada, outra concentração... E eis que o meu dificíllimo amigo exclama:

—Está ótimo!

¿Eram os picantes ares da serra? ¿Era a arte deliciosa daquelas mulheres que em baixo remexiam as panelas, cantando o Vira, meu bem? Não sei:—mas os louvores de Jacinto a cada travessa foram ganhando em amplidão e firmeza. E diante do frango louro, assado no espêto de pau, terminou por bradar:

—Está divino!

Nada porêm o entusiasmou como o vinho, o vinho caíndo de alto, da grossa caneca verde, um vinho gostoso, penetrante, vivo, quente, que tinha em si mais alma que muito poema ou livro santo! Mirando à luz de cebo o copo rude que êle orlava de espuma, eu recordava o dia geórgico em que Virgílio, em casa de Horácio, sob a ramada, cantava o fresco palhete da Rética. E Jacinto, com uma côr{108} que eu nunca vira na sua palidez schopenháurica, sussurrou logo o doce verso:

Rethica quò te carmina dicat.

¿Quem dignamente te cantará, vinho daquelas serras?!

Assim jantamos deliciosamente, sob os auspícios do Zé Brás. E depois voltamos para as alegrias únicas da casa, para as janelas desvidraçadas, a contemplar silenciosamente um suntuoso céu de verão, tam cheio de estrêlas que todo êle parecia uma densa poeirada de oiro vivo, suspensa, imóvel, por cima dos montes negros. Como eu observei ao meu Jacinto, na cidade nunca se olham os astros por causa dos candieiros—que os ofuscam: e nunca se entra por isso numa completa comunhão com o universo. O homem nas capitais pertence à sua casa, ou se o impelem fortes tendências de sociabilidade, ao seu bairro. Tudo o isola e o separa da restante natureza—os prédios obstrutores de seis andares, a fumaça das chaminés, o rolar moroso e grosso dos ónibus, a trama encarceradora da vida urbana... Mas que diferença, num cimo de monte, como Torges! Aí todas essas belas estrelas olham para nós de pérto, rebrilhando, à maneira de olhos conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença,{109} outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma luz que chama, como se tentassem revelar os seus segredos ou compreender os nossos... E é impossível não sentir uma solidariedade perfeita entre êsses imensos mundos e os nossos pobres corpos. Todos somos obra da mesma vontade. Todos vivemos da acção dessa vontade imanente. Todos, portanto, desde os Uranos até aos Jacintos, constituimos modos diversos de um ser único, e através das suas transformações somamos na mesma unidade. Não há idea mais consoladora do que esta—que eu, e tu, e aquele monte, e o sol que agora se esconde, somos moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim. Desde logo se sómem as responsabilidades torturantes do individualismo. ¿Que somos nós? Formas sem fôrça, que uma Fôrça impele. E há um descanso delicioso nesta certeza, mesmo fugitiva, de que se é o grão de pó irresponsável e passivo que vai levado no grande vento, ou a gota perdida na torrente! Jacinto concordava, sumido na sombra. Nem êle nem eu sabíamos os nomes dêsses astros admiráveis. Eu, por causa da maciça e indesbastável ignorância de bacharel, com que saí do ventre de Coímbra, minha mãe espiritual. Jacinto, porque na sua ponderosa biblioteca tinha trezentos e dezoito tratados sôbre astronomia! ¿Mas{110} que nos importava, de resto, que aquele astro alêm se chamasse Sírius e aquele outro Aldebaran? ¿Que lhes importava a êles que um de nós fôsse José e o outro Jacinto? Éramos formas transitórias do mesmo ser eterno—e em nós havia o mesmo Deus. E se êles tambêm assim o compreendiam, estávamos ali, nós à janela num casarão serrano, êles no seu maravilhoso infinito, perfazendo um acto sacrossanto, um perfeito acto de Graça—que era sentir conscientemente a nossa unidade, e realizar, durante um instante, na consciência, a nossa divinização.

Assim ennevoadamente filosofávamos—quando Zé Brás, com uma candeia na mão, veio avisar que «estavam preparadas as camas de suas inselências...» Da idealidade descemos gostosamente à realidade, ¿e que vimos então nós, os irmãos dos astros? Em duas salas tenebrosas e côncavas, duas enxergas, postas no chão, a um canto, com duas cobertas de chita; à cabeceira um castiçal de latão, pousado sôbre um alqueire: e aos pés, como lavatório, um alguidar vidrado em cima de uma cadeira de pau!

Em silêncio, o meu super-civilizado amigo palpou a sua enxerga e sentiu nela a rigidez dum granito. Depois, correndo pela face descaída os dedos murchos, considerou que, perdidas as suas malas, não tinha nem chinelas{111} nem roupão! E foi ainda o Zé Brás que providenciou, trazendo ao pobre Jacinto, para êle desafogar os pés, uns tremendos tamancos de pau, e para êle embrulhar o corpo, docemente educado em Sybaris, uma camisa da caseira, enorme, de estopa mais aspera que estamenha de penitente, e com folhos crespos e duros como lavores em madeira... Para o consolar, lembrei que Platão, quando compunha o Banquete, Xenofonte, quando comandava os Dez Mil, dormiam em piores catres. As enxergas austeras fazem as fortes almas—e é só vestido de estamenha que se penetra no Paraíso.

—¿Tem você—murmurou o meu amigo, desatento e sêco—alguma cousa que eu leia?.... Eu não posso adormecer sem ler!

Eu possuia apenas o número do Jornal da Tarde, que rasguei pelo meio, e partilhei com êle fraternalmente. E quem não viu então Jacinto, senhor de Torges, acaçapado à borda da enxerga, junto da vela que pingava sôbre o alqueire, com os pés nus encafuados nos grossos sócos, perdido dentro da camisa da patrôa, toda em folhos, percorrendo na metade do Jornal da Tarde, com os olhos turvos, os anúncios dos paquetes—não pode saber o que é uma vigorosa e real imagem do desalento!

Assim o deixei—e daí a pouco, estendido{112} na minha enxerga tambêm espartana, subia, através dum sonho jovial e erudito, ao planeta Vénus, onde encontrava, entre os olmos e os ciprestes, num vergel, Platão e Zé Brás, em alta camaradagem intelectual, bebendo o vinho da Rética pelos copos de Torges! Travámos todos três bruscamente uma controvérsia sôbre o século XIX. Ao longe, por entre uma floresta de roseiras mais altas que carvalhos, alvejavam os mármores duma cidade e ressoavam cantos sacros. Não recordo o que Xenofonte sustentou àcêrca da civilização e do fonógrafo. De repente tudo foi turbado por fuscas nuvens, através das quais eu distinguia Jacinto, fugindo num burro que êle impelia furiosamente com os calcanhares, com uma vergasta, com berros, para os lados do Jasmineiro!

V

Cedo, de madrugada, sem rumor, para não despertar Jacinto, que, com as mãos sôbre o peito, dormia plácidamente no seu leito de granito—parti para Guiães. E durante três quietas semanas, naquela vila onde se conservam os hábitos e as ideas do tempo de El-Rei{113} D. Dinís, não soube do meu desconsolado amigo, que de-certo fugira dos seus tetos esburacados e remergulhára na civilização. Depois, por uma abrasada manhã de agosto, descendo de Guiães, de novo trilhei a avenida de faias, e entrei o portão solarengo de Torges, entre o furioso latir dos rafeiros. A mulher do Zé Brás apareceu alvoroçada à porta da tulha. E a sua nova foi logo que o snr. D. Jacinto (em Torges, o meu amigo tinha dom) andava lá em baixo com o Sousa nos campos de Freixomil.

—¿Então, ainda cá está o snr. D. Jacinto?!

Sua inselência ainda estava em Torges—e sua inselência ficava para a vindima!... Justamente eu reparava que as janelas do solar tinham vidraças novas; e a um canto do pátio pousavam baldes de cal; uma escada de pedreiro ficára arrimada contra a varanda; e num caixote aberto, ainda cheio de palha de empacotar, dormiam dois gatos.

—E o Grilo apareceu?

—O snr. Grilo está no pomar, à sombra.

—Bem! e as malas?

—O snr. D. Jacinto já tem o seu saquinho de couro...

Louvado Deus! O meu Jacinto estava, emfim, provido de civilização! Subi contente. Na sala nobre, onde o soalho fôra composto e esfregado, encontrei uma mesa recoberta de{114} oleado, prateleiras de pinho com louça branca de Barcelos e cadeiras de palhinha, orlando as paredes muito caiadas que davam uma frescura de capela nova. Ao lado, noutra sala, tambêm de faiscante alvura, havia o confôrto inesperado de três cadeiras de vêrga da Madeira, com braços largos e almofadas de chita: sôbre a mesa de pinho, o papel almasso, o candieiro de azeite, as penas de pato espetadas num tinteiro de frade, pareciam preparadas para um estudo calmo e ditoso de humanidades: e na parede, suspensa de dois pregos, uma estantesinha continha quatro ou cinco livros, folheados e usados, o D. Quixote, um Virgílio, uma História de Roma, as Crónicas de Froissart. Adiante era certamente o quarto de D. Jacinto, um quarto claro e casto de estudante, com um catre de ferro, um lavatório de ferro, a roupa pendurada de cabides toscos. Tudo resplandecia de asseio e ordem. As janelas cerradas defendiam do sol de agosto, que escaldava fóra os peitoris de pedra. Do soalho, borrifado de água, subia uma fresquidão consoladora. Num vélho vaso azul um mólho de cravos alegrava e perfumava. Não havia um rumor. Torges dormia no esplendor da sésta. E envolvido naquele repouso de convento remoto, terminei por me estender numa cadeira de vêrga junto à mesa, abri lânguidamente o Virgílio, murmurando:{115}

Fortunate Jacinthe! tu inter arva nota
Et fontes sacros frigus captabis opacum.

Já mesmo irreverentemente adormecera sôbre o divino bucolista, quando me despertou um brado amigo. Era o nosso Jacinto. E imediatamente o comparei a uma planta, meio murcha e estiolada no escuro, que fôra profusamente regada e revivera em pleno sol. Não corcovava. Sôbre a sua palidez de supercivilizado, o ar da serra ou a reconciliação com a vida tinham espalhado um tom trigueiro e forte que o virilizava soberbamente. Dos olhos, que na cidade eu lhe conhecera sempre crepusculares, saltava agora um brilho de meio dia, decidido e largo, que mergulhava francamente na beleza das cousas. Já não passava as mãos murchas sôbre a face—batia com elas rijamente na côxa... Que sei eu?! Era uma reincarnação. E tudo o que me contou, pisando alegremente com os sapatos brancos o soalho, foi que se sentira, ao fim de três dias em Torges, como desanuviado, mandára comprar um colchão macio, reùnira cinco livros, nunca lidos, e ali estava...

—Para todo o verão ?

—Para todo o sempre! E agora, homem das cidades, vem almoçar umas trutas que eu pesquei, e compreende emfim o que é o céu.{116}

As trutas eram, com efeito, celestes. E apareceu tambêm uma salada fria de couve-flor e vagens, e um vinho branco de Azães... ¿Mas quem condignamente vos cantará, comeres e beberes daquelas serras?

De tarde, finda a calma, passeamos pelos caminhos, coleando a vasta quinta, que vai de vales a montes. Jacinto parava a contemplar com carinho os milhos altos. Com a mão espalmada e forte batia no tronco dos castanheiros, como nas costas de amigos recuperados. Todo o fio de água, todo o tufo de erva, todo o pé de vinha o ocupava como vidas filiais porque fôsse responsável. Conhecia certos melros que cantavam em certos choupos. Exclamava enternecido:

—Que encanto, a flor do trevo!

À noite, depois de um cabrito assado no forno, a que mestre Horácio teria dedicado uma Ode (talvez mesmo um Carme Heróico) conversamos sôbre o Destino e a Vida. Eu citei, com discreta malícia, Schopenhauer e o Eclesiastes... Mas Jacinto ergueu os ombros, com seguro desdêm. A sua confiança nesses dois sombrios explicadores da vida desaparecera, e irremediavelmente, sem poder mais voltar, como uma névoa que o sol espalha. Tremenda tolice! afirmar que a vida se compõe, meramente, duma longa ilusão—é erguer um aparatoso sistema sôbre um ponto especial{117} e estreito da vida, deixando fóra do sistema toda a vida restante, como uma contradição permanente e soberba. Era como se êle, Jacinto, apontando para uma ortiga, crescida naquele pátio, declarasse, triunfalmente:—«Aqui está uma ortiga! Toda a quinta de Torges, portanto, é uma massa de ortigas.»—Mas bastaria que o hóspede erguesse os olhos, para ver as searas, os pomares e os vinhedos!

¿De resto, dêsses dois ilustres pessimistas, um o alemão, que conhecia êle da vida—dessa vida de que fizera, com doutoral majestade, uma teoria definitiva e dolente? Tudo o que pode conhecer quem, como êste genial farçante, viveu cincoenta anos numa soturna hospedaria da província, levantando apenas os óculos dos livros para conversar, à mesa redonda, com os alferes da guarnição! E o outro, o israelista, o homem dos Cantares, o muito pedantesco rei de Jerusalêm, só descobre que a vida é uma ilusão aos setenta e cinco anos, quando o poder lhe escapa das mãos trémulas, e o seu serralho de trezentas concubinas se torna ridículamente supérfluo à sua carcassa frígida. Um dogmatiza fúnebremente sôbre o que não sabe—e o outro sôbre o que não pode. ¿Mas que se dê a êsse bom Schopenhauer uma vida tam completa e cheia como a de César, e onde estará o seu schopenhaurismo? ¿que se restitua a êsse sultão, besuntado de literatura,{118} que tanto edificou e professorou em Jerusalêm, a sua virilidade—e onde estará o Eclesiastes? ¿De resto, que importa bemdizer ou maldizer da vida? Afortunada ou dolorosa, fecunda ou vã, ela tem de ser vida. Loucos aqueles que, para a atravessar, se embrulham desde logo em pesados véus de tristeza e desilusão, de sorte que na sua estrada tudo lhe seja negrume, não só as léguas realmente escuras, mas mesmo aquelas em que scintila um sol amável. Na terra tudo vive—e só o homem sente a dor e a desilusão da vida. E tanto mais as sente, quanto mais alarga e acumula a obra dessa inteligência que o torna homem, e que o separa da restante natureza, impensante e inerte. É no máximo de civilização que êle experimenta o máximo de tédio. A sapiência, portanto, está em recuar até êsse honesto mínimo de civilização, que consiste em ter um teto de colmo, uma leira de terra e o grão para nela semear. Em resumo, para reaver a felicidade, é necessário regressar ao Paraíso—e ficar lá, quieto, na sua fôlha de vinha, inteiramente desguarnecido de civilização, contemplando o anho aos saltos entre o tomilho, e sem procurar, nem com o desejo, a árvore funesta da Sciência! Dixi!

Eu escutava, assombrado, êste Jacinto novíssimo. Era verdadeiramente uma ressurreição no magnífico estilo de Lázaro. Ao surge et ambula{119} que lhe tinham sussurrado as águas e os bosques de Torges, êle erguia-se do fundo da cova do Pessimismo, desembaraçava-se das suas casacas de Poole, et ambulabat, e começava a ser ditoso. Quando recolhi ao meu quarto, àquelas horas honestas que convêm ao campo e ao Otimismo, tomei entre as minhas a mão já firme do meu amigo, e pensando que êle emfim alcançára a verdadeira rialeza, porque possuia a verdadeira liberdade, gritei-lhe os meus parabens à maneira do moralista de Tibur:

Vive et regna, fortunate Jacinthe!

Daí a pouco, através da porta aberta que nos separava, senti uma risada fresca, môça, genuína e consolada. Era Jacinto que lia o D. Quixote. Oh bemaventurado Jacinto! Conservava o agudo poder de criticar, e recuperára o dom divino de rir!

 

 

Quatro anos vão passados. Jacinto ainda habita Torges. As paredes do seu solar continuam bem caiadas, mas nuas.

De inverno enverga um gabão de briche e acende um braseiro. Para chamar o Grilo ou a môça, bate as mãos, como fazia Catão. Com os seus deliciosos vagares, já leu a Ilíada.{120}

Não faz a barba. Nos caminhos silvestres, pára e fala com as crianças. Todos os casais da serra o bemdizem. Ouço que vai casar com uma forte, sã, e bela rapariga de Guiães. De-certo crescerá ali uma tríbu, que será grata ao Senhor!

Como êle, recentemente, me mandou pedir livros da sua livraria (uma Vida de Buda, uma História da Grécia e as obras de S. Francisco de Sales) fui, depois dêstes quatro anos, ao Jasmineiro deserto. Cada passo meu sôbre os fofos tapetes de Koranânia soou triste como num chão de mortos. Todos os brocados estavam engelhados, esgaçados. Pelas paredes pendiam, como olhos fóra de órbitas, os botões eléctricos das campainhas e das luzes:—e havia vagos fios de arame, soltos, enroscados, onde a aranha regalada e reinando tecera teias espessas. Na livraria, todo o vasto saber dos séculos jazia numa imensa mudez, debaixo duma imensa poeira. Sôbre as lombadas dos sistemas filosóficos alvejava o bolôr: vorazmente a traça devastára as Histórias Universais: errava ali um cheiro mole de literatura apodrecida:—e eu abalei, com o lenço no nariz, certo de que naqueles vinte mil volumes não restava uma verdade viva! Quis lavar as mãos maculadas pelo contacto com estes detritos de conhecimentos humanos. Mas os maravilhosos aparelhos do lavatório, da sala{121} de banho, enferrujados, perros, dessoldados, não largaram uma gota de água; e, como chovia nessa tarde de abril, tive de saír à varanda, pedir ao céu que me lavasse.

Ao descer, penetrei no gabinete de trabalho de Jacinto e tropecei num montão negro de ferragens, rodas, lâminas, campainhas, parafusos... Entreabri a janela, e reconheci o telefone, o teatrofone, o fonógrafo, outros aparelhos, tombados das suas peanhas, sórdidos, desfeitos, sob a poeira dos anos. Empurrei com o pé êste lixo do engenho humano. A máquina de escrever, escancarada, com os buracos negros marcando as letras desarraigadas, era como uma bôca alvar e desdentada. O telefone parecia esborrachado, enrodilhado nas suas tripas de arame. Na trompa do fonógrafo, torta, esbeiçada, para sempre muda, fervilhavam carochas. E ali jaziam, tam lamentáveis e grotescas, aquelas geniais invenções, que eu saí rindo, como duma enorme facécia, daquele super-civilizado palácio.

A chuva de abril secára: os telhados remotos da cidade negrejavam sôbre um poente de carmesim e oiro. E, através das ruas mais frescas, eu ia pensando que êste nosso magnifíco século XIX se assemelharia, um dia, àquele Jasmineiro abandonado, e que outros homens, com uma certeza mais pura do que é a Vida e a Felicidade, dariam, como eu, com o pé no lixo{122} da super-civilização, e, como eu, ririam alegremente da grande ilusão que findára, inútil e coberta de ferrugem.

Àquela hora, de-certo, Jacinto, na varanda, em Torges, sem fonógrafo e sem telefone, reentrado na simplicidade, via, sob a paz lenta da tarde, ao tremeluzir da primeira estrêla, a boiada recolher entre o canto dos boieiros.{123}

O TESOIRO

I

Os três irmãos de Medranhos, Rui, Guannes e Rostabal, eram então, em todo o Reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e os mais remendados.

Nos Paços de Medranhos, a que o vento da serra levára vidraça e telha, passavam êles as tardes dêsse inverno, engelhados nos seus pelotes de camelão, batendo as solas rotas sôbre as lages da cozinha, diante da vasta lareira negra, onde desde muito não estalava lume, nem fervia a panela de ferro. Ao escurecer devoravam uma côdea de pão negro, esfregada com alho. Depois, sem candeia, através do pátio, fendendo a neve, iam dormir à estrebaria, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas que, esfaimadas como êles, roíam{124} as traves da mangedoura. E a miséria tornára êstes senhores mais bravios que lôbos.

Ora, na primavera, por uma silenciosa manhã de domingo, andando todos três na mata de Roquelanes a espiar pègadas de caça e a apanhar tortulhos entre os robles, emquanto as três éguas pastavam a relva nova de abril,—os irmãos de Medranhos encontraram, por trás de uma moita de espinheiros, numa cova de rocha, um vélho cofre de ferro. Como se o resguardasse uma tôrre segura, conservava as suas três chaves nas suas três fechaduras. Sôbre a tampa, mal decifrável através da ferrugem, corria um dístico em letras árabes. E dentro, até às bordas, estava cheio de dobrões de oiro!

No terror e esplendor da emoção, os três senhores ficaram mais lívidos do que círios. Depois, mergulhando furiosamente as mãos no oiro, estalaram a rir, num riso de tam larga rajada, que as fôlhas tenras dos olmos, em roda, tremiam... E de novo recuaram, bruscamente se encararam, com os olhos a flamejar, numa desconfiança tam desabrida que Guannes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas. Então Rui, que era gordo e ruivo, e o mais avisado, ergueu os braços, como um árbitro, e começou por decidir que o tesoiro, ou viesse de Deus ou do demónio, pertencia aos três, e entre êles se{125} repartiria, rígidamente, pesando-se o oiro em balanças. ¿Mas como poderiam carregar para Medranhos, para os cimos da serra, aquele cofre tam cheio? Nem convinha que saíssem da mata com o seu bem, antes de cerrar a escuridão. Por isso êle entendia que o mano Guannes, como mais leve, devia trotar para a vila vizinha de Retortilho, levando já oiro na bolsinha, a comprar três alforges de coiro, três maquias de cevada, três empadões de carne, e três botelhas de vinho. Vinho e carne eram para êles, que não comiam desde a véspera: a cevada era para as éguas. E assim refeitos, senhores e cavalgaduras, ensacariam o oiro nos alforges, e subiriam para Medranhos, sob a segurança da noite sem lua.

—Bem tramado!—gritou Rostabal, homem mais alto que um pinheiro, de longa guedelha, e com uma barba que lhe caía desde os olhos raiados de sangue até à fivela do cinturão.

Mas Guannes não se arredava do cofre, enrugado, desconfiado, puxando entre os dedos a pele negra do seu pescoço de grou. Por fim, brutalmente:

—Manos! O cofre tem três chaves... Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave!

—Tambêm eu quero a minha, mil raios!—rugiu logo Rostabal.{126}

Rui sorriu. De-certo, de-certo! A cada dono do oiro cabia uma das chaves que o guardavam. E cada um em silêncio, agachado ante o cofre, cerrou a sua fechadura com fôrça. Imediatamente Guannes, desanuviado, saltou na égua, meteu pela vereda de olmos, a caminho de Retortilho, atirando aos ramos a sua cantiga costumada e dolente:

          Olé! olé!
Sale la crus de la iglesia,
Vestida de negro luto...

II

Na clareira, em frente à moita que encobria o tesoiro (e que os três tinham desbastado a cutiladas) um fio de água, brotando entre rochas, caía sôbre uma vasta lage escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas. E ao lado, na sombra de uma faia, jazia um vélho pilar de granito, tombado e musgoso. Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos. As duas éguas tosavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões de oiro. Pela ramaria{127} andava um melro a assobiar. Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso. E Rostabal, olhando o sol, bocejava com fome.

Então Rui, que tirára o sombrero e lhe cofiava as vélhas plumas rôxas, começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guannes, nessa manhã, não quisera descer com êles à mata de Roquelanes. E assim era a sorte ruim! Pois que se Guannes tivesse quedado em Medranhos, só êles dois teriam descoberto o cofre, e só entre êles dois se dividiria o oiro! Grande pena! Tanto mais que a parte de Guannes seria em breve dissipada, com rufiões, aos dados, pelas tavernas.

—Ah! Rostabal, Rostabal! Se Guannes, passando aqui sòzinho, tivesse achado êste oiro, não dividia comnosco, Rostabal!

O outro rosnou surdamente e com furor, dando um puxão às barbas negras:

—Não, mil raios! Guannes é sôfrego... Quando o ano passado, se te lembras, ganhou os cem ducados ao espadeiro de Fresno, nem me quis emprestar três para eu comprar um gibão novo!

—Vês tu?—gritou Rui, resplandecendo.

Ambos se tinham erguido do pilar de granito, como levados pela mesma idea, que os deslumbrava. E, através das suas largas passadas, as ervas altas silvavam.

—E para quê?—prosseguia Rui,—¿Para{128} que lhe serve todo o oiro que nos leva? ¿Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra! Não dura até às outras neves, Rostabal! Mas até lá terá dissipado os bons dobrões que deviam ser nossos, para levantarmos a nossa casa, e para tu teres ginetes, e armas, e trajes nobres, e o teu terço de solarengos, como compete, a quem é, como tu, o mais vélho dos de Medranhos...

—Pois que morra, e morra hoje!—bradou Rostabal.

—Queres?

Vivamente, Rui agarrára o braço do irmão e apontava para a vereda de olmos, por onde Guannes partira cantando:

—Logo adiante, ao fim do trilho, há um sítio bom, nos silvados. E hás-de ser tu, Rostabal, que és o mais forte e o mais destro. Um golpe de ponta pelas costas. E é justiça de Deus que sejas tu, que muitas vezes, nas tavernas, sem pudor, Guannes te tratava de cerdo e de torpe, por não saberes a letra nem os numeros.

—Malvado!

—Vem!

Foram. Ambos se emboscaram por trás dum silvado, que dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente. Rostabal assolapado na vala, tinha já a espada{129} nua. Um vento leve arripiou na encosta as fôlhas dos álamos—e sentiram o repique leve dos sinos de Retortilho. Rui, coçando a barba, calculava as horas pelo sol, que já se inclinava para as serras. Um bando de córvos passou sôbre êles, grasnando. E Rostabal, que lhes seguira o vôo, recomeçou a bocejar, com fome, pensando nos empadões e no vinho que o outro trazia nos alforges.

Emfim! Àlerta! Era, na vereda, a cantiga dolente e rouca, atirada aos ramos:

          Olé! olé!
Sale la crus de la iglesia
Toda vestida de negro...

Rui murmurou:—«Na ilharga! Mal que passe!» O chouto da égua bateu o cascalho, uma pluma num sombrero vermelhejou por sôbre a ponta das silvas.

Rostabal rompeu de entre a sarça por uma brecha, atirou o braço, a longa espada;—e toda a lâmina se embebeu molemente na ilharga de Guannes, quando ao rumor, bruscamente, êle se virára na sela. Com um surdo arranco, tombou de lado, sôbre as pedras. Já Rui se arremessava aos freios da égua:—Rostabal, caíndo sôbre Guannes, que arquejava, de novo lhe mergulhou a espada, agarrada pela fôlha como um punhal, no peito e na garganta.{130}

—A chave!—gritou Rui.

E arrancada a chave do cofre ao seio do morto, ambos largaram pela vereda—Rostabal adiante, fugindo, com a pluma do sombrero quebrada e torta, a espada ainda nua entalada sob o braço, todo encolhido, arripiado com o sabor de sangue que lhe espirrára para a bôca; Rui, atrás, puxando desesperadamente os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso, arreganhando a longa dentuça amarela, não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.

Teve de lhe espicaçar as ancas lazarentas com a ponta da espada:—e foi correndo sôbre ela, de lâmina alta, como se perseguisse um mouro, que desembocou na clareira onde o sol já não doirava as fôlhas. Rostabal arremessára para a relva o sombrero e a espada; e debruçado sôbre a lage escavada em tanque, de mangas arregaçadas, lavava, ruidosamente, a face e as barbas.

A égua, quieta, recomeçou a pastar, carregada com os alforges novos que Guannes comprára em Retortilho. Do mais largo, abarrotado, surdiam dois gargalos de garrafas. Então, Rui tirou, lentamente, do cinto, a sua larga navalha. Sem um rumor na relva espessa, deslizou até Rostabal, que resfolgava, com as longas barbas pingando. E, serenamente, como se pregasse uma estaca num{131} canteiro, enterrou a fôlha toda no largo dorso dobrado, certeira sôbre o coração.

Rostabal caíu sôbre o tanque, sem um gemido, com a face na água, os longos cabelos flutuando na água. A sua vélha escarcela de coiro ficára entalada sob a côxa. Para tirar de dentro a terceira chave do cofre, Rui solevou o corpo—e um sangue mais grosso jorrou, escorreu pela borda do tanque, fumegando.

III

Agora eram dêle, só dêle, as três chaves do cofre!... E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente. Mal a noite descesse, com o oiro metido nos alforges, guiando a fila das éguas pelos trilhos da serra, subiria a Medranhos e enterraria na adega o seu tesoiro! E quando ali na fonte, e alêm rente aos silvados, só restassem, sob as neves de dezembro, alguns ossos sem nome, êle seria o magnífico senhor de Medranhos, e na capela nova do solar renascido, mandaria dizer missas ricas pelos seus dois irmãos mortos... Mortos, como? Como devem morrer os de Medranhos—a pelejar contra o Turco!

Abriu as três fechaduras, apanhou um punhado{132} de dobrões, que fez retinir sôbre as pedras. Que puro oiro, de fino quilate! E era o seu oiro! Depois foi examinar a capacidade dos alforges—e encontrando as duas garrafas de vinho, e um gordo capão assado, sentiu uma imensa fome. Desde a véspera só comera uma lasca de peixe sêco. E há quanto tempo não provava capão!

Com que delícia se sentou na relva, com as pernas abertas, e entre elas, a ave loura, que rescendia, e o vinho côr de ámbar! Ah! Guannes fôra bom mordomo—nem esquecera azeitonas. ¿Mas, porque trouxera êle, para três convivas, só duas garrafas? Rasgou uma asa do capão: devorava a grandes dentadas. A tarde descia, pensativa e doce, com nuvemsinhas côr de rosa. Para alêm, na vereda, um bando de corvos grasnava. As éguas fartas dormitavam, com o focinho pendido. E a fonte cantava, lavando o morto.

Rui ergueu à luz a garrafa de vinho. Com aquela côr vélha e quente, não teria custado menos de três maravedis. E pondo o gargalo à bôca, bebeu em sorvos lentos, que lhe faziam ondular o pescoço peludo. Oh vinho bemdito, que tam prontamente aquecia o sangue! Atirou a garrafa vazia—destapou outra. Mas, como era avisado, não bebeu, porque a jornada para a serra, com o tesoiro, requeria firmeza e acêrto. Estendido sôbre o{133} cotovelo, descansando, pensava em Medranhos coberto de telha nova, nas altas chamas da lareira por noites de neve, e o seu leito com brocados, onde teria sempre mulheres.

De repente, tomado de uma ansiedade, teve pressa de carregar os alforges. Já, entre os troncos, a sombra se adensava. Puxou uma das éguas para junto do cofre, ergueu a tampa, tomou um punhado de oiro... Mas oscilou, largando os dobrões que retilintaram no chão, e levou as duas mãos aflitas ao peito. ¿Que é, D. Rui? Raios de Deus! era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera dentro, lhe subia até às guelas. Já rasgára o gibão, atirava os passos incertos, e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas de um suor horrendo que o regelava como neve. Oh Virgem Mãe! Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, o roía! Gritou:

—Socorro! Alguêm! Guannes! Rostabal!

Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente. E a chama dentro galgava—sentia os ossos a estalarem como as traves duma casa em fogo.

Cambaleou até à fonte para apagar aquela labareda, tropeçou sôbre Rostabal; e foi com o joelho fincado no morto, arranhando a rocha, que êle, entre uivos, procurava o fio de água, que recebia sôbre os olhos, pelos cabelos.{134} Mas a água mais o queimava, como se fôsse um metal derretido. Recuou, caíu para cima da relva que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente, esbogalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse emfim a traição, todo o horror:

—É veneno!

Oh! D. Rui, o avisado, era veneno! Porque Guannes, apenas chegára a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao vélho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a êle, a êle sómente, dono de todo o tesoiro.

Anoiteceu. Dois corvos de entre o bando que grasnava, alêm nos silvados, já tinham pousado sôbre o corpo de Guannes. A fonte, cantando, lavava o outro morto. Meio enterrada na erva negra, toda a face de Rui se tornára negra. Uma estrelinha tremeluzia no céu.

O tesoiro ainda lá está, na mata de Roquelanes.{135}

FREI GENEBRO

I

Nesse tempo ainda vivia na sua solidão das montanhas da Úmbria, o divino Francisco de Assis—e já por toda a Itália se louvava a santidade de Frei Genebro, seu amigo e seu discípulo.

Frei Genebro, na verdade, completára a perfeição em todas as virtudes evangélicas. Pela abundância e perpètuidade da Oração, êle arrancava da sua alma as raízes mais miudas do Pecado, e tornava-a limpa e cândida como um dêsses celestes jardins em que o sólo anda regado pelo Senhor, e onde só podem brotar açucenas. A sua penitência, durante vinte anos de clâustro, fôra tam dura e alta que já não temia o Tentador; e agora, só com o sacudir a manga do hábito, rechaçava as tentações, as mais pavorosas ou as mais{136} deliciosas, como se fôssem apenas moscas importunas. Benéfica e universal à maneira de um orvalho de verão, a sua caridade não se derramava sómente sôbre as misérias do pobre, mas sôbre as melancolias do rico. Na sua humilíssima humildade não se considerava nem o igual dum verme. Os bravios barões, cujas negras tôrres esmagavam a Itália, acolhiam reverentemente e curvavam a cabeça a êste franciscano descalço e mal remendado que lhes ensinava a mansidão. Em Roma, em S. João de Latrão, o Papa Honório beijára as feridas de cadeias que lhe tinham ficado nos pulsos, do ano em que na Mourama, por amor dos escravos, padecera a escravidão. E como nessas idades os anjos ainda viajavam na terra, com as asas escondidas, arrimados a um bordão, muitas vezes, trilhando uma vélha estrada pagã ou atravessando uma selva, êle encontrava um moço de inefável formosura, que lhe sorria e murmurava:

—Bons dias, irmão Genebro!

Ora, um dia, indo êste admirável mendicante de Spoleto para Terni, e avistando no azul e no sol da manhã, sôbre uma colina coberta de carvalhos, as ruínas do castelo de Otofrid, pensou no seu amigo Egídio, antigo noviço como êle no mosteiro de Santa Maria dos Anjos, que se retirára àquele ermo para se avizinhar mais de Deus, e ali habitava uma{137} cabana de colmo, junto das muralhas derrocadas, cantando e regando as alfaces do seu horto, porque a sua virtude era amena. E como mais de três anos tinham passado desde que visitára o bom Egídio, largou a estrada, passou em baixo, no vale, sôbre as alpondras, o riacho que fugia por entre os aloendros em flor, e começou a subir, lentamente, a colina frondosa. Depois da poeira e ardor do caminho de Spoleto, era doce a larga sombra dos castanheiros e a relva que lhe refrescava os pés doridos. A meia encosta, numa rocha onde se esguedelhavam silvados, sussurrava e luzia um fio de água. Estendido ao lado, nas ervas húmidas, dormia, ressonando consoladamente, um homem, que de-certo ali guardava porcos, porque vestia um grosso surrão de coiro e trazia, pendurada da cinta, uma buzina de porqueiro. O bom frade bebeu de leve, afugentou os moscardos que zumbiam sôbre a rude face adormecida e continuou a trepar a colina, com o seu alforge, o seu cajado, agradecendo ao Senhor aquela água, aquela sombra, aquela frescura, tantos bens inesperados. Em breve avistou, com efeito, o rebanho de porcos, espalhados sob as frondes, roncando e fossando as raízes, uns magros e agudos, de cerdas duras, outros redondos, com o focinho curto afogado em gordura, e os bacorinhos correndo em tôrno às têtas das mães, luzidios e côr de rosa.{138}

Frei Genebro pensou nos lôbos e lamentou o sono do pastor descuidado. No fim da mata começava a rocha, onde os restos do castelo lombardo se erguiam, revestidos de hera, conservando ainda alguma seteira esburacada sôbre o céu, ou, numa esquina de tôrre, uma goteira que, esticando o pescoço de dragão, espreitava por meio das silvas bravas.

