The Project Gutenberg EBook of Contos Paraenses, by João Marques de Carvalho

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Title: Contos Paraenses

Author: João Marques de Carvalho

Release Date: October 27, 2009 [EBook #30341]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-15

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J. MARQUES DE CARVALHO

CONTOS

PARAENSES

 

 

 

 

PARÁ

PINTO BARBOSA & C.—Editores
Rua 13 de Maio
1889

{1}

 

 

 

 

Obras de Marques de Carvalho

VI

CONTOS PARAENSES

{2}

 

 

 

 

DO MESMO AUCTOR

O SONHO DO MONARCHA,—poemeto, 1886, Opusculo

LAVAS, poemeto, 1886, Opusculo

PAULINO DE BRITO, perfil, com fac-simile e retrato do biographado, 1887, 1 vol.

HORTENCIA,—romance naturalista, 1888, 1 vol.

O LIVRO DE JUDITH,—versos e contos para creanças, 1889, 1 vol

A PUBLICAR

HISTORIAS D'AMOR,—contos, 1 vol.

SOROR MARIA,—romance, 1 vol.

THEODORICO MAGNO,—perfil, 1 vol.

{3}

 

 

 

 

J. MARQUES DE CARVALHO

CONTOS PARAENSES

 

 

 

 

PARÁ

PINTO BARBOSA & C.—Editores
Rua 13 de Maio
1889

{4}

 

 

 

 


Pará—Typ. dos Editores, rua 13 de Maio.—1889.


 {5}

 

 

 

 

A MEU IRMÂO

Antonio de Carvalho

 {6}
{7}

 

 

 

AO EXM.º SR. COMMENDADOR

Domingos José Dias

Reconhecimento, Amizade, Veneração.

 {8}
{9}

 

 

 

 

Alegria gauleza

A José Veríssimo

Emquanto esperavamos o almoço,—aquelle almoço ás pressas encommendado no mais que modesto hotel do Pinheiro, fômos dar um passeio pela matta, sob a sombra das grandes arvores copadas.

As senhoras haviam ficado na sala do hotel, aguçando o appetite no bom cheiro de refogado, que lhes chegava da cosinha.

O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 annos, grande rosto quadrado,{10} de longas suissas grisalhas em faces tostadas pelo sol da America.

Travaramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade nos transportara ao Pinheiro.

Ainda não havia duas horas que nos conheciamos, e já grande familiaridade se estabelecera entre nós,—essa familiaridade facil, intima, passageira, das pessoas que viajam.

Estavamos ainda a bordo, e já o meu sympathico companheiro, sentado á amurada, contara-me ser francez, ha muitos annos residente na provincia do Pará, onde tencionava ficar até ao fim da vida.

Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquelle sujeito cuja existencia eu ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por motivos que eu não tratava de saber, tão vivamente me attraía a curiosidade.

Quando saltamos para terra,—emquanto subiamos pela escada da ponte,—convidei-o para almoçar comnosco, e elle acceitara rindo,—com um riso bonachão de quem é dotado de alma simples, sem duplicidade.

Fôra elle quem me propuzéra aquella excursão á matta, para darmos tempo a que o hoteleiro preparasse a refeição, que eu já prevía frugal e triste, attendendo ás condições da terra em que nos achavamos.

Acceitei-lhe de boamente a proposta, com{11} aquella vivacidade alegre de quem vive mezes inteiros encadeiado ao cepo do trabalho quotidiano e toma, de tempos a tempos, um bello dia para descançar um pouco, em a paz d'uma povoação de arrabalde, refestelando-se preguiçosamente na relva odorífera dos nossos grandes e soberbos mattagaes.

E fômos por ali fóra, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de farfalhante cupula de ramos coloridos de um verde-escuro admiravel, cuja uniformidade era quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarello e pelo branco das varias flôres sylvestres, cujas pétalas encolhiam-se um pouco, meio-fanadas pelos raios do sol.

Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por onde a vista se perdia no infinito, após o rio que fugia para o mar. O cheiro acre da marezia andava no espaço, casado ao perfume subtil e excitante da baunilha, cujas compridas favas pendiam dos escuros e velhos galhos d'aquellas arvores seculares. Pássaros voavam céleres, n'um brando ruflar d'azas, soltando pequeninos gritos estrídulos e alegres. De momento a momento, a curta distancia de nós, lagartos cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o folhedo sêcco que juncava o sólo. E lá muito ao longe, no alto, sobre pedaços de ceu de um azul deslavado, que nós entreviamos pelos interstícios das ramas,{12} urubús recortavam-se muito negros, muito pacificos e espalmados, nos seus vôos arredondados, pairando como n'uma contemplação enamorada da terra que os sustenta com suas putrefacções, com seus resíduos infames e nojentos.