A cabana do ermitão, telhada de colmo que lascas de pedra seguravam, apenas se percebia, entre aqueles escuros granitos, pela horta que em frente verdejava, com os seus talhões de couve e estacas de feijoal, entre alfazema cheirosa. Egídio não andaria afastado porque sôbre o murosinho de pedra solta ficára pousado o seu cântaro, o seu podão e a sua enxada. E docemente, para o não importunar, se àquela hora da sésta estivesse recolhido e orando, Frei Genebro empurrou a porta de pranchas vélhas, que não tinha loquete para ser mais hospitaleira.

—Irmão Egídio!

Do fundo da choça rude, que mais parecia cova de bicho, veio um lento gemido:

—Quem me chama? Aqui neste canto, neste canto a morrer!... A morrer, meu irmão!

Frei Genebro acudiu em grande dó; encontrou o bom ermitão estirado num monte de fôlhas sêcas, encolhido em farrapos, e tam definhado que a sua face, outrora farta e rosada,{139} era como um pedacinho de vélho pergaminho muito enrugado, perdido entre os flocos das barbas brancas. Com infinita caridade e doçura o abraçou.

—¿E há quanto tempo, há quanto tempo neste abandôno, irmão Egídio?

Louvado Deus, desde a véspera! Só na véspera, à tarde, depois de olhar uma derradeira vez para o sol e para a sua horta, se viera estender naquele canto para acabar... Mas havia meses que com êle entrára um cansaço, que nem podia segurar a bilha cheia quando voltava da fonte.

—¿E dizei, irmão Egídio, pois que o Senhor me trouxe, que posso eu fazer pelo vosso corpo? Pelo corpo, digo; que pela alma bastante tendes vós feito na virtude desta solidão!

Gemendo, arrepanhando para o peito as fôlhas sêcas em que jazia, como se fôssem dobras dum lençol, o pobre ermitão murmurou:

—Meu bom Frei Genebro, não sei se é pecado, mas toda esta noite, em verdade vos confesso, me apeteceu comer um pedaço de carne, um pedaço de porco assado!... Mas será pecado?

Frei Genebro, com a sua imensa misericórdia, logo o tranqùilizou. Pecado? Não, certamente! Aquele que, por tortura, recusa ao seu corpo um contentamento honesto, desagrada ao Senhor. ¿Não ordenava êle aos seus{140} discípulos que comessem as boas cousas da terra? O corpo é servo; e está na vontade divina que as suas fôrças sejam sustentadas, para que preste ao espírito, seu amo, bom e leal serviço. Quando Frei Silvestre, já tam doentinho, sentira aquele longo desejo de uvas moscateis, o bom Francisco de Assis logo o conduziu à vinha, e por suas mãos lhe apanhou os melhores cachos, depois de os abençoar para serem mais sumarentos e mais doces...

—¿É um pedaço de porco assado que apeteceis?—exclamava risonhamente o bom Frei Genebro, acariciando as mãos transparentes do ermitão.—Pois sossegai, irmão querido, que bem sei como vos vou contentar!

E imediatamente, com os olhos a reluzir de caridade e de amor, agarrou o afiado podão que pousava sôbre o muro da horta. Arregaçando as mangas do hábito, e mais ligeiro que um gamo, porque era aquele um serviço do Senhor, correu pela colina até aos densos castanheiros onde encontrára o rebanho de porcos. E aí, andando sorrateiramente de tronco para tronco, surpreendeu um bacorinho desgarrado que fossava a bolota, desabou sobre êle, e, emquanto lhe sufocava o focinho e os gritos, decepou, com dois golpes certeiro do podão, a perna por onde o agarrára. Depois, com as mãos salpicadas de sangue, a perna de porco bem alta a pingar sangue, deixando{141} a rês a arquejar numa pôça de sangue, o piedoso homem galgou a colina, correu à cabana, gritou para dentro alegremente:

—Irmão Egídio, a peça de carne já o Senhor a deu! E eu, em Santa Maria dos Anjos, era bom cozinheiro.

Na horta do ermitão arrancou uma estaca do feijoal, que, com o podão sangrento, aguçou em espêto. Entre duas pedras acendeu uma fogueira. Com zeloso carinho assou a perna do porco. Tanta era a sua caridade que para dar a Egídio todos os antegostos daquele banquete, raro em terra de mortificação, anunciava com vozes festivas e de boa promessa:

—Já vai aloirando o porquinho, irmão Egídio! A pele já tosta, meu santo!

Entrou emfim na choça, triunfalmente, com o assado que fumegava e rescendia, cercado de frescas fôlhas de alface. Ternamente, ajudou a sentar o vélho, que tremia e se babava de gula. Arredou das pobres faces maceradas os cabelos que o suor da fraqueza empastára. E, para que o bom Egídio se não vexasse com a sua voracidade e tam carnal apetite, ia afirmando, emquanto lhe partia as febras gordas, que tambêm êle comeria regaladamente daquele excelente porco, se não tivesse almoçado à farta na Locanda dos Três Caminhos.{142}

—Mas nem bocado agora me podia entrar, meu irmão! Com uma galinha inteira me atochei! E depois uma fritada de ovos! E de vinho branco, um quartilho!

E o santo homem mentia santamente—porque, desde madrugada, não provára mais que um magro caldo de ervas, recebido por esmola à cancela de uma granja.

Farto, consolado, Egídio deu um suspiro, recaíu no seu leito de fôlhas sêcas. Que bem lhe fizera, que bem lhe fizera! O Senhor, na sua justiça, pagasse a seu irmão Genebro aquele pedaço de porco! Até sentia a alma mais rija para a temerosa jornada... E o ermitão com as mãos postas, Genebro ajoelhado, ambos louvaram, ardentemente, o Senhor que, a toda a necessidade solitária, manda de longe o socorro.

Então, tendo coberto Egídio com um pedaço de manta e posto, a seu lado, a bilha cheia de água fresca, e tapado, contra as aragens da tarde, a fresta da cabana, Frei Genebro, debruçado sôbre êle, murmurou:

—Meu bom irmão, vós não podeis ficar neste abandono... Eu vou levado por obra de Jesus, que não admite tardança. Mas passarei no convento de Sambricena e darei recado para que um noviço venha e cuide de vós com amor, no vosso transe. Deus vos vele{143} entretanto, meu irmão; Deus vos sossegue e vos ampare com a sua mão direita!

Mas Egídio cerrára os olhos, nem se moveu, ou porque adormecera, ou porque o seu espírito, tendo pago aquele derradeiro salário ao corpo, como a um bom servidor, para sempre partira, finda a sua obra na terra. Frei Genebro abençoou o vélho, tomou o seu bordão, desceu a colina dos grandes carvalhos. Sob a fronde, para os lados onde andava o rebanho, a buzina do porqueiro ressoava agora num toque de alarma e de furor. De-certo acordára, descobrira o seu porco mutilado... Estugando o passo, Frei Genebro pensava quanto era magnânimo o Senhor em permitir que o homem, feito à sua imagem augusta, recebesse tam fácil consolação duma perna de cerdo assada entre duas pedras.

Retomou a estrada, marchou para Terni. E prodigiosa foi, desde êsse dia, a actividade da sua virtude. Através de toda a Itália, sem descanso, prègou o Evangelho Eterno, adoçando a aspereza dos ricos, alargando a esperança dos pobres. O seu imenso amor ia ainda para alêm dos que sofrem, até àqueles que pecam, oferecendo um alívio a cada dôr, estendendo um perdão a cada culpa: e com a mesma caridade com que tratava os leprosos, convertia os bandidos. Durante as invernias e a neve, vezes inumeráveis dava, aos{144} mendigos, a sua túnica, as suas alpercatas; os abades dos mosteiros ricos, as damas devotas de novo o vestiam, para evitar o escândalo da sua nudez através das cidades; e sem demora, na primeira esquina, ante qualquer esfarrapado, êle se despojava sorrindo. Para remir servos que penavam sob um amo fero, penetrava nas igrejas, arrancava do altar os candelabros de prata, afirmando, jovialmente, que mais praz a Deus uma alma liberta que uma tocha acesa.

Cercado de viuvas, de crianças famintas, invadia as padarias, os açougues, até as tendas dos cambistas, e reclamava imperiosamente, em nome de Deus, a parte dos deserdados. Sofrer, sentir a humilhação, eram, para êle, as únicas alegrias completas: nada o deliciava mais do que chegar de noite, molhado, esfaimado, tiritando, a uma opulenta abadia feudal, e ser repelido da portaria como um mau vagabundo: só então, agachado nos lôdos do caminho, mastigando um punhado de ervas cruas, êle se reconhecia verdadeiramente irmão de Jesus, que não tivera tambêm, como teem sequer os bichos do mato, um covil para se abrigar. Quando um dia, em Perusa, as confrarias saíram ao seu encontro, com bandeiras festivas, ao repique dos sinos, êle correu para um monte de estêrco, onde se rolou e se sujou, para que daqueles que{145} o vinham engrandecer, só recebesse compaixão e escárnio. Nos clâustros, nos descampados, em meio das multidões, durante as lides mais pesadas, orava constantemente, não por obrigação, mas porque na prece encontrava um deleite adorável. Deleite maior, porêm, era, para o franciscano, ensinar e servir. Assim, longos anos errou entre os homens, vertendo o seu coração como a água de um rio, oferecendo os seus braços como alavancas incansáveis; e tam depressa, numa ladeira deserta, aliviava uma pobre vélha da sua carga de lenha, como numa cidade revoltada, onde reluzissem armas, se adiantava, com o peito aberto, e amansava as discórdias.

Emfim, uma tarde, em véspera de Páscoa, estando a descansar nos degraus de Santa Maria dos Anjos, avistou de repente, no ar liso e branco, uma vasta mão luminosa que sôbre êle se abria e faiscava. Pensativo, murmurou:

—Eis a mão de Deus, a sua mão direita, que se estende para me acolher ou para me repelir.

Deu logo a um pobre, que ali rezava a Avé-Maria, com a sua sacola nos joelhos, tudo o que no mundo lhe restava, que era um volume do Evangelho, muito usado e manchado das suas lágrimas. No domingo, na igreja, ao levantar da Hóstia, desmaiou. Sentindo então{146} que ia terminar a sua jornada terrestre, quis que o levassem para um curral, o deitassem sôbre uma camada de cinzas.

Em santa obediência ao guardião do convento, consentiu que o limpassem dos seus trapos, lhe vestissem um hábito novo: mas, com os olhos alagados de ternura, implorou que o enterrassem num sepulcro emprestado como fôra o de Jesus, seu senhor.

E, suspirando, só se queixava de não sofrer:

—¿O senhor, que tanto sofreu, porque me não manda a mim o padecimento bemdito?

De madrugada pediu que abrissem, bem largo, o portão do curral.

Contemplou o céu que clareava, escutou as andorinhas que, na frescura e silêncio, começavam a cantar sôbre o beiral do telhado, e, sorrindo, recordou uma manhã, assim de silêncio e frescura, em que, andando com Francisco de Assis à beira do lago de Perusa, o mestre incomparável se detivera ante uma árvore cheia de pássaros, e, fraternalmente, lhes recomendára que louvassem sempre o Senhor! «Meus irmãos, meus irmãos passarinhos, cantai bem o vosso Criador, que vos deu essa árvore para que nela habiteis, e toda esta limpa água para nela beber, e essas penas bem quentes para vos agasalharem, a vós{147} e aos vossos filhinhos!» Depois, beijando humildemente a manga do monge que o amparava, Frei Genebro morreu.

II

Logo que êle cerrou os seus olhos carnais, um Grande Anjo penetrou diáfanamente no curral e tomou, nos braços, a alma de Frei Genebro. Durante um momento, na fina luz da madrugada, deslizou por sôbre o prado fronteiro tam levemente que nem roçava as pontas orvalhadas da relva alta. Depois, abrindo as asas, radiantes e níveas, transpôs, num vôo sereno, as nuvens, os astros, todo o céu que os homens conhecem.

Aninhada nos seus braços, como na doçura de um berço, a alma de Genebro conservava a forma do corpo que sôbre a terra ficára; o hábito franciscano ainda a cobria, com um resto de poeira e de cinza nas pregas rudes; e, com um olhar novo, que agora tudo trespassava e tudo compreendia, ela contemplava, num deslumbramento, aquela região em que o Anjo parára, para alêm dos universos transitórios e de todos os rumores siderais. Era um espaço sem limite, sem contôrno{148} e sem côr. Por cima começava uma claridade, subindo espalhada à maneira duma aurora, cada vez mais branca, e mais luzente, e mais radiante, até que resplandecia num fulgor tam sublime que nela um sol coruscante seria como uma nódoa pardacenta. E por baixo estendia-se uma sombra cada vez mais baça, mais fusca, mais cinzenta, até que formava como um espesso crepúsculo de profunda, insondável tristeza. Entre essa refulgência ascendente e a escuridão inferior, permanecera o Anjo imóvel, esperando, com as asas fechadas. E a alma de Genebro perfeitamente sentia que estava ali, esperando tambêm, entre o Purgatório e o Paraíso. Então, súbitamente, nas alturas, apareceram os dois imensos pratos duma Balança—um que rebrilhava como diamante e era reservado às suas Boas Obras, outro, negrejando mais que carvão, para receber o pêso das suas Obras Más. Entre os braços do Anjo, a alma de Genebro estremeceu... Mas o prato diamantino começou a descer lentamente. Oh! contentamento e glória! Carregado com as suas Boas Obras, êle descia, calmo e majestoso, espargindo claridade. Tam pesado vinha, que as suas grossas cordas se retesavam, rangiam. E entre elas, formando como uma montanha de neve, alvejavam magníficamente as suas virtudes evangélicas. Lá estavam as incontáveis esmolas{149} que semeára no mundo, agora desabrochadas em alvas flores, cheias de aroma e de luz.

A sua humildade era um cimo, aureolado por um clarão. Cada uma das suas penitências scintilava mais límpidamente que cristais puríssimos. E a sua oração perene subia e enrolava-se em tôrno das cordas, à maneira duma deslumbrante névoa de oiro.

Sereno, tendo a majestade de um astro, o prato das Boas Obras parou, finalmente, com a sua carga preciosa. O outro, lá em cima, não se movia tambêm, negro, da côr do carvão, inútil, esquecido, vazio. Já das profundidades, sonoros bandos de Serafins voavam, balançando palmas verdes. O pobre franciscano ia entrar triunfalmente no Paraíso—e aquela era a milícia divina que o acompanharia cantando. Um frémito de alegria passou na luz do Paraíso, que um Santo novo enriquecia. E a alma de Genebro anteprovou as delícias da Bemaventurança.

Súbitamente, porêm, no alto, o prato negro oscilou como a um pêso inesperado que sôbre êle caísse! E começou a descer, duro, temeroso, fazendo uma sombra dolente através da celestial claridade. ¿Que Má Acção de Genebro trazia êle, tam miuda que nem se avistava, tam pesada que forçava o prato luminoso a subir, remontar ligeiramente como se{150} a montanha de Boas Acções, que nele transbordavam, fôssem um fumo mentiroso? Oh! mágoa! oh! desesperança! Os Serafins recuavam, com as asas trementes. Na alma de Frei Genebro correu um arrepio imenso de terror. O negro prato descia, firme, inexorável, com as cordas retêsas. E na região que se cavava sob os pés do Anjo, cinzenta, de inconsolável tristeza, uma massa de sombra, molemente e sem rumor, arfou, cresceu, rolou, como a onda duma maré devoradora.

O prato, mais triste que a noite, parára—parára em pavoroso equilíbrio com o prato que rebrilhava. E os Serafins, Genebro, o Anjo que o trouxera, descobriram, no fundo daquele prato que inutilizava um Santo, um porco, um pobre porquinho com uma perna bárbaramente cortada, arquejando, a morrer, numa pôça de sangue... O animal mutilado pesava tanto na balança da justiça como a montanha luminosa de virtudes perfeitas!

Então, das alturas, surgiu uma vasta mão, abrindo os dedos que faiscavam. Era a mão de Deus, a sua mão direita, que aparecera a Genebro na escada de Santa Maria dos Anjos, e que agora supremamente se estendia para o acolher ou para o repelir. Toda a luz e toda a sombra, desde o Paraíso fulgente ao Purgatório crepuscular, se contraíram num recolhimento de inexprimível amor e terror. E na{151} estática mudez, a vasta mão, através das alturas, lançou um gesto que repelia...

Então o Anjo, baixando a face compadecida, alargou os braços e deixou caír, na escuridão do Purgatório, a alma de Frei Genebro.{152} {153}

ADÃO E EVA NO PARAÍSO

I

Adão, Pai dos Homens, foi criado no dia 28 de Outubro, às 2 horas da tarde...

Assim o afirma, com majestade, nos seus Annales Veteris et Novi Testamento, o muito douto e muito ilustre Usserius, Bispo de Meath, Arcebispo de Armagh, e Chanceler-Mór da Sé de S. Patrício.

A Terra existia desde que a Luz se fizera, a 23, na manhã de todas as manhãs. Mas já não era essa Terra primordial, parda e mole, ensopada em águas barrentas, abafada numa névoa densa, erguendo, aqui e alêm, rígidos troncos duma só fôlha e dum só rebento, muito solitária, muito silenciosa, com uma vida toda escondida, apenas surdamente revelada pelo remexer de bichos obscuros, gelatinosos,{154} sem côr e quási sem forma, crescendo no fundo dos lôdos. Não! agora, durante os dias genesíacos de 26 e 27, toda ela se completára, se abastecera e se enfeitára, para acolher condignamente o Predestinado que vinha. No dia 28 já apareceu perfeita, perfecta, com as provisões e alfaias que a Bíblia enumera, as ervas verdes de espiga madura, as árvores providas do fruto entre a flor, todos os peixes nadando nos mares resplandecentes, todas as aves voando pelos ares aclarados, todos os animais pastando sôbre as colinas viçosas, e os regatos regando, e o fogo armazenado no seio da pedra, e o cristal, e o ónix, e o oiro muito bom do país de Hevilath...

Nesses tempos, meus amigos, o Sol ainda girava em tôrno da Terra. Ela era môça e formosa e preferida de Deus. Êle ainda se não submetera à imobilidade augusta que lhe impôs mais tarde, entre amuados suspiros da Igreja, mestre Galileu, estendendo um dedo do fundo do seu pomar, rente aos muros do Convento de S. Mateus de Florença. E o sol, amorosamente, corria em volta da Terra, como o noivo dos Cantares, que, nos lascivos dias da ilusão, sôbre o outeiro de mirra, sem descanso e pulando mais levemente que os gamos de Gaalad, circundava a Bem-Amada, a cobria com o fulgor dos seus olhos, coroado de sal-gêma, a faiscar de fecunda{155} impaciência. Ora desde essa alvorada do dia 28, segundo o cálculo majestático de Usserius, o Sol, muito novo, sem sardas, sem rugas, sem falhas na sua cabeleira flamante, envolvera a terra, durante oito horas, numa contínua e insaciada carícia de calor e de luz. Quando a oitava hora scintilou e fugiu, uma emoção confusa, feita de medo e feita de glória, perpassou por toda a Criação, agitando num frémito as relvas e as frondes, arripiando o pêlo das feras, empolando o dorso dos montes, apressando o borbulhar das nascentes, arrancando dos pórfiros um brilho mais vivo... Então numa floresta muito cerrada e muito tenebrosa, certo Ser, desprendendo lentamente a garra do galho de árvore onde se empoleirára toda essa manhã de longos séculos, escorregou pelo tronco comido de hera, pousou as duas patas no sólo que o musgo afofava, sôbre as duas patas se firmou com esforçada energia, e ficou erecto, e alargou os braços livres, e lançou um passo forte, e sentiu a sua dissemelhança da Animalidade, e concebeu o deslumbrado pensamento do que era, e verdadeiramente foi! Deus, que o amparára, nesse instante o criou. E vivo, da vida superior, descido da inconsciência da árvore, Adão caminhou para o Paraíso.

Era medonho. Um pêlo crespo e luzidio cobria todo o seu grosso, maciço corpo, rareando{156} apenas em tôrno dos cotovelos, dos joelhos rudes, onde o coiro aparecia curtido e da côr de cobre fosco. Do achatado, fugidio crânio, vincado de rugas, rompia uma guedelha rala e ruiva, tufando sôbre as orelhas agudas. Entre as rombas queixadas, na fenda enorme dos beiços trombudos, estirados em focinho, as prêsas reluziam, afiadas rijamente para rasgar a febra e esmigalhar o osso. E sob as arcadas sombriamente fundas, que um felpo hirsuto orlava como um silvado orla o arco duma caverna, os olhos redondos, dum amarelo de ámbar, sem cessar se moviam, tremiam, esgazeados de inquietação e de espanto... Não, não era belo, nosso Pai venerável, nessa tarde de Outono, quando Jeová o ajudou com carinho a descer da sua Árvore! E todavia, nesses olhos redondos, de fino ámbar, mesmo através do tremor e do espanto, rebrilhava uma superior beleza—a Energia Inteligente que o ia trôpegamente levando, sôbre as pernas arqueadas, para fóra da mata onde passára a sua manhã de longos séculos a pular e a guinchar por cima dos ramos altos.

Mas (se os Compêndios de Antropologia nos não iludem) os primeiros passos humanos de Adão não foram logo atirados, com alacridade e confiança, para o destino que o esperava entre os quatro rios do Éden. Entorpecido, envolvido pelas influências da Floresta,{157} ainda despega com custo a pata de entre o folhoso chão de fetos e begónias, e gostosamente se roça pelos pesados cachos de flores que lhe orvalham o pêlo, e acaricia as longas barbas de lichen branco, pendentes dos troncos de roble e de teca, onde gozára as doçuras da irresponsabilidade. Nas ramagens que tam generosamente, através tam longas idades, o nutriram e o embalaram, ainda colhe as bagas sumarentas, os rebentões mais tenros. Para transpor os regatos, que por todo o bosque reluzem e sussurram depois da sazão das chuvas, ainda se pendura duma rija liana, entrelaçada de orquídeas, e se balança, e arqueia o pulo, com pesada indolência. E receio bem que quando a aragem restolhasse pela espessura, carregada com o cheiro morno e acre das fêmeas acocoradas nos cimos, o Pai dos Homens ainda dilatasse as ventas chatas e soltasse do peito felpudo um grunhido rouco e triste.

Mas caminha... As suas pupilas amarelas, onde faisca o Querer, sondam, esbugalhadas, através da ramaria, procuram para alêm o mundo que deseja e receia, e a que sente já a zoada violenta, como toda feita de batalha e rancor. E, à maneira que a penumbra das folhagens clareia, vai surgindo, dentro do seu crânio bisonho, como uma alvorada que penetra numa toca, o sentimento das{158} Formas diferentes e da Vida diferente que as anima. Essa rudimentar compreensão só trouxe a nosso Pai venerável turbação e terror. Todas as Tradições, as mais orgulhosas, concordam em que Adão, na sua entrada inicial pelas planícies do Éden, tremeu e gritou como criancinha perdida em arraial turbulento. E bem podemos pensar que, de todas as Formas, nenhuma o apavorava mais que a dessas mesmas árvores onde vivera, agora que as reconhecia como seres tam dissemelhantes do seu Ser e imobilizadas numa inércia tam contrária à sua Energia. Liberto da Animalidade, em caminho para a sua Humanização, o arvoredo que lhe fôra abrigo natural e doce só lhe pareceria agora um cativeiro de degradante tristeza. ¿E êsses ramos tortuosos, empecendo a sua marcha, não seriam braços fortes que se estendiam para o empolgar, o repuxar, o reter nos cimos frondosos? ¿Êsse ramalhado sussurro que o seguia, composto do desassossêgo irritado de cada fôlha, não era a selva toda, num alvoroço, reclamando o seu secular morador? De tam estranho medo nasceu, talvez, a primeira luta do Homem com a Natureza. Quando um galho alongado o roçasse, de-certo nosso Pai atiraria contra êle as garras desesperadas para o repelir e lhe escapar. Nesses bruscos ímpetos quantas vezes se desequilibrou, e as suas mãos se abateram{159} desamparadamente sôbre o sólo de mato ou rocha, de novo precipitado na postura bestial, retrogradando à inconsciência, entre o clamor triunfal da Floresta! Que angustioso esfôrço então para se erguer, recuperar a atitude humana, e correr, com os felpudos braços despegados da terra bruta, livres para a obra imensa da sua Humanização! Esfôrço sublime, em que ruge, morde as raíses detestadas, e, ¿quem sabe? levanta já os olhos de ámbar lustroso para os céus, onde, confusamente, sente Alguêm que o vem amparando—e que na realidade o levanta.

Mas, de cada um dêstes tombos modificantes, nosso Pai ressurge mais humano, mais nosso Pai. E há já consciência, pressa da Racionalidade, nos ressoantes passos com que se arranca ao seu limbo arboral, despedaçando as enrediças, fendendo o bravio denso, despertando os tapires adormecidos sob cogumelos monstruosos, ou espantando algum urso môço e tresmalhado que, de patas contra um olmo, chupa, meio borracho, as uvas dêsse farto outono.

 

 

Emfim, Adão emerge da Floresta obscura:—e os seus olhos de ámbar vivamente se cerram sob o deslumbramento em que o envolve o Éden.{160}

Ao fundo dessa encosta, onde parara, resplandecem vastas campinas (se as Tradições não exageram) com desordenada e sombria abundância. Lentamente, através, um rio corre, semeado de ilhas, ensopando, em fecundos e espraiados remansos, as verduras onde já talvez cresce a lentilha e se alastra o arrozal. Rochas de mármore rosado rebrilham com um rubor quente. De entre bosques de algodoeiros, brancos como crespa espuma, sobem outeiros cobertos de magnólias, dum esplendor ainda mais branco. Alêm a neve coroa uma serra com um radiante nimbo de santidade, e escorre, por entre os flancos despedaçados, em finas franjas que refulgem. Outros montes dardejam mudas labaredas. Da borda de rígidas escarpas, pendem perdidamente, sôbre profundidades, palmeirais desgrenhados. Pelas lagôas a bruma arrasta a luminosa moleza das suas rendas. E o mar, nos confins do mundo, faiscando, tudo encerra, como um aro de oiro.—Neste fecundo espaço toda a Criação se espaneja, com a fôrça, a graça, a braveza vivaz duma mocidade de cinco dias, ainda quente das mãos do seu Criador. Profusos rebanhos de auroques, de pelagem ruiva, pastam, majestosamente, enterrados nas ervas tam altas que nelas desaparece a ovelha e o seu anho. Temerosos e barbudos urus, brigando contra gigantescos{161} veados-elefas, entrechocam cornos e galhos com o sêco fragor de robles que o vento racha. Um bando de girafas rodeia uma mimosa a que vai trincando, delicadamente, nos trémulos cimos, as folhinhas mais tenras. À sombra dos tamarindos, repousam disformes rinocerontes, sob o vôo apressado de pássaros que lhes catam serviçalmente a vermina. Cada arremêsso de tigre causa uma debandada furiosa de ancas, e chifres, e clinas, onde, mais certo e mais leve, se arqueia o pulo grácil dos antílopes. Uma rija palmeira verga toda ao pêso da jibóia que nela se enrosca. Entre duas penedias, por vezes, aparece, numa profusão de juba, a face magnífica de um leão que, serenamente, olha o sol, a imensidade radiante. No remoto azul, enormes condores dormem imóveis, de asas abertas, entre o sulco níveo e róseo das garças e dos flamingos. E em frente à encosta, num alto, entre o matagal, passa, lenta e montanhosa, uma récua de mastodontes, com a rude clina do dorso erriçada ao vento, e a tromba a bambolear entre os dentes mais recurvos que foices.

Assim vetustíssimas Crónicas contam o vetustíssimo Éden, que era nas campinas do Eufrates, talvez na trigueira Ceilão, ou entre os quatro claros rios que hoje regam a Húngria, ou mesmo nestas terras bemditas onde a nossa Lisboa aquece a sua velhice ao{162} soalheiro, cansada de proezas e mares. ¿Mas quem pode garantir êstes bosques e êstes bichos, pois que desde êsse dia 25 de Outubro, que inundava o Paraíso de esplendor outonal, já passaram, muito breves e muito cheios, sôbre o grão de pó que é o nosso mundo, mais de sete vezes setecentos mil anos? Só parece certo que, diante de Adão apavorado, um grande pássaro passou. Um pássaro cinzento, calvo e pensativo, com as penas esguedelhadas como as pétalas de um crisântemo, que saltitava pesadamente sôbre uma das patas, erguendo na outra, bem agarrado, um mólho de ervas e ramos. O nosso Pai venerável, com a fusca face franzida, no doloroso esfôrço de compreender, pasmava para aquele pássaro, que ao lado, sob o abrigo de azáleas em flor, terminava muito gravemente a construção duma cabana! Vistosa e sólida cabana, com o seu chão de greda bem alisado, galhos fortes de pinheiro e faia formando estacas e traves, um seguro teto de relva sêca, e na parede de enrediças bem liadas o desafôgo duma janela!... Mas o Pai dos Homens, nessa tarde, ainda não compreendeu.

Depois caminhou para o largo rio, desconfiadamente, sem se afastar da ourela do bosque abrigador. Lento, farejando o cheiro novo dos gordos herbívoros da planície, com os{163} punhos rijamente cerrados contra o peito peludo, Adão vai arfando entre o apetite daquela resplandecente Natureza e o terror dos seres nunca avistados que a atulham e atroam com tam fera turbulência. Mas dentro dêle borbulha, não cessa, a nascente sublime, a sublime nascente da Energia, que o impele a desentranhar da crassa bruteza, e a ensaiar, com esforços que são semi-penosos porque são já semi-lúcidos, os Dons que estabelecerão a sua supremacia sôbre essa Natureza incompreendida e o libertarão do seu terror. Assim, na surprêsa de todas aquelas inesperadas aparições do Éden, reses, pastagens, montes nevados, imensidades radiosas, Adão solta roucas exclamações, gritos com que desafoga, vozes gaguejadas, em que por instinto reproduz outras vozes, e brados, e toadas, e mesmo o reboliço das criaturas, e mesmo o estrondo das águas despenhadas... E êstes sons ficam já na escura memória de nosso Pai ligados às sensações que lhos arrancam:—de sorte que o guincho áspero que lhe escapara ao topar um cangurú com a sua ninhada embolsada no ventre, de novo lhe ressoará nos lábios trombudos quando outros cangurús, fugindo dêle, adiante, se embrenhem na sombra negra das caneleiras. A Bíblia, com a sua exageração oriental, cândida e simplista, conta que Adão, logo na sua entrada pelo Éden, distribuiu nomes a todos{164} os animais, e a todas as plantas, muito definitivamente, muito eruditamente, como se compuzesse o Lexicon da Criação, entre Buffon, já com os seus punhos, e Linneu, já com os seus óculos. Não! eram apenas grunhidos, roncos mais verdadeiramente augustos, porque todos êles se plantavam na sua consciência nascente como as tôscas raízes dessa Palavra pela qual verdadeiramente se humanou, e foi depois, sôbre a terra, tam sublime e tam burlesco.

E bem podemos pensar, com orgulho, que ao descer a borda do rio Edénico, nosso Pai, compenetrado do que era, e quanto diverso dos outros seres! já se afirmava, se individualizava, e batia no peito sonoro, e rugia soberbamente:—Eheu! Eheu! Depois, alongando os olhos reluzentes por aquela longa água que corria vagarosamente para alêm, já tenta exteriorizar o seu espantado sentimento dos espaços, e rosna com pensativa cubiça:—Lhlâ! Lhlâ!

II

Calmo, magníficamente fecundo, corria êle, o nobre rio do Paraíso, por entre as ilhas, quási afundadas sob o pêso rijo do rijo arvoredo todas{165} fragrantes, e atroadas pelo clamor das cacatuas. E Adão, trotando pesadamente pela margem baixa, já sente a atracção das águas disciplinadas que andam e vivem—essa atracção que será tam forte nos seus filhos, quando no rio descobrirem o bom servidor que desaltera, estruma, rega, mói e acarreta. Mas quantos terrores especiais ainda o arrepiam, o atiram com espavoridos pulos para o abrigo dos salgueiros e dos choupos! Noutras ilhas, de areia fina e rosada, preguiçam pedregosos crocodilos, achatados sôbre o ventre, que arfam molemente, escancarando as fundas goelas na tépida preguiça da tarde, embebendo todo o ar com um cheirinho de almíscar. Por entre os canaviais, coleam e refulgem gordas cobras de água, de colo alteado, que fitam Adão com furor, dardejando e silvando. E, para nosso Pai que nunca as avistara, certamente seriam pavorosas as tartarugas imensas dêsse comêço do Mundo, pastando, com arrastada mansidão, através dos prados novos. Mas uma curiosidade o atrai, quási resvala na riba lodosa, onde a franja de água roça e marulha. Na largueza do rio espraiado, uma longa e negra fila de auroques, serenamente, com os cornos altos e a espessa barba a flutuar, nada para a outra margem, campina coberta de louras messes onde talvez já amaduram as espigas sociáveis do centeio e do milho. Nosso Pai{166} venerável olha a fila lenta, olha o rio lustroso, concebe o ennevoado desejo de tambêm atravessar para aqueles longes em que as ervas rebrilham, e arrisca a mão na corrente—na rija corrente que lha repuxa, como para o atrair e iniciar. Êle grunhe, arranca a mão—e segue, com ásperas patadas, esmagando, sem mesmo lhes sentir o perfume, os frescos morangos silvestres que ensangùentam a relva... Em breve pára, considerando um bando de aves alcandoradas numa penedia toda riscada de guanos, que espreitam, com o bico atento, para baixo, onde as águas apertadas refervem. ¿Que espreitam elas, as brancas garças? Lindos peixes em cardume, que rompem contra a levada, e pulam, lampejando nas espumas claras. E bruscamente, num desabrido abanar de asas brancas, uma garça, depois outra, fende o céu alto, levando, atravessado no bico, um peixe que se estorce e reluz. Nosso Pai venerável coça a ilharga. A sua crassa gula, entre aquela abundância do rio, tambêm apetece uma prêsa: e atira a garra, colhe, no seu vôo soante, cascudos insectos que farisca e trinca. Mas nada certamente assombrou o Primeiro Homem como um grosso tronco de árvore meio apodrecido, que boiava, descia na corrente, levando sentados numa ponta, com segurança e graça, dois bichos sedosos, louros, de focinho esperto,{167} e fôfas caudas vaidosas. Para os seguir, os observar, ansiosamente correu, enorme e desengonçado. E os seus olhos faiscavam, como se já compreendesse a malícia daqueles dois bichos, embarcados num toro de árvore, e viajando, com a macia frescura da tarde, no rio do Paraíso.

No entanto, a água que êle costeava era mais baixa, turva e tarda. Já na sua largueza não verdejam ilhas, nem nela se molha a orla das fartas pastagens. Para alêm, sem limite, fundidas nas neblinas, fogem descampadas solidões, de onde rola um vento lento e húmido. Nosso Pai venerável enterrava as patas em ribas moles, através de aluviões, de lixos silvestres, em que chapinavam, para seu intenso horror, enormes rãs coaxando furiosamente. E o rio em breve se perdeu numa vasta lagôa, escura e desolada, resto das grandes águas sôbre que flutuara o Espírito de Jeová. Uma tristeza humana apertou o coração de nosso Pai. Do meio de grossas bôlhas, que se empolavam na estanhada lisura da água triste, constantemente surdiam horrendas trombas, a escorrer de limos verdes, que bufavam ruidosamente, logo se afundavam, como repuxadas pelos lôdos viscosos. E quando de entre os altos e negros canaviais, manchando a vermelhidão da tarde, se elevou, se alargou sobre êle uma nuvem estridente{168} de moscardos vorazes, Adão foge, estonteado, trilha saibros pegajosos, rasga o pêlo na aspereza dos cardos brancos que o vento estorce, resvala por uma encosta de cascalho e seixo, e pára em areia fina. Arqueja: as suas longas orelhas remexem, escutando, para alêm das dunas, um vasto rumor que rola e desaba e retumba... É o mar. Nosso Pai transpõe as pálidas dunas—e diante dêle está o Mar!

 

 

Então foi o pavor supremo. Com um pulo, batendo convulsamente os punhos no peito, recúa até onde três pinheiros, mortos e sem rama, lhe oferecem o refúgio hereditário. ¿Porque avançam assim para êle, sem cessar, numa inchada ameaça, aqueles rolos verdes, com a sua clina de espuma, e se atiram, se esmigalham, refervem, babujam rudemente a areia? Mas toda a outra vasta água permanece imóvel, como morta, com uma grande mancha de sangue que lateja. Todo êsse sangue caíu, de-certo, da ferida do sol, redonda e vermelha, sangrando em cima, num céu dilacerado por fundos golpes já rôxos. Para alêm da névoa leitosa que cobre as lagôas, dos charcos salgados, onde a marezia ainda chega e se espraia muito longe, um monte flameja e fumega. E sempre diante de Adão, contra Adão,{169} os verdes rolos da verde vaga avançam, e ribombam, e alastram a praia de algas, de conchas, de gelatinas que alvejam lívidamente.

Mas eis que todo o mar se povôa! E, encolhido contra o pinheiro, nosso Pai venerável dardeja os olhos inquietos e trémulos, para aqui, para alêm—para os rochedos cobertos de sargaço onde gordíssimas focas rebolam majestosamente; para os repuxos de água, que ao largo esguicham até às nuvens rôxas e recáem numa chuva radiante; para uma linda armada de búzios, imensos búzios alvos e nacarados, vogando à bolina, circundando as penedias, com manobra elegante... Adão pasma sem saber que estas são as Amonites, e que nenhum outro homem, depois dêle, verá a luzida e rósea armada singrando nos mares dêste mundo. Ainda êle a admira, talvez com a impressão inicial da beleza das cousas, quando bruscamente, num tremor de sulcos brancos, toda a maravilhosa frota sossobra! Com o mesmo salto mole, as focas tombam, trambulham na vaga funda. E um terror passa, um terror levantado do mar, tam intenso que um bando de albatrozes, muito seguro sôbre uma escarpa, bate, com azoados gritos, o vôo espavorido.

Nosso Pai venerável aferra a mão a um galho de pinheiro, sondando, num arrepio, a imensidão deserta. Então, ao longe, sob o{170} clarão enfiado do sol que se esconde, um dorso imenso sai, lentamente, das águas, como uma comprida colina, toda espetada de negras, agudas lascas de rocha. E avança! Adiante um tumulto de bôlhas redemoinha e rebenta; e de entre elas emerge, por fim, resfolegando cavamente, uma tromba disforme, de fauces entreabertas, onde lampejam e se somem cardumes de peixes que os seus sorvos vem tragando...

É um monstro, um pavoroso monstro marinho! E bem podemos supor que nosso Pai, esquecendo toda a sua dignidade humana (ainda recente), trepou desesperadamente ao pinheiro até onde os galhos findavam. Mas mesmo nesse abrigo, os seus poderosos queixos batiam, num medo convulso, ante o horrífico ser surgido das profundidades. Com um baque raspante, esmigalhando conchas, seixos e galhos de coral, o monstro esbarra na areia, que fundamente escava e sôbre que retesa as duas patas, mais grossas que troncos de teca, com as unhas todas enrodilhadas de silvas marinhas. Da caverna das suas fauces, através dos dentes terríficos, que os limos e musgos esverdeiam, sopra um bafo espesso de fadiga ou de furor, tam forte que faz rodopiar as algas sêcas e os búzios ligeiros. Entre as crostas pedregosas, que lhe couraçam a fronte, negrejam dois cornos curtos e rombos. Os seus olhos, lívidos e{171} vítreos, são como duas enormes luas mortas. A imensa cauda dentada arrasta pelo mar distante, e a cada rabeio lento levanta uma tempestade.

Por estas feições, pouco amáveis, já reconhecesteis o Ictiosaurio, o mais horrendo dos cetáceos concebidos por Jeová. Era êle!—talvez o derradeiro, que durara nas trevas oceânicas até êste dia memorável de 28 de Outubro, para que nosso Pai entrevisse as origens da Vida. E agora está em frente de Adão, ligando os tempos vélhos aos tempos novos—e, com as escamas do dorso assanhadas, muge devastadoramente. Nosso Pai venerável, enroscado ao tronco alto, guincha de vivo horror... E eis que, do lado dos charcos ennevoados, um silvo fende os céus, uivado e arremetido, como o de um áspero vento numa garganta de serrania. O quê! Outro monstro?... Sim, o Plesiosaurio. É tambêm o derradeiro Plesiosaurio que corre do fundo dos pântanos. E agora de novo se trava, para assombro do primeiro Homem (e gôsto dos Paleontologistas) o combate que foi a desolação dos pre-humanos dias da Terra. Lá aparece a fabulosa cabeça do Plésio, terminada em bico de ave, bico de duas braças, mais agudo que o dardo mais agudo, erguida sôbre um longuíssimo e esguio pescoço que ondula, arqueia, esfusia, dardeja com pavorosa elegância! Duas barbatanas de incomparável{172} rijeza veem movendo o seu disforme corpo, mole, glutinoso, todo em rugas, manchado por uma lepra de fungos esverdinhados. E tam imenso é assim rojando, com o pescoço empinado, que, diante da duna onde se levantam os pinheiros que acoitam Adão, êle parece uma outra duna negra sustentando um pinheiro solitário. Furiosamente avança.—E de repente é um horroroso tumulto de mugidos, e sibilos, e choques ribombantes, e areias torvelinhando, e grossos mares espadanando. Nosso Pai venerável salta dum pinheiro para outro pinheiro, tremendo tanto que, com êle, tremem os rijos troncos. E quando se arrisca a espreitar, ao recrescer dos bramidos, só percebe, na enrolada massa dos dois monstros, através de uma névoa de espuma que os esguichos de sangue avermelham, o bico do Plésio todo enterrado no ventre mole do Ictio, cuja cauda, erguida, se estorce furiosamente na palidez dos céus espantados. De novo esconde perdidamente a face, nosso Pai venerável! Um urro de monstruosa agonia rola na praia. As pálidas dunas estremecem, as cavernas soturnas ressoam. Depois é uma paz muito larga, em que o ruido do mar Oceano não é mais que um consolado murmúrio de alívio. Adão espia, debruçado entre os galhos... O Plésio recuara ferido para a tépida lama dos seus pântanos. E sôbre a{173} praia jaz o Ictio morto, como uma colina onde a vaga da tarde mansamente se quebra.

Então, nosso Pai venerável cautelosamente escorrega do seu pinheiro, e se abeira do monstro. A areia, em redor, está medonhamente revôlta;—e por toda ela, em lentos regos, em pôças escuras, o sangue, mal chupado, fumega. Tam montanhoso é o Ictio, que Adão, erguendo a face assombrada, nem avista as puas do monstro, erriçadas ao longo daquele alcantilado espinhaço, a que o bico do Plésio arrancou escamas mais pesadas que lages. Mas, diante das mãos trementes do Homem, estão os rasgões do ventre mole, de onde o sangue pinga, e gorduras babam, e imensas tripas esfiadas escorrem, e pendem febras atassalhadas de carne rosada... E as chatas ventas de nosso Pai venerável estranhamente se alargam e farejam.

Toda essa tarde êle caminhara, desde a Floresta, através do Paraíso, chupando bagas, rilhando raízes, trincando os insectos de casca picante. Mas agora o sol penetrou no mar—e Adão tem fome, nesse areal maninho, onde só alvejam cardos que o vento estorce. Oh! aquela carne rija, sangrenta, ainda viva, que exala um cheiro tam fresco e salino! As suas rombas mandíbulas ruidosamente se escancaram num bocejo enfastiado e famélico... O Oceano arfa, como adormecido... Então, irresistívelmente, Adão mergulha numa das feridas do sáurio os{174} dedos que lambe e rechupa, moles de sangue e gorduras. O espanto dum sabor novo imobiliza o homem frugal que vem das ervas e das frutas. Depois, com um salto, arremete contra a montanha de abundância, e arranca uma fêbra que trinca e traga, a grunhir, num furor, numa pressa, em que há o gôzo e há o medo da primeira carne comida.

 

 

Tendo ceado assim postas cruas dum monstro marinho, nosso Pai venerável sente uma grande sêde. São salgadas as pôças que na areia rebrilham. Pesado e triste, com os beiços empastados de banha e de sangue, Adão, sob o calado crepúsculo, atravessa as dunas, repenetra nas terras, rebuscando sôfregamente água doce. Por toda a relva, nesses tempos de universal humidade, fugia e chalrava um regato. Em breve, estendido numa riba lodosa, Adão bebeu consoladamente, em fundos sorvos, sob o vôo espantado de moscas fosforescentes que se lhe prendiam na guedelha.

Era junto dum bosque de carvalhos e faias. A noite, que já se adensara, ennegrecia um chão todo de plantas, onde a malva se encostava à hortelã, e a salsa ao funcho ligeiro. Nessa clareira fresca, penetrou nosso Pai venerável, estafado com a marcha e os espantos daquela tarde do Paraíso. E apenas se estendera{175} na alfombra cheirosa, com a hirsuta face pousada sôbre as palmas unidas, os joelhos colhidos contra o ventre distendido como um tambor, mergulhou num sono como êle nunca dormira—todo povoado de sombras moventes, que eram aves construindo uma casa, patas de insectos tecendo uma teia, dois bichos vogando nas águas rolantes.

Ora conta a Lenda que então, em tôrno do Primeiro Homem adormecido, começaram a surdir, por entre o mato baixo, focinhos fariscantes, finas orelhas espetadas, olhinhos reluzindo como botões de azeviche, e espinhaços inquietos que a emoção arqueava—emquanto que, dos cimos dos carvalhos e faias, num abafado frémito de asas, se debruçavam bicos recurvos, bicos retesos, bicos bravios, bicos pensativos, todos alvejando na claridade delgada da lua, que subia por trás dos montes, e banhava as frondes altas. Depois, à orla da clareira, uma hiena apareceu, coxeando, miando com lástima. Através da campina trotaram dois lobos, esgalgados, famélicos, com os verdes olhos acesos. Os leões não tardaram, com as riais faces erguidas, soberanamente enrugadas, numa profusão de jubas flamantes. Em confusa manada, que chegava bufando, os cornos dos auroques entrechocavam com impaciência os galhos palmares das renas. Todos os pêlos se{176} arrepiaram quando o tigre e a pantera negra, ondulando calada e aveludadamente, resvalaram, com as línguas pendentes e vermelhas como coalhos de sangue. Dos vales, das serranias, das fragas, outros acudiam, numa pressa tam anciosa, que os horrendos cavalos primitivos se empinavam por sôbre os cangurus, e a tromba do hipopótamo, a escorrer de limos, empurrava as ancas lentas do dromedário. Entre as patas e os cascos apinhados coleavam em aliança o furão, a sardonisca, a doninha, a cobra fulgente que engole a doninha, e o alegre manguço que assassina a cobra. Um bando de gazelas tropeçava, magoando as pernas finas, contra a crosta dos crocodilos, que subiam em fila da borda das lagôas, de goelas preparadas e a gemer. Já toda a planície arfava, sob a lua, no mole remexer de dorsos apertados, de onde se erguia, ora o pescoço da girafa, ora o corpo da jibóia, como mastros naufragados, balançados entre vagas. E por fim, abalando o sólo, enchendo o céu, com a tromba enrolada entre os dentes recurvos, assomou o rugoso mastodonte.

Era toda a Animalidade do Paraíso, que, sabendo o Primeiro Homem adormecido, sem defesa, num ermo bosque, corria, na imensa esperança de o destruir e eliminar da terra a Fôrça Inteligente, destinada a submeter a{177} Fôrça Bruta. Mas, naquela pavorosa turba que fumegava, se atropelava à borda da clareira, onde Adão dormia sôbre a hortelã e a malva, nenhuma fera avançava. Os longos dentes reluziam, feramente arreganhados; todos os cornos repontavam; cada garra saída dilacerava com ânsia a terra mole; e os bicos, de cima das ramas, terçavam os fios da lua com bicadas famintas.... Mas nem ave descia, nem fera avançava,—porque ao lado de Adão velava uma Figura séria e branca, de asas brancas fechadas, os cabelos presos num aro de estrêlas, o peito guardado numa couraça de diamante, e as duas refulgentes mãos apoiadas ao punho duma espada que era de lume—e vivia.

 

 

A aurora despontou, com ardente pompa, comunicando à terra alegre, à terra braviamente alegre, à terra ainda sem andrajos, à terra ainda sem sepulturas, uma alegria superior, mais grave, religiosa e nupcial. Adão acordou: e, batendo as fuscas pálpebras, na surprêsa do seu acordar humano, sentiu sôbre a ilharga um pêso que era macio e que era doce. Nesse terror que, desde as árvores, não desamparava o seu coração, pulou e com tam ruidoso pulo, que, pela selva, os melros, os rouxinóis, as toutinegras, todos os passarinhos{178} de festa e de amor, despertaram e romperam num canto de congratulações e de esperanças.—E, oh maravilha! diante de Adão, e como despegado dêle, estava outro Ser a êle semelhante, mas mais esbelto, suavemente coberto dum pêlo mais sedoso, que o contemplava com largos olhos lustrosos e líquidos. Uma côma ruiva, dum ruivo tostado, rolava, em espessas ondas, até às suas ancas arredondadas numa plenitude harmoniosa e fecunda. De entre os braços peludinhos, que cruzara, surdiam, abundantes e gordos, os dois peitos da côr do medronho, com uma penugem crespa orlando o bico, que se enristava, entumecido. E roçando, num roçar lento, num roçar muito doce, os joelhos pelados, todo aquele sedoso e tenro Ser se ofertava com uma submissão pasmada e lasciva. Era Eva... Eras tu, Mãe Venerável!

III

Então começaram, para nossos Pais, os dias abomináveis do Paraíso.

O seu constante e desesperado esfôrço foi sobreviver—no meio duma Natureza que, sem cessar e furiosamente, tramava a sua destruição.{179} E Adão e Eva passaram êsses tempos, que os poemas Semíticos celebram como Inefáveis—sempre a tremer, sempre a ganir, sempre a fugir! A terra ainda não era uma obra perfeita: e a Divina Energia, que a andava compondo, incessantemente a emendava, numa tam móbil inspiração, que em sítio coberto ao alvorecer por uma floresta, à noite se espelhava uma lagôa onde a Lua, já doente, vinha estudar a sua palidez. Quantas vezes nossos Pais, repousando no pendor de um outeiro inocente, entre o serpol e o rosmaninho (Adão com a face deitada sôbre a côxa de Eva, Eva com dedos ágeis catando o pêlo de Adão) foram sacudidos pela encosta amena como por um dorso irritado, e rolaram, embrulhados, entre o ribombo, e a labareda, e a fumarada, e a cinza quente do vulcão que Jeová improvisara! Quantas noites escaparam, uivando, dalguma abrigada caverna, quando já sôbre ela corria um grande mar inchado que bramava, se desenrolava, ficava fervendo entre as rochas, com negras focas mortas a boiar. Ou então era o chão, o chão seguro, já social e fertilizado para as searas sociáveis, que de repente rugia como uma fera, escancarava uma insondável goela, e tragava rebanhos, prados, nascentes, benéficos cedros com todas as rôlas que na sua rama arrulhavam.

Depois eram as chuvas, as longas chuvas{180} Edénicas, desabando em jorros clamorosos, durante alagados dias, durante torrentosas noites, tam desabaladamente que do Paraíso, vasto charco barrento, apenas apareciam as pontas do arvoredo afogado, e os cimos dos montes atulhados de bichos transidos que bramiam no terror das águas soltas. E nossos Pais, refugiados nalguma erguida fraga, gemiam lamentavelmente, com regatos a escorrer dos ombros, com ribeiras a escorrer dos pés, como se o barro novo de que Jeová os fizera se andasse já desfazendo.

E mais terríficas eram as estiagens. Oh! o incomparável tormento das sêcas no Paraíso! Lentos dias tristes, após lentos dias tristes, a imensa brasa do sol candente coriscava furiosamente num céu côr de cobre, em que o ar baço e grosso crepitava e arfava. Os montes estalavam, gretados: e as planícies desapareciam sob uma denegrida camada de fios retorcidos, ennovelados, rijos como arames, que eram os restos das verdes pastagens. Toda a tisnada folhagem rolava nos ventos abrasados, com rugidora restolhada. O leito dos rios chupados tinha a rigidez de ferro fundido. O musgo escorregava das rochas, como uma pele sêca que se despega descobrindo largos ossos. Cada noite um bosque ardia, fogueira estralejante, de lenha ressequida, escaldando mais a abóbada do forno inclemente.{181} Todo o Éden andava coberto das revoadas de abutres e corvos, porque, com tanto animal morto de fome e de sêde, abundava a carne pôdre. No rio, a água que restava mal corria, empoçada pela massa fervilhante de cobras, rãs, lontras, tartarugas, refugiadas naquele derradeiro veio, lodoso e todo morno. E nossos Pais veneráveis, com as magras costelas a arquejar contra o pêlo crestado, a língua pendida e mais dura que cortiça, erravam de fonte em fonte, a sorver desesperadamente alguma gota que ainda brotasse, gota rara, que assobiava, ao caír, sobre as lages esbraseadas...

E assim Adão e Eva, fugindo do Fogo, fugindo da Água, fugindo da Terra, fugindo do Ar, encetavam a vida no Jardim de Delícias.

E no meio de tantos perigos, constantes e flagrantes, era necessário comer! Ah! Comer—que portentosa emprêsa para nossos Pais veneráveis! Sobretudo desde que Adão (e depois Eva, por Adão iniciada) tendo provado os deleites fatais da carne, já não encontravam sabor, nem fartura, nem decência, nos frutos, nas raízes, e nos bagos do tempo da sua Animalidade. Certamente, as boas carnes não faltavam no Paraíso. Delicioso seria o salmão primitivo—mas nadava alegremente nas águas rápidas. Saborosa seria a galinhola, ou o faisão rutilante, nutridos com os grãos que{182} o Criador considerara bons—mas voavam nos céus, em triunfal segurança. O coelho, a lebre—que fugas ligeiras no mato cheiroso!... E nosso Pai, nesses dias cândidos, não possuia o anzol nem a seta. Por isso, sem cessar rondava em tôrno das lagôas, nas ribas do mar, onde casualmente encalhava, boiando, algum cetáceo morto. Mas êsses achados de abundância eram raros—e o triste casal humano, nas suas marchas famintas pela borda das águas, só conquistava, aqui e alêm, na rocha ou na areia revôlta, algum feio caranguejo em cuja dura casca os seus beiços se esgaçavam. Essas solidões marinhas andavam tambêm infestadas por bandos de feras esperando, como Adão, que a vaga rolasse os peixes vencidos em borrasca ou batalha. E quantas vezes, nossos Pais, já com a garra cravada numa posta de foca ou golfinho, fugiam desconsoladamente, sentindo o passo fôfo do horrendo speleo, ou o bafo dos ursos brancos, bamboleando pelo branco areal, sob a branca indiferença da lua!

De-certo, a sua sciência hereditária de trepar às arvores socorria nossos Pais nesta conquista da prêsa. Que, sob as ramarias da caneleira de onde êles, assolapadamente, espreitavam, aparecesse algum cabrito desgarrado, ou uma tartaruga môça e bisonha se arrastasse para a erva miuda—e eis o repasto{183} seguro! Num relance, o cabrito ficava atassalhado, todo o seu sangue chupado em sorvos convulsos: e Eva, nossa Mãe forte, guinchando sombriamente, arrancava, uma a uma, de entre a casca, as patas da tartaruga... Mas quantas noites, depois de jejuns angustiosos, se achavam os Eleitos da Terra forçados a afugentar a hiena, com rijos brados, através das clareiras, para lhe roubar um osso fetidamente babujado, que era já o sobejo de um leão farto! E dias piores sucediam, em que a fome reduzia nossos Pais a retrogradar à desgostosa frugalidade do tempo da Árvore, às ervas, aos rebentos, às raízes amargas—conhecendo assim, entre a abundância do Paraíso, a primeira forma da Miséria!

E, através dêstes trabalhos, não os desamparava o terror das feras! Porque, se Adão e Eva comiam os bichos fracos e fáceis, eram tambêm uma prêsa apetecida por todos os brutos superiores. Comer Eva, tam redonda e carnuda, foi de-certo o sonho de muito tigre nos juncais do Paraíso. Quanto urso, mesmo ocupado a roubar favos de mel num escavado tronco de roble, não se deteve, e se balançou, e lambeu o focinho numa gula mais fina, ao avistar, através da ramaria, num rebrilho errante de sol, o sombrio corpanzão de nosso Pai venerável! E nem só o perigo vinha das hordas esfaimadas dos carnívoros, mas ainda{184} dos lentos e fartos herbívoros, o auroque, o urus, o cervo elefas, que alegremente escorneariam e espesinhariam nossos Pais, por estupidez, dissemelhança de raça e cheiro, emprêgo da vida ociosa. E acresciam ainda os que matavam para não serem mortos—porque Medo, Fome e Furor, foram as leis da vida no Paraíso.

Certamente nossos Pais eram tambêm ferozes, de tremenda fôrça, e perfeitos na arte salvadora de trepar aos cimos frondosos. Mas o leopardo pulava de ramo em ramo, sem rumor, com uma destreza mais felina e segura! A jibóia furava com a cabeça até aos galhos extremos do mais levantado cedro para colher os macacos—e bem poderia abocar Adão, com aquela obtusa incapacidade que sempre as jibóias tiveram de distinguir, sob a similitude das formas, a diversidade dos méritos. ¿E que valiam as garras de Adão, mesmo aliadas às garras de Eva, contra êsses pavorosos leões do Jardim de Delícias que a Zoologia, ainda hoje arrepiada, chama o Leo Anticus? ¿Ou contra a hiena-spelea tam ousada, que, nos primeiros dias do Génesis, os Anjos, quando desciam ao Paraíso, caminhavam sempre com as asas arregaçadas, para que ela, saltando de entre dos bambus, lhes não arrancasse as penas refulgentes? ¿Ou contra os cães, os horrendos cães do Paraíso, que atacando em{185} cerradas e ululantes hostes, foram, nesses começos do Homem, os piores inimigos do Homem?

E entre toda esta bicharia adversa, Adão não contava um aliado. Os seus próprios parentes, os Antropóides, invejosos e farçantes, o apedrejavam com enormes côcos. Só um animal, e formidável, conservava pelo Homem uma majestosa e pachorrenta simpatia. Era o Mastodonte. Mas a ennevoada Inteligência de nosso Pai ainda, nesses dias Edénicos, não compreendia a bondade, a justiça, o serviçal coração do paquiderme admirável. Por isso, certo da sua fraqueza e do seu isolamento, êle viveu, durante êsses trágicos anos, num ansiado terror. Tam ansiado e longo, que o seu arrepio, como uma longa ondulação, se perpètuou por toda a sua descendência—e é o vélho medo de Adão que nos torna inquietos, quando atravessamos a mata mais segura na solidão crepuscular.

E depois consideremos que ainda restavam pelo Paraíso, entre bichos de formas racionais, polidas, já preparadas para a prosa nobre de Mr. de Buffon, alguns dos grotescos monstros que desonraram a Criação antes da madrugada purificadora de 25 de Outubro. De-certo Jeová poupou a Adão o degradante horror de viver no Paraíso em companhia dessa escandalosa avantesma a que os Paleontologistas,{186} assombrados, deram o nome de Iguanodão! Na véspera do advento do Homem, Jeová, muito caridosamente, afogou todos os Iguanodões nos lôdos de um pântano, a um canto escondido do Paraíso, onde hoje se estende a Flandres. Mas Adão e Eva ainda conheceram os Pterodactilos. Oh! estes Pterodactilos!... Corpos de Jacaré, escamosos e penugentos; duas lúgubres, negras, carnudas asas, de morcego: um bico disparatado, mais grosso que o corpo, tristonhamente caído, erriçado de centenas de dentes, finos como os duma serra. E não voava! Descia, de asas moles, e mudas, e nelas abafava a prêsa como num pano viscoso e gelado, para a retalhar toda com os estalados golpes das mandíbulas fétidas. E êste funambulesco avejão enturvava o céu do Paraíso com a mesma abundância com que os melros ou as andorinhas cruzam os santos ares de Portugal. Os dias de nossos Pais veneráveis foram por êles torturados;—e nunca o seu pobre coração tremia tanto como quando, de alêm dos montes, se vinha despenhado, com sinistro estridor de asas e bicos, a revoada dos Pterodactilos.

¿Como sobreviveram nossos Pais, neste Jardim de Delícias? De-certo muito faiscou e trabalhou a espada do Anjo que os guardava!{187}

 

Pois bem, meus amigos! A todos êstes furiosos seres deve o homem a sua carreira triunfal. Sem os Sáurios, e os Pterodactilos, e a Hiena Spelea, e o arrepiado terror que espalhavam, e a necessidade de ter, contra o seu ataque, sempre bestial, uma defesa sempre racional—a Terra permaneceria um temeroso Paraíso, onde erraríamos todos, desgrenhados e nus, chupando pela borda dos mares as banhas cruas de monstros naufragados. Ao encolhido medo de Adão se deve a supremacia da sua descendência. Foi o bicho perseguidor que o forçou a subir aos cimos da Humanidade. E bem sabedores das Origens se mostraram os poetas Mesopotâmicos do Génesis, nesses versículos subtis em que um animal, e o mais perigoso, a Serpente, leva Adão, por amor de Eva, a colher o fruto do Saber! Se não rugisse outrora o Leão das cavernas, não trabalhava hoje o Homem das cidades—pois que a Civilização nasceu do desesperado esfôrço defensivo contra o Inanimado e o Inconsciente. A Sociedade é realmente a obra da féra. Que a Hiena e o Tigre, no Paraíso, começassem por acariciar lânguidamente o ombro peludo de Adão com pata amiga—Adão ficaria irmão do Tigre e da Hiena, partilhando as suas tocas, as suas prêsas, os seus ócios,{188} os seus gostos bravios. E a Energia Inteligente, que o descera da Árvore, em breve se apagaria dentro da sua bruteza inerte, como se apaga a faisca, mesmo entre galhos secos, se um frio sôpro, vindo de um buraco escuro, não a estimula a viver, para vencer a friagem e vencer a escuridão.

Mas uma tarde (como ensinaria o exacto Usserius) saíndo Adão e Eva da espessura dum bosque, um urso enorme, o Pai dos Ursos, apareceu diante dêles, ergueu as negras patas, escancarou a goela sangrenta... Então, assim colhido, sem refúgio, na apertada ânsia de defender a sua fêmea, o Pai dos Homens arremessou contra o Pai dos Ursos o cajado a que se arrimava, um forte galho de téca, arrancado na mata, que findava em lasca aguda... E o pau atravessou o coração da féra.

 

 

Ah! Desde essa tarde bemdita houve verdadeiramente, sôbre a terra, um Homem.

Era já um Homem, e superior, quando lançou um passo espantado, e arrancou o pau do seio do monstro estendido, e lhe mirou a ponta gotejante de sangue—com a testa toda franzida, no afã de compreender. Os seus olhos resplandeceram, num deslumbrado triunfo. Adão compreendera...{189}

Nem cuidou mais da boa carne do urso! Remergulhou na floresta, e toda a tarde, emquanto a luz se arrastou pelas frondes, arrancou ramos aos troncos, cautelosamente, destramente, para que as pontas quebrassem bem lascadas e agudas. Ah! que soberbo estalar de hastes, pelo fundo bosque, através da frescura e da sombra, para a obra da primeira Redenção! Selva amável, que foste a primeira oficina, quem soubera onde jazes, na tua secular sepultura, tornada negro carvão!... Quando da mata largaram, fumegando de suor, para recolher à toca distante, nossos Pais veneráveis vergavam sob o pêso glorioso de dois grossos mólhos de armas.

E então não cessam mais os feitos do Homem. Ainda os corvos e os chacais não tinham esburgado a carcassa do Pai dos Ursos—já nosso Pai racha uma ponta do seu cajado vitorioso; entala na fenda um dêsses seixos afiados e bicudos, em que por vezes se feriam as suas patas, descendo à beira dos rios; e segura o fino estilhaço na racha com os lios, muito arrochados, de uma fibra de enrediça sêca. E eis a lança! Como essas pedras não abundam, Adão e Eva ensangùentam as garras, tentando fender os pedregões redondos de sílex em lascas curtas, que venham perfeitas, com ponta e com gume, para rasgar, cravar. A pedra resiste, pouco desejosa de{190} ajudar o Homem que, nos dias genesíacos do grande Outubro, ela tentara suplantar (como contam as prodigiosas Crónicas de Backun).—Mas de novo lampeja a face de Adão, numa idea que o sulca, como faisca emanada da Eterna Sabedoria. Apanha um pedregulho, bate a rocha, arranca a lasca... E eis o martelo!

Depois, noutra tarde bemdita, costeando uma escura e bravia colina, descobre, com aqueles seus olhos que já rebuscam e comparam, um calhau negro, áspero, facetado, sombriamente luzidio. Pasma do seu pêso—e logo pressente nele um maço superior, de decisiva rijeza. Com que alvoroço o leva agarrado contra o peito, para martelar o sílex rebelde! Ao lado de Eva, que o espera à beira do rio, logo malha rijamente sôbre a pederneira... E oh espanto! uma fagulha salta, refulge, morre! Ambos recúam, se entreolham, num terror quási sagrado! É um lume, um vivo lume, que êle assim arrancou com as suas mãos da rocha bruta—semelhante ao lume vivo que dardeja de entre as nuvens. De novo bate, a tremer. A scentelha brilha, a scentelha passa, e Adão remira e fareja o escuro calhau. Mas não compreende. E pensativos, nossos Pais veneráveis sobem, com os cabelos ao vento, para a sua caverna costumada, que é no pendor dum cêrro, junto duma fonte borbulhando entre fétos.{191}

E aí, no seu retiro, Adão, com uma curiosidade onde lateja uma esperança, novamente entala o sílex, grosso como uma abóbora, entre os calosos pés, e recomeça a martelar, sob o bafo de Eva, que se debruça e arfa. Sempre a faúlha salta, rebrilha na sombra, tam refulgente como aqueles lumes que agora palpitam, olham, de alêm, das alturas. Mas êsses lumes permanecem, através da negrura do céu e da noite, vivos, a espreitar, na sua radiância. E aquelas estrelinhas da pedra ainda não tem vivido e já teem morrido... ¿Será o vento que as leva, êle que tudo leva, vozes, nuvens e fôlhas ? Nosso Pai venerável, fugindo do vento malévolo que ronda no monte, recúa até ao fundo mais abrigado da caverna, onde se afôfam as camadas de feno muito sêco, que são o seu leito. E de novo fere a pedra, despedindo scentelha apoz scentelha, emquanto Eva, agachada, abriga com as mãos aqueles refulgentes e fugitivos seres. E eis que dos fenos um fumosinho se eleva, e se engrossa, e se enrola, e através dêle, vermelha, uma chama ressalta... É o Fogo! Nossos Pais fogem espavoridamente da caverna, obscurecida por uma fumaraça cheirosa, onde flamejam alegres, rutilantes línguas, que lambem a rocha. Acocorados à porta da toca, ambos arquejam, no pasmo e terror da sua obra, com os olhos a chorar do fumo acre. E,{192} mesmo através do susto e do espanto, sentem uma doçura muito nova que os penetra e que vem daquela luz e vem daquele calor... Mas já o fumo se escapou da caverna, o vento roubador o levou. As chamas rastejam, incertas, azuladas: em breve só resta um borralho que descóra, se acinzenta, se abate em cisco: e a derradeira faúlha corre, tremeluz, passa. O fogo morreu! Então, na alma nascente de Adão, entra a dor duma ruína. Desesperadamente puxa os grossos beiços e geme. ¿Saberá êle jàmais recomeçar o feito maravilhoso?... E é nossa Mãe, já consoladora, que o consola. Com as suas rudes mãos comovidas, porque realiza sôbre a terra a sua primeira obra, junta outro montão de fenos sêcos, pousa entre êles o sílex redondo, toma o escuro calhau, bate rijamente, num faúlhar de estrelinhas. E de novo o fumo rola, e de novo a chama refulge. Oh triunfo! eis a fogueira, a fogueira inicial do Paraíso, e não casualmente rebentada, mas acendida por uma clara Vontade, que agora para todo sempre, cada noite e cada manhã, poderá repetir com segurança a façanha suprema!

À nossa Mãe Venerável pertence então, na caverna, a doce e augusta tarefa do Lume. Ela o cria, ela o nutre, ela o defende, ela o perpetúa. E, como mãe deslumbrada, descobre cada dia, nesse resplandecente filho dos{193} seus cuidados, uma virtude ou graça nova. Agora já Adão sabe que o seu fogo espanta todas as féras e que no Paraíso existe emfim um buraco seguro, que é o seu buraco! Não só seguro, mas amável—porque o lume o alumia, o aquece, o alegra, o purifica. E quando Adão, com um mólho de lanças, desce à planície ou se embrenha na selva a caçar a prêsa, já mata com redobrada ânsia, para recolher depressa àquela boa segurança e consolação do lume. Ah! que docemente êle o penetra, e lhe séca no pêlo a friagem dos matos, e doura como um sol a penedia da sua toca! E depois ainda lhe prende os olhos, e o enleva, e o guia num scismar fecundo, em que inspiradamente lhe aparecem formas de flexas, malhos com cabos, ossos recurvos que fisgam os peixes, lascas dentadas que serram o pau!... À sua fêmea forte deve Adão esta hora criadora!