De repente, o meu companheiro disse-me:

—Sentemo'-nos aqui. O sr. ja deve estar cançado d'esta longa caminhada.

Não tinha a minima accentuação estrangeira; fallava como um verdadeiro paraense.

Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de bruços, com o pescoço estendido e o grande chapéu de palha do Chile a descer-lhe para a nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte d'elle.

Ficamos calados por alguns minutos.

Elle fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos haustos sensuaes aquelle bom cheiro acre e sylvestre que a terra exhalava.

Perguntei-lhe de repente, não achando outra coisa a dizer-lhe:

—O sr. é casado?

Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expressão investigadora de quem deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois respondeu:

—Não... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viuvo.

—Ah!

—É verdade. Sou viuvo e tenho-me dado{13} muito bem n'este novo estado de quem vive sem as preoccupações do homem casado, que tem uma familia a sustentar. Bem tolo é quem se casa...

Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos.

Um pequeno sorriso enigmatico frisava-lhe o labio superior, traçando nas duas faces profundas rugas obliquas que, nascendo das azas do nariz, partiam a perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das suissas.

Eu não comprehendia bem o que diziam aquellas palavras, assim sublinhadas por similhante sorriso.

Elle pareceu-me haver adivinhado a minha duvida, porque disse, apertando-me as costas da mão direita, como para chamar para si toda a minha attenção:

—Está curioso, não? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de arribação que vive no seu paiz e que tanta alegria traz sempre no coração, no rosto,—nos labios e no olhar? É uma historia muito longa a minha, meu caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvil-a? Não perderá nada com isso; pelo contrario, creio aproveitará alguma coisa com a moral que tirar das minhas palavras, depois de me dar toda a razão nos actos que pratiquei. Logo que me ouvir, o sr. verificará que é muito certo o rifão: Tristezas não pagam dividas, e adquirirá a certeza de que, n'este mundo, o{14} melhor meio de se gosar saúde e viver tranquillo, é ter o coração calmo como a bonança e grande como a barriga do dezembargador Delfino. Ora vire p'ra cá as oiças e preste attenção.

Sentei-me. Elle fez o mesmo e começou, sorrindo sempre:

 

—"Quando cheguei ao Brazil, trazia algumas dezenas de contos de réis, herança de meu pae, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando logo um socio que possuia capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de dinheiro, que o meu socio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma hispanhola réles e velhaca de um hotel da cidade.

"Um bello dia fallimos,—por causa dessas extraordinarias despezas capazes de desfalcarem os replectos cofres de um Crésus. Cuida que apaixonei-me por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado, sem vontade para continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu espirito é refractario a tristezas,—o meu coração grande de mais para fazer-se pequenino e mirrado por tão pouca cousa. Um ou dois contos de réis que pude ganhar em certo negocio, após o naufragio a que fôra conduzido pela doidice de meu socio, empreguei-os em comprar algumas joias de ouro falso, em mercadorias de contrabando, e, com um volumoso carregamento barato,{15} segui para o rio Madeira, afim de explorar em meu unico proveito a ingênua simplicidade dos seringueiros.

"Não me falharam os calculos: mezes depois voltei ao Pará, e adquiri maior carregamento, que fui de novo impingir ás remotas regiões do alto Madeira, onde os jacarés e onças respeitaram-me sempre a delicada posição de inoffensivo estrangeiro, que carece de protecção, que não deve ser offendido nunca em um paiz amigo!"

Calou-se. Em sua larga bôcca de expressão franca e descuidosa estava o eterno sorriso zombeteiro, aquelle sorriso sympathico, que me attraía para esse homem com toda a enorme força de um robusto affecto nascente.

 

Accendeu um charuto e continuou:

—"Para encurtar prolixidades: seis annos depois de nossa fallencia, eu regressava definitivamente ao Pará, trazendo uma solida fortuna amoedada em bons contos de réis palpaveis, em notas do Thesouro, no fundo da mala. Tratei logo de cumprir as imposições de um dever: paguei a todos os crédores da massa fallida, sem excepção de um só! Uma d'essas dividas da firma era uma anquinha,—uma anquinha!—que meu socio havia comprado para a sua Venus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que estabeleci-me pela segunda vez,—d'essa{16} feita sem socio, para não mais ser prejudicado por ninguem.