E quanto lhe não deve a Humanidade! Recordemos, meus irmãos, que nossa Mãe, com aquela adivinhação superior que mais tarde a tornou Profetiza e Sibila, não hesitou, quando a Serpente lhe disse, coleando entre as Rosas:—«Come do fruto do Saber, que os teus olhos se abrirão, e serás como os Deuses sabedores!» Adão teria comido a serpente, bocado mais suculento. Nem acreditaria em frutos que comunicam a Divindade e Sapiência,{194} êle que tanta fruta comera nas árvores, e se conservava insciente e bestial como o urso e o auroque. Eva, porêm, com a credulidade sublime que sempre no mundo opéra as transformações sublimes, comeu logo a maçã, e a casca, e a pevide. E persuadindo Adão a que partilhasse do transcendente pômo, muito dôce e enredosamente o convenceu do proveito, da felicidade, da glória e da fôrça que dá o Saber! Esta alegoria dos poetas do Génesis com esplêndida subtileza nos revela a imensa obra de Eva nos anos dolorosos do Paraíso. Por ela Deus continua a Criação superior, a do Reino espiritual, a que desenrola sôbre a terra o lar, a família, a tríbu, a cidade. É Eva que cimenta e bate as grandes pedras angulares na construção da Humanidade.

Senão, vêde! Quando o bravio caçador recolhe à caverna, derreado sob o pêso da caça morta, cheirando todo a selva, e a sangue, e a féra, é êle, de-certo, que esfola a rês com a faca de pedra, e retalha as postas, e esburga os ossos (que sôfregamente guarda sob a côxa e reserva para a sua ração, porque contêm a moela preciosa). Mas Eva junta essa pele, cuidadosamente, às outras peles armazenadas; esconde os ossos partidos, porque as suas lascas agudas pregam e furam; e numa cavidade da rocha fresca guarda a carne que{195} sobejou. Ora em breve uma dessas fartas postas esquece, caída junto à fogueira perpétua. O lume alastra, lentamente lambe a carne pelo lado mais gordo, até que um cheiro, desconhecido e saboroso, afaga e alarga as rudes narinas de nossa Mãe venerável. ¿De onde vem êle, o gostoso aroma? Do fogo, onde a posta de veado ou de lebre grelha e rechina. Então Eva, inspirada e grave, empurra a carne para a braza viva; e espera, ajoelhada, até que a espeta com uma ponta de osso, e a retira da chama ruidosa, e a trinca, em sombrio silêncio. Os seus olhos rebrilhantes anunciam outra conquista. E, com a pressa amorosa com que oferece a Maçã a Adão, lhe apresenta agora aquela carne tam nova, que êle cheira desconfiado, e depois devora a rijas dentadas, roncando de gôzo! E eis que, por êste pedaço de gamo assado, nossos Pais sobem vitoriosamente outro escalão da Humanidade!

A água ainda a bebem na nascente vizinha, entre os fétos, com a face mergulhada no veio claro. Depois de beber, Adão, arrimado à sua grossa lança, olha ao longe o rolar do rio lento, os montes coroados de neve ou de lume, o sol sôbre o mar—pensando, com arrastado pensar, se nessas terras que se estendem, se escondem para alêm, a prêsa será mais certa e as selvas menos cerradas. Mas Eva recolhe logo à caverna, para se entregar, sem descanso,{196} a uma tarefa que a encanta. Encruzada no chão, toda atenta sob a côma crespa, nossa Mãe fura, com um ossinho agudo, buracos finos na orla duma pele, e depois na orla doutra pele. E, tam embebida que nem sente Adão entrar e remexer nas suas armas, une as duas peles sobrepostas, passando através dos buracos uma delgada fibra das algas que secam diante do lume. Adão considera com desdêm êsse trabalho miudo que não acrescenta fôrça à sua fôrça. Não pressente ainda, o bruto Pai, que aquelas peles cosidas serão o resguardo do seu corpo, a armação da sua tenda, o saco do seu farnel, o ôdre da sua água, e o tambor em que bata quando fôr um Guerreiro, e a página em que escreva quando fôr um Profeta!

Outros gostos e modos de Eva o irritam tambêm: e por vezes, com uma desumanidade que é já toda humana, nosso Pai arrebata pelos cabelos a sua fêmea, e a derruba, e a pisa sob a pata calosa. Assim um furor o tomou uma tarde, avistando, no regaço de Eva, sentada diante da fogueira, um cachorrinho mole e trôpego, que ela, com carinho e paciência, ensinava a sugar numa febra de carne fresca. À beira da fonte descobrira o cachorrinho perdido e ganindo; e muito mansamente o recolhera, o aquecera, o alimentara, com uma sensação que lhe era doce, e lhe abria na espessa{197} bôca, ainda mal sabedora de sorrir, um sorriso de maternidade. Nosso Pai venerável, com as pupilas a reluzir, atira a garra, quer devorar o cachorro que entrara na sua toca. Mas Eva defende o animal pequenino, que treme e que a lambe. O primeiro sentimento de Caridade, informe como a primeira flor que brotou dos limos, aparece na terra! E, com as curtas e roucas vozes que eram o falar de nossos Pais, Eva tenta talvez afiançar que será útil, na caverna do homem, a amizade dum bicho... Adão puxa o beiço trombudo. Depois, em silêncio, mansamente, corre os dedos pelo lombo macio do cachorrinho encolhido. E êste é, na História, um momento espantoso! Eis que o Homem domestíca o Animal! Dêsse cachorro agasalhado no Paraíso nascerá o cão amigo, por êle a aliança com o cavalo, depois o domínio sôbre a ovelha. O rebanho crescerá; o pastor o levará; o cão fiel o guardará. Eva, da beira do seu lume, prepara os povos errantes que pastoreiam os gados.

Depois, naquelas longas manhãs em que Adão bravio caçava, Eva, errando de vale a monte, apanhava conchas, ovos de aves, curiosas raízes, sementes, com o gôsto de acumular, de abastecer a sua toca de riquezas novas, que escondia nas fendas da rocha. Ora um punhado dessas sementes caíra, através dos{198} seus dedos, sôbre terra húmida e negra, quando recolhia pela beira da fonte. Uma ponta verde brotou; depois uma haste cresceu; depois uma espiga amadurou. Os seus grãos são gostosos. Eva, pensativa, enterra outras sementes, na esperança de criar em tôrno do seu lar, num bocado do seu torrão, altas ervas que espiguem, e lhe tragam o grão adocicado e tenro... E eis a seara! E assim nossa Mãe torna possíveis, do fundo do Paraíso, os povos estáveis que lavram a terra.

 

 

No entanto, bem podemos supôr que Abel nasceu—e, uns após outros, os dias deslizam no Paraíso, mais seguros e fáceis. Já os vulcões lentamente se vão apagando. As rochas não se despenham já com fragor sôbre a abundância inocente dos vales. Tam amansadas andam as águas, que na sua transparência se miram, com demora e cuidado, as nuvens e os ramos dos olmos. Raramente um Pterodactilo macúla, com o escândalo do seu bico e das suas asas, os céus, onde o sol alterna com a bruma, e os estios se franjam de chuvas ligeiras. E nesta tranqùilidade que se estabelece há como uma submissão consciente. O Mundo pressente e aceita a supremacia do Homem. A floresta já não arde com{199} a leviandade do restolho, sabendo que em breve o Homem lhe pedirá a estaca, a trave, o rêmo, o mastro. O vento, nas gargantas da serra, brandamente se disciplina, e ensaia os sopros regulares com que trabalhará a mó do moinho. O mar afogou os seus monstros, e estira o dorso preparado para o cortar da quilha. A terra torna estável a sua gleba, e molemente se humedece, para quando chegar o arado e a semente. E todos os metais se alinham em filão, e alegremente se dispõem para o fogo que lhes dará forma e beleza.

E pela tarde Adão recolhe contente, com caça abundante. A lareira flameja: e alumia a face de nosso Pai, que o esfôrço da Vida embelezou, onde já os beiços se adelgaçaram, e a testa se encheu com o lento pensar, e os olhos sossegaram num brilho mais certo. O anho, espetado num pau, assa e pinga nas brasas. No chão pousam cascas de côco, cheias de clara água da fonte. Uma pele de urso tornou macio o leito de fetos. Outra pele, pendurada, abriga a bôca da caverna. A um canto, que é a oficina, estão os montões de sílex e o malho: a outro canto, que é o arsenal, estão as lanças e as clavas. Eva torce os fios duma lã de cabra. Ao bom calor, sôbre folhelho, dorme Abel, muito gordo, todo nú, com um pêlo mais ralo na carninha mais branca. Partilhando do folhelho e{200} do mesmo calor, vela o cão, já crescido, com o ôlho amorável, o focinho entre as patas. E Adão (oh, a estranha tarefa!) muito absorto, tenta gravar, com uma ponta de pedra, sôbre um osso largo, os galhos, o dorso, as pernas estiradas dum veado a correr!... A lenha estala. Todas as estrêlas do céu estão presentes. Deus, pensativo, contempla o crescer da Humanidade.

 

 

E agora que acendi, na noite estrelada do Paraíso, com galhos bem sêcos da Árvore da Sciência, êste verídico lar, consenti que vos deixe, oh Pais veneráveis!

Já não receio que a Terra instável vos esmague; ou que as feras superiores vos devorem; ou que, apagada, à maneira duma lâmpada imperfeita, a Energia que vos trouxe da Floresta, vós retrogradeis à vossa Árvore. Sois já irremediavelmente humanos—e cada manhã progredireis, com tam poderoso arremêsso, para a perfeição do Corpo e esplendor da Razão, que em breve, dentro dumas centenas de milhares de curtos anos, Eva será a formosa Helena e Adão será o imenso Aristóteles!

Mas não sei se vos felicite, oh Pais veneráveis! Outros irmãos vossos ficaram na espessura das árvores—e a sua vida é doce.{201}

Todas as manhãs o Orangotango acorda entre os seus lençóis de fôlhas de pendénia, sôbre o fôfo colchão de musgos que êle, com cuidado, acamou por cima dum catre de ramos cheirosos. Lânguidamente, sem cuidados, preguiça na moleza dos musgos, escutando as límpidas árias dos pássaros, gozando os fios do sol que se emmaranham por entre a renda das fôlhas, e lambendo no pêlo dos seus braços o orvalho açucarado. Depois de bem se coçar e bem se esfregar, sobe com pachorra à árvore dilecta, que elegeu em todo o bosque pela sua frescura, pela elasticidade embaladora das suas ramagens. Daí, tendo respirado as brisas carregadas de aromas, salta, com lestos pulos, através das sempre fáceis, sempre fartas ucharias do bosque, onde almoça a banana, a manga, a goiaba, todos os finos frutos que o tornam tam são e alheio a males como as árvores onde os colheu. Percorre então, sociavelmente, as ruas e as vielas palreiras da espessura; cabriola com destros amigos, em jogos amáveis de ligeireza e fôrça; galanteia as Orangas gentis que o catam, e penduradas com êle, duma liana florida, se balançam chalrando; trota, entre alegres ranchos, pela borda das águas claras; ou, sentado na ponta dum ramo, escuta algum vélho e facundo chimpanzé contando divertidas histórias de caça, de viagens, de{202} amores e de troças às feras pesadas, que circulam nas relvas e não podem trepar. Cedo recolhe à sua árvore, e, estendido na folhosa rêde, brandamente se abandona à delícia de sonhar, num sonho acordado, semelhante às nossas Metafísicas e às nossas Epopeias, mas que rolando todo sôbre sensações reais, é, ao contrário dos nossos incertos sonhos, um sonho todo feito de certeza. Por fim a Floresta lentamente se cala, a sombra escorrega entre os troncos:—e o Orango ditoso desce ao seu catre de pendénias e musgos, e adormece na imensa paz de Deus—de Deus que êle nunca se cansou em comentar, nem sequer em negar, e que todavia sôbre êle derrama, com imparcial carinho, os bens inteiros da sua Misericórdia.

Assim ocupou o seu dia o Orango, nas Árvores. ¿E no entanto, como gastou, nas Cidades, o seu dia, o Homem, primo do Orango? Sofrendo—por ter os dons superiores que faltam ao Orango! Sofrendo—por arrastar consigo, irresgatavelmente, êsse mal incurável que é a sua Alma! Sofrendo—porque nosso Pai Adão, no terrível dia 28 de Outubro, depois de espreitar e farejar o Paraíso, não ousou declarar reverentemente ao Senhor:—«Obrigado, oh meu doce Criador; dá o governo da Terra a quem melhor escolheres, ao Elefante ou ao Cangurú, que eu por{203} mim, bem mais avisado, volto já para a minha árvore!...»

Mas, emfim, desde que nosso Pai venerável não teve a previdência ou a abnegação de declinar a grande supremacia—continuemos a reinar sôbre a Criação e a ser sublimes... Sobretudo continuemos a usar, insaciavelmente, do dom melhor que Deus nos concedeu entre todos os dons, o mais puro, o único genuìnamente grande, o dom de o amar—pois que não nos concedeu tambêm o dom de o compreender. E não esqueçamos que Êle já nos ensinou, através de vozes levantadas em Galilea, e sob as mangueiras de Veluvana, e nos vales severos de Yen-Chou, que a melhor maneira de o amar é que uns aos outros nos amemos, e que amemos toda a sua obra, mesmo o verme, e a rocha dura, e a raiz venenosa, e até êsses vastos seres que não parecem necessitar o nosso amor, êsses Sóis, êsses Mundos, essas esparsas Nebuloses, que, inicialmente fechadas, como nós, na mão de Deus, e feitas da nossa substância, nem de-certo nos amam—nem talvez nos conhecem.{204} {205}

A AIA

Era uma vez um rei, môço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua raínha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.

A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e de fama, começava a minguar—quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rôtas, negro do sangue sêco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, traspassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio.

A raínha chorou magníficamente o rei.{206} Chorou ainda desoladamente o espôso, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela fôrça e forte pelo amor.

Dêsses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio, consumido de cobiças grosseiras, desejando só a rialeza por causa dos seus tesoiros, e que havia anos vivia num castelo sôbre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lôbo que, de atalaia no seu fojo, espera a prêsa. Ai! a prêsa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guiso de oiro fechado na mão!

Ao lado dêle, outro menino dormia noutro berço. Mas êste era um escravosinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de verão. O mesmo seio os criava. Quando a raínha, antes de adormecer, vinha beijar o principesinho, que tinha o cabelo louro e fino, beijava tambêm por amor dêle o escravosinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Sómente, o berço de um era magnífico e de marfim entre{207} brocados—e o berço do outro pobre e de vêrga. A leal escrava, porêm, a ambos cercava de carinho igual, porque se um era o seu filho—o outro seria o seu rei.

Nascida naquela casa rial, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porêm, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, de-certo, já estaria agora reinando num outro reino, para alêm das nuvens, abundante tambêm em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pagens tinham subido com êle às alturas. Os seus vassalos, que fôssem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em tôrno dele a sua vassalagem. E ela um dia, por seu turno, remontaria num raio de luz a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta dos seus perfumes; seria no céu como fôra na terra, e feliz na sua servidão.

Todavia, tambêm ela tremia pelo seu príncipesinho! Quantas vezes, com êle pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam antes que êle fôsse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel,{208} de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanges da sua horda! Pobre príncipesinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava então nos braços. Mas se o seu filho chalrava ao lado—era para êle que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Êsse, na sua indigência, nada tinha a recear da vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para êle mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela ennegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores—dos beijos que ela fazia ligeiros sôbre as mãos do seu príncipe.

No entanto um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham{209} sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a raínha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sôbre êle a sua fraqueza de viuva. Só a ama leal parecia segura—como se os braços em que estreitava o seu príncipe fôssem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpôr.

Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergeis riais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sôbre lages, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E alêm, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu—o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rápidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de vêrga—e tirando o seu filho{210} do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço rial que cobriu com um brocado.

Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sôbre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou—correu ao berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança, como se arranca uma bôlsa de oiro, e abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente.

O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva.

Mas brados de alarme atroaram de repente o palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quási nua, a raínha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu sôbre as lages, num choro, despedaçada. Então calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de vêrga... O príncipe lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de oiro. A mãe caíu sôbre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.

E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão das guardas,{211} a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porêm, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de archeiros, sucumbira, êle e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa pôça de sangue. Mas, ai! dor sem nome! O corposinho tenro do príncipe lá ficara tambêm, envolto num manto, já frio, rôxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado! Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas—quando a raínha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lho mostrar, o príncipe que despertara.

Foi um espanto, uma aclamação. ¿Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fôra ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria estática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E de entre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fôsse recompensada magníficamente a serva admirável que salvara o rei e o reino.

Mas como? ¿Que bôlsas de oiro podem pagar{212} um filho? Então um vélho de casta nobre lembrou que ela fôsse levada ao tesoiro rial, e escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesoiros da Índia, todas as que o seu desejo apetecesse...

A raínha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como num sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesoiros. Senhores, aias, homens de armas, seguiam, num respeito tam comovido que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lages. As espessas portas do Tesoiro rodaram lentamente. E, quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de oiro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, scintilavam, refulgiam os escudos de oiro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem reis durante vinte séculos. Um longo ah, lento e maravilhado, passou por sôbre a turba que emmudecera. Depois houve um silêncio ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa, a ama não se movia... Apenas os{213} seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, alêm das grades, se tingia de rosa e de oiro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava de-certo, e procurava o seu peito!... E então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar, aquele lento mover da sua mão aberta. ¿Que joia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubís, ia ela escolher?

A ama estendia a mão—e sôbre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um vélho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.

Agarrara o punhal, e com êle apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do sol, encarou a raínha, a multidão, e gritou:

—Salvei o meu príncipe, e agora—vou dar de mamar ao meu filho!

E cravou o punhal no coração.{214} {215}

O DEFUNTO

I

No ano de 1474, que foi por toda a Cristandade tam abundante em mercês divinas, reinando em Castela el-rei Henrique IV, veio habitar na cidade de Segóvia, onde herdara moradias e uma horta, um cavaleiro moço, de muito limpa linhagem e gentil parecer, que se chamava D. Rui de Cardenas.

Essa casa, que lhe legara seu tio, arcediago e mestre em cânones, ficava ao lado e na sombra silenciosa da igreja de Nossa Senhora do Pilar; e, em frente, para alêm do adro, onde cantavam as três bicas de um chafariz antigo, era o escuro e gradeado palácio de D. Alonso de Lara, fidalgo de grande riqueza e maneiras sombrias, que já na madureza da{216} sua idade, todo grisalho, desposara uma menina falada em Castela pela sua alvura, cabelos côr de sol claro, e colo de garça rial. D. Rui tivera justamente por madrinha, ao nascer, Nossa Senhora do Pilar, de quem sempre se conservou devoto e fiel servidor; ainda que, sendo de sangue bravo e alegre, amava as armas, a caça, os saraus bem galanteados, e mesmo por vezes uma noite ruidosa de taverna com dados e picheis de vinho. Por amor, e pelas facilidades desta santa vizinhança, tomara êle o piedoso costume, desde a sua chegada a Segóvia, de visitar todas as manhãs, à hora de Prima, a sua divina madrinha e de lhe pedir, em três Ave-Marias, a bênção e a graça.

Ao escurecer, mesmo depois de alguma rija correria por campo e monte com lebreus ou falcão, ainda voltava para, à saudação de Vésperas, murmurar docemente uma Salve-Raínha.

E todos os domingos comprava no adro, a uma ramalheteira mourisca, algum ramo de junquilhos, ou cravos, ou rosas singelas, que espalhava, com ternura e cuidado galante, em frente ao altar da Senhora.

A esta venerada igreja do Pilar vinha tambêm cada domingo D. Leonor, a tam falada e formosa mulher do senhor de Lara, acompanhada por uma aia carrancuda, de olhos mais{217} abertos e duros que os de uma coruja, e por dois possantes lacaios que a ladeavam e guardavam como tôrres. Tam ciumento era o senhor D. Alonso que, só por lho haver severamente ordenado o seu confessor, e com medo de ofender a Senhora, sua vizinha, permitia esta visita fugitiva, a que êle ficava espreitando sôfregamente, de entre as rexas de uma gelosia, os passos e a demora. Todos os lentos dias da lenta semana os passava a senhora D. Leonor no encêrro do gradeado solar de granito negro, não tendo, para se recrear e respirar, mesmo nas calmas do estio, mais que um fundo de jardim verde-negro, cercado de tam altos muros, que apenas se avistava, emergindo dêles, aqui, alêm, alguma ponta de triste cipreste. Mas essa curta visita a Nossa Senhora do Pilar bastou para que D. Rui se namorasse dela tresloucadamente, na manhã de maio em que a viu de joelhos ante o altar, numa réstea de sol, aureolada pelos seus cabelos de oiro, com as compridas pestanas pendidas sôbre o livro de Horas, o rosário caíndo de entre os dedos finos, fina toda ela e macia, e branca, de uma brancura de lírio aberto na sombra, mais branca entre as rendas negras e os negros setins que à volta do seu corpo cheio de graça se quebravam, em pregas duras, sôbre as lages da capela, vélhas lages de sepulturas. Quando depois dum momento{218} de enleio e de delicioso pasmo se ajoelhou, foi menos para a Virgem do Pilar, sua divina Madrinha, do que para aquela aparição mortal, de quem não sabia o nome nem a vida, e só que por ela daria vida e nome, se ela se rendesse por tam incerto preço. Balbuciando, com uma prece ingrata, as três Ave-Marias com que cada manhã saùdava Maria, apanhou o seu sombreiro, desceu levemente a nave sonora e no portal se quedou, esperando por ela entre os mendigos lazarentos que se catavam ao sol. Mas quando ao cabo de um tempo, em que D. Rui sentiu no coração um desusado bater de ansiedade e medo, a senhora D. Leonor passou e se deteve, molhando os dedos na pia de mármore de água benta, os seus olhos sob o véu descido, não se ergueram para êle, ou tímidos ou desatentos. Com a aia de olhos muito abertos colada aos vestidos, entre os dois lacaios, como entre duas tôrres, atravessou vagarosamente o adro, pedra por pedra, gozando de-certo, como encarcerada, o desafogado ar e o livre sol que o inundavam. E foi um espanto para D. Rui quando ela penetrou na sombria arcada, de grossos pilares, sôbre que assentava o palácio, e desapareceu por uma esguia porta recoberta de ferragens. Era, pois, essa a tam falada D. Leonor, a linda e nobre senhora de Lara...

Então começaram sete arrastados dias, que{219} êle gastou sentado a um poial da sua janela, considerando aquela negra porta recoberta de ferragens como se fôsse a do Paraíso, e por ela devesse saír um anjo para lhe anunciar a Bemaventurança. Até que chegou o vagaroso domingo: e passando êle no adro, à hora de Prima, ao repicar dos sinos, com um mólho de cravos amarelos para a sua divina Madrinha, cruzou D. Leonor, que saía de entre os pilares da escura arcada, branca, doce e pensativa, como uma lua de entre nuvens. Os cravos quási lhe caíram naquele gostoso alvoroço em que o peito lhe arfou mais que um mar, e a alma toda lhe fugiu em tumulto através do olhar com que a devorava. E ela ergueu tambêm os olhos para D. Rui, mas uns olhos repousados, uns olhos serenos, em que não luzia curiosidade, nem mesmo consciência de se estarem trocando com outros, tam acesos e ennegrecidos pelo desejo. O môço cavalheiro não entrou na igreja, com piedoso receio de não prestar à sua Madrinha divina a atenção, que de-certo lhe roubaria toda aquela que era só humana, mas dona já do seu coração, e nele divinizada.

Esperou sôfregamente à porta, entre os mendigos, secando os cravos com o ardor das mãos trémulas, pensando quanto era demorado o rosário que ela rezava. Ainda D. Leonor descia a nave, já êle sentia dentro da alma{220} o doce rugir das sedas fortes que ela arrastava nas lages. A branca senhora passou—e o mesmo distraido olhar, desatento e calmo, que espalhou pelos mendigos e pelo adro, o deixou escorregar sôbre êle, ou porque não compreendesse aquele moço que de repente se tornara tam pálido, ou porque não o diferenciava ainda das cousas e das formas indiferentes.

D. Rui abalou, com um fundo suspiro; e, no seu quarto, pôs devotamente ante a imagem da Virgem as flores que não oferecera, na igreja, ao seu altar. Toda a sua vida se tornou então um longo queixume por sentir tam fria e desumana aquela mulher, única entre as mulheres, que prendera e tornara sério o seu coração ligeiro e errante. Numa esperança, a que antevia bem o desengano, começou a rondar os muros altos do jardim—ou embuçado numa capa, com o ombro contra uma esquina, lentas horas se quedava contemplando as grades das gelosias, negras e grossas como as dum cárcere. Os muros não se fendiam, das grades não saía sequer um rasto de luz prometedora. Todo o solar era como um jazigo onde jazia uma insensível, e por trás das frias pedras havia ainda um frio peito. Para se desafogar compôs, com piedoso cuidado, em noites veladas sôbre o pergaminho, trovas gementes que o não desafogavam.{221} Diante do altar da Senhora do Pilar, sôbre as mesmas lages onde a vira ajoelhada, pousava êle os joelhos, e ficava, sem palavras de oração, num scismar amargo e doce, esperando que o seu coração serenasse e se consolasse, sob a influência de Aquela que tudo consola e serena. Mas sempre se erguia mais desditoso e tendo apenas a sensação de quanto eram frias e rígidas as pedras sôbre que ajoelhara. O mundo todo só lhe parecia conter rigidez e frieza.

Outras claras manhãs de domingo encontrou D. Leonor: e sempre os olhos dela permaneciam descuidados e como esquecidos, ou quando se cruzavam com os seus era tam singelamente, tam limpos de toda a emoção, que D. Rui os preferiria ofendidos e faiscando de ira, ou soberbamente desviados com soberbo desdêm. De-certo D. Leonor já o conhecia:—mas, assim, conhecia tambêm a ramalheteira mourisca agachada diante do seu cêsto à beira da fonte; ou os pobres que se catavam ao sol diante do portal da Senhora. Nem D. Rui já podia pensar que ela fôsse desumana e fria. Era apenas soberanamente remota, como uma estrêla que nas alturas gira e refulge, sem saber que, em baixo, num mundo que ela não distingue, olhos que ela não suspeita a contemplam, a adoram e lhe entregam o govêrno da sua ventura e sorte.{222}

Então D. Rui pensou:

—Ela não quer, eu não posso: foi um sonho que findou, e Nossa Senhora a ambos nos tenha na sua graça!

E como era cavaleiro muito discreto, desde que a reconheceu assim inabalável na sua indiferença, não a procurou, nem sequer ergueu mais os olhos para as grades das suas janelas, e até nem penetrava na igreja de Nossa Senhora quando casualmente, do portal, a avistava ajoelhada, com a sua cabeça tam cheia de graça e de oiro, pendida sôbre o Livro de Horas.

II

A vélha aia, de olhos mais abertos e duros que os de uma coruja, não tardara em contar ao senhor de Lara que um môço audaz, de gentil parecer, novo morador nas vélhas casas do arcediago, constantemente se atravessava no adro, se postava diante da igreja para atirar o coração pelos olhos à senhora D. Leonor. Bem amargamente o sabia já o ciumento fidalgo, porque quando da sua janela espreitava, como um falcão, a airosa senhora a caminho da igreja, observara os giros, as esperas, os olhares dardejados daquele môço galante—e{223} puxara as barbas de furor. Desde então, na verdade, a sua mais intensa ocupação era odiar D. Rui, o impudente sobrinho do cónego, que ousava erguer o seu baixo desejo até à alta senhora de Lara. Constantemente agora o trazia vigiado por um serviçal—e conhecia todos os seus passos e pousos, e os amigos com quem caçava ou folgava, e até quem lhe talhava os gibões, e até quem lhe polia a espada, e cada hora do seu viver. E mais ansiosamente ainda vigiava D. Leonor—cada um dos seus movimentos, os mais fugitivos modos, os silêncios e o conversar com as aias, as distracções sôbre o bordado, o geito de scismar sob as árvores do jardim, e o ar e a côr com que recolhia da igreja... Mas tam inalteradamente serena no seu sossêgo de coração se mostrava a senhora D. Leonor que nem o ciume mais imaginador de culpas poderia achar manchas naquela pura neve. Redobradamente áspero então se voltava o rancor de D. Alonso contra o sobrinho do cónego por ter apetecido aquela pureza, e aqueles cabelos côr de sol claro, e aquele colo de garça rial, que eram só seus, para esplêndido gôsto da sua vida. E quando passeava na sombria galeria do solar, sonora e toda de abóbada, embrulhado na sua samarra orlada de peles, com o bico da barba grisalha espetado para diante, a grenha crespa erriçada para trás e os{224} punhos cerrados, era sempre remoendo o mesmo fel:

—Tentou contra a virtude dela, tentou contra a minha honra... É culpado por duas culpas e merece duas mortes!

Mas ao seu furor quási se misturou um terror, quando soube que D. Rui já não esperava no adro a senhora D. Leonor, nem rondava amorosamente os muros do palacete, nem penetrava na igreja quando ela lá rezava, aos domingos; e que tam inteiramente se alheava dela que uma manhã, estando rente da arcada, e sentindo bem ranger e abrir a porta por onde a senhora ia aparecer, permanecera de costas voltadas, sem se mover, rindo com um cavaleiro gordo que lhe lia um pergaminho. Tam bem afectada indiferença só servia de-certo (pensou D. Alonso) a esconder alguma bem danada tenção! ¿Que tramava êle, o destro enganador? Tudo no desabrido fidalgo se exacerbou—ciume, rancor, vigilância, pesar da sua idade grisalha e feia. No sossêgo de D. Leonor suspeitou manha e fingimento;—e imediatamente lhe vedou as visitas à Senhora do Pilar.

Nas manhãs costumadas corria êle à igreja para rezar o rosário, a levar as desculpas de D. Leonor—«que no puede venir (murmurava curvado diante do altar) por lo que sabeis, virgem purissima!» Cuidadosamente visitou e{225} reforçou todos os negros ferrolhos das portas do seu solar.

De noite soltava dois mastins nas sombras do jardim murado.

À cabeceira do vasto leito, junto da mesa onde ficava a lâmpada, um relicário e o copo de vinho quente com canela e cravo para lhe retemperar as fôrças—luzia sempre uma grande espada nua. Mas, com tantas seguranças, mal dormia—e a cada instante se solevava em sobressalto de entre as fundas almofadas, agarrando a senhora D. Leonor com mão bruta e sôfrega, que lhe pisava o colo, para rugir muito baixo, numa ânsia: «Dize que me queres só a mim!...» Depois, com a alvorada, lá se empoleirava, a espreitar, como um falcão, as janelas de D. Rui. Nunca o avistava, agora, nem à porta da igreja às horas de missa, nem recolhendo do campo, a cavalo, ao toque de Ave-Marias.

E por o sentir assim sumido dos sítios e giros costumados—é que mais o suspeitava dentro do coração de D. Leonor.

Emfim, uma noite, depois de muito trilhar o lagedo da galeria, remoendo surdamente desconfianças e ódios, gritou pelo intendente e ordenou que se preparassem trouxas e cavalgaduras. Cedo, de madrugada, partiria, com a senhora D. Leonor, para a sua herdade de Cabril, a duas léguas de Segóvia! A partida não{226} foi de madrugada, como uma fuga de avarento que vai esconder longe o seu tesoiro:—mas, realizada com aparato e demora, ficando a liteira diante da arcada, a esperar longas horas, de cortinas abertas, emquanto um cavalariço passeava pelo adro a mula branca do fidalgo, enxairelada à mourisca, e do lado do jardim a récua de machos, carregados de baús, presos às argolas, sob o sol e a mosca, aturdiam a viela com o tilintar dos guizos. Assim D. Rui soube a jornada do senhor de Lara:—e assim a soube toda a cidade.

Fôra um grande contentamento para D. Leonor, que gostava de Cabril, dos seus viçosos pomares, dos jardins, para onde abriam, rasgadamente e sem grades, as janelas dos seus aposentos claros: aí ao menos tinha largo ar, pleno sol, e alegretes a regar, um viveiro de pássaros, e tam compridas ruas de loureiro ou teixo, que eram quási a liberdade. E depois esperava que no campo se aligeirassem aqueles cuidados que traziam, nos derradeiros tempos, tam enrugado e taciturno seu marido e senhor. Mas não logrou esta esperança, porque ao cabo de uma semana ainda se não desanuviara a face de D. Alonso—nem de-certo havia frescura de arvoredos, sussurros de águas correntes, ou aromas esparsos nos rosais em flor, que calmassem agitação tam amarga e funda. Como em Segóvia, na galeria{227} sonora de grande abobada, sem descanso passeava, enterrado na sua samarra, com o bico da barba espetado para diante, a grenha basta erriçada para trás, um geito de arreganhar silenciosamente o beiço, como se meditasse maldades a que gozava de antemão o sabor acre. E todo o interêsse da sua vida se concentrara num serviçal, que constantemente galopava entre Segóvia e Cabril, e que êle por vezes esperava no comêço da aldeia, junto ao Cruzeiro, ficando a escutar o homem que desmontava, ofegante, e logo lhe dava novas apressadas.

Uma noite em que D. Leonor, no seu quarto, rezava o terço com as aias, à luz duma tocha de cera, o senhor de Lara entrou muito vagarosamente, trazendo na mão uma fôlha de pergaminho e uma pena mergulhada no seu tinteiro de osso. Com um rude acêno despediu as aias, que o temiam como a um lôbo. E, empurrando um escabelo para junto da mesa, volvendo para D. Leonor a face a que impusera tranqùilidade e agrado, como se apenas viesse por cousas naturais e fáceis:

—Senhora—disse—quero que me escrevais aqui uma carta que muito convêm escrever...

Tam costumada era nela a submissão, que, sem outro reparo ou curiosidade, indo apenas{228} pendurar na barra do leito o rosário em que rezara, se acomodou sôbre o escabelo, e os seus dedos finos, com muita aplicação, para que a letra fôsse esmerada e clara, traçaram a primeira linha curta que o Senhor de Lara ditara e era: Meu cavaleiro...» Mas quando êle ditou a outra, mais longa, e dum modo amargo, D. Leonor arrojou a pena como se a pena a escaldasse, e, recuando da mesa, gritou, numa aflição:

—¿Senhor, para que convêm que eu escreva tais cousas e tam falsas?...

Num brusco furor, o senhor de Lara arrancou do cinto um punhal, que lhe agitou junto à face, rugindo surdamente:

—Ou escreveis o que vos mando e que a mim me convêm, ou por Deus, que vos varo o coração!...

Mais branca que a cera da tocha que os alumiava, com a carne arrepiada ante aquele ferro que luzia, num terror supremo e que tudo aceitava, D. Leonor murmurou:

—Pela Virgem Maria, não me façais mal!... Nem vos agasteis, senhor, que eu vivo para vos obedecer e servir... Agora, mandai, que eu escreverei.

Então, com os punhos cerrados nas bordas da mesa, onde pousara o punhal, esmagando a frágil e desditosa mulher sob o olhar duro que fuzilava, o senhor de Lara ditou,{229} atirou roucamente, aos pedaços, aos repelões, uma carta que dizia, quando finda e traçada em letra bem incerta e trémula:—«Meu cavaleiro: Muito mal haveis compreendido, ou muito mal pagais o amor que vos tenho, e que não vos pude nunca, em Segóvia, mostrar claramente... Agora aqui estou em Cabril, ardendo por vos ver; e se o vosso desejo corresponde ao meu, bem fàcilmente o podeis realizar, pois que meu marido se acha ausente noutra herdade, e esta de Cabril é toda fácil e aberta. Vinde esta noite, entrai pela porta do jardim, do lado da azinhaga, passando o tanque, até ao terraço. Aí avistareis uma escada encostada a uma janela da casa, que é a janela do meu quarto, onde sereis bem docemente agasalhado por quem ansiosamente vos espera...»

—Agora, senhora, assinai por baixo o vosso nome, que isso sobretudo convêm!

D. Leonor traçou vagarosamente o seu nome, tam vermelha como se a despissem diante de uma multidão.

—E agora—ordenou o marido mais surdamente, através dos dentes cerrados—endereçai a D. Rui de Cardenas!

Ela ousou erguer os olhos, na surprêsa daquele nome desconhecido.

—Andai!... A D. Rui de Cardenas!—gritou o homem sombrio.{230}

E ela endereçou a sua desonesta carta a D. Rui de Cardenas.

D. Alonso meteu o pergaminho no cinto, junto ao punhal que embainhara, e saíu em silêncio com a barba espetada, abafando o rumor dos passos nas lages do corredor

Ela ficara sôbre o escabelo, as mãos cansadas e caídas no regaço, num infinito espanto, o olhar perdido na escuridão da noite silente. Menos escura lhe parecia a morte que essa escura aventura em que se sentia envolvida e levada! ¿Quem era êsse D. Rui de Cardenas, de quem nunca ouvira falar, que nunca atravessara a sua vida, tam quieta, tam pouco povoada de memórias e de homens? E êle de-certo a conhecia, a encontrara, a seguira, ao menos com os olhos, pois que era cousa natural e bem ligada receber dela carta de tanta paixão e promessa...

¿Assim, um homem, e môço de-certo bem nascido, talvez gentil, penetrava no seu destino bruscamente, trazido pela mão de seu marido? Tam íntimamente mesmo se entranhara êsse homem na sua vida, sem que ela se apercebesse, que já para êle se abria de noite a porta do seu jardim, e contra a sua janela, para êle subir, se arrumava de noite uma escada!... E era seu marido que muito secretamente escancarava a porta, e muito secretamente levantava a escada... Para que?{231}

Então, num relance, D. Leonor compreendeu a verdade, a vergonhosa verdade, que lhe arrancou um grito ansiado e mal sufocado. Era uma cilada! O senhor de Lara atraía a Cabril êsse D. Rui com uma promessa magnífica, para dêle se apoderar, e de-certo o matar, indefeso e solitário! E ela, o seu amor, o seu corpo, eram as promessas que se faziam rebrilhar ante os olhos seduzidos do môço desventuroso. Assim seu marido usava a sua beleza, o seu leito, como a rêde de oiro em que devia caír aquela prêsa estouvada! ¿Onde haveria maior ofensa? E tambêm quanta imprudência! Bem poderia esse D. Rui de Cardenas desconfiar, não aceder a convite tam abertamente amoroso, e depois mostrar por toda a Segóvia, rindo e triunfando, aquela carta em que lhe fazia oferta do seu leito e do seu corpo a mulher de Alonso de Lara! Mas não! o desventurado correria a Cabril—e para morrer, miserávelmente morrer no negro silêncio da noite, sem padre, nem sacramentos, com a alma encharcada em pecado de amor! Para morrer, de-certo—porque nunca o senhor de Lara permitiria que vivesse o homem que recebera tal carta. Assim, aquele môço morria por amor dela, e por um amor que, sem lhe valer nunca um gôsto, lhe valia logo a morte! De-certo por amor dela—pois que tal ódio do senhor de Lara, ódio{232} que com tanta deslealdade e vilania se cevava, só podia nascer de ciumes, que lhe escureciam todo o dever de cavaleiro e de cristão. Sem dúvida êle surpreendera olhares, passos, tenções dêste senhor D. Rui, mal acautelado por bem namorado.

Mas como? quando? Confusamente se lembrava ela de um moço que um domingo a cruzara no adro, a esperara ao portal da igreja, com um molho de cravos na mão... Seria êsse? Era de nobre parecer, muito pálido, com grandes olhos negros e quentes. Ela passara—indiferente... Os cravos que segurava na mão eram vermelhos e amarelos... A quem os levava?... Ah! se o pudesse avisar, bem cedo, de madrugada!

¿Como, se não havia em Cabril serviçal ou aia de quem se fiasse? Mas deixar que uma bruta espada varasse traiçoeiramente aquele coração, que vinha cheio dela, palpitando por ela, todo na esperança dela!...

Oh! a desabrida e ardente correria de D. Rui, desde Segóvia a Cabril, com a promessa do encantador jardim aberto, da escada posta contra a janela, sob a nudez e protecção da noite! ¿Mandaria realmente o senhor de Lara encostar uma escada à janela? De-certo, para com mais facilidade o poderem matar, ao pobre, e doce, e inocente môço, quando êle subisse, mal seguro sôbre um frágil degrau,{233} as mãos embaraçadas, a espada a dormir na bainha... E assim, na outra noite, em face ao seu leito, a sua janela estaria aberta, e uma escada estaria erguida contra a sua janela à espera de um homem! Emboscado na sombra do quarto, seu marido seguramente mataria êsse homem...

¿Mas se o senhor de Lara esperasse fóra dos muros da quinta, assaltasse brutalmente, nalguma azinhaga, aquele D. Rui de Cardenas, e ou por menos destro, ou por menos forte, num terçar de armas, caísse êle traspassado, sem que o outro conhecesse a quem matara? E ela, ali, no seu quarto, sem saber, e todas as portas abertas, e a escada erguida, e aquele homem assomando à janela na sombra macia da noite tépida, e o marido que a devia defender morto no fundo duma azinhaga... ¿Que faria ela, Virgem Mãe? Oh! de-certo repeliria, soberbarmente, o môço temerário. Mas o espanto dêle e a cólera do seu desejo enganado! «Por Vós é que eu vim chamado, senhora! E ali trazia, sôbre o coração, a carta dela, com seu nome, que a sua mão traçara. ¿Como lhe poderia contar a emboscada e o dolo? Era tam longo de contar, naquele silêncio e solidão da noite, emquanto os olhos dêle, húmidos e negros, a estivessem suplicando e traspassando... Desgraçada dela se o senhor de Lara morresse, a deixasse solitária,{234} sem defesa, naquela vasta casa aberta! Mas quanto desgraçada tambêm se aquele môço, chamado por ela, e que a amava, e que por êsse amor vinha correndo deslumbrante, encontrasse a morte no sítio da sua esperança, que era o sítio do seu pecado, e, morto em pleno pecado, rolasse para a eterna desesperança... Vinte e cinco anos, êle—se era o mesmo de quem se lembrava, pálido, e tam airoso, com um gibão de veludo roxo e um ramo de cravos na mão, à porta da igreja, em Segóvia...

Duas lágrimas saltaram dos cansados olhos de D. Leonor. E dobrando os joelhos, levantando a alma toda para o céu, onde a lua se começava a levantar, murmurou, numa infinita mágoa e fé:

—Oh! Santa Virgem do Pilar, Senhora minha, vela por nós ambos, vela por todos nós!...

III

D. Rui entrava, pela hora da calma, no fresco pátio da sua casa, quando de um banco de pedra, na sombra, se ergueu um môço do campo, que tirou de dentro do surrão uma carta, lha entregou, murmurando:{235}

—Senhor, dai-vos pressa em ler, que tenho de voltar a Cabril, a quem me mandou...

D. Rui abriu o pergaminho; e, no deslumbramento que o tomou, bateu com êle contra o peito, como para o enterrar no coração...

O moço do campo insistia, inquieto:

—Aviai, senhor, aviai! Nem precisais responder. Basta que me deis um sinal de vos ter vindo o recado...

Muito pálido, D. Rui arrancou uma das luvas bordadas a retroz, que o môço enrolou e sumiu no surrão. E já abalava na ponta das alpercatas leves, quando, com um acêno, D. Rui ainda o deteve:

—Escuta. ¿Que caminho tomas tu para Cabril?

—O mais certo e sòzinho para gente afoita, que é pelo Cêrro dos Enforcados.

—Bem.

D. Rui galgou as escadas de pedra, e no seu aposento, sem mesmo tirar o sombreiro, de novo leu junto da gelosia aquele pergaminho divino, em que D. Leonor o chamava de noite ao seu quarto, à posse inteira do seu ser. E não o maravilhava esta oferta—depois de uma tam constante, imperturbada indiferença. Antes nela logo percebeu um amor muito astuto, por ser muito forte, que com grande paciência se esconde ante os estorvos e os perigos, e mudamente prepara a sua{236} hora de contentamento, melhor e mais deliciosa por tam preparada. Sempre ela o amara, pois, desde a manhã bemdita em que os seus olhos se tinham cruzado no portal de Nossa Senhora. E emquanto êle rondava aqueles muros do jardim, maldizendo uma frieza que lhe parecia mais fria que a dos frios muros, já ela lhe dera a sua alma, e cheia de constância, com amorosa sagacidade, recalcando o menor suspiro, adormecendo desconfianças, preparava a noite radiante em que lhe daria tambêm o seu corpo.

Tanta firmeza, tam fino engenho nas coisas do amor ainda lha tornavam mais bela e mais apetecida!

Com que impaciência olhava então o sol, tam desapressado nessa tarde em descer para os montes! Sem repouso, no seu quarto, com as gelosias cerradas para melhor concentrar a sua felicidade, tudo aprontava amorosamente para a triunfal jornada: as finas roupas, as finas rendas, um gibão de veludo negro e as essências perfumadas. Duas vezes desceu à cavalariça a verificar se o seu cavalo estava bem ferrado e bem pensado. Sôbre o soalho, vergou e revergou, para a experimentar, a folha da espada que levaria à cinta... Mas o seu maior cuidado era o caminho para Cabril, a-pesar de bem o conhecer, e a aldeia apinhada em tôrno ao mosteiro franciscano, e a vélha{237} ponte romana com o seu Calvário, e a azinhaga funda que levava à herdade do senhor de Lara. Ainda nesse inverno por lá passara, indo montear com dois amigos de Astorga, e avistara a torre dos de Lara, e pensara:—«Eis a torre da minha ingrata!» Como se enganava! As noites agora eram de lua, e êle saíria de Segóvia caladamente, pela porta de S. Mauros. Um galope curto o punha no Cêrro dos Enforcados... Bem o conhecia tambêm, êsse sítio de tristeza e pavor, com os seus quatro pilares de pedra, onde se enforcavam os criminosos, e onde os seus corpos ficavam, balouçados da ventania, ressequidos do sol, até que as cordas apodrecessem e as ossadas caíssem, brancas e limpas da carne pelo bico dos corvos. Por trás do Cêrro era a lagôa das Donas. A derradeira vez que por lá andara, fôra em dia do apóstolo S. Matias, quando o corregedor e as confrarias de caridade e paz, em procissão, iam dar sepultura sagrada às ossadas caídas no chão negro, esbrugadas pelas aves. Daí o caminho, depois, corria liso e direito a Cabril.

Assim D. Rui meditava a sua jornada venturosa, emquanto a tarde ia caíndo. Mas, quando escureceu, e em tôrno às tôrres da igreja começaram a girar os morcegos, e nas esquinas do adro se acenderam os nichos das Almas, o valente môço sentiu um medo{238} estranho, o medo daquela felicidade que se acercava e que lhe parecia sobrenatural. ¿Era, pois, certo que essa mulher de divina formosura, famosa em Castela, e mais inacessível que um astro, seria sua, toda sua, no silêncio e segurança duma alcova, dentro em breves instantes, quando ainda se não tivessem apagado diante dos retábulos das Almas aqueles lumes devotos? ¿E o que fizera êle para lograr tam grande bem? Pisara as lages de um adro, esperara no portal de uma igreja, procurando com os olhos outros dois olhos, que não se erguiam, indiferentes ou desatentos. Então, sem dor, abandonara a sua esperança... E eis que de repente aqueles olhos distraídos o procuram, e aqueles braços fechados se lhe abrem, largos e nus, e com o corpo e com a alma aquela mulher lhe grita:—«Oh! mal avisado, que não me entendeste! Vem! Quem te desanimou já te pertence!» ¿Houvera jàmais igual ventura? Tam alta, tam rara era, que de-certo atrás dela, se não erra a lei humana, já devia caminhar a desventura! Já na verdade caminhava;—pois quanta desventura em saber que depois de tal ventura, quando de madrugada, saíndo dos divinos braços, êle recolhesse a Segóvia, a sua Leonor, o bem sublime da sua vida, tam inesperadamente adquirido por um instante, recaíria logo sob o poder de outro amo!{239}

Que importava! Viessem depois dores e zelos! Aquela noite era esplêndidamente sua, o mundo todo uma aparência vã e a única realidade êsse quarto de Cabril, mal alumiado, onde ela o esperaria, com os cabelos soltos! Foi com sofreguidão que desceu a escada, se arremessou sôbre o seu cavalo. Depois, por prudência, atravessou o adro muito lentamente, com o sombreiro bem levantado da face, como num passeio natural, a procurar fóra dos muros a frescura da noite. Nenhum encontro o inquietou até à porta de S. Mauros. Aí, um mendigo, agachado na escuridão dum arco, e que tocava monótonamente a sua sanfona, pediu, em lamúria, à Virgem e a todos os santos, que levassem aquele gentil cavaleiro na sua doce e santa guarda. D. Rui parara para lhe atirar uma esmola, quando se lembrou que nessa tarde não fôra à igreja, à hora de vésperas, rezar e pedir a bênção à sua divina madrinha. Com um salto, desceu logo do cavalo, porque, justamente, rente ao vélho arco, tremeluzia uma lâmpada alumiando um retábulo. Era uma imagem da Virgem com o peito traspassado por sete espadas. D. Rui ajoelhou, pousou o sombreiro nas lages, e com as mãos erguidas, muito zelosamente, rezou uma Salve-Rainha. O clarão amarelo da luz envolvia o rosto da Senhora, que, sem sentir as dores dos sete ferros, ou como se êles só déssem{240} inefáveis gozos, sorria com os lábios muito vermelhos. Emquanto êle rezava, no convento de São Domingos, ao lado, a sineta começou a tocar a agonia. De entre a sombra negra do arco, cessando a sanfona, o mendigo murmurou:—«Lá está um frade a morrer!» D. Rui disse uma Ave-Maria pelo frade que morria. A Virgem das sete espadas sorria docemente—o toque de agonia não era, pois, de mau preságio! D. Rui cavalgou alegremente e partiu.

Para alêm da porta de S. Mauros, depois de alguns casebres de oleiros, o caminho seguia, esguio e negro, entre altas piteiras. Por trás das colinas, ao fundo da planície escura, subia o primeiro clarão, amarelo e lânguido, da lua cheia, ainda escondida. E D. Rui marchava a passo, receando chegar a Cabril muito cedo, antes que as aias e os moços findassem o serão e o rosário. ¿Porque não lhe marcara D. Leonor a hora, naquela carta tam clara e tam pensada? Então a sua imaginação corria adiante, rompia pelo jardim de Cabril, galgava aladamente a escada prometida—e êle largava tambêm atrás, numa carreira sôfrega, que arrancava as pedras do caminho mal junto. Depois sofreava o cavalo ofegante. Era cedo, era cedo! E retomava o passo penoso, sentindo o coração contra o peito, como ave presa que bate às grades.

Assim chegou ao Cruzeiro, onde a estrada{241} se fendia em duas, mais juntas que as pontas de uma forquilha, ambas cortando através de pinheiral. Descoberto diante da imagem crucificada, D. Rui teve um instante de angústia, pois não se recordava qual delas levava ao Cêrro dos Enforcados. Já se embrenhara na mais cerrada, quando, de entre os pinheiros calados, uma luz surgiu, dansando no escuro. Era uma vélha em farrapos, com as longas melenas soltas, vergada sôbre um bordão e levando uma candeia.

—¿Para onde vai este caminho?—gritou Rui.

A vélha balançou mais ao alto a candeia, para mirar o cavaleiro.

—Para Xarama.

E luz e vélha imediatamente se sumiram, fundidas na sombra, como se ali tivessem surgindo sómente para avisar o cavaleiro do seu caminho errado... Já êle virara arrebatadamente; e, rodeando o Calvário, galopou pela outra estrada mais larga, até avistar sôbre a claridade do céu os pilares negros, os madeiros negros do Cêrro dos Enforcados. Então estacou, direito nos estribos. Num cômoro alto, sêco, sem erva ou urze, ligados por um muro baixo, todo esbrechado, lá se erguiam, negros, enormes, sôbre a amarelidão do luar, os quatro pilares de granito semelhantes aos quatro cunhais duma casa desfeita.{242} Sôbre os pilares pousavam quatro grossas traves. Das traves pendiam quatro enforcados negros e rígidos, no ar parado e mudo. Tudo em tôrno parecia morto como êles.

Gordas aves de rapina dormiam empoleiradas sôbre os madeiros. Para alêm, rebrilhava lívidamente a água morta da lagôa das Donas. E, no céu, a lua ia grande e cheia.

D. Rui murmurou o Padre Nosso devido por todo o cristão àquelas almas culpadas. Depois impeliu o cavalo, e passava—quando, no imenso silêncio e na imensa solidão, se ergueu, ressoou uma voz, uma voz que o chamava, suplicante e lenta:

—Cavaleiro, detende-vos, vinde cá!...

D. Rui colheu bruscamente as rédeas e erguido sôbre os estribos, atirou os olhos espantados por todo o sinistro ermo. Só avistou o cêrro áspero, a água rebrilhante e muda, os madeiros, os mortos. Pensou que fôra ilusão da noite ou ousadia de algum demónio errante. E, serenamente, picou o cavalo, sem sobressalto ou pressa, como numa rua de Segóvia. Mas, por trás, a voz tornou, mais urgentemente o chamou, ansiosa, quási aflita:

—Cavaleiro, esperai, não vos vades, voltai, chegai aqui!...

De novo D. Rui estacou e, virado sôbre a sela, encarou afoitamente os quatro corpos pendurados das traves. Do lado dêles soava{243} a voz, que, sendo humana, só podia saír de forma humana! Um dêsses enforcados, pois, o chamara, com tanta pressa e ânsia.

¿Restaria nalguns, por maravilhosa mercê de Deus, alento e vida? ¿Ou seria que, por maior maravilha, uma dessas carcassas meio apodrecidas o detinha para lhe transmitir avisos de Alêm-da-Campa?... Mas, que a voz rompesse dum peito vivo ou dum peito morto, grande covardia era abalar, espavoridamente, sem a atender e a ouvir.

Atirou logo para dentro do cêrro o cavalo, que tremia; e, parando, direito e calmo, com a mão na ilharga, depois de fitar, um por um, os quatro corpos suspensos, gritou:

—¿Qual de vós, homens enforcados, ousou chamar por D. Rui de Cardenas?

Então aquele que voltava as costas à lua cheia respondeu, do alto da corda, muito quieta e naturalmente, como um homem que conversa da sua janela para a rua:

—Senhor, fui eu.

D. Rui fez avançar para diante dêle o cavalo. Não lhe distinguia a face, enterrada no peito, escondida pelas longas e negras melenas pendentes. Só percebeu que tinha as mãos soltas e desamarradas, e tambêm soltos os pés nus, já ressequidos e da côr do betume.

—Que me queres?

O enforcado, suspirando, murmurou:{244}

—Senhor, fazei-me a grande mercê de me cortar esta corda em que estou pendurado.

D. Rui arrancou a espada e de um golpe certo cortou a corda meio apodrecida. Com um sinistro som de ossos entrechocados o corpo caíu no chão, onde jazeu um momento, estirado. Mas, imediatamente, se endireitou sôbre os pés mal seguros e ainda dormentes—e ergueu para D. Rui uma face morta, que era uma caveira com a pele muito colada, e mais amarela que a lua que nela batia. Os olhos não tinham movimento nem brilho. Ambos os beiços se lhe arreganhavam num sorriso empedernido. De entre os dentes, muito brancos, surdia uma ponta de língua muito negra.

D. Rui não mostrou terror, nem asco. E embainhando serenamente a espada:

—¿Tu estás morto ou vivo?—perguntou. O homem encolheu os ombros com lentidão:

—Senhor, não sei... ¿Quem sabe o que é a vida? ¿Quem sabe o que é a morte?...

—¿Mas que queres de mim ?

O enforcado, com os longos dedos descarnados, alargou o nó da corda que ainda lhe laçava o pescoço e declarou muito serena e firmemente:

—Senhor, eu tenho de ir convosco a Cabril, onde vós ides.{245}

O cavaleiro estremeceu num tam forte assombro, repuxando as rédeas, que o seu bom cavalo se empinou como assombrado tambêm.

—Comigo a Cabril?!...

O homem curvou o espinhaço, a que se viam os ossos todos, mais agudos que os dentes de uma serra, através de um longo rasgão da camisa de estamenha:

—Senhor—suplicou—não mo negueis. Que eu tenho a receber grande salário se vos fizer grande serviço!

Então D. Rui pensou de repente que bem podia ser aquela uma traça formidável do Demónio. E, cravando os olhos muito brilhantes na face morta que para êle se erguia, ansiosa, à espera do seu consentimento—fez um lento e largo Sinal da Cruz.

O enforcado vergou os joelhos com assustada reverência:

—¿Senhor, para que me experimentais com êsse sinal? Só por êle alcançamos remissão, e eu só dêle espero misericórdia.

Então D. Rui pensou que, se êsse homem não era mandado pelo Demónio, bem podia ser mandado por Deus! E logo devotamente, com um gesto submisso em que tudo entregava ao céu, consentiu, aceitou o pavoroso companheiro:

—Vem comigo, pois, a Cabril, se Deus{246} te manda! Mas eu nada te pergunto e tu nada me perguntes.

Desceu logo o cavalo à estrada, toda alumiada da lua. O enforcado seguia ao seu lado, com passos tam ligeiros, que mesmo quando D. Rui galopava êle se conservava rente ao estribo, como levado por um vento mudo.

Por vezes, para respirar mais livremente, repuxava o nó da corda que lhe enroscava o pescoço. E, quando passavam entre sebes onde errasse o aroma de flores silvestres, o homem murmurava com infinito alívio e delícia:

—Como é bom correr!

D. Rui ia num assombro, num tormentoso cuidado. Bem compreendia agora que era aquele um cadáver reanimado por Deus, para um estranho e encoberto serviço. ¿Mas para que lhe dava Deus tam medonho companheiro? ¿Para o proteger? ¿Para impedir que D. Leonor, amada do céu pela sua piedade, caísse em culpa mortal? ¿E, para tam divina incumbência de tam alta mercê, já não tinha o Senhor anjos no céu, que necessitasse empregar um supliciado?... Ah! como êle voltaria alegremente a rédea para Segóvia, se não fôra a galante lealdade de cavaleiro, o orgulho de nunca recuar, e a submissão às ordens de Deus, que sentia sôbre si pesarem...

Dum alto da estrada, de repente avistaram Cabril, as torres do convento franciscano alvejando{247} ao luar, os casais adormecidos entre as hortas. Muito silenciosamente, sem que um cão ladrasse detrás das cancelas ou de cima dos muros, desceram a vélha ponte romana. Diante do Calvário, o enforcado caíu de joelhos nas lages, ergueu os lívidos ossos das mãos, ficou longamente rezando, entre longos suspiros. Depois ao entrar na azinhaga, bebeu muito tempo, e consoladamente, de uma fonte que corria e cantava sob as frondes de um salgueiro. Como a azinhaga era muito estreita, êle caminhava adiante do cavaleiro, todo curvado, os braços cruzados fortemente sôbre o peito, sem um rumor.

A lua ia alta no céu. D. Rui considerava com amargura aquele disco, cheio e lustroso, que espargia tanta claridade, e tam indiscreta, sôbre o seu segredo. Ah! como se estragava a noite que devia ser divina! Uma enorme lua surdia de entre os montes para tudo alumiar. Um enforcado descia da forca para o seguir e tudo saber. Deus assim o ordenara. Mas que tristeza chegar à doce porta docemente prometida, com tal intruso ao seu lado, sob aquele céu todo claro!

Bruscamente, o enforcado estacou, erguendo o braço, de onde a manga pendia em farrapos. Era o fim da azinhaga que desembocava em caminho mais largo e mais batido:—e diante dêles alvejava o comprido muro da quinta{248} do senhor de Lara, tendo aí um mirante, com varandins de pedra, e todo revestido de hera.

—Senhor—murmurou o enforcado, segurando com respeito o estribo de D. Rui—logo a poucos passos dêste mirante é a porta por onde deveis penetrar no jardim. Convêm que aqui deixeis o cavalo, amarrado a uma árvore, se o tendes por seguro e fiel. Que na emprêsa em que vamos, já é de mais o rumor dos nossos pés!...

Silenciosamente D. Rui apeou, prendeu o cavalo, que sabia fiel e seguro, ao tronco dum álamo sêco.

E tam submisso se tornara àquele companheiro imposto por Deus, que sem outro reparo o foi seguindo rente do muro que o luar batia.

Com vagarosa cautela, e na ponta dos pés nus, avançava agora o enforcado, vigiando o alto do muro, sondando a negrura da sebe, parando a escutar rumores que só para êle eram percebíveis—porque nunca D. Rui conhecera noite mais fundamente adormecida e muda.

E tal susto, em quem devia ser indiferente a perigos humanos, foi lentamente enchendo tambêm o valoroso cavaleiro de tam viva desconfiança, que tirava o punhal da baínha, enrodilhava a capa no braço, e marchava em{249} defesa, com o olhar faiscando, como num caminho de emboscada e briga. Assim chegaram a uma porta baixa, que o enforcado empurrou, e que se abriu sem gemer nos gonzos. Penetraram numa rua ladeada de espessos teixos até a um tanque cheio de água, onde boiavam fôlhas de nenúfares, e que toscos bancos de pedra circundavam, cobertos pela rama de arbustos em flor.

—Por ali—murmurou o enforcado, estendendo o braço mirrado.

Era alêm do tanque, uma avenida que densas e vélhas árvores abobadavam e escureciam. Por ela se meteram, como sombras na sombra, o enforcado adiante, D. Rui seguindo muito subtilmente, sem roçar um ramo, mal pisando a areia. Um leve fio de água sussurrava entre relvas. Pelos troncos subiam rosas trepadeiras, que cheiravam docemente. O coração de D. Rui recomeçou a bater numa esperança de amor.

—Chut!—fez o enforcado.

E D. Rui quási tropeçou no sinistro homem que estacava, com os braços abertos como as traves de uma cancela. Diante dêles quatro degraus de pedra subiam a um terraço, onde a claridade era larga e livre. Agachados, treparam os degraus—e ao fundo dum jardim sem árvores, todo em canteiros de flores bem recortados, orlados de buxo{250} curto, avistaram um lado da casa batido pela lua cheia. Ao meio, entre as janelas de peitoril fechadas, um balcão de pedra, com manjericões aos cantos, conservava as vidraças abertas largamente. O quarto, dentro, apagado, era como um buraco de treva na claridade da fachada que o luar banhava. E arrimada contra o balcão, estava uma escada com degraus de corda.

Então o enforcado empurrou D. Rui vivamente dos degraus para a escuridão da avenida. E aí, com um modo urgente, dominando o cavaleiro, exclamou:

—Senhor! Convêm agora que me deis o vosso sombreiro e a capa! Vós quedais aqui na escuridão destas árvores. Eu vou trepar àquela escada e espreitar para aquele quarto... E se fôr como desejais, aqui voltarei, e com Deus sêde feliz...

D. Rui recuou no horror de que tal criatura subisse a tal janela!

E bateu o pé, gritou surdamente:

—Não, por Deus!

Mas a mão do enforcado, lívida na escuridão, bruscamente lhe arrancou o sombreiro da cabeça, lhe puxou a capa do braço. E já se cobria, já se embuçava, murmurando agora, numa súplica ansiosa:

—Não mo negueis, senhor, que se vos fizer grande serviço, ganharei grande mercê!{251}

E galgou os degraus:—estava no alumiado e largo terraço.

D. Rui subiu, atontado, e espreitou. E—oh maravilha!—era êle, D. Rui, todo êle, na figura e no modo, aquele homem que, por entre os canteiros e o buxo curto, avançava, airoso e leve, com a mão na cintura, a face erguida risonhamente para a janela, a longa pluma escarlate do chapéu balançando em triunfo. O homem avançava no luar esplêndido. O quarto amoroso lá estava esperando, aberto e negro. E D. Rui olhava, com olhos que faiscavam, tremendo de pasmo e cólera. O homem chegara à escada: destraçou a capa, assentou o pé no degrau de corda!—«Oh! lá sobe, o maldito!»—rugiu D. Rui. O enforcado subia. Já a alta figura, que era dêle, D. Rui, estava a meio da escada, toda negra contra a parede branca. Parou!... Não! não parara: subia, chegava,—já sôbre o rebordo da varanda pousara o joelho cauteloso. D. Rui olhava, desesperadamente, com os olhos, com a alma, com todo o seu ser... E eis que, de repente, do quarto negro surge um negro vulto, uma furiosa voz brada:—«vilão, vilão!»—e uma lâmina de adaga faisca, e cai, e outra vez se ergue, e rebrilha, e se abate, e ainda refulge, e ainda se embebe!... Como um fardo, do alto da escada, pesadamente, o enforcado cai sôbre a terra mole. Vidraças, portadas do{252} balcão logo se fecham com fragor. E não houve mais senão o silêncio, a serenidade macia, a lua muito alta e redonda no céu de verão.

Num relance D. Rui compreendera a traição, arrancara a espada, recuando para a escuridão da avenida—quando, oh milagre! correndo através do terraço, aparece o enforcado, que lhe agarra a manga e lhe grita:

—A cavalo, senhor, e abalar, que o encontro não era de amor, mas de morte!

Ambos descem arrebatadamente a avenida, costeiam o tanque sob o refúgio dos arbustos em flor, metem pela rua estreita orlada de teixos, varam a porta—e um momento param, ofegantes, na estrada, onde a lua, mais refulgente, mais cheia, fazia como um puro dia.

E então, só então, D. Rui descobriu que o enforcado conservava cravada no peito, até aos copos, a adaga, cuja ponta lhe saía pelas costas, luzidia e limpa!... Mas já o pavoroso homem o empurrava, o apressava:

—A cavalo, senhor, e abalar, que ainda está sôbre nós a traição!

Arrepiado, numa ânsia de findar aventura tam cheia de milagre e de horror, D. Rui colheu as rédeas, cavalgou sôfregamente. E logo, em grande pressa, o enforcado saltou tambêm para a garupa do cavalo fiel. Todo se arrepiou o bom cavaleiro, ao sentir nas suas{253} costas o roçar daquele corpo morto, dependurado de uma forca, atravessado por uma adaga. Com que desespêro galopou então pela estrada infindável! Em carreira tam violenta o enforcado nem oscilava, rígido sôbre a garupa, como um bronze num pedestal. E D. Rui a cada momento sentia um frio mais regelado que lhe regelava os ombros, como se levasse sôbre êles um saco cheio de gêlo. Ao passar no cruzeiro murmurou:—«Senhor, valei-me!»—Para alêm do cruzeiro, de repente estremeceu com o quimérico medo de que tam fúnebre companheiro para sempre o ficasse acompanhando, e se tornasse seu destino galopar através do mundo, numa noite eterna, levando um morto à garupa... E não se conteve, gritou para trás, no vento da carreira que os vergastava:

—¿Para onde quereis que vos leve?

O enforcado, encostando tanto o corpo a D. Rui que o magoou com os copos da adaga, segredou:

—Senhor, convêm que me deixeis no Cêrro!

Doce e infinito alívio para o bom cavaleiro—pois o Cêrro estava perto, e já lhe avistava, na claridade desmaiada, os pilares e as traves negras... Em breve estacou o cavalo que tremia, branqueado de espuma.

Logo o enforcado, sem rumor, escorregou{254} da garupa, segurou, como bom serviçal, o estribo de D. Rui. E com a caveira erguida, a língua negra mais saída de entre os dentes brancos, murmurou em respeitosa súplica:

—Senhor, fazei-me agora a grande mercê de me pendurar outra vez da minha trave.

D. Rui estremeceu de horror:

—Por Deus! Que vos enforque, eu?...

O homem suspirou, abrindo os braços compridos:

—Senhor, por vontade de Deus é, e por vontade de Aquela que é mais cara a Deus!

Então, resignado, submisso aos mandados do Alto, D. Rui apeou—e começou a seguir o homem, que subia para o Cêrro pensativamente, vergando o dorso, de onde saía, espetada e luzidia, a ponta da adaga. Pararam ambos sob a trave vazia. Em tôrno das outras traves pendiam as outras carcassas. O silêncio era mais triste e fundo que os outros silêncios da terra. A água da lagôa ennegrecera. A lua descia e desfalecia.

D. Rui considerou a trave onde restava, curto no ar, o pedaço de corda que êle cortara com a espada.

—¿Como quereis que vos pendure?—exclamou.—Àquele pedaço de corda não posso chegar com a mão; nem eu só basto para lá vos içar.{255}

—Senhor—respondeu o homem—aí a um canto deve haver um longo rôlo de corda. Uma ponta dela ma atareis a este nó que trago no pescoço: a outra ponta a arremessareis por cima da trave, e puxando depois, forte como sois, bem me podereis reenforcar.

Ambos curvados, com passos lentos, procuraram o rôlo de corda. E foi o enforcado que o encontrou, o desenrolou... Então D. Rui descalçou as luvas. E ensinado por êle (que tam bem o aprendera do carrasco) atou uma ponta da corda ao laço que o homem conservava no pescoço, e arremessou fortemente a outra ponta, que ondeou no ar, passou sôbre a trave, ficou pendurada rente ao chão. E o rijo cavaleiro, fincando os pés, retezando os braços, puxou, içou o homem, até êle se quedar, suspenso, negro no ar, como um enforcado natural entre os outros enforcados.

—Estais bem assim?

Lenta e sumida, veio a voz do morto:

—Senhor, estou como devo.

Então D. Rui, para o fixar, enrolou a corda em voltas grossas ao pilar de pedra. E tirando o sombreiro, limpando com as costas da mão o suor que o alagava, contemplou o seu sinistro e miraculoso companheiro. Estava já rígido como antes, com a face pendida sob as melenas caídas, os pés inteiriçados, todo poído e carcomido como uma vélha carcassa. No peito{256} conservava a adaga cravada. Por cima, dois corvos dormiam quietos.

—¿E agora que mais quereis?—perguntou D. Rui, começando a calçar as luvas.

Sumidamente, do alto, o enforcado murmurou:

—Senhor, muito vos rogo agora que, ao chegar a Segóvia, tudo conteis fielmente a Nossa Senhora do Pilar, vossa madrinha, que dela espero grande mercê para a minha alma, por êste serviço que, a seu mandado, vos fez o meu corpo!

Então, D. Rui de Cardenas tudo compreendeu—e, ajoelhando devotamente sôbre o chão de dor e morte, rezou uma longa oração por aquele bom enforcado.

Depois galopou para Segóvia. A manhã clareava quando êle transpôs a porta de S. Mauros. No ar fino os sinos claros tocavam a matinas. E entrando na igreja de Nossa Senhora do Pilar, ainda no desalinho da sua terrível jornada, D. Rui, de rôjo ante o altar, narrou à sua Divina Madrinha a ruim tenção que o levara a Cabril, o socorro que do céu recebera, e, com quentes lágrimas de arrependimento e gratidão, lhe jurou que nunca mais poria desejo onde houvesse pecado, nem no seu coração daria entrada a pensamento que viesse do Mundo e do Mal.{257}

IV

A essa hora, em Cabril, D. Alonso de Lara, com os olhos esbugalhados de pasmo e terror, esquadrinhava todas as ruas e recantos e sombras do seu jardim.