"Quiz a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga paraense,—farta carnação morenamente excitante e grandes quadris arredondados, divinos,—filha de um subdelegado de policia. Casei-me com ella alguns mezes depois de a ver. Não tinha educação, era estupida, mas possuía a convicção da belleza nas fórmas, a imponencia da sensualidade no olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto?

"Dois annos vivi eu nos braços de uma felicidade illimitada. Luiza, a minha captivante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em minha infinita affeição serôdia, e cada vez mais revelava-me um esplendido segredo de sua magnifica belleza de crioula! Era um delirio, uma loucura dulcíssima e purificadora, aquelle amor que eu lhe votava com toda a vibrante virilidade do meu corpo e da minha alma! A pequenina casa em que viviamos era para mim uma Capua desejada, onde a minha languidez encontrava tranquillo bem estar, nos braços da seductora Luiza. O dia seguinte, que para muitos é um enigma atterrador, apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reproducção inalteravel da vespera e do dia presente. Horas suavíssimas de um amor intenso e bom, como fostes amadas pela piéguice da ingenuidade do meu espirito!"{17}

Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualisação prazenteira. Mas fitou-me, e logo o tal sorriso ironico volveu a arregaçar-lhe a rubra ponta do labio grosso e varonil.

E proseguiu, após haver accendido o charuto que se apagara:

 

—Eu tinha inteira confiança em Luiza. Jámais a idéa de uma perfidia de sua parte me passara pelo tranquillo espirito de marido que confia. Como poderiam enganar-me aquelles olhos tão bellamente claros e brilhantes, aquella bocca de perfumosos labios que davam beijos tão doces, tão sensuaes, tão irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O meu espirito era o espelho onde se reflectia o meu coração e onde eu suppunha ver a alma de Luiza, estava realmente a minha, a minha que em breve tinha de ser tão rudemente ferida pelos factos!

"É como lhe digo. Luiza era um demonio, longe de ser um anjo, como eu a phantasiava na benevolencia do meu illimitado amor. De imaginação creadora e ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Marajó, que viera á cidade, e um bello dia, quando, ao caír da tarde, regressei a casa para jantar, não mais a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro que eu tinha em casa e fugira com o sobredito cujo mencionado{18} vaqueiro, como vim logo a saber, por informações ministradas pela visinhança, com grande vergonha dos meus brios de homem robusto, completo, valente e, na minha valiosa opinião, não de todo incapaz para o principal fim a que visava aquella ardente mulher material e voluptuosa.

"E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as leis do seu paiz em punho? Que fui buscal-a ao meio dos touros de Marajó, onde, por certo, ella repousava, muito languida e sensual, nos braços do cyclopico vaqueiro? Que expuz á irrisão publica, ás chufas da plebe, a ignara patifaria de minha mulher e a irreparavel deshonra do meu nome? Nada d'isso, meu caro! Deixei-a ir, sem me incommodar! Olhe, mandei-lhe mesmo umas camisas e anagoas de que se esquecera com a precipitação da fuga! Veja até que ponto fui complacente. Veja que santa bondade a minha!

"A desgraçada morreu um anno depois, victima de béri-béri; pois bem; para mostrar a Deus que não sou de todo mau, mandei por alma de minha mulher resar, na egreja do Carmo, uma triste missa de requiem, a que assisti com respeito e piedade."

Calou-se, sem uma commoção no rosto ou na voz. Falava como se tratasse do tempo ou da côr do céu n'aquelle momento: com a maxima placidez. E logo o seu velhaco{19} risinho sarcastico saltou-lhe da bôcca e veiu espreitar-me de sobre o labio superior,—como se fosse um depoimento vivo da tranquillidade d'aquella alma em face de todos os extraordinarios acontecimentos que por cima d'ella haviam passado, sem conseguirem emocional-a.

 

O meu companheiro, o meu extranho conviva, ergueu-se e, accenando-me para que acompanhasse-o, seguiu em direcção ao povoado, cantarolando esta pandega quadra do Dia e a Noite, de Lecocq:

Minha mulher, que Deus levou,
Foi-me infiel constantemente;
Nada d'isso me acabrunhou:
Levei o caso alegremente!{20}
{21}

A convalescente

Ao dr. Alvares da Costa

Estava pallida e triste, encostada levemente á grade do camarote, n'aquella noite de estréa.