Quando ao alvorecer, depois de escutar à porta da câmara onde nessa noite encerrara D. Leonor, êle descera subtilmente ao jardim e não encontrara, debaixo do balcão, rente à escada, como deliciosamente esperava, o corpo de D. Rui de Cardenas, teve por certo que o homem odioso, ao tombar, ainda com um resto débil de vida, se arrastara sangrando e arquejando, na tentativa de alcançar o cavalo e abalar de Cabril... Mas, com aquela rija adaga que êle três vezes lhe enterrara no peito, e que no peito lhe deixara, não se arrastaria o vilão por muitas jardas, e nalgum canto devia jazer frio e inteiriçado. Rebuscou então cada rua, cada sombra, cada maciço de arbustos. E—maravilhoso caso!—não descobria o corpo, nem pègadas, nem terra que houvesse sido remexida, nem sequer rasto de sangue sôbre a terra! E todavia, com mão certeira e faminta de vingança, três vezes{258} êle lhe embebera a adaga no peito, e no peito lha deixara!

E era Rui de Cardenas o homem que êle matara—que muito bem o conhecera logo, do fundo apagado do quarto de onde espreitava, quando êle, à claridade da lua, veio através do terraço, confiado, ligeiro, com a mão na cintura, a face risonhamente erguida e a pluma do sombreiro meneando em triunfo! ¿Como podia ser cousa tam rara—um corpo mortal sobrevivendo a um ferro, que três vezes lhe vara o coração e no coração lhe fica cravado? E a maior raridade era que nem no chão, debaixo da varanda, onde corria ao longo do muro uma tira de goivos e cecêns, deixara um vestígio aquele corpo forte, caíndo de tam alto pesadamente, inertemente, como um fardo! Nem uma flor machucada—todas direitas, viçosas, como novas, com gotas leves de orvalho! Imóvel de espanto, quási de terror, D. Alonso de Lara ali parava, considerando o balcão, medindo a altura da escada, olhando esgazeadamente os goivos direitos, frescos, sem uma haste ou fôlha vergada. Depois recomeçava a correr loucamente o terraço, a avenida, a rua de teixos, na esperança ainda duma pègada, dum galho partido, de uma nódoa de sangue na areia fina.

Nada! Todo o jardim oferecia um desusado arranjo e limpeza nova, como se sôbre êle{259} nunca houvesse passado nem o vento que desfolha, nem o sol que murcha.

Então, ao entardecer, devorado pela incerteza e mistério, tomou um cavalo e, sem escudeiro ou cavalariço, partiu para Segóvia. Curvada e escondidamente, como um foragido, penetrou no seu palácio pela porta do pomar: e o seu primeiro cuidado foi correr à galeria de abóbada, destrancar as portadas da janela e espreitar ávidamente a casa de D. Rui de Cardenas. Todas as gelosias da vélha morada do arcediago estavam escuras, abertas, respirando a fresquidão da noite:—e à porta, sentado num banco de pedra, um môço de cavalariça afinava preguiçosamente a bandurra.

D. Alonso de Lara desceu à sua câmara, lívido, pensando que não houvera certamente desgraça em casa onde todas as janelas se abrem para refrescar, e no portão da rua os moços folgam. Então bateu as palmas, pediu furiosamente a ceia. E, apenas sentado, ao tôpo da mesa, na sua alta séde de couro lavrado, mandou chamar o intendente, a quem ofereceu logo com estranha familiaridade um copo de vinho vélho. Emquanto o homem, de pé, bebia respeitosamente, D. Alonso, metendo os dedos pelas barbas e forçando a sua sombria face a sorrir, perguntava pelas novas e rumores de Segóvia. ¿Nesses dias da sua{260} estada em Cabril, nenhum caso criara pela cidade espanto e murmuração?... O intendente limpou os beiços, para afirmar que nada ocorrera em Segóvia de que andasse murmuração, a não ser que a filha do senhor D. Gutierres, tam môça e tam rica herdeira, tomara o véu no convento das Carmelitas Descalças. D. Alonso insistia, fitando vorazmente o intendente. ¿E não se travara uma grande briga?... ¿não se encontrara ferido, na estrada de Cabril, um cavaleiro môço, muito falado?... O intendente encolhia os ombros: nada ouvira, pela cidade, de brigas ou de cavaleiros feridos. Com um acêno desabrido D. Alonso despediu o intendente.

Apenas ceara, parcamente, logo voltou à galeria a espreitar as janelas de D. Rui. Estavam agora cerradas; na última, da esquina, tremeluzia uma claridade. Toda a noite D. Alonso velou, remoendo incansavelmente o mesmo espanto. ¿Como pudera escapar aquele homem, com uma adaga atravessada no coração? Como pudera?... Ao luzir da manhã, tomou uma capa, um largo sombreiro, desceu ao adro, todo embuçado e encoberto, e ficou rondando por diante da casa de D. Rui. Os sinos tocaram a matinas. Os mercadores, com os gibões mal abotoados, saíam a erguer as portadas das lojas, a pendurar as taboletas. Já os hortelões, picando os burros carregados de ceiras,{261} atiravam os pregões de hortaliça fresca, e frades descalços, com o alforge aos ombros, pediam esmola, benziam as moças.

Beatas embiocadas, com grossos rosários negros, enfiavam gulosamente para a igreja. Depois o pregoeiro da cidade, parando a um canto do adro, tocou uma buzina, e numa voz tremenda começou a ler um edital.

O senhor de Lara, parara junto do chafariz, pasmado, como embebido no cantar das três bicas de água. De repente pensou que aquele edital, lido pelo pregoeiro da cidade, se referia talvez a D. Rui, ao seu desaparecimento... Correu à esquina do adro—mas já o homem enrolara o papel, se afastava majestosamente, batendo nas lages com a sua vara branca. E, quando se voltava para espiar de novo a casa, eis que os seus olhos atónitos encontram D. Rui, D. Rui que êle matara—e que vinha caminhando para a igreja de Nossa Senhora, ligeiro, airoso, a face risonha e erguida no fresco ar da manhã, de gibão claro, de plumas claras, com uma das mãos pousando na cinta, a outra meneando distraídamente um bastão com borlas de torçal de oiro!

D. Alonso recolheu então a casa com passos arrastados e envelhecidos. No alto da escadaria de pedra, achou o seu vélho capelão, que o viera saùdar, e que, penetrando com êle na ante-câmara, depois de pedir, com reverência,{262} novas da senhora D. Leonor, lhe contou logo dum prodigioso caso que causava pela cidade grave murmuração e espanto. Na véspera, de tarde, indo o corregedor visitar o cêrro das forcas, pois se acercava a festa dos Santos Apóstolos, descobrira, com muito pasmo e muito escândalo, que um dos enforcados tinha uma adaga cravada no peito! ¿Fôra gracejo de um pícaro sinistro? ¿Vingança que nem a morte saciara?... E para maior prodígio ainda, o corpo fôra despendurado da forca, arrastado em horta ou jardim (pois que prêsas aos vélhos farrapos se encontraram fôlhas tenras) e depois novamente enforcado e com corda nova!... E assim ia a turbulência dos tempos, que nem os mortos se furtavam a ultrajes!

D. Alonso escutava com as mãos a tremer, os pêlos arrepiados. E imediatamente, numa ansiosa agitação, bradando, tropeçando contra as portas, quis partir, e por seus olhos verificar a fúnebre profanação. Em duas mulas ajaezadas à pressa, ambos abalaram para o Cêrro dos Enforcados, êle e o capelão arrastado e aturdido. Numeroso povo de Segóvia se ajuntara já no Cêrro, pasmando para o maravilhoso horror—o morto que fôra morto!... Todos se arredaram ante o nobre senhor de Lara, que arremessando-se pelo cabeço acima, estacara a olhar, esgazeado e lívido, para{263} o enforcado e para a adaga que lhe varava o peito. Era a sua adaga:—fôra êle que matara o morto!

Galopou espavoridamente para Cabril. E aí se encerrou com o seu segredo, começando logo a amarelecer, a definhar, sempre arredado da senhora D. Leonor, escondido pelas ruas sombrias do jardim, murmurando palavras ao vento, até que na madrugada de S. João uma serva, que voltava da fonte com a sua bilha, o encontrou morto, por baixo do balcão de pedra, todo estirado no chão, com os dedos encravados no canteiro de goivos, onde parecia ter longamente esgravatado a terra, a procurar...

V

Para fugir a tam lamentáveis memórias, a senhora D. Leonor, herdeira de todos os bens da casa de Lara, recolheu ao seu palácio de Segóvia. Mas como agora sabia que o senhor D. Rui de Cardenas escapara miraculosamente à emboscada de Cabril, e como cada manhã, espreitando de entre as gelosias, meio cerradas, o seguia, com olhos que se não fartavam e se humedeciam, quando êle cruzava o adro para entrar na igreja, não quis ela, com receio das{264} pressas e impaciências do seu coração, visitar a Senhora do Pilar emquanto durasse o seu luto. Depois, uma manhã de domingo, quando, em vez de crepes negros, se poude cobrir de sêdas roxas, desceu a escadaria do seu palácio, pálida de uma emoção nova e divina, pisou as lages do adro, transpôs as portas da igreja. D. Rui de Cardenas estava ajoelhado diante do altar, onde depusera o seu ramo votivo de cravos amarelos e brancos. Ao rumor das sêdas finas, ergueu os olhos com uma esperança muito pura e toda feita de graça celeste, como se um anjo o chamasse. D. Leonor ajoelhou, com o peito a arfar, tam pálida e tam feliz que a cera das tochas não era mais pálida, nem mais felizes as andorinhas que batiam as asas livres pelas ogivas da vélha igreja.

Ante êsse altar, e de joelhos nessas lages, foram eles casados pelo bispo de Segóvia, D. Martinho, no outono do ano da Graça de 1475, sendo já reis de Castela Isabel e Fernando, muito fortes e muito católicos, por quem Deus operou grandes feitos sôbre a terra e sôbre o mar.{265}

JOSE MATIAS

Linda tarde, meu amigo!... Estou esperando o entêrro do José Matias—do José Matias de Albuquerque, sobrinho do Visconde de Garmilde... O meu amigo certamente o conheceu—um rapaz airoso, louro como uma espiga, com um bigode crespo de paladino sôbre uma bôca indecisa de contemplativo, déstro cavaleiro, duma elegância sóbria e fina. E espírito curioso, muito afeiçoado às ideas gerais, tam penetrante que compreendeu a minha Defesa da Filosofia Hegeliana! Esta imagem do José Matias data de 1865: porque a derradeira vez que o encontrei, numa tarde agreste de Janeiro, metido num portal da rua de S. Bento, tiritava dentro duma quinzena côr de mel, roída nos cotovelos, e cheirava abominavelmente a aguardente.{266}

Mas o meu amigo, numa ocasião que o José Matias parou em Coímbra, recolhendo do Pôrto, ceou com êle, no Paço do Conde! Até o Craveiro, que preparava as Ironias e Dores de Satan, para acirrar mais a briga entre a Escola Purista e a Escola Satânica, recitou aquele seu soneto, de tam fúnebre idealismo: Na jaula do meu peito, o coração... E ainda lembro o José Matias, com uma grande gravata de setim preto tufada entre o colete de linho branco, sem despegar os olhos das velas das serpentinas, sorrindo pálidamente àquele coração que rugia na sua jaula... Era uma noite de Abril, de lua cheia. Passeamos depois em bando, com guitarras, pela Ponte e pelo Choupal. O Januário cantou ardentemente as endechas românticas do nosso tempo:

Ontem de tarde, ao sol posto,
Contemplavas, silenciosa,
A torrente caudalosa
Que refervia a teus pés...

E o José Matias, encostado ao parapeito da Ponte, com a alma e os olhos perdidos na lua!—¿Porque não acompanha o meu amigo êste môço interessante ao Cemitério dos Prazeres? Eu tenho uma tipóia, de praça e com número, como convêm a um Professor de filosofia... O quê! ¿Por causa das calças claras?{267} Oh! meu caro amigo! De todas as materializações da simpatia, nenhuma mais grosseiramente material do que a casimira preta. E o homem que nós vamos enterrar era um grande espiritualista!

Vem o caixão saíndo da Igreja... Apenas três carruagens para o acompanhar. Mas realmente, meu caro amigo, o José Matias morreu há seis anos, no seu puro brilho. Êsse, que aí levamos, meio decomposto, dentro de tábuas agaloadas de amarelo, é um resto de bêbedo, sem história e sem nome, que o frio de Fevereiro matou no vão dum portal.

¿O sujeito de óculos de oiro, dentro do copé?... Não conheço, meu amigo. Talvez um parente rico, dêsses que aparecem nos enterros, com o parentesco correctamente coberto de fumo, quando o defunto já não importuna, nem compromete. O homem obeso de carão amarelo, dentro da vitória, é o Alves Capão, que tem um jornal onde desgraçadamente a Filosofia não abunda, e que se chama a Piada. ¿Que relações o prendiam ao Matias?... Não sei. Talvez se embebedassem nas mesmas tascas; talvez o José Matias últimamente colaborasse na Piada; talvez debaixo daquela gordura e daquela literatura, ambas tam sórdidas, se abrigue uma alma compassiva. Agora é a nossa tipóia... ¿Quer que desça a vidraça? Um cigarro?... Eu trago{268} fósforos. Pois êste José Matias foi um homem desconsolador para quem, como eu, na vida ama a evolução lógica e pretende que a espiga nasça coerentemente do grão. Em Coímbra sempre o consideramos como uma alma escandalosamente banal. Para êste juizo concorria talvez a sua horrenda correcção. Nunca um rasgão brilhante na batina! nunca uma poeira estouvada nos sapatos! nunca um pêlo rebelde do cabelo ou do bigode fugindo daquele rígido alinho que nos desolava! Alêm disso, na nossa ardente geração, êle foi o único intelectual que não rugiu com as misérias da Polónia; que leu sem palidez ou pranto as Contemplações; que permaneceu insensível ante a ferida de Garibaldi! E todavia, nesse José Matias, nenhuma secura ou dureza ou egoismo ou desafabilidade! Pelo contrário! Um suave camarada, sempre cordial, e mansamente risonho. Toda a sua inabalável quietação parecia provir duma imensa superficialidade sentimental. E, nesse tempo, não foi sem razão e propriedade que nós alcunhamos aquele môço tam macio, tam louro e tam ligeiro, de Matias-Coração-de-Esquilo. Quando se formou, como lhe morrera o pai, depois a mãe, delicada e linda senhora de quem herdara cincoenta contos, partiu para Lisboa, alegrar a solidão dum tio que o adorava, o general Visconde de Garmilde. O meu{269} amigo sem dúvida se lembra dessa perfeita estampa de general clássico, sempre de bigodes terríficamente encerados, as calças côr de flor de alecrim desesperadamente esticadas pelas presilhas sôbre as botas coruscantes, e o chicote debaixo do braço com a ponta a tremer, ávida de vergastar o Mundo! Guerreiro grotesco e deliciosamente bom... O Garmilde morava então em Arroios, numa casa antiga de azulejos, com um jardim, onde êle cultivava apaixonadamente canteiros soberbos de dálias. Êsse jardim subia muito suavemente até ao muro coberto de hera que o separava de outro jardim, o largo e belo jardim de rosas do Conselheiro Matos Miranda, cuja casa, com um arejado terraço entre dois torreõsinhos amarelos, se erguia no cimo do outeiro e se chamava a casa da «Parreira». O meu amigo conhece (pelo menos de tradição, como se conhece Helena de Troia ou Inês de Castro) a formosa Elisa Miranda, a Elisa da Parreira... Foi a sublime beleza romântica de Lisboa, nos fins da Regeneração. Mas realmente Lisboa apenas a entrevia pelos vidros da sua grande caleche, ou nalguma noite de iluminação do Passeio Público entre a poeira e a turba, ou nos dois bailes da Assembleia do Carmo de que o Matos Miranda era um director venerado. Por gôsto borralheiro de provinciana, ou por pertencer{270} àquela burguesia séria que nesses tempos, em Lisboa, ainda conservava os antigos hábitos severamente encerrados, ou por imposição paternal do marido, já diabético e com sessenta anos—a Deusa raramente emergia de Arroios e se mostrava aos mortais. Mas quem a viu, e com facilidade constante, quási irremediavelmente, logo que se instalou em Lisboa, foi o José Matias—porque, jazendo o palacete do general na falda da colina, aos pés do jardim e da casa da Parreira, não podia a divina Elisa assomar a uma janela, atravessar o terraço, colhêr uma rosa entre as ruas de buxo, sem ser deliciosamente visível, tanto mais que nos dois jardins assoalhados nenhuma árvore espalhava a cortina da sua rama densa. O meu amigo de-certo trauteou, como todos trauteamos, aqueles versos gastos, mas imortais:

Era no outono, quando a imagem tua
Á luz da lua...

Pois, como nessa estrofe, o pobre José Matias, ao regressar da praia da Ericeira em outubro, no outono, avistou Elisa Miranda, uma noite no terraço, à luz da lua! O meu amigo nunca contemplou aquele precioso tipo de encanto Lamartiniano. Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira{271} ao vento. Cabelos negros, lustrosos e ricos, em bandós ondeados. Uma carnação de camélia muito fresca. Olhos negros, líquidos, quebrados, tristes, de longas pestanas... Ah! meu amigo, até eu, que já então laboriosamente anotava Hegel, depois de a encontrar numa tarde de chuva esperando a carruagem à porta do Seixas, a adorei durante três exaltados dias e lhe rimei um soneto! Não sei se o José Matias lhe dedicou sonetos. Mas todos nós, seus amigos, percebemos logo o forte, profundo, absoluto amor que concebera, desde a noite de outono, à luz da lua, aquele coração, que em Coímbra considerávamos de esquilo!

Bem compreende que homem tam comedido e quieto não se exalou em suspiros públicos. Já, porêm, no tempo de Aristóteles, se afirmava que amor e fumo não se escondem; e do nosso cerrado José Matias o amor começou logo a escapar, como o fumo leve através das fendas invisíveis duma casa fechada que arde terrívelmente. Bem me recordo duma tarde que o visitei em Arroios, depois de voltar do Alentejo. Era um domingo de Julho. Êle ia jantar com uma tia-avó, uma D. Mafalda Noronha, que vivia em Bemfica, na quinta dos Cedros, onde habitualmente jantavam tambêm aos domingos o Matos Miranda e a divina Elisa. Creio mesmo que só nessa casa ela e o José Matias se encontravam,{272} sobretudo com as facilidades que oferecem pensativas alamedas e retiros de sombra. As janelas do quarto do José Matias abriam sôbre o seu jardim e sôbre o jardim dos Mirandas: e, quando entrei, êle ainda se vestia, lentamente. Nunca admirei, meu amigo, face humana aureolada por felicidade mais segura e serena! Sorria iluminadamente quando me abraçou, com um sorriso que vinha das profundidades da alma iluminada; sorria ainda deliciadamente emquanto eu lhe contei todos os meus desgostos no Alentejo: sorriu depois estáticamente, aludindo ao calor e enrolando um cigarro distraído; e sorriu sempre, enlevado, a escolher na gaveta da cómoda, com escrúpulo religioso, uma gravata de sêda branca. E a cada momento, irresistivelmente, por um hábito já tam inconsciente como o pestanejar, os seus olhos risonhos, calmamente enternecidos, se voltavam para as vidraças fechadas... De sorte que, acompanhando aquele raio ditoso, logo descobri, no terraço da casa da Parreira, a divina Elisa, vestida de claro, com um chapéu branco, passeando preguiçosamente, calçando pensativamente as luvas, e espreitando tambêm as janelas do meu amigo, que um lampejo oblíquo do sol ofuscava de manchas de oiro. O José Matias no entanto conversava, antes murmurava, através do sorriso perene, coisas afáveis{273} e dispersas. Toda a sua atenção se concentrara diante do espelho, no alfinete de coral e pérola para prender a gravata, no colete branco que abotoava e ajustava com a devoção com que um padre novo, na exaltação cândida da primeira missa, se reveste da estola e do amito para se acercar do altar. Nunca eu vira um homem deitar, com tam profundo êxtasi, água de Colónia no lenço! E depois de enfiar a sobrecasaca, de lhe espetar uma soberba rosa, foi com inefável emoção, sem reter um delicioso suspiro, que abriu largamente, solenemente, as vidraças! Introibo ad altarem Deæ! Eu permaneci discretamente enterrado no sofá. E, meu caro amigo, acredite! invejei aquele homem à janela, imóvel, hirto na sua adoração sublime, com os olhos, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, na branca mulher calçando as luvas claras, e tam indiferente ao Mundo como se o Mundo fôsse apenas o ladrilho que ela pisava e cobria com os pés!

E êste enlêvo, meu amigo, durou dez anos, assim esplêndido, puro, distante e imaterial! Não ria... De-certo se encontravam na quinta de D. Mafalda: de-certo se escreviam, e transbordantemente, atirando as cartas por cima do muro que separava os dois quintais: mas nunca, por cima das heras dêsse muro, procuraram a rara delícia duma conversa roubada ou a delícia ainda mais perfeita dum silêncio{274} escondido na sombra. E nunca trocaram um beijo... Não duvide! Algum apêrto de mão fugidio e sôfrego, sob os arvoredos da D. Mafalda, foi o limite exaltadamente extremo, que a vontade lhes marcou ao desejo. O meu amigo não compreende como se mantiveram assim dois frágeis corpos, durante dez anos, em tam terrível e mórbido renunciamento... Sim, de-certo lhes faltou, para se perderem, uma hora de segurança ou uma portinha no muro. Depois a divina Elisa vivia realmente num mosteiro, em que ferrolhos e grades eram formados pelos hábitos rígidamente reclusos do Matos Miranda, diabético e tristonho. Mas, na castidade dêste amor, entrou muita nobreza moral e finura superior de sentimento. O amor espiritualiza o homem—e materializa a mulher. Essa espiritualização era fácil ao José Matias, que (sem nós desconfiarmos) nascera desvairadamente espiritualista; mas a humana Elisa encontrou tambêm um gôzo delicado nessa ideal adoração de monge, que nem ousa roçar, com os dedos trémulos e embrulhados no rozário, a túnica da Virgem sublimada. Êle, sim! êle gozou nesse amor transcendentemente desmaterializado um encanto sobreumano. E durante dez anos, como o Ruy-Blas do vélho Hugo, caminhou, vivo e deslumbrado, dentro do seu sonho radiante, sonho em que{275} Elisa habitou realmente dentro da sua alma, numa fusão tam absoluta que se tornou consubstancial com o seu ser! ¿Acreditará o meu amigo que êle abandonou o charuto, mesmo passeando solitariamente a cavalo pelos arredores de Lisboa, logo que descobrira na quinta de D. Mafalda, uma tarde, que o fumo perturbava Elisa?

E esta presença real da divina criatura no seu ser criou no José Matias modos novos, estranhos, derivando da alucinação. Como o Visconde de Garmilde jantava cedo, à hora vernácula do Portugal antigo, José Matias ceava, depois de S. Carlos, naquele delicioso e saudoso Café Central, onde o linguado parecia frito no céu, e o Colares no céu engarrafado. Pois nunca ceava sem serpentinas profusamente acesas e a mesa juncada de flores. Porque? Porque Elisa tambêm ali ceava invisível. Daí êsses silêncios banhados num sorriso religiosamente atento... Porque? Porque a estava sempre escutando! Ainda me lembro dêle arrancar do quarto três gravuras clássicas de Faunos ousados e Ninfas rendidas... Elisa pairava idealmente naquele ambiente; e êle purificava as paredes, que mandou forrar de sêdas claras. O amor arrasta ao luxo, sobretudo amor de tam elegante idealismo: e o José Matias prodigalizou com esplendor o luxo que ela partilhava. Decentemente não podia andar{276} com a imagem de Elisa numa tipóia de praça, nem consentir que a augusta imagem roçasse pelas cadeiras de palhinha da plateia de S. Carlos. Montou, portanto, carruagens dum gôsto sóbrio e puro: e assinou um camarote na Ópera, onde instalou, para ela, uma poltrona pontifical, de setim branco, bordado a êstrelas de oiro.

Alêm disso como descobrira a generosidade de Elisa, logo se tornou congénere e suntuosamente generoso: e ninguêm existiu então em Lisboa que espalhasse, com facilidade mais risonha, notas de cem mil réis. Assim desbaratou, rápidamente, sessenta contos com o amor daquela mulher a quem nunca déra uma flor!

¿E, durante êsse tempo, o Matos Miranda? Meu amigo, o bom Matos Miranda não desmanchava nem a perfeição, nem a quietação desta felicidade! ¿Tam absoluto seria o espiritualismo do José Matias que apenas se interessasse pela alma de Elisa, indiferente às submissões do seu corpo, invólucro inferior e mortal?... Não sei. Verdade seja! aquele digno diabético, tam grave, sempre de cachené de lã escura, com as suas suíças grisalhas, os seus ponderosos óculos de oiro, não sugeria ideas inquietadoras de marido ardente, cujo ardor, fatalmente e involuntariamente, se partilha e abrasa. Todavia nunca compreendi,{277} eu, Filósofo, aquela consideração, quási carinhosa, do José Matias pelo homem que, mesmo desinteressadamente, podia por direito, por costume, contemplar Elisa desapertando as fitas da saia branca!... ¿Haveria ali reconhecimento por o Miranda ter descoberto numa remota rua de Setúbal (onde José Matias nunca a descortinaria) aquela divina mulher, e por a manter em confôrto, sólidamente nutrida, finamente vestida, transportada em caleches de macias molas? ¿Ou recebera o José Matias aquela costumada confidência—«não sou tua, nem dêle»—que tanto consola do sacrifício porque tanto lisonjeia o egoismo?... Não sei. Mas com certeza, êste seu magnânimo desdêm pela presença corporal do Miranda no templo, onde habitava a sua Deusa, dava à felicidade de José Matias uma unidade perfeita, a unidade dum cristal que por todos os lados rebrilha, igualmente puro, sem arranhadura ou mancha. E esta felicidade, meu amigo, durou dez anos... Que escandaloso luxo para um mortal!

Mas um dia, a terra, para o José Matias, tremeu toda, num terramoto de incomparável espanto. Em Janeiro ou Fevereiro de 1871, o Miranda, já debilitado pela diabetes, morreu com uma pneumonia. Por estas mesmas ruas, numa pachorrenta tipóia de praça, acompanhei o seu entêrro numeroso, rico, com Ministros,{278} porque o Miranda pertencia às Instituições. E depois, aproveitando a tipóia, visitei o José Matias em Arroios, não por curiosidade perversa, nem para lhe levar felicitações indecentes, mas para que, naquele lance deslumbrador, êle sentisse ao lado a fôrça moderadora da Filosofia... Encontrei porêm com êle um amigo mais antigo e confidencial, aquele brilhante Nicolau da Barca, que já conduzi tambêm a êste cemitério, onde agora jazem, debaixo de lápides, todos aqueles camaradas com quem levantei castelos nas nuvens... O Nicolau chegara da Velosa, da sua quinta de Santarêm, de madrugada, reclamado por um telegrama do Matias. Quando entrei, um criado atarefado arranjava duas malas enormes. O José Matias abalava nessa noite para o Pôrto. Já envergara mesmo um fato de viagem, todo negro, com sapatos de couro amarelo: e depois de me sacudir a mão, emquanto o Nicolau remexia um grog, continuou vagando pelo quarto, calado, como embaçado, com um modo que não era emoção, nem alegria púdicamente disfarçada, nem surprêsa do seu destino bruscamente sublimado. Não! se o bom Darwin nos não ilude no seu livro da Expressão das Emoções, o José Matias, nessa tarde, só sentia e só exprimia embaraço! Em frente, na casa da Parreira, todas as janelas permaneciam{279} fechadas sob a tristeza da tarde cinzenta. E todavia surpreendi o José Matias atirando para o terraço, rápidamente, um olhar em que transparecia inquietação, ansiedade, quasi terror! Como direi? Aquele é o olhar que se resvala para a jaula mal segura onde se agita uma leôa! Num momento em que êle entrara na alcova, murmurei ao Nicolau, por cima do grog:—«O Matias faz perfeitamente em ir para o Pôrto...» Nicolau encolheu os ombros:—«Sim, pensou que era mais delicado... Eu aprovei. Mas só durante os meses de luto pesado...» Às sete horas acompanhamos o nosso amigo à estação de Santa Apolónia. Na volta, dentro do copé que uma grande chuva batia, filosofamos. Eu sorria contente:—«Um ano de luto, e depois muita felicidade e muitos filhos... É um poema acabado!»—O Nicolau acudiu sério:—«E acabado numa deliciosa e suculenta prosa. A divina Elisa fica com toda a sua divindade e a fortuna do Miranda, uns dez ou dôze contos de renda... Pela primeira vez na nossa vida contemplamos, tu e eu, a virtude recompensada!»

 

 

Meu caro amigo! os meses cerimoniais de luto passaram, depois outros, e José Matias não se arredou do Pôrto. Nesse Agosto o encontrei{280} eu instalado fundamentalmente no Hotel Francfort, onde entretinha a melancolia dos dias abrasados, fumando (porque voltara ao tabaco), lendo romances de Júlio Verne, e bebendo cerveja gelada até que a tarde refrescava e êle se vestia, se perfumava, se floria para jantar na Foz.

E a-pesar de se acercar o bemdito remate do luto e da desesperada espera, não notei no José Matias nem alvoroço elegantemente reprimido, nem revolta contra a lentidão do tempo, vélho por vezes tam moroso e trôpego... Pelo contrário! Ao sorriso de radiosa certeza, que nesses anos o iluminara com um nimbo de beatitude, sucedera a seriedade carregada, toda em sombra e rugas, de quem se debate numa dúvida irresolúvel, sempre presente, roedora e dolorosa. ¿Quer que lhe diga? Nesse verão, no Hotel Francfort, sempre me pareceu que o José Matias, a cada instante da sua vida acordada, mesmo emborcando a fresca cerveja, mesmo calçando as luvas ao entrar para a caleche que o levava à Foz, angustiadamente perguntava à sua consciência:—«Que hei-de fazer? Que hei-de fazer?»—E depois, uma manhã, ao almôço, realmente me assombrou, exclamando ao abrir o jornal, com um assomo de sangue na face: «O quê! Já são 29 de Agosto? Santo Deus... Já o fim de Agosto!...»{281}

Voltei a Lisboa, meu amigo. O inverno passou, muito sêco e muito azul. Eu trabalhei nas minhas Origens do Utilitarismo. Um domingo, no Rocio, quando já se vendiam cravos nas tabacarias, avistei dentro dum copé a divina Elisa, com plumas roxas no chapéu. E nessa semana encontrei no meu Diário Ilustrado a notícia curta, quási tímida, do casamento da Snr.ª D. Elisa Miranda... ¿Com quem, meu amigo?—Com o conhecido propriétário, o Snr. Francisco Tôrres Nogueira!...

O meu amigo cerrou aí o punho, e bateu na coxa espantado. Eu tambêm cerrei os punhos ambos, mas para os levantar ao Céu onde se julgam os feitos da Terra, e clamar furiosamente, aos urros, contra a falsidade, a inconstância ondeante e pérfida, toda a enganadora torpeza das mulheres, e daquela especial Elisa cheia de infâmia entre as mulheres! Atraiçoar à pressa, atabalhoadamente, apenas findara o luto negro, aquele nobre, puro, intelectual Matias! e o seu amor de dez anos, submisso e sublime!...

E depois de apontar os punhos para o Céu ainda os apertava na cabeça, gritando:—«Mas porquê? porquê?»—Por amor? Durante anos ela amara enlevadamente êste môço, e dum amor que se não desiludira nem se fartara, porque permanecia suspenso, imaterial, insatisfeito. Por ambição? Tôrres Nogueira era{282} um ocioso amável como José Matias, e possuia em vinhas hipotecadas os mesmos cincoenta ou sessenta contos que o José Matias herdara agora do tio Garmilde em terras excelentes e livres. Então porquê? Certamente porque os grossos bigodes negros do Tôrres Nogueira apeteciam mais à sua carne, do que o buço louro e pensativo do José Matias! Ah! bem ensinara S. João Crisólogo que a mulher é um monturo de impureza, erguido à porta do Inferno!

Pois, meu amigo, quando eu assim rugia, encontro uma tarde na rua do Alecrim o nosso Nicolau da Barca, que salta da tipóia, me empurra para um portal, agarra excitadamente no meu pobre braço, e exclama engasgado:—«Já sabes? Foi o José Matias que recusou! Ela escreveu, esteve no Pôrto, chorou... Êle nem consentiu em a ver! Não quis casar, não quer casar!» Fiquei trespassado.—«E então ela...»—«Despeitada, fortemente cercada pelo Tôrres, cansada da viuvice, com aqueles bélos trinta anos em botão, que diabo! coitada, casou!» Eu ergui os braços até a abóbada do pátio:—«¿Mas então êsse sublime amor do José Matias?». O Nicolau, seu íntimo e confidente, jurou com irrecusável segurança:—«É o mesmo sempre! Infinito, absoluto... Mas não quer casar!»—Ambos nos olhamos, e depois ambos nos separamos, encolhendo{283} os ombros, com aquele assombro resignado que convêm a espíritos prudentes perante o Incognoscível. Mas eu, Filósofo, e portanto espírito imprudente, toda essa noite esfuraquei o acto do José Matias com a ponta duma Psicologia que expressamente aguçara:—e já de madrugada, estafado, concluí, como se conclui sempre em Filosofia, que me encontrava diante duma Causa Primária, portanto impenetrável, onde se quebraria, sem vantagem para êle, para mim, ou para o Mundo, a ponta do meu Instrumento!

Depois a divina Elisa casou e continuou habitando a Parreira com o seu Tôrres Nogueira, no confôrto e sossêgo que já gozara com o seu Matos Miranda. No meado do verão José Matias recolheu do Pôrto a Arroios, ao casarão do tio Garmilde, onde reocupou os seus antigos quartos, com as varandas para o jardim, já florido de dálias que ninguêm tratava. Veio Agosto, como sempre em Lisboa silencioso e quente. Aos domingos José Matias jantava com D. Mafalda de Noronha, em Bemfica, solitariamente—porque o Tôrres Nogueira não conhecia aquela venerada senhora da Quinta dos Cedros. A divina Elisa, com vestidos claros, passeava à tarde no jardim entre as roseiras. De sorte que a única mudança, naquele doce canto de Arroios, parecia ser o Matos Miranda no seu{284} belo jazigo dos Prazeres, todo de mármore—e o Tôrres Nogueira no leito excelente de Elisa.

Havia, porêm, uma tremenda e dolorosa mudança—a do José Matias! ¿Adivinha o meu amigo como êsse desgraçado consumia os seus estéreis dias? Com os olhos, e a memória, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, nas janelas, nos jardins da Parreira! Mas agora não era de vidraças largamente abertas, em aberto êxtasi, com o sorriso de segura beatitude: era por trás das cortinas fechadas, através duma escassa fenda, escondido, surripiando furtivamente os brancos sulcos do vestido branco, com a face toda devastada pela angústia e pela derrota. ¿E compreende porque sofria assim, êste pobre coração? Certamente porque Elisa, desdenhada pelos seus braços fechados, correra logo, sem luta, sem escrúpulos, para outros braços, mais acessíveis e prontos... Não, meu amigo! E note agora a complicada subtileza desta paixão. O José Matias permanecia devotamente crente de que Elisa, na profundidade da sua alma, nesse sagrado fundo espiritual onde não entram as imposições das conveniências, nem as decisões da razão pura, nem os ímpetos do orgulho, nem as emoções da carne—o amava, a êle, únicamente a êle, e com um amor que não deperecera, não se alterara, floria em todo{285} o seu viço, mesmo sem ser regado ou tratado, como a antiga Rosa Mística! O que o torturava, meu amigo, o que lhe cavara longas rugas em curtos meses, era que um homem, um macho, um bruto, se tivesse apoderado daquela mulher que era sua! e que do modo mais santo e mais socialmente puro, sob o patrocínio enternecido da Igreja e do Estado, lambuzasse com os rijos bigodes negros, à farta, os divinos lábios que êle nunca ousara roçar, na supersticiosa reverência e quási no terror da sua divindade! Como lhe direi?... O sentimento dêste extraordinário Matias era o de um monge, prostrado ante uma Imagem da Virgem, em transcendente enlêvo—quando de repente um bestial sacrílego trepa ao altar, e ergue obscenamente a túnica da Imagem! O meu amigo sorri... ¿E então o Matos Miranda? Ah! meu amigo! êsse era diabético, e grave, e obeso, e já existia instalado na Parreira, com a sua obesidade e a sua diabetes, quando êle conhecera Elisa e lhe dera para sempre vida e coração. E o Tôrres Nogueira, êsse, rompera brutalmente através do seu puríssimo amor, com os negros bigodes, e os carnudos braços, e o rijo arranque dum antigo pegador de toiros, e empolgara aquela mulher—a quem revelara talvez o que é um homem!

Mas, com os demónios! essa mulher êle{286} a recusara, quando ela se lhe oferecia, na frescura e na grandeza dum sentimento que nenhum desdêm ainda ressequira ou abatera. Que quer?... É a espantosa tortuosidade espiritual dêste Matias! Ao cabo duns meses êle esquecera, positivamente esquecera essa recusa afrontosa, como se fôra um leve desencontro de interêsses materiais ou sociais, passado há meses, no Norte, e a que a distância e o tempo dissipavam a realidade e a amargura leve! E agora, aqui em Lisboa, com as janelas de Elisa diante das suas janelas e as rosas dos dois jardins unidos rescendendo na sombra, a dor presente, a dor real, era que êle amara sublimemente uma mulher, e que a colocara entre as estrêlas para mais pura adoração, e que um bruto moreno, de bigodes negros, arrancara essa mulher de entre as estrêlas e a arremessara para a cama!

¿Enredado caso, hein, meu amigo? Ah! muito filosofei sôbre êle, por dever de filósofo! E concluí que o Matias era um doente, atacado de hiper-espiritualismo, duma inflamação violenta e putrida do espiritualismo, que receara apavoradamente as materialidades do casamento, as chinelas, a pele pouco fresca ao acordar, um ventre enorme durante seis meses, os meninos berrando no berço molhado... E agora rugia de furor e tormento, porque certo materialão, ao lado, se{287} prontificara a aceitar Elisa em camisola de lã. Um imbecil?... Não, meu amigo! um ultra-romântico, loucamente alheio às realidades fortes da vida, que nunca suspeitou que chinelas e cueiros sujos de meninos são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor.

¿E sabe o meu amigo o que exacerbou, mais furiosamente, êste tormento? É que a pobre Elisa mostrava por êle o antigo amor! Que lhe parece? Infernal, hein?... Pelo menos se não sentia o antigo amor intacto na sua essência, forte como outrora e único, conservava pelo pobre Matias uma irresistível curiosidade e repetia os gestos dêsse amor... Talvez fôsse apenas a fatalidade dos jardins vizinhos! Não sei. Mas logo desde Setembro, quando o Tôrres Nogueira partiu para as suas vinhas de Carcavelos a assistir à vindima, ela recomeçou da borda do terraço, por sôbre as rosas e as dálias abertas, aquela doce remessa de doces olhares com que durante dez anos extasiara o coração do José Matias.

Não creio que se escrevessem por cima do muro do jardim, como sob o regímen paternal do Matos Miranda... O novo senhor, o homem robusto da bigodeira negra, impunha à divina Elisa, mesmo de longe, de entre as vinhas de Carcavelos, retraímento e prudência. E acalmada por aquele marido, môço e{288} forte, menos sentiria agora a necessidade de algum encontro discreto na sombra tépida da noite, mesmo quando a sua elegância moral e o rígido idealismo do José Matias consentissem em aproveitar uma escada contra o muro... De resto, Elisa era fundamentalmente honesta; e conservava o respeito sagrado do seu corpo, por o sentir tam belo e cuidadosamente feito por Deus—mais do que da sua alma. E quem sabe?... Talvez a adorável mulher pertencesse à bela raça daquela marquesa italiana, a Marquesa Júlia de Malfieri, que conservava dois amorosos ao seu doce serviço, um poeta para as delicadezas românticas e um cocheiro para as necessidades grosseiras.

Emfim, meu amigo, não psicologuemos mais sôbre esta viva, atrás do morto que morreu por ela! O facto foi que Elisa e o seu amigo insensivelmente recaíram na vélha união ideal através dos jardins em flor. E em Outubro, como o Tôrres Nogueira continuava a vindimar em Carcavelos, o José Matias, para contemplar o terraço da Parreira, já abria de novo as vidraças, larga e estáticamente!

Parece que um tam estreme espiritualista, reconquistando a idealidade do antigo amor, devia reentrar tambêm na antiga felicidade perfeita. Êle reinava na alma imortal de Elisa:—¿que importava que outro se ocupasse do seu corpo mortal? Mas não! o pobre môço{289} sofria, angustiadamente. E, para sacudir a pungência dêstes tormentos, findou, êle tam sereno, duma tam doce harmonia de modos, por se tornar um agitado. Ah! meu amigo, que redemoínho e estrépito de vida! Desesperadamente, durante um ano, remexeu, aturdiu, escandalizou Lisboa! São dêsse tempo algumas das suas extravagâncias lendárias... ¿Conhece a da ceia?... Uma ceia oferecida a trinta ou quarenta mulheres das mais torpes e das mais sujas, apanhadas pelas negras vielas do Bairro-Alto e da Mouraria, que depois mandou montar em burros, e gravemente, melancólicamente, posto na frente, sôbre um grande cavalo branco, com um imenso chicote, conduziu aos altos da Graça, para saudar a aparição do sol!

Mas todo êste alarido não lhe dissipou a dor—e foi então que, nesse inverno, começou a jogar e a beber! Todo o dia se encerrava em casa (certamente por trás das vidraças, agora que Tôrres Nogueira regressara das vinhas) com olhos e alma cravados no terraço fatal; depois à noite, quando as janelas de Elisa se apagavam, saía numa tipóia, sempre a mesma, a tipóia do Gago, corria à roleta do Bravo, depois ao club do «Cavalheiro», onde jogava frenéticamente até a tardia hora de cear, num gabinete de restaurante, com molhos de velas acesas, e o Colares, e o Champanhe,{290} e o Conhaque correndo em jorros desesperados.

E esta vida, espicaçada pelas Fúrias, durou anos, sete anos! Todas as terras que lhe deixara o tio Garmilde se foram, largamente jogadas e bebidas: e só lhe restava o casarão de Arroios e o dinheiro apressado porque o hipotecara. Mas, súbitamente, desapareceu de todos os antros do vinho e de jôgo. E soubemos que o Tôrres Nogueira estava morrendo com uma anasarca!

Por êsse tempo, e por causa dum negócio do Nicolau da Barca que me telegrafara ansiosamente da sua quinta de Santarêm (negócio embrulhado, duma letra) procurei o José Matias em Arroios, às dez horas, numa noite quente de Abril. O criado, emquanto me conduzia pelo corredor mal alumiado, já desadornado das ricas arcas e talhas da Índia do vélho Garmilde, confessou que S. Ex.ª não acabara de jantar... E ainda me lembro, com um arrepio, da impressão desolada que me deu o desgraçado! Era no quarto que abria sôbre os dois jardins. Diante duma janela, que as cortinas de damasco cerravam, a mesa resplandecia, com duas serpentinas, um cêsto de rosas brancas, e algumas das nobres pratas do Garmilde: e ao lado, todo estendido numa poltrona, com o colete branco desabotoado, a face lívida descaída sôbre o peito, um copo vazio na mão{291} inerte, o José Matias parecia adormecido ou morto.

Quando lhe toquei no ombro, ergueu num sobressalto a cabeça, toda despenteada:—«¿Que horas são?»—Apenas lhe gritei, num gesto alegre, para o despertar, que era tarde, que eram dez, encheu precipitadamente o copo, da garrafa mais chegada, de vinho branco, e bebeu lentamente, com a mão a tremer, a tremer... Depois, arredando os cabelos da testa húmida:—«¿Então que há de novo?»—Esgazeado, sem compreender, escutou, como num sonho, o recado que lhe mandava o Nicolau. Por fim, com um suspiro, remexeu uma garrafa de Champanhe dentro do balde em que ela gelava, encheu outro copo, murmurando:—«Um calor... Uma sêde!...» Mas não bebeu: arrancou o corpo pesado à poltrona de vêrga, e forçou os passos mal firmes para a janela, a que abriu violentamente as cortinas, depois a vidraça... E ficou hirto, como colhido pelo silêncio e escuro sossêgo da noite estrelada. Eu espreitei, meu amigo! Na casa da Parreira duas janelas brilhavam, fortemente alumiadas, abertas à aragem. E essa claridade viva envolvia uma figura branca, nas longas pregas de um roupão branco, parada à beira do terraço, como esquecida numa contemplação. Era Elisa, meu amigo! Por trás, no fundo do quarto claro, o marido certamente arquejava, na opressão{292} da anasarca. Ela, imóvel, repousava, mandando um doce olhar, talvez um sorriso, ao seu doce amigo. O miserável, fascinado, sem respirar, sorvia o encanto daquela visão bemfazeja. E entre êles rescendiam, na moleza da noite, todas as flores dos dois jardins... Súbitamente Elisa recolheu, à pressa, chamada por algum gemido ou impaciência do pobre Tôrres. E as janelas logo se fecharam, toda a luz e vida se sumiram na casa da Parreira.

Então José Matias, com um soluço despedaçado, de transbordante tormento, cambaleou, tam ansiadamente se agarrou à cortina que a rasgou, e tombou desamparado nos braços que lhe estendi, e em que o arrastei para a cadeira, pesadamente, como a um morto ou a um bêbado. Mas, volvido um momento, com espanto meu, o extraordinário homem descerra os olhos, sorri num lento e inerte sorriso, murmura quási serenamente:—«É o calor... Está um calor! ¿Você não quer tomar chá?»

Recusei e abalei—emquanto êle, indiferente à minha fuga, estendido na poltrona, acendia trémulamente um imenso charuto.

 

 

Santo Deus! já estamos em Santa Isabel! Como êstes lagóias vão arrastando depressa o pobre José Matias para o pó e para o verme{293} final! Pois, meu amigo, depois dessa curiosa noite, o Tôrres Nogueira morreu. A divina Elisa, durante o novo luto, recolheu à quinta duma cunhada tambêm viuva, à «Côrte Moreira», ao pé de Beja. E o José Matias inteiramente se sumiu, se evaporou, sem que me revoassem novas dêle, mesmo incertas—tanto mais que o íntimo por quem as conheceria, o nosso brilhante Nicolau da Barca, partira para a ilha da Madeira, com o seu derradeiro pedaço de pulmão, sem esperança, por dever clássico, quási dever social, de tísico.

Todo êsse ano, tambêm, andei enfronhado no meu Ensaio dos Fenómenos afectivos. Depois, um dia, no comêço do verão, descendo pela rua de S. Bento, com os olhos levantados, a procurar o n.º 214, onde se catalogava a livraria do Morgado de Azemel, ¿quem avisto eu à varanda duma casa nova e de esquina? A divina Elisa, metendo fôlhas de alface na gaiola de um canário! E bela, meu amigo! mais cheia e mais harmoniosa, toda madura, e suculenta, e desejável, a-pesar de ter festejado em Beja os seus quarenta e dois anos! Mas aquela mulher era da grande raça de Helena que, quarenta anos tambêm depois do cêrco de Troia, ainda deslumbrava os homens mortais e os Deuses imortais. E, curioso acaso! logo nessa tarde, pelo Sêco, o João Sêco da Biblioteca, que catalogava a livraria do Morgado,{294} conheci a nova história desta Helena admirável.

A divina Elisa tinha agora um amante... E únicamente por não poder, com a sua costumada honestidade, possuir um legítimo e terceiro marido. O ditoso môço que ela adorava era com efeito casado... Casado em Beja com uma espanhola que, ao cabo dum ano dêsse casamento e de outros requebros, partira para Sevilha, passar devotamente a Semana Santa, e lá adormecera nos braços dum riquíssimo criador de gado. O marido, pacato apontador de Obras-Públicas, continuara em Beja, onde tambêm vagamente ensinava um vago desenho... Ora uma das suas discípulas era a filha da senhora da «Côrte Moreira»: e aí na quinta, emquanto êle guiava o esfuminho da menina, Elisa o conheceu e o amou, com uma paixão tam urgente que o arrancou precipitadamente às Obras Públicas, e o arrastou a Lisboa, cidade mais propícia do que Beja a uma felicidade escandalosa, e que se esconde. O João Sêco é de Beja, onde passara o Natal; conhecia perfeitamente o apontador, as senhoras da «Côrte Moreira»; e compreendeu o romance, quando das janelas dêsse n.º 214, onde catalogava a Livraria do Azemel, reconheceu Elisa na varanda da esquina, e o apontador enfiando regaladamente o portão, bem vestido, bem calçado, de luvas claras, com{295} aparência de ser infinitamente mais ditoso naquelas obras particulares do que nas Públicas.

E dessa mesma janela do 214 o conheci eu tambêm, o apontador! Belo môço, sólido, branco, de barba escura, em excelentes condições de quantidade (e talvez mesmo de qualidade) para encher um coração viuvo, e portanto «vazio», como diz a Bíblia. Eu freqùentava êsse n.º 214, interessado no catálogo da Livraria, porque o Morgado de Azemel possuia, pelo irónico acaso das heranças, uma colecção incomparável dos Filósofos do século XVIII. E passadas semanas, saíndo dêsses livros uma noite (o João Sêco trabalhava de noite) e parando adiante, à beira dum portal aberto, para acender o charuto, enxergo à luz tremente do fósforo, metido na sombra, o José Matias! Mas que José Matias, meu caro amigo! Para o considerar mais detidamente, raspei outro fósforo. Pobre José Matias! Deixara crescer a barba, uma barba rara, indecisa, suja, mole como cotão amarelado: deixara crescer o cabelo, que lhe surdia em farripas sêcas de sob um vélho chapéu côco: mas todo êle, no resto, parecia diminuido, minguado, dentro duma quinzena de mescla enxovalhada, e dumas calças pretas, de grandes bolsos, onde escondia as mãos com o gesto tradicional, tam infinitamente triste, da miséria ociosa. Na{296} espantada lástima que me tomou, apenas balbuciei:—«Ora esta! Você! ¿Então que é feito?»—E êle, com a sua mansidão polida, mas secamente, para se desembaraçar, e numa voz que a aguardente enrouquecera: «Por aqui, à espera de um sujeito».—Não insisti, segui. Depois, adiante, parando, verifiquei o que num relance adivinhara—que o portal negro ficava em frente ao prédio novo e às varandas de Elisa!

Pois, meu amigo, três anos viveu o José Matias encafuado naquele portal!

 

 

Era um dêsses pátios da Lisboa antiga, sem porteiro, sempre escancarados, sempre sujos, cavernas laterais da rua, de onde ninguêm escorraça os escondidos da miséria ou da dor. Ao lado havia uma taberna. Infalivelmente, ao anoitecer, o José Matias descia a rua de S. Bento, colado aos muros, e, como uma sombra, mergulhava na sombra do portal. A essa hora já as janelas de Elisa luziam, de inverno embaciadas pela névoa fina, de verão ainda abertas e arejando no repouso e na calma. E para elas, imóvel, com as mãos nas algibeiras, o José Matias se quedava em contemplação. Cada meia-hora, subtilmente, enfiava para a taberna. Copo de vinho, copo de aguardente;—e,{297} de mansinho, recolhia à negrura do portal, ao seu êxtasi. Quando as janelas de Elisa se apagavam, ainda através da longa noite, mesmo das negras noites de inverno—encolhido, transido, a bater as solas rôtas no lagedo, ou sentado ao fundo, nos degraus da escada—ficava esmagando os olhos turvos na fachada negra daquela casa, onde a sabia dormindo com o outro!

Ao princípio, para fumar um cigarro apressado, trepava até ao patamar deserto, a esconder o lume que o denunciaria no seu esconderijo. Mas depois, meu amigo, fumava incessantemente, colado à ombreira, puxando o cigarro com ânsia, para que a ponta rebrilhasse, o alumiasse! ¿E percebe porquê, meu amigo?... Porque Elisa já descobrira que, dentro daquele portal, a adorar submissamente as suas janelas, com a alma de outrora, estava o seu pobre José Matias!...

¿E acreditará o meu amigo que então, todas as noites, ou por trás da vidraça ou encostada à varanda (com o apontador dentro, estirado no sofá, já de chinelas, lendo o Jornal da Noite) ela se demorava a fitar o portal, muito quieta, sem outro gesto, naquele antigo e mudo olhar do terraço por sôbre as rosas e as dálias? O José Matias percebera, deslumbrado. E agora avivava desesperadamente o lume, como um farol, para guiar{298} na escuridão os amados olhos dela, e lhe mostrar que ali estava, transido, todo seu, e fiel!

De dia nunca êle passava na rua de S. Bento. ¿Como ousaria, com o jaquetão rôto nos cotovelos e as botas cambadas? Porque aquele môço de elegância sóbria e fina tombara na miséria do andrajo. ¿Onde arranjava mesmo, cada dia, os três patacos para o vinho e para a posta de bacalhau nas tabernas? Não sei... Mas louvemos a divina Elisa, meu amigo! Muito delicadamente, por caminhos arredados e astutos, ela, rica, procurara estabelecer uma pensão ao José Matias, mendigo. ¿Situação picante, hein? A grata senhora dando duas mesadas aos seus dois homens—o amante do corpo e o amante da alma! Êle, porêm, adivinhou de onde procedia a pavorosa esmola—e recusou, sem revolta, nem alarido de orgulho, até com enternecimento, até com lágrimas nas pálpebras que a aguardente inflamara!

Mas só com noite muito cerrada ousava descer à rua de S. Bento, e enfiar para o seu portal. ¿E adivinha o meu amigo como êle gastava o dia? A espreitar, a seguir, a farejar o apontador de Obras-Públicas! Sim, meu amigo! uma curiosidade insaciada, frenética, atroz, por aquele homem, que Elisa escolhera!... Os dois anteriores, o Miranda e o Nogueira, tinham entrado na alcova de Elisa, públicamente,{299} pela porta da Igreja, e para outros fins humanos alêm do amor—para possuir um lar, talvez filhos, estabilidade e quietação na vida. Mas êste era meramente o amante, que ela nomeara e mantinha só para ser amada: e nessa união não aparecia outro motivo racional senão que os dois corpos se unissem. Não se fartava, portanto, de o estudar, na figura, na roupa, nos modos, ansioso por saber bem como era êsse homem, que, para se completar, a sua Elisa preferira entre a turba dos homens. Por decência, o apontador morava na outra extremidade da rua de S. Bento, diante do Mercado. E essa parte da rua, onde o não surpreenderiam, na sua pelintrice, os olhos de Elisa, era o paradeiro do José Matias, logo de manhã, para mirar, farejar o homem, quando êle recolhia da casa de Elisa, ainda quente do calor da sua alcôva. Depois não o largava, cautelosamente, como um larápio, rastejando de longe no seu rasto. E eu suspeito que o seguia assim, menos por curiosidade perversa, do que para verificar se, através das tentações de Lisboa, terríveis para um apontador de Beja, o homem conservava o corpo fiel a Elisa. Em serviço da felicidade dela—fiscalizava o amante da mulher que amava!

Requinte furioso de espiritualismo e devoção, meu amigo! A alma de Elisa era a sua e recebia perenemente a adoração perene: e agora{300} queria que o corpo de Elisa não fôsse menos adorado, nem menos lealmente, por aquele a quem ela entregara o corpo! Mas o apontador era fácilmente fiel a uma mulher tam formosa, tam rica, de meias de sêda, de brilhantes nas orelhas, que o deslumbrava. ¿E quem sabe, meu amigo? talvez esta fidelidade, preito carnal à divindade de Elisa, fôsse para o José Matias a derradeira felicidade que lhe concedeu a vida. Assim me persuado, porque no inverno passado, encontrei o apontador, numa manhã de chuva, comprando camélias a um florista da rua do Oiro; e defronte, a uma esquina, o José Matias, escaveirado, esfrangalhado, cocava o homem, com carinho, quási com gratidão! E talvez nessa noite, no portal, tiritando, batendo as solas encharcadas, com os olhos enternecidos nas escuras vidraças, pensasse:—«Coitadinha, pobre Elisa! Ficou bem contente por êle lhe trazer as flores!»

Isto durou três anos.

Emfim, meu amigo, antes de ontem, o João Sêco apareceu em minha casa, de tarde, esbaforido:—«Lá levaram o José Matias numa maca, para o hospital, com uma congestão nos pulmões!»

Parece que o encontraram, de madrugada, estirado no ladrilho, todo encolhido no jaquetão delgado, arquejando, com a face coberta{301} de morte, voltada para as varandas de Elisa. Corri ao hospital. Morrera... Subi, com o médico de serviço, à enfermaria. Levantei o lençol que o cobria. Na abertura da camisa suja e rôta, prêso ao pescoço por um cordão, conservava um saquinho de sêda, poído e sujo tambêm. De-certo continha flor, ou cabelos, ou pedaço de renda de Elisa, do tempo do primeiro encanto e das tardes de Bemfica... Perguntei ao médico, que o conhecia e o lastimava, se êle sofrera.—«Não! Teve um momento comatoso, depois arregalou os olhos, exclamou Oh! com grande espanto, e ficou.»

¿Era o grito da alma, no assombro e horror de morrer tambêm? ¿Ou era a alma triunfando por se reconhecer emfim imortal e livre? O meu amigo não sabe; nem o soube o divino Platão; nem o saberá o derradeiro filósofo na derradeira tarde do mundo.

Chegamos ao cemitério. Creio que devemos pegar às borlas do caixão... Na verdade, é bem singular êste Alves Capão, seguindo tam sentidamente o nosso pobre espiritualista... Mas, Santo Deus, olhe! Alêm, à espera, à porta da Igreja, aquele sujeito compenetrado, de casaca, com paletó alvadio... É o apontador de Obras Públicas! E trás um grosso ramo de violetas... Elisa mandou o seu amante carnal acompanhar à cova e cobrir{302} de flores o seu amante espiritual! Mas, nunca ela pediria ao José Matias para espalhar violetas sôbre o cadaver do apontador! É que sempre a Matéria, mesmo sem o compreender, sem dêle tirar a sua felicidade, adorará o Espírito, e sempre a si própria, através dos gozos que de si recebe, se tratará com brutalidade e desdêm! Grande consôlo, meu amigo, êste apontador com o seu ramo, para um Metafísico que, como eu, comentou Spínosa e Mallebranche, reabilitou Fichte, e provou suficientemente a ilusão da sensação! Só por isto valeu a pena trazer à sua cova êste inexplicado José Matias, que era talvez muito mais que um homem—ou talvez ainda menos que um homem...—Com efeito, está frio... Mas que linda tarde!{303}

A PERFEIÇÃO

I

Sentado numa rocha, na ilha de Ogigya, com a barba enterrada entre as mãos, de onde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses, o mais subtil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar muito azul que mansa e harmoniosamente rolava sôbre a areia muito branca. Uma túnica bordada de flores escarlates cobria, em pregas moles, o seu corpo poderoso, que engordara. Nas correias das sandálias, que lhe calçavam os pés amaciados e perfumados de essências, reluziam esmeraldas do Egipto. E o seu bastão era um maravilhoso galho de coral, rematado em pinha de pérolas, como os que usam os Deuses marinhos.{304}

A divina Ilha, com os seus rochedos de alabastro, os bosques de cedros e tuias odoríferas, as messes eternas doirando os vales, a frescura das roseiras revestindo os outeiros suaves, resplandecia, adormecida na moleza da sésta, toda envolta em mar resplandecente. Nem um sôpro dos Zéfiros curiosos, que brincam e correm por sôbre o Arquipélago, desmanchava a serenidade do luminoso ar, mais doce que o vinho mais doce, todo repassado pelo fino aroma dos prados de violetas. No silêncio, embebido de calor afável, eram duma harmonia mais embaladora os murmúrios de arroios e fontes, o arrulhar das pombas voando dos ciprestes aos plátanos, e o lento rolar e quebrar da onda mansa sôbre a areia macia. E nesta inefável paz e beleza imortal, o subtil Ulisses, com os olhos perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia, revolvendo o queixume do seu coração...

Sete anos, sete imensos anos, iam passados desde que o raio fulgente de Júpiter fendera a sua nave de alta prôa vermelha, e êle, agarrado ao mastro partido, trambulhara na braveza mugidora das espumas sombrias, durante nove dias, durante nove noites, até que boiara em águas mais calmas, e tocara as areias daquela ilha onde Calipso, a Deusa radiosa, o recolhera e o amara! ¿E durante êsses imensos anos, como se arrastara a sua{305} vida, a sua grande e forte vida, que, depois da partida para os muros fatais de Troia, abandonando entre lágrimas inumeráveis a sua Penélope de olhos claros, o seu pequenino Telêmaco enfaixado no colo da ama, andara sempre tam agitada por perigos, e guerras, e astúcias, e tormentas, e rumos perdidos?... Ah! ditosos os Reis mortos, com formosas feridas no branco peito, diante das portas de Troia! Felizes os seus companheiros tragados pela onda amarga! Feliz êle se as lanças troianas o trespassassem nessa tarde de grande vento e poeira, quando, junto à Faia, defendia dos ultrajes, com a espada sonora, o corpo morto de Aquiles! Mas não! vivera!—E agora, cada manhã, ao saír sem alegria do trabalhoso leito de Calipso, as Ninfas, servas da Deusa, o banhavam numa água muito pura, o perfumavam de lânguidas essências, o cobriam com uma túnica sempre nova, ora bordada a sêdas finas, ora bordada de oiro pálido! No entanto, sôbre a mesa lustrosa, erguida à porta da gruta, na sombra das ramadas, junto ao sussurro dormente dum arroio diamantino, os açafates e as travessas lavradas transbordavam de bolos, de frutas, de tenras carnes fumegando, de peixes scintilando como tramas de prata. A intendenta venerável gelava os vinhos doces nas crateras de bronze, coroadas de rosas. E êle, sentado num escabelo, estendia{306} as mãos para as iguarias perfeitas, emquanto ao lado, sôbre um trono de marfim, Calipso, espargindo através da túnica nevada a claridade e o aroma do seu corpo imortal, sublimemente serena, com um sorriso taciturno, sem tocar nas comidas humanas, debicava a ambrosia, bebia em goles delgados o néctar transparente e rubro. Depois, tomando aquele bastão de Príncipe-de-Povos com que Calipso o presenteara, repercorria sem curiosidade os sabidos caminho da Ilha, tam lisos e tratados que nunca as suas sandálias reluzentes se maculavam de pó, tam penetrados pela imortalidade da Deusa que jàmais neles encontrara fôlha sêca, nem flor menos fresca pendendo na haste. Sôbre uma rocha se sentava então, contemplando aquele mar que tambêm banhava Ítaca, lá tam bravio, aqui tam sereno, e pensava, e gemia, até que as águas e os caminhos se cobriam de sombra, e êle recolhia à gruta para dormir, sem desejo, com a Deusa que o desejava!... ¿E durante êstes imensos anos, que destino envolvera a sua Ítaca, a áspera ilha de sombrias matas? ¿Viviam êles ainda, os seres amados? ¿Sôbre a forte colina, dominando a enseada de Reithros e os pinheirais de Neus, ainda se erguia o seu palácio, com os belos pórticos pintados de vermelho e roxo? ¿Ao cabo de tam lentos e vazios anos, sem novas, apagada{307} toda a esperança como uma lâmpada, despira a sua Penélope a túnica passageira da viuvez e passara para os braços doutro espôso forte, que agora manejava as suas lanças e vindimava as suas vinhas? ¿E o doce filho Telêmaco? ¿Reinaria êle em Ítaca, sentado, com o branco scetro, sôbre o mármore alto da Agorá? ¿Ocioso e rondando pelos pátios, baixaria os olhos sob o império duro dum padrasto? ¿Erraria por cidades alheias, mendigando um salário?... Ah! se a sua existência, assim para sempre arrancada da mulher, do filho, tam doces ao seu coração, andasse ao menos empregada em façanhas ilustres! Dez anos antes, tambêm desconhecia a sorte de Ítaca, e dos seres preciosos que lá deixara em solidão e fragilidade; mas uma emprêsa heróica o agitava; e cada manhã a sua fama crescia, como uma árvore num promontório, que enche o céu e todos os homens contemplam. Então era a planície de Troia—e as brancas tendas dos gregos ao longo do mar sonoro! Sem cessar, meditava astúcias de guerra; com soberba facúndia discursava na Assembleia dos Reis; rijamente jungia os cavalos empinados ao timão dos carros; de lança alta corria, entre a grita e a pressa, contra os Troianos de altos elmos, que surdiam, em roldão ressoante, das portas Skaias!... Oh! e quando êle, Príncipe-de-Povos, encolhido sob farrapos de mendigo,{308} com os braços maculados de chagas postiças, coxeando e gemendo, penetrara nos muros da orgulhosa Troia, pelo lado da Faia, para de noite, com incomparável ardil e bravura, roubar o Paládio tutelar da cidade! E quando, dentro do ventre do Cavalo-de-Pau, na escuridão, no apêrto de todos aqueles guerreiros hirtos e cobertos de ferro, calmava a impaciência dos que sufocavam, e tapava com a mão a bôca de Antiklos bravejando furioso, ao escutar fóra na planície os ultrajes e os escárnios troianos, e a todos murmurava: «Cala, cala! que a noite desce e Troia é nossa...» E depois as prodigiosas viagens! O pavoroso Polifemo, ludibriado com uma astúcia que para sempre maravilhará as gerações! As manobras sublimes entre Scylla e Carybdes! As Sereias, vogando e cantando em tôrno do mastro, de onde êle, amarrado, as rechaçava com o mudo dardejar dos olhos mais agudos que dardos! A descida aos Infernos, jàmais concedida a um mortal!... E agora homem de tam rutilantes feitos jazia numa ilha mole, eternamente prêso, sem amor, pelo amor duma Deusa! ¿Como poderia êle fugir, rodeado de mar indomável, sem nave, nem companheiros para mover os remos longos? Os Deuses ditosos certamente esqueciam quem tanto por êles combatera e sempre piedosamente lhes votara as reses devidas, mesmo através do fragor{309} e fumaraça das cidadelas derrubadas, mesmo quando a sua prôa encalhava em terra agreste!... E ao herói, que recebera dos Reis da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo engordar na ociosidade duma ilha mais lânguida que uma cêsta de rosas, e estender as mãos amolecidas para as iguarias abundantes, e, quando águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma Deusa que, sem cessar, o desejava.

Assim gemia o magnânimo Ulisses, à beira do mar lustroso... E eis que de repente um sulco de desusado brilho, mais rutilantemente branco que o duma estrêla caíndo, riscou a rutilância do céu, desde as alturas até à cheirosa mata de tuias e cedros, que assombreava um golfo sereno, a oriente da Ilha. Com alvoroço bateu o coração do herói. Rasto tam refulgente, na refulgência do dia, só um Deus o podia traçar através do largo Ouranos. ¿Um Deus, pois, descera à Ilha?

II

Um Deus descera, um grande Deus... Era o Mensageiro dos Deuses, o leve, eloqùente Mercúrio. Calçado com aquelas sandálias que{310} teem duas asas brancas, os cabelos côr de vinho cobertos pelo casco onde batem tambêm duas claras asas, erguendo na mão o Caduceu, êle fendera o Éter, roçara a lisura do mar sossegado, pisara a areia da Ilha, onde as suas pègadas ficavam rebrilhando como palmilhas de oiro novo. A-pesar de percorrer toda a terra, com os recados inumeráveis dos Deuses, o luminoso Mensageiro não conhecia aquela ilha de Ogigya—e admirou, sorrindo, a beleza dos prados de violetas tam doces para o correr e brincar de Ninfas, e o harmonioso faiscar dos regatos por entre os altos e lânguidos lírios. Uma vinha, sôbre esteios de jaspe, carregada de cachos maduros, conduzia, como fresco pórtico salpicado de sol, até à entrada da gruta, toda de rochas polidas, de onde pendiam jasmineiros e madre-silvas, envoltas no sussurrar das abelhas. E logo avistou Calipso, a Deusa ditosa, sentada num Trono, fiando em roca de oiro, com fuso de oiro, a lã formosa de púrpura marinha. Um aro de esmeraldas prendia os seus cabelos muito anelados e ardentemente louros. Sob a túnica diáfana a mocidade imortal do seu corpo rebrilhava, como a neve quando a aurora a tinge de rosas nas colinas eternas povoadas de Deuses. E, emquanto torcia o fuso, cantava um trinado e fino canto, como trémulo fio de cristal vibrando da Terra ao Céu. Mercúrio pensou: «Linda ilha, e linda Ninfa!»{311}

Dum lume claro de cedro e tuia, subia, muito direito, um fumo delgado que perfumava toda a Ilha. Em roda, sentadas em esteiras sôbre o chão de ágata, as Ninfas, servas da Deusa, dobavam as lãs, bordavam na sêda as flores ligeiras, teciam as puras teias em teares de prata. Todas coraram, com o seio a arfar, sentindo a presença do Deus. E sem deter o fuso faiscante, Calipso reconhecera logo o Mensageiro—pois que todos os Imortais sabem, uns dos outros, os nomes, os feitos, e os rostos soberanos, mesmo quando habitam retiros remotos que o Éter e o Mar separam.

Mercúrio parara, risonho, na sua nudez divina, exalando o perfume do Olimpo. Então a Deusa ergueu para êle, com composta serenidade, o esplendor largo dos seus olhos verdes:

—Oh Mercúrio! ¿porque desceste à minha Ilha humilde, tu, venerável e querido, que eu nunca vi pisar a terra? Dize o que de mim esperas. Já o meu aberto coração me ordena que te contente, se o teu desejo couber dentro do meu poder e do Fado... Mas entra, repousa, e que eu te sirva, como doce irmã, à mesa da hospitalidade.

Tirou da cintura a roca, arredou os aneis soltos do cabelo radiante—e com as suas nacaradas mãos colocou sôbre a mesa, que as{312} Ninfas acercaram do lume aromático, o prato transbordando de Ambrosia, e as infusas de cristal onde scintilava o Néctar.