Os seus olhos, negros como a sêda que o seu delicado corpo vestia, divagavam pela platéa, indecisos, sem fixarem-se em ponto algum. Parecia uma d'essas melancholicas personagens de George Sand, phantasticas e idéaes, bellas, todavia, mesmo na falsidade da sua creação,—vivificada por um mysterio e conduzida áquella sala d'espectaculo,{22} onde ostentavam-se as formosuras das moças da moda e as austeras sobrecasacas dos burguezes, sob a intensa luz do gaz.

E ella estava sempre pallida, encostada levemente á grade do camarote.

Nos labios tinha ingênuo sorriso, que espiritualisava-lhe a expressão da sympathica physionomia.

Um engraçado diabrête, primo d'ella, brincava-lhe com o leque.

Quem binoculisasse aquelle camarote, havia de sentir apoderar-se-lhe da alma uma commoção de piedade, tal era a melancholica tristeza evolada d'esse logar, d'onde ella dirigia o seu negro, o seu profundo olhar para a platéa, cujo ambiente saturava-se mais e mais dos effluvios de lindos lenços rendados, dos perfumosos lenços discretos das jovens damas....

E aquella encantadora creança que, sempre triste, encostava-se á grade do camarote, apresentava na pallida physionomia os vestigios do soffrimento, que tanto a tornava sympathica aos olhos da burguezia austeramente séria sob a luz intensa do lustre.....{23}

Desillusão

A Fontes de Carvalho

A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente zombeteiras dos moços que fingem cortejal-as por distracção.

Tinha ella a tez,—enrugada e molle como a casca do janipapo maduro,—salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas; encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz, comprado{24} sempre na Loja Mariposa, da qual o co-proprietario Affonso,—o sympathico Affonso,—vendia-lh'o com muita dóse de réclames e chamadas de attenção para a superioridade da fazenda.

Usava uns vestidos fóra da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos quaes primavam os enfeites vistosos,—uma garridice da sra. d. Joaquina.

O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refêgos da engelhada epiderme,—posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a cara suada d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos edade.

As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna do direito de aspirar a um bom casamento"—como ella pensava e dizia mui confidencialmente a certas amigas particulares.

Sempre houve maledicentes no mundo (salve a chapa!): foi por isso que uma d'essas amigas, tendo tido uma altercação com ella, retirou-se de seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa personagem pintava os cabellos, que, se não recebessem quotidianamente os respectivos affagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar soffrivelmente russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, suppoz equivaler aquella{25} affirmativa a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente.

A sra. d. Joaquina possuia uma educação mediocre, apenas sufficiente para conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto á educação moral; quanto á intellectual, lia com desembaraço e alguns tropeços prosódicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou tres namorados que tivera antigamente.

Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu spleen de senhora entrada em annos e votada á lastimosa condição de tia. Ai! A pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade casado com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, escudavam-se n'uns vinte e dois annos de existencia. Ella não acceitara o amor d'elle, sonhando desposar um joven barão, muito rico e elegante, como um que conhecera n'um romance do insípido Ponson du Terrail. O barão, porém, nunca appareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o Guedes, n'um momento de lucida reflexão, resolvera viver em calmo e economico celibato, apenas conservando em casa a Belisaria, cosinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe affagos cheios de faceiros quindins, nas horas de{26} amor, e bôas tortas de camarões seguidas de compotas de delicioso bacury, á sobremesa.

Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jámais tivera informações exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente que um fôra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou, talvez pela seducção d'alguma yára encantadora. Do outro constava apenas que partira para seu paiz natal,—Portugal,—afim de ir saborear á lareira, nos longos serões de inverno,—quando o suão sibila em as grandes chaminés ennegrecidas,—os succulentos nácos de paios da Beira,—d'aquelles paios tão glutonamente decantados pelo illustre poeta João Penha.

Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a dizermos tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas e dulçurosas esperanças de captivar o rebelde coração do Francisco da Natividade, o elegante dono d'uma das melhores lojas da rua dos Mercadores. Este, porém, parecia não partilhar das mesmas intenções, porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem estremecer, sem pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flôres, fazia-lhe presentes de toalhas de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando elle ia á casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros{27} accêsos aos charutos, roçando os dedos nos d'elle, para mudamente lhe revelar a sua paixão.

Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria rede de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus actos relativos ao bom andamento d'aquelle amor.

Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.

A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia tão natural, attraíu as boas graças da digna solteirona, que logo sympathisou com elle. Em menos d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma attenciosa admiradora do "seu caracter austero."

Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos, desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.

Levada pelas erupções d'aquelle seu coração vulcanico, ella começou a amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o Francisco da Natividade. Cedo surprehendeu o bom moço as amorosas manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o parente sobre o affecto d'ella, para obedecer aos{28} dictames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora.

Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, já no Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pállido, perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma suffocação, seguida de agudas dôres na parte interna do thorax, as quaes communicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.

—Santo Deus, que vejo?!—exclamou o tio, assustado.—Já, um medico, depressa! continuou, a correr attonito pela sala....

O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendações sobre o tratamento.

Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém, teve uma verdadeira e forte hemoptysia. Lá foi o moleque chamar novamente o doutor.

Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que podesse. Assoberbado por tão assustadora recommendação, o bondoso{29} Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete que do Pará saíu seis dias depois.

No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando verdadeiras lágrymas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:

—Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o que lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!

—Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... Adeus!

Chegando á cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso pé de restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de tudo quanto podésse fazer-lhe mal. Estes uteis entretenimentos levaram-n'o a esquecer-se da sra. d. Joaquina.

Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os medicos lhe recommendassem que não viesse ao Brazil, tratou de procurar emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se caixeiro viajante d'uma conceituada casa commercial, para ir fazer cobranças pelas provincias.

Na vespera do dia em que tinha de seguir{30} para a primeira excursão,—ao Alemtejo,—estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão no bolso d'um paletot que só vestia em viagem, encontraram seus dedos um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe déra a sra. d. Joaquina.

—Ah! que esquecimento o meu!—exclamou.—Que juizo não terá feito a meu respeito a impagavel senhora....

E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.

"Meu bom amigo,—leu.—Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito afflue-me aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o: amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração! (Isto copiou ella do romance A Caridade Christã, de Escrich,—pensou Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se fui por si acolhido o meu amor. (Aquelle fui é que era genuinamente d'ella, só d'ella; o Raul bem o conheceu). Espero ancioza a sua resposta, com a qual o meu amigo remeter-me-á meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua eternamente,—JOAQUINA."

 

Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle modelo d'orthographia,{31} propriedade de termos e syntaxe; mas, logo fez-se mais serio e:

—Ora bolas!—disse.—Só os cabellos encantavam-me, por serem tão pretos e lustrosos.... E era falsa aquella côr d'azeviche!.... Que desillusão!....{32}
{33}

A "Serenata" de Schubert

Ao dr. Augusto Meira

I

No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, João estava deitado na rêde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, á luz branda de uma vela de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do Capibaribe, na Casa de Detenção, derramando pelo ar um sôpro de tranquillidade imponente, que fazia os transeuntes apressarem o passo dirigindo-se aos respectivos domicilios. O vento norte,{34} que vinha de Olinda, entrava na sala, e d'esta seguia para o quarto de João, agitando a luz dentro do photo-mobile.

Na invisivel palpitação da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na visinhança. Fanatico adorador da musica, João fechou o livro e prestou attenção. Eram as primeiras notas da Serenata de Schubert, esse magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composições! De um pulo, achou-se abaixo da rêde, fóra do quarto, ao balcão de uma das janellas do seu humilde terceiro andar. E encostou-se á grade, com o rosto descançado na mão direita, dispondo-se a ouvir a sua peça predilecta.

Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios, como extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava no azul-ferrete do céo, por entre multidões de estrellas tremeluzentes, uma diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes montões de nuvens recortados em figuras indiziveis. E d'uma casa proxima saíam as vozes do piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas janellas abertas.

Como todas as musicas sentimentaes, a Serenata de Schubert possue isto de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro da meditação tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que são sempre, quer dolorosas{35} quer alegres, um grato consolo para a alma.

Foi por isso que João, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e redolente dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu querido Pará, podia ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella que deve um dia ser sua esposa.[1] Foi tambem porisso que o moço estudante de direito recordou-se,—e com quantas saudades!—da magistral execução que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro allemão,—uma execução toda sentida, interpretando os minimos segredos, com dulcíssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao espirito e suaves langores ao corpo.

Entrou João a imaginar que estava no Pará, ao lado de sua querida companheira, junto ao piano d'ella, no perfumado socego da sala deserta, extasiado na audição d'aquella phantasia esplendida! E logo, por uma transformação imaginativa, o piano{36} da desconhecida vizinha tomou aos ouvidos d'elle um som particular, intimo, que o commovia todo, chamando-lhe duas lágrymas aos cantos dos olhos! E, por esta causa tambem, á sua alma pareceu ver desfilar nas pacificas paredes da casa fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual déra-lhe outrora tantos prazeres, e que tinha presentemente a expressão poetica, porém saudosíssima, de uma tela de Watteau....

Esse quadro, eil-o:

[1] Este conto foi escripto em 1886. A donzella de que se trata está hoje casada com o heroe da presente narração e póde gabar-se de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida e a mais leal das esposas... com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga de todas as mães.

II

Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sôar no relogio da varanda. Um socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a familia estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sofá. Das ruas vinham pelas janellas abertas fortes sôpros de brisas cheirosas e sons de guitarras fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de transeuntes. A espaços, uma voz, um grito chegava até á sala, revelando que pela cidade havia quem passeiasse, tentando festejar o anniversario do nascimento de Christo.{37}

Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora sugava a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o cólo de sua virtuosa mãe, a qual, supposto conversar com o extremoso marido, não afastava do rosto da filha os grandes olhos expressivos, fluctuando n'um lago de ternura meiga e immaculavel como um beijo maternal.

Contemplando este quadro rubenesco, João pensava nos santos prazeres do lar,—elle, que era um mísero orphão, um desgraçado pariá do amor!—emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle, falava-lhe compungida ácêrca de uma infeliz mulher que, pela manhã, recebera de suas pequeninas mãos bemfazejas, roupas e sustento para os filhinhos. E dominando a todos, no meio do sofá, com a expressão suavíssima do rosto espiritualisada por um sorriso que venerandamente lhe frisava os labios, o velho Antonio, de cabellos e longas barbas sedosos e brancos, dirigia-se ao filho mais moço, ao Theodoro, aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe como exemplo a seguir várias scenas a que assistira em sua passada vida commercial.

Uma exhalação de virtude emanava d'aquelle grupo: revelavam os rostos a tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depõe muitas confianças no futuro.{38}

De repente, n'um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz ergueu-se da rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra:

Folguem todos n'esta noite,
Venha a festa sem egual:
—Hoje em nada se repara,
Porque é noite de Natal.
Hoje em nada se repara,
Porque é noite de Natal.

E a guitarra chorava em tom menor, fazendo côro ao ritornello. A voz de um agradavel tenor prendeu logo a attenção dos que estavam na sala:

Esta noite abençoada
Pertence aos que têm amor;
No presepe bethlemita
Veiu ao mundo o Deus-Senhor.

Novo ritornello choroso na guitarra.

Por isso, moços e moças,
Entregae-vos ao prazer,
Emquanto não vem a edade
Vossa fronte encanecer!

Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra.

Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantára a cabeça, n'uma energia de movimento,{39} com as narinas afflantes, os anneis da cabeça tremendo-lhe sobre os hombros.

—Tôlo!—exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se agora ao longe, na extremidade da rua.—Pois que venha cá, a ver se os velhos não têm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me dirá ao depois se eu não amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o meu Theodoro e á innocentinha que ahi dorme sob as bençãos do meu olhar!..

Um soluço gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a encarnação do carinho e, muito piedosa e pura,—qual um raio de sol illuminando a face de uma estatua antiga,—foi beijar amoravelmente a fronte do ancião....

Que não se affligisse, pediu-lhe affagando-o;—que não désse importancia a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que intensidade elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d'esse amor. E demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor, não valia a pena entristecer-se....

—Para o lado os pezares!—terminou sorrindo.—Como distracção agradavel a todos, vou tocar ao piano a Serenata de Schubert.

Já se tinha João levantado, prevendo{40} este desfecho: correu ao piano, abriu sobre a estante a musica desejada e, accendendo as velas, sentou-se ao lado do banquinho, que Dhalia veiu occupar.

III

E começaram então as primeiras melodias da Serenata.

João cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audição da formosa peça, tão bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica comprehendia os segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma figura, ao principio fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo, apparecendo em primeiro plano, desenhou-se na tela da imaginação do moço. E surgiu então um joven de bandolim em punho, debaixo dos balcões floridos de um elegante castello, que se erguia a meio de uma paizagem germanica, onde os robles farfalhavam á borda dos lagos tranquillos, sobre cujas superficies grandes garças deslisavam elegantes, ruflando as{41} brancas pennas em donosa magestade. E a voz a'elle era meiga qual um canto magico de yára amazonica, sentida como uma recriminação paternal, doce como um beijo apaixonado. De seus labios côr de papoula distillava-se o mel da musica de Schubert, que ia cair com uma suavidade de balsamo sobre a alma enamorada de uma joven castellã formosa, occulta entre os refólhos das colgaduras das janellas! A voz do amoroso trovador tinha um não sei quê de melancholico, um tal cunho de poesia dolente, que João emocionou-se tanto em face do quadro que a sua imaginação lhe descrevia, que não pôde deixar de cantarolar baixinho, com um meio sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretação de Dhalia:

"O Châtelaine,
Entend ma peine!.."
...................
...................

Dhalia executou o morendo final da Serenata. João acordou da sua rêverie, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico bailava um risinho engraçado.

De pé, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante illuminado n'uma expressão de ineffavel ventura.{42} Dos labios entreabertos parecia escapar-se-lhe uma benção muda, que se completava pelo gesto das mãos erguidas e espalmadas no espaço!.. Era o pae a abençoar o futuro feliz dos filhos idolatrados!


IV

Estava n'este ponto a saudosa recordação do moço estudante, na janella do seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano da vizinha desconhecida gemia tambem o adoravel remate da Serenata.

João sentiu-se commovido por aquella musica inspiradíssima, que lhe avivára tão grata lembrança de seu venturoso passado,—agora que elle estava ausente do querido sólo natal, onde moravam todos os que possuiam-lhe a flôr do affecto. Ergueu os olhos ao céo, n'uma necessidade de soltar livremente o espirito pela amplidão infinita do vacuo. No firmamento azul tachonado de louras lucilações, o crescente de lua{43} vogava para o occaso como uma alegria fugitiva; pequeninos flócos de nuvens seguiam, muito calmos e ethéreos, pelo espaço adeante, projectando sombras cinzentas sobre o calçamento da rua. Da margem opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se bradando—alerta!—á sentinella.

Então, por um impulso de agradecimento, o espirito de João partiu pelo infinito a fóra, chegou ao Pará, atravessando a cidade, e foi ajoelhar-se piedoso á modesta pedra gradeada que sella o tumulo venerando de Antonio, o estremecido pae de sua noiva.{44}
{45}

Que bom marido!

A Juvenal Tavares

Não desejarás a mulher do teu proximo.
              MANDAMENTO DE DEUS.

Havia já tres annos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas scintillações que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante que para ella dirigisse escrutador olhar.{46}

Elle era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivéra,—tempestuosa e poída nas orgias,—encanecera-lhe completamente os cabellos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde cruzavam-se numerosas rugas sobre a pelle côr de ginja.

Ella tinha dezoito primavéras,—para me servir d'uma velha expressão do romantismo;—ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e marotos. Têz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste da angélica, era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadíos,—d'esses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.

O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a manga da sobrecasaca o solenne chapéu alto, dava um chôcho á mulher e saía para a repartição com o passo do empregado publico:—impassivel e cadenciado.

Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena caricia e{47} voltava á varanda, afim de dar algumas ordens ácêrca do jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeição, ía sentar-se á machina de costura, que dava-lhe não diminuta receita para as despezas diarias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a qual lhes permittia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e um passeio a bond em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de Nazareth, algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e nova.

Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus adoradores,—rapazes toleirões, aos quaes ella, diga-se a verdade, não ligava muita importancia. Entre esses moços, quem mais assiduamente a requestava era um tal Jacyntho,—um leão conquistador que falava pelos cotovêllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias depois do casamento d'ella, por occasião d'um passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifacio, quando Elvira ía para a janella,{48} emquanto o marido, na varanda, jogava o sólo com o taberneiro da esquina e o visinho da direita. Ao passar em frente a Elvira, enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este ultimo e conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder áquelle. Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que tambem não deixava de ir para a janella assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bólo. É que a interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não podía se contentar com os sós affagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se áquillo a que chamava "uma distracção", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para commetter um crime.

Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo a esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança{49} no futuro, que resolvería, com vantagem,—aquelle interessante problema de amor.

Uma tarde,—era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado por ver que a sua querida não estava á janella. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um só vivente se via.

Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:

—Onde está a d. Elvira, minha filha?

A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, metteu na bocca o index da mão direita, conservando-se calada.

—Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira?—insistía o leão fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.

Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da fregueza e disse, ainda meio acanhada:

—Está lá dentro....

—E o sr. Bonifacio?

—Saíu.

—Dou-te outro nickel se fôres levar uma carta á tua senhora, queres?

—Eu quero....{50}

Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por cautella, não datára nem assignára. Entregou-a á mulatinha e conjuntamente outro tostão.

Depois seguiu pela estrada adeante.

 

Elvira não deu resposta áquella carta, que lhe revelára o grande amor que por ella sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou, seguindo pelo passeio, rente á janella. Sacudiu-lhe ao cólo nova epístola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não era-lhe indifferente, mas que devia abrir mãos áquelle amor, porquanto a sua "posição de mulher casada não lhe permittia tão gratas liberdades."

D'então em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos d'aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscencias de muitas leituras romanticas{51} deram causa á correspondencia criminosa.

Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões além d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente.

Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa, de volta d'uma visita que fôra fazer a seu chefe de secção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a attenção de velho curioso.

—Que levas ahi?—perguntou.

—Não é nada....—respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos paraenses.

—Não mintas! Eu vi não sei quê!—bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objecto.

Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:

 

"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vae ouvir a missa do gallo em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha á 1 hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.

ELVIRA{52}

O Bonifacio subiu ao arame; ficou da côr da purpura e sentiu uma violentíssima dôr de cabeça. Teve impetos ardentes de ir assassinar a esposa infiel; reflectiu, porém, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe appareceu a subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria vingança.

—Toma, leva,—disse entregando a carta á rapariga.

E entrou.

Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgasões de moços d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direcção ás differentes egrejas onde se deve rezar a missa do gallo.

O sr. Bonifacio, que levantou-se á ultima pancada das 11 horas, sae para a rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dôr de cabeça...."

Á 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos ligeiros até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas. Respondeu-lhe do interior um leve arruido. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregosando os prazeres que ía fruir na conversação de Elvira, quando{53} subitamente exhalou um grito, dando um salto para o lado.

Era o respeitavel sr. Bonifacio, que saíndo de traz da mangueira onde occultára-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivéra a lembrança de namorar-lhe a mulher.

Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a soval-o fortemente, n'uma agitação febril....

O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa do gallo.

Quando cançou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que achava-se por terra, com os ossos quasi moídos:

—Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! Não torne a caír na asneira de namorar moças casadas!

E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida de medo.{54}
{55}

Noite de finados

A Manoel P. de Carvalho

O cemiterio de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos de preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas. Eram oito horas da noite sob um céo trevoso como a tristeza d'aquellas pessoas que ali se recordavam com saudades pungitivas dos parentes e amigos para sempre occultos debaixo da terra, sobre a qual compridas filas de vélas accêsas lançavam uma claridade intensa, que ia esbater-se ao fundo, na escuridão do mattagal.{56}

O ar estava impregnado do perfume das flôres—piedosamente depostas em cima das sepulturas por mãos amigas,—e do cheiro mystico da cêra queimada.

Ao longe, á direita da ermida, uma banda de musica executava plangentemente uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades lugubres faziam suspirar as velhas beatas,—aspirando a uma outra vida desconhecida, além d'aquelle firmamento negro, no logar onde a omnipotencia incondicional da Divindade lhes parecia dominar em toda a sua magestade.

Entretanto, de espaço a espaço, grandes ondas de povo invadiam o cemiterio. Este, áquella hora, mal podia contel-as; porisso, as pessoas que receiavam um atropello, saíam enfadadas, murmurando indecencias.

Á porta, do lado exterior, cocheiros desboccados conversavam livremente com as pretas sentadas em frente das bandejas de doce allumiadas pelas lanternas que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repellentes, de vestes sujas e mal cheirosas, plangiam supplicas, tentando demover em seu favor a caridade dos visitantes piedosos.

Alguns vadios encostados a um rico mausoleu de marmore assetteavam olhares torpemente libidinosos ás moças que entravam seguidas de suas mamães, n'um{57} andar assustadiço e saudando um ou outro conhecido com um meneio de cabeça. Mais adeante, n'um canto escuro, uma roliça mulata, com o vestido muito decotado, murmurava amabilidades a um preto de physionomia horrenda empertigado n'um fato novo e com a cabeça coberta por um descommunal chapéu alto. Como contraste, não muito longe, estava uma senhora pobremente trajada, com os cotovellos pousados á grade ferrugenta d'uma sepultura mal allumiada por duas vélas em castiçaes de vidro.

Dos olhos d'ella, que estavam fixos em uma corôa de perpetuas rôxas, corriam lágrymas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas do capim que vegetava entre as junturas dos azulejos desbotados....

Era sem duvida alguma viuva que pagava á memoria do finado marido alguns annos de amorosa e suavíssima coabitação na terra...

Á esquerda, contemplando uma photographia em miniatura encerrada em negro caixilho e suspensa ao centro da cruz d'uma sepultura pequenina e toda coberta de jasmins, trevos, japanas e madre-silvas, via-se uma senhora de cabellos grisalhos, immovel, calada—como evocando passadas scenas de prazer—sem ouvir as plangencias da orchestra, que proseguia no funeral tristonho