Mercúrio murmurou:—«Doce é a tua hospitalidade, ó Deusa!» Pendurou o Caduceu do fresco ramo dum plátano, estendeu os dedos reluzentes para a travessa de oiro, risonhamente louvou a excelência daquele Néctar da Ilha. E contentada a alma, encostando a cabeça ao tronco liso do plátano que se cobriu de claridade, começou, com palavras perfeitas e aladas:

—Perguntaste porque descia um Deus à tua morada, oh Deusa! E certamente nenhum Imortal percorreria sem motivo, desde o Olimpo até Ogigya, esta deserta imensidade do mar salgado em que se não encontram cidades de homens, nem templos cercados de bosques, nem sequer um pequenino santuário de onde suba o aroma do incenso, ou o cheiro das carnes votivas, ou o murmúrio gostoso das preces... Mas foi nosso Pai Júpiter, o tempestuoso, que me mandou neste recado. Tu recolhestes, e retens pela fôrça incomensurável da tua doçura, o mais subtil e desgraçado de todos os Príncipes que combateram durante dez anos a alta Troia, e depois embarcaram nas naves fundas para voltar à terra da Pátria. Muitos dêsses conseguiram reentrar nos seus ricos lares, carregados de fama, de despojos,{313} e de histórias excelentes para contar. Ventos inimigos, porêm, e um fado mais inexorável, arremessaram a esta tua ilha, enrolado nas sujas espumas, o facundo e astuto Ulisses... Ora o destino dêste herói não é ficar na ociosidade imortal do leito, longe daqueles que o choram, e que carecem da sua fôrça e manhas divinas. Por isso Júpiter, regulador da Ordem, te ordena, oh Deusa, que soltes o magnânimo Ulisses dos teus braços claros, e o restituas, com os presentes docemente devidos, à sua Ítaca amada, e à sua Penélope, que tece e desfaz a teia ardilosa, cercada dos Pretendentes arrogantes, devoradores dos seus gordos bois, sorvedores dos seus frescos vinhos!

A divina Calipso mordeu levemente o beiço; e sôbre a sua face luminosa desceu a sombra das densas pestanas côr de jacinto. Depois, com um harmonioso suspiro, em que ondulou todo o seu peito rebrilhante:

—Ah Deuses grandes, Deuses ditosos! como sois ásperamente ciumentos das Deusas, que, sem se esconderem pela espessura dos bosques ou nas pregas escuras dos montes, amam os homens eloqùentes e fortes!... Êste, que me invejais, rolou às areias da minha Ilha, nu, pisado, faminto, prêso a uma quilha partida, perseguido por todas as iras, e todas as rajadas, e todos os raios dardejantes de que dispõe o Olimpo. Eu o recolhi, o lavei, o nutri,{314} o amei, o guardei, para que ficasse eternamente ao abrigo das tormentas, da dor e da velhice. E agora Júpiter trovejador, ao cabo de oito anos em que a minha doce vida se enroscou em tôrno desta afeição como a vide ao olmo, determina que eu me separe do companheiro que escolhera para a minha imortalidade! Realmente sois crueis, oh Deuses, que constantemente aumentais a raça turbulenta dos Semideuses dormindo com as mulheres mortais! ¿E como queres que eu mande Ulisses à sua pátria, se não possuo naves, nem remadores, nem pilôto sabedor que o guie através das Ilhas? ¿Mas quem pode resistir a Júpiter, que ajunta as nuvens? Seja! e que Olimpo ria, obedecido. Eu ensinarei o intrépido Ulisses a construir uma jangada segura, com que de novo fenda o dorso verde do mar...

Imediatamente, o Mensageiro Mercúrio se levantou do escabelo pregado com pregos de oiro, retomou o seu Caduceu, e bebendo uma derradeira taça do Néctar excelente da Ilha, louvou a obediência da Deusa:

—Bem farás, oh Calipso! Assim evitas a cólera do Pai trovejante. ¿Quem lhe resistirá? A sua Omnisciência dirige a sua Omnipotência. E êle sustenta, como scetro, uma árvore que tem por flor a Ordem... As suas decisões, clementes ou crueis, resultam sempre em harmonia. Por isso o seu braço se torna{315} terrífico aos peitos rebeldes. Pela tua pronta submissão serás filha estimada, e gozarás uma imortalidade repassada de sossêgo, sem intrigas e sem surpresas...

Já as asas impacientes das suas sandálias palpitavam, e o seu corpo, com sublime graça, se balançava por sôbre as relvas e flores que alcatifavam a entrada da gruta.

—De resto—acrescentou—a tua Ilha, oh Deusa, fica no caminho das naves ousadas que cortam as ondas. Em breve talvez outro herói robusto, tendo ofendido os Imortais, aportará à tua doce praia, abraçado a uma quilha... Acende um facho claro, de noite, nas rocas altas!

E, rindo, o Mensageiro Divino serenamente se elevou, riscando no Éter um sulco de elegante fulgor que as Ninfas, esquecida a tarefa, seguiam, com os frescos lábios entreabertos e o seio levantado, no desejo daquele imortal formoso.

Então Calipso, pensativa, lançando sôbre os seus cabelos anelados um véu da côr do açafrão, caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira duma espuma leve, em tôrno das pernas redondas e róseas. Tam levemente pisou a areia, que o magnânimo Ulisses não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas lustrosas, com a negra barba{316} entre as mãos, aliviando em gemidos o pêso do seu coração. A Deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois, pousando no vasto ombro do Herói os seus dedos tam claros como os de Eos, mãe do dia:

—Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas, olhando o Mar! Os Deuses, que me são superiores pela inteligência e pela vontade, determinam que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos, e calques de novo a terra da Pátria...

Bruscamente, como o condor fendendo sôbre a prêsa, o divino Ulisses, com a face assombrada, saltou da rocha musgosa:

—Oh Deusa, tu dizes !...

Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos, enrodilhados no véu côr de açafrão, emquanto a vaga rolava, mais doce e cantante, no amoroso respeito da sua presença divina:

—Bem sabes que não tenho naves de alta prôa, nem remadores de rijo peito, nem pilôto amigo das estrêlas, que te conduzam... Mas certamente te confiarei o machado de bronze que foi de meu pai, para tu abateres as árvores que eu te marcar, e construires uma jangada em que embarques... Depois eu a proverei de odres de vinho, de comidas perfeitas, e a impelirei com um sôpro amigo para o mar indomado...{317}

O cauteloso Ulisses recuara lentamente, cravando na Deusa um duro olhar que a desconfiança ennegrecia. E erguendo a mão, que tremia toda, com a ansiedade do seu coração:

—Oh Deusa, tu abrigas um pensamento terrível, pois que assim me convidas a afrontar numa jangada as ondas difíceis, onde mal se mantêm fundas naves! Não, Deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra onde os Deuses tambêm combateram, e conheço a malícia infinita que contêm o coração dos Imortais! Se resisti às sereias irresistíveis, e me safei com sublimes manobras de entre Scylla e Charybdes, e venci Polifemo com um ardil que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi de-certo, oh Deusa, para que agora, na Ilha de Ogigya, como passarinho de pouca penugem, no seu primeiro vôo do ninho, cáia em armadilha ligeira arranjada com dizeres de mel! Não, Deusa, não! Só embarcarei na tua extraordinária jangada se tu jurares, pelo juramento terrífico dos Deuses, que não preparas, com êsses quietos olhos, a minha perda irreparável.

Assim bradava, à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o Herói prudente... Então a Deusa clemente riu, com um cantado e refulgente riso. E caminhando para o Herói, correndo os dedos celestes pelos seus espessos cabelos mais negros que o pez:{318}

—Oh maravilhoso Ulisses—disse—tu és bem na verdade o mais refalsado e manhoso dos homens, pois que nem concebes que exista espírito sem manha e sem falsidade! Meu pai ilustre não me gerou com um coração de ferro! A-pesar de imortal, compreendo as desventuras mortais. Só te aconselhei o que eu, Deusa, empreenderia, se o Fado me obrigasse a saír de Ogigya através do mar incerto!...

O divino Ulisses retirou lenta e sombriamente a cabeça da rosada carícia dos dedos divinos:

—Mas jura... Oh Deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onda de leite, a saborosa confiança!

Ela ergueu o claro braço ao azul onde os Deuses moram:

—Por Gaia, e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Stygio, que é a maior invocação que podem lançar os Imortais, juro, oh homem, Príncipe dos homens, que não preparo a tua perda, nem misérias maiores...

O valente Ulisses respirou largamente. E arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas das mãos robustas:

—¿Onde está o machado de teu pai magnífico? Mostra as árvores, oh Deusa!... O dia baixa e o trabalho é longo!{319}

—Sossega, oh homem sôfrego de males humanos! Os deuses superiores em sapiência já determinaram o teu destino... Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua fôrça... Quando Eos vermelha aparecer, àmanhã, eu te conduzirei à floresta.

III

Era com efeito a hora em que homens mortais e Deuses imortais se acercam das mesas cobertas de baixelas, onde os espera a abundância, o repouso, o esquecimento dos cuidados, e as amoráveis conversas que contentam a alma. Em breve Ulisses se sentou no escabelo de marfim, que ainda conservava o aroma do corpo de Mercúrio, e diante dêle as Ninfas, servas da Deusa, colocaram os bôlos, as frutas, as tenras carnes fumegando, os peixes rebrilhantes como tramas de prata. Pousada num Trono de oiro puro, a Deusa recebeu da Intendenta venerável o prato de Ambrosia e a taça de Néctar. Ambos estenderam as mãos para as comidas perfeitas da Terra e do Céu. E logo que deram a oferenda abundante à Fome e à Sêde, a ilustre Calipso,{320} encostando a face aos dedos róseos, e considerando pensativamente o Herói, soltou estas palavras aladas:

—Oh Ulisses muito subtil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra da Pátria... Ah! se conhecesses, como eu, quantos duros males tens de sofrer antes de avistar as rochas de Ítaca, ficarias entre os meus braços, amimado, banhado, bem nutrido, revestido de linhos finos, sem nunca perder a querida fôrça, nem a agudeza do entendimento, nem o calor da facúndia, pois que eu te comunicaria a minha imortalidade!... Mas desejas voltar à espôsa mortal, que habita na ilha áspera onde as matas são tenebrosas. E todavia eu não lhe sou inferior, nem pela beleza, nem pela inteligência, porque as mortais brilham ante as Imortais como lâmpadas fumarentas diante de estrêlas puras...

O facundo Ulisses acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como costumava na Assembleia dos Reis, à sombra das altas pôpas, diante dos muros de Troia, disse:

—Oh Deusa venerável, não te escandalises! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formusura, sapiência e majestade. Tu serás eternamente bela e môça, emquanto os Deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude, e dos{321} passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fonte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas, oh Deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congénere! Considera como é penoso que, nesta mesa, cada dia, eu côma vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos vergeis, emquanto tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a Ambrosia divina! Em oito anos, oh Deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio... E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de Deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade: e, durante o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a fôrça do meu entendimento! Oh Deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda{322} que, como Deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh Deusa, tu és impecável: e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às espôsas mortais—«Foi culpa tua, mulher!»—erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os Deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame dum amor que constantemente se alimenta dêstes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários!

Assim o facundo Ulisses desabafava, ante a taça de oiro vazia: e serenamente a Deusa escutava, com um sorriso taciturno, e as mãos imóveis sôbre o regaço, enrodilhadas na ponta do véu.

No entanto, Febo Apolo descia para Ocidente; e já das ancas dos seus quatro cavalos suados subia e se espalhava por sôbre o Mar um vapor rúbido e doirado. Em breve os caminhos da Ilha se cobriam de sombra.{323} E sôbre os velos preciosos do leito, ao fundo da gruta, Ulisses, sem desejo, e a Deusa, que o desejava, gozaram o doce amor, e depois o doce sono.

Cedo, apenas Eos entreabria as portas do largo Ouranos, a divina Calipso, que revestira uma túnica mais branca que a neve do Pindo, e pregara nos cabelos um véu transparente e azul como o Éter ligeiro, saíu da gruta, trazendo ao magnânimo Ulisses, já sentado à porta, sob a ramada, diante duma taça de vinho claro, o machado poderoso de seu pai ilustre, todo de bronze, com dois fios, e um rijo cabo de oliveira cortado nas faldas do Olimpo.

Limpando rápidamente a dura barba com as costas da mão, o Herói arrebatou o machado venerável:

—Oh Deusa, há quantos anos não palpo uma arma ou uma ferramenta, eu, devastador de cidadelas e construtor de naves !

A Deusa sorriu. E, iluminada a lisa face, em palavras aladas:

—Oh, Ulisses, vencedor de homens, se tu ficasses nesta ilha, eu encomendaria para ti, a Vulcano e às suas forjas do Etna, armas maravilhosas...

—¿Que valem armas sem combates, ou homens que as admirem? De resto, oh Deusa, já muito batalhei, e a minha glória entre as{324} gerações está soberbamente segura; Só aspiro ao macio repouso, vigiando os meu gados, concebendo sábias leis para os meus povos... Sê benévola, oh Deusa, e mostra as árvores fortes que me convêm cortar!

Em silêncio ela caminhou por um atalho florido de altas e radiosas açucenas, que conduzia à ponta da Ilha mais cerrada de matas, do lado do Oriente: e atrás seguia o intrépido Ulisses, com o luzidio machado ao ombro. As pombas deixavam os ramos dos cedros, ou as concavidades das rochas onde bebiam, para esvoaçarem em tôrno da Deusa num tumulto amoroso. Um aroma mais delicado, quando ela passava, subia das flores abertas, como de incensadores. As relvas que a orla da sua túnica roçava reverdejavam num viço mais fresco. E Ulisses, indiferente aos prestígios da Deusa, impaciente com a serenidade divina do seu andar harmonioso, meditava a jangada, almejava pelo bosque.

Denso e escuro o avistou emfim, povoado de carvalhos, de velhíssimas técas, de pinheiros que ramalhavam no alto Éter. Da sua orla descia um areal a que nem concha, nem galho quebrado de coral, nem pálida flor de cardo marinho, desmanchava a doçura perfeita. E o Mar refulgia com um brilho safírico, na quietação da manhã branca e còrada. Caminhando dos carvalhos às técas, a Deusa{325} marcou ao atento Ulisses os troncos sêcos, robustecidos por sóis inumeráveis, que flutuariam, com ligeireza mais segura, sôbre as águas traidoras. Depois, acariciando o ombro do Herói, como outra árvore robusta tambêm votada às aguas crueis, recolheu à sua gruta, onde tomou a roca de oiro, e todo o dia fiou, e todo o dia cantou...

Com alvoroçada e soberba alegria, Ulisses atirou o machado contra um vasto carvalho que gemeu. E em breve toda a Ilha retumbava, no fragor da obra sobreumana. As gaivotas, adormecidas no silêncio eterno daquelas ribas, bateram o vôo em largos bandos, espantadas e gritando. As fluidas divindades dos ribeiros indolentes, estremecendo num fulgente arrepio, fugiam para entre os canaviais e as raízes dos amieiros. Nesse curto dia o valente Ulisses abateu vinte árvores, robles, pinheiros, técas e choupos—e todas decotou, esquadrou, e alinhou sôbre a areia. O seu pescoço e arcado peito fumegavam de suor, quando recolheu pesadamente à gruta, para saciar a rude fome, e beber a cerveja gelada. E nunca êle parecera tam belo à Deusa Imortal, que, sobre o leito de peles preciosas, apenas os caminhos se cobriram de sombra, encontrou incansada e pronta a fôrça daqueles braços que tinham abatido vinte troncos!{326}

Assim, durante três dias, trabalhou o Herói.

E, como arrebatada nessa actividade magnífica que abalava a Ilha, a Deusa ajudava Ulisses, conduzindo da gruta para a praia, nas suas mãos delicadas, as cordas e os pregos de bronze. As Ninfas, por seu mandado, abandonando as tarefas suaves, teciam uma tela forte, para a vela que empurrariam com amor os ventos amáveis. E a Intendenta venerável já enchia os odres de vinhos robustos, e preparava com generosidade os víveres numerosos para a travessia incerta. No entanto a jangada crescia, com os troncos bem ligados, e um banco erguido ao meio, donde se empinava o mastro, desbastado num pinheiro, mais redondo e lizo que uma vara de marfim. Cada tarde a Deusa, sentada numa rocha à sombra do bosque, contemplava o calafate admirável martelando furiosamente, e cantando, com rija alegria, um canto de remador. E, ligeiras, na ponta dos pés luzidios, por entre o arvoredo, as Ninfas, escapando à tarefa, acudiam a espreitar, com desejosos olhos fulgurantes, aquela fôrça solitária, que soberbamente, no areal solitário, ia erguendo uma nave.{327}

IV

Emfim no quarto dia, de manhã, Ulisses findou de esquadrar o leme, que reforçou com grades de amieiro para melhor aparar o embate das ondas. Depois ajuntou um lastro copioso, com a terra da Ilha imortal e as suas pedras polidas. Sem descanso, numa ânsia risonha, amarrou à vêrga alta a vela cortada pelas Ninfas. Sôbre pesados rolos, manobrando a alavanca, rolou a jangada imensa até à espuma da vaga, num esfôrço sublime, com músculos tam retesos e veias tam inchadas, que êle mesmo parecia feito de troncos e cordas. Uma ponta da jangada arfou, levantada em cadência pela onda harmoniosa. E o Herói, erguendo os braços lustrosos de suor, louvou os Deuses Imortais.

Então, como a obra findára e a tarde rebrilhava, propícia à partida, a generosa Calipso trouxe Ulisses, através das violetas e das anémonas, à fresca gruta. Pelas suas divinas mãos o banhou numa concha de nácar, e o perfumou com essências sobrenaturais, e o vestiu com uma túnica formosa de lã bordada, e lançou sôbre os seus ombros um manto impenetrável às neblinas do mar, e lhe estendeu sôbre{328} a mesa, para êle saciar a fome rude, as comidas mais sãs e mais finas da Terra. O Herói aceitava os amorosos cuidados, com paciente magnanimidade. A Deusa, de gestos serenos, sorria taciturnamente.

Depois ela tomou a mão cabeluda de Ulisses, palpando com gôsto os calos que lhe deixara o machado; e pela borda do Mar o conduziu à praia, onde a vaga mansamente lambia os troncos da jangada forte. Ambos descansaram sôbre uma rocha musgosa. Nunca a Ilha resplandecera com uma beleza tam serena, entre um mar tam azul, sob um céu tam macio. Nem a água fresca do Pindo bebida em marcha abrasada, nem o vinho doirado que produzem as colinas de Chio, eram mais doces de sorver do que aquele ar repassado de aromas, composto pelos Deuses para o respirar duma Deusa. A frescura imorredoira das árvores entrava no coração, quási pedia a carícia dos dedos. Todos os rumores, o dos regatos na relva, o das ondas no areal, o das aves nas sombras frondosas, subiam, suave e finamente fundidos, como as harmonias sagradas de um Templo distante. O esplendor e a graça das flores retinham os raios pasmados do sol. Tantos eram os frutos nos vergeis, e as espigas nas messes, que a Ilha parecia ceder, afundada no Mar, sob o pêso da sua abundância.{329}

Então a Deusa, ao lado do Herói, levemente suspirou, e murmurou num sorriso alado:

—Oh, magnânimo Ulisses, tu certamente partes! O desejo te leva de rever a mortal Penélope, e o teu doce Telêmaco, que deixaste no colo da ama quando a Europa correu contra a Ásia, e agora já sustenta na mão uma lança temida. Sempre dum amor antigo, com raízes fundas, brotará mais tarde uma flor, mesmo triste. Mas dize! ¿Se em Ítaca não te esperasse a espôsa tecendo e destecendo a teia, e o filho ansioso que alonga os olhos incansados para o mar, deixarias tu, oh homem prudente, esta doçura, esta paz, esta abundância e beleza imortal?

O Herói, ao lado da Deusa, estendeu o braço poderoso, como na Assembleia dos Reis, diante dos muros de Troia, quando plantava nas almas a verdade persuasiva:

—Oh Deusa, não te escandalises! Mas ainda que não existissem, para me levar, nem filho, nem espôsa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque, na verdade, oh Deusa muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, oh Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e caír. Nunca êste céu rutilante se carregou de nuvens{330} escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, emquanto a borrasca grossa batesse nos montes. Todas essas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, oh Deusa, que admirei e respirei, na primeira manhã que me mostraste êstes prados perpétuos:—e há lírios que odeio, com um ódio amargo, pela impassibilidade da sua alvura eterna! Estas gaivotas repetem tam incessantemente, tam implacavelmente, o seu vôo harmonioso e branco, que eu escondo delas a face, como outros a escondem das negras Harpias ! E quantas vezes me refugío no fundo da gruta para não escutar o murmúrio sempre lânguido dêstes arroios sempre transparentes! Considera, oh Deusa, que na tua Ilha nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcassa dum bicho morto e coberto de moscas zumbidoras. Oh Deusa, há oito anos, oito anos terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esfôrço, a luta e o sofrimento... Oh Deusa, não te escandalises ! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriem na passagem duma ponte; os braços suplicantes duma mãe que chora; um coxo, sôbre a sua muleta, mendigando à porta das vilas... Deusa, há oito anos que não ólho para uma sepultura... Não posso{331} mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe... Oh Deusa imortal, eu morro com saudades da morte!

Imóvel, com as mãos imóveis no regaço, enrodilhadas nas pontas do véu amarelo, a Deusa escutara, com um sorriso serenamente divino, o furioso queixume do Herói cativo... No entanto já pela colina as Ninfas, servas da Deusa, desciam, trazendo à cabeça, e amparando-os com o braço redondo, os jarros de vinho, os sacos de coiro, que a Intendenta venerável mandava para abastecer a jangada. Silenciosamente, o Herói lançou uma tábua desde a areia até ao bordo de altos toros. E emquanto sôbre ela as Ninfas passavam, ligeiras, com as manilhas de oiro tilintando nos pés luzidios, Ulisses atento, contando os sacos e os odres, gozava no seu nobre coração a abundância generosa. Mas, amarrados com cordas às cavilhas aqueles fardos excelentes, todas as Ninfas, lentamente, se sentaram sôbre o areal em tôrno da Deusa, para contemplarem a despedida, o embarque, as manobras do Herói sôbre o dorso das águas... Então uma cólera lampejou nos largos olhos de Ulisses. E, diante de Calipso, cruzando furiosamente os valentes braços:

—¿Oh Deusa, pensas tu na verdade que nada{332} falta para que eu largue a vela e navegue? ¿Onde estão os ricos presentes que me deves? Oito anos, oito duros anos, fui o hóspede magnífico da tua Ilha, da tua gruta, do teu leito... Sempre os Deuses imortais determinaram que aos hóspedes, no momento amigo da partida, se ofertem consideráveis presentes! ¿Onde estão elas, oh Deusa, essas riquezas abundantes que me deves por costume da Terra e lei do Céu?

A Deusa sorriu, com sublime paciência. E com palavras aladas, que fugiam na aragem:

—Oh Ulisses, tu és claramente o mais interesseiro dos homens ! E tambêm o mais desconfiado, pois que supões que uma Deusa negaria os presentes devidos àquele que amou... Sossega, oh subtil Herói... Os ricos presentes não tardam, largos e rebrilhantes.

E, certamente, pela colina suave, outras Ninfas desciam, ligeiras, com os véus a ondular, trazendo nos braços alfaias lustrosas, que ao sol rutilavam! O magnânimo Ulisses estendeu as mãos, os olhos devoradores... E emquanto elas passavam sôbre a tábua rangente, o Herói astuto contava, avaliava no seu nobre espírito os escabelos de marfim, os rolos de telas bordadas, os cântaros de bronze lavrado, os escudos cravejados de pedras...

Tam rico e belo era o vaso de oiro que a derradeira Ninfa sustentava no ombro, que{333} Ulisses deteve a Ninfa, arrebatou o vaso, o sopesou, o mirou, e gritou, com soberbo riso estridente:

—Na verdade, êste oiro é bom!

Depois de arrumadas e ligadas sob o largo banco as alfaias preciosas, o impaciente Herói, arrebatando o machado, cortou a corda que prendia a jangada ao tronco dum roble, e saltou para o alto bordo que a espuma envolvia. Mas então recordou que nem beijara a generosa e ilustre Calipso! Rápido, arremessando o manto, pulou através da espuma, correu pela areia, e pousou um beijo sereno na fronte aureolada da Deusa. Ela segurou de leve o seu ombro robusto:

—Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha Ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos...

Ulisses recuou, com um brado magnífico:

—Oh Deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!

E, através da vaga, fugiu, trepou sôfregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias—para a delícia das coisas imperfeitas!{334} {335}

O SUAVE MILAGRE!

Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galilea e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíade:—mas a nova dos seus Milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issachar.

Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo Profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galilea, predizendo a chegada do Reino de Deus, curando todos os males humanos. E emquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergeis, contou ainda que êsse Rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo dum Decurião Romano só com estender sôbre êle{336} a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca para a terra dos Gerassénios, onde começava a colheita do bâlsamo, ressuscitara a filha de Jaira, homem considerável e douto que comentava os Livros na Sinagoga. E como em redor, assombrados, seareiros, pastores, e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro, lhe perguntassem se êsse era, em verdade, o Messias da Judea, e se diante dêle refulgia a espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as sombras de duas tôrres, as sombras de Gog e de Magog—o homem, sem mesmo beber daquela água tam fria de que bebera Josué, apanhou o cajado, sacudiu os cabelos, e meteu pensativamente por sob o Aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples: logo, por toda a campina que verdeja até Ascalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar: as crianças, colhendo ramos de anémonas, espreitavam pelos caminhos se alêm da esquina do muro, ou de sob o sicómoro, não surgiria uma claridade: e nos bancos de pedra, às portas da cidade, os vélhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tam sapiente certeza, os ditames antigos.{337}

Ora então vivia em Enganim um vélho, por nome Obed, duma família pontifical de Samaria que sacrificara nas aras do Monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas—e com o coração tam cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, êsse vento de desolação que ao mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, só deixara, em tôrno dos olmos e pilares despidos, sarmentos, cêpas mirradas, e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed agachado à soleira da sua porta, com a ponta do manto sôbre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel.

Apenas ouvira falar dêsse novo Rabi da Galilea, que alimentava as multidões, amedrontava os demónios, emendava todas as desventuras—Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que Jesus seria um dêsses feiticeiros, tam costumados na Palestina, como Apolónio, ou Rabi Ben-Dossa, ou Simão, o Subtil. Êsses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrêlas, para êles sempre claras e fáceis nos seus segredos: com uma vara afugentam de sôbre as searas os moscardos gerados nos lôdos do{338} Egipto: e agarram entre os dedos as sombras das árvores, que conduzem, como toldos benéficos, para cima das eiras, à hora da sésta. Jesus da Galilea, mais novo, com magias mais viçosas de-certo, se êle largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então Obed ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Galilea o Rabi novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias o trouxessem a Enganim, no país de Assachar.

Os servos apertaram os cinturões de coiro—e largaram pela estrada das Caravanas, que, costeando o Lago, se estende até Damasco. Uma tarde, avistaram sôbre o poente, vermelho como uma romã muito madura, as neves finas do monte Hermon. Depois, na frescura duma manhã macia, o lago de Tiberíade resplandeceu diante dêles, transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergeis, de rochas de pórfiro, e de alvos terraços por entre os pomares, sob o vôo das rôlas. Um pescador que desamarrava preguiçosamente a sua barca duma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. ¿O Rabi de Nazareth? Oh! desde o mês de Ijar, o Rabi descera, com os seus discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas.

Os servos, correndo, seguiram pelas margens{339} do rio, até adiante do vau, onde êle se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tríbu dos Essénios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no porque o povo ama aqueles homens de coração tam limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tanques purificados. ¿E sabia êle da passagem do novo Rabi da Galilea, que como os Essénios ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados? O Essénio murmurou que o Rabi atravessara o Oásis de Engaddi, depois se adiantara para alêm...—Mas onde, «alêm ?»—Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o Essénio mostrou as terras de Alêm Jordão, a planície de Moab. Os servos vadearam o rio—e debalde procuraram Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur... No Pôço de Yakob repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egipto mirra, especiarias e bâlsamos de Gilead: e os cameleiros, tirando a água com os baldes de coiro, contaram aos servos de Obed que em Gadara, pela lua nova um Rabi maravilhoso, maior que David ou Isaias, arrancara sete demónios do peito duma{340} tecedeira, e que, à sua voz, um homem degolado pelo salteador Barabas, se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. Os servos, esperançados, subiram logo açodadamente pelo caminho dos Peregrinos até Gadara, cidade de altas tôrres, e ainda mais longe até às Nascentes da Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguindo por um povo que cantava e sacudia ramos de mimosa, embarcara no Lago, num batel de pesca, e à vela navegara para Magdala. E os servos de Obed descorçoados, de novo passaram o Jordão na Ponte das Filhas de Jacob. Um dia, já com as sandálias rôtas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judea Romana, cruzaram um Fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da Lei. ¿Encontrara êle por acaso êsse Profeta novo da Galilea que, como um Deus passeando na terra, semeava milagres? A adunca face do Fariseu escureceu enrugada—e a sua cólera, retumbou como um tambor orgulhoso:

—Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! ¿Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fóra de Jerusalêm ? Só Jeová tem fôrça no seu Templo. De Galilea surdem os néscios e os impostores...

E como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados—o{341} furioso Doutor saltou da mula, e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed, uivando: Racca! Racca! e todos os Anátemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam,—e todavia radiantemente, como uma alvorada por detrás de serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galilea.

Por êsse tempo, um Centurião Romano, Publius Septimus, comandava o forte que domina o vale de Cesarea, até à cidade e ao mar. Publius, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra os Partas, enriquecera durante a revolta de Samaria com prêsas e saques, possuia minas na Ática, e gozava, como favor supremo dos Deuses, a amizade de Flaccus, Legado Imperial da Síria. Mas uma dor roía a sua prosperidade muito poderosa, como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para êle mais amada que vida e bens, definhava com um mal subtil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que êle mandara consultar a Sidon e a Tyro. Branca e triste como a lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo pálidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente os negros olhos{342} tristes pelo azul do mar de Tyro, por onde ela navegara de Itália, numa opulenta galera. Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena, no céu rutilante. A filha de Septimus, seguia um momento a ave, torneando até bater morta sôbre as rochas:—depois, com um suspiro, mais triste e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar.

Então Septimus, ouvindo contar, a mercadores de Chorazin, dêste Rabi admirável, tam potente sôbre os Espíritos, que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decúrias de soldados para que o procurassem pela Galilea, e por todas as cidades da Decápola, até à costa e até Ascalon. Os soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira—e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando sôbre as lages de basalto da estrada romana, que desde Cesarea até ao Lago corta toda a Tetraquia de Herodes. As suas armas, de noite, brilhavam no tôpo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos. De dia invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a palha das medas: e as mulheres, assustadas, para os{343} amansar, logo acudiam com bolos de mel, figos novos, e malgas cheias de vinho, que êles bebiam dum trago, sentados à sombra dos sicómoros. Assim correram a Baixa Galilea—e, do Rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúteis marchas, desconfiando que os Judeus sonegassem o seu feiticeiro para que Romanos não aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra submissa. À entrada das pontes detinham os peregrinos, gritando o nome do Rabi, rasgando os véus às virgens: e, à hora em que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos burgos, penetravam nas Sinagogas, e batiam sacrílegamente com os punhos das espadas nas Thebahs, os Santos Armários de cedro que continham os Livros Sagrados. Nas cercanias de Hebron arrastaram os Solitários pelas barbas para fóra das grutas, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o Rabi:—e dois mercadores Fenícios que vinham de Joppé com uma carga de malobatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por êsse delito cem drácmas a cada Decurião. Já a gente dos campos, mesmos os bravios pastores de Idumea, que levam as reses brancas para o Templo, fugiam espavoridos para as serranias, apenas{344} luziam, nalguma volta do caminho, as armas do bando violento. E da beira dos eirados, as vélhas sacudiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arrojavam sôbre êles as Más-Sortes, invocando a vingança de Elias. Assim tumultuosamente erraram até Ascalon: não encontraram Jesus: e retrocederam ao longo da costa enterrando as sandálias nas areias ardentes.

Uma madrugada, perto de Cesarea, marchando num vale, avistaram sôbre um outeiro um verde-negro bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico dum templo. Um vélho, de compridas barbas brancas, coroado de fôlhas de louro, vestido com uma túnica côr de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava gravemente, sôbre os degraus de mármore, a aparição do sol. Debaixo, agitando um ramo de oliveira, os soldados bradaram pelo Sacerdote. ¿Conhecia êle um novo Profeta que surgira na Galilea, e tam déstro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente, alargando os braços, o sereno vélho exclamou por sôbre a rociada verdura do vale:

—Oh romanos! ¿pois acreditais que em Galilea ou Judea apareçam profetas consumando milagres? ¿Como pode um bárbaro alterar a Ordem instituida por Zeus?... Mágicos{345} e feiticeiros são vendilhões, que murmuram palavras ôcas, para arrebatar a espórtula dos simples... Sem a permissão dos Imortais nem um galho sêco pode tombar da árvore, nem sêca fôlha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas!

Então, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de Cesarea. E grande foi o desespero de Septimus, porque sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tyro—e todavia a fama de Jesus, curador dos lânguidos males, crescia, sempre mais consoladora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do Hermon e, através dos hortos, reanima e levanta as açucenas pendidas.

Ora entre Enganim e Cesarea, num casebre desgarrado, sumido na prega dum cêrro, vivia a êsse tempo uma viuva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Tambêm a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sôbre ambos, espessamente a miséria cresceu como o bolôr sôbre cacos perdidos num ermo. Até na{346} lâmpada de barro vermelho, secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada não restava grão ou côdea. No estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tam longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cosidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!

Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, êsse Rabi que aparecera na Galilea, e de um pão no mesmo cêsto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso Reino, de abundância maior que a Côrte de Salomão. A mulher escutava com olhos famintos. ¿E êsse dôce Rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah êsse dôce Rabi! quantos o desejavam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sôbre toda a Judea como o sol que até por qualquer vélho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tam rico, mandara os seus{347} servos por toda a Galilea para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim: Septimus, tam soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesarea. Errando, esmolando por tantas estradas, êle topara os servos de Obed, depois os legionários de Septimus. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rôtas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.

A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar duma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse êsse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:

—Oh filho! ¿e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do Rabi da Galilea? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Chorazin até ao país de Moab. Septimus é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hebron até ao mar! ¿Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora comnosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. ¿E mesmo que{348} o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tam desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até êste ermo, para sarar um entrevadinho tam pobre, sôbre enxerga tam rôta?

A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:

—Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tam pequeno, e com um mal tam pesado, e que tanto queria sarar!

E a mãe, em soluços:

—¿Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da Galilea, e curta a piedade dos homens. Tam rôta, tam trôpega, tam triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguêm atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh filho! talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O céu o trouxe, o céu o levou. E com êle para sempre morreu a esperança dos tristes.

De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãosinhas que tremiam, a criança murmurou:

—Mãe, eu queria ver Jesus...

E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:

—Aqui estou.

 

FIM{349}

 

 

ÍNDICE

 

Pag.
Singularidades de uma rapariga loura 1
Um poeta lírico43
No moínho61
Civilização81
O tesoiro123
Frei Genebro135
Adão e Eva no Paraíso153
A aia205
O defunto215
José Matias265
A perfeição303
O suave milagre!335

 

 

Notas de transcrição:

Foram encontrados e corrigidos alguns erros tipográficos evidentes, de que não considerámos necessária menção especial.






End of the Project Gutenberg EBook of Contos, by José Maria Eça de Queirós

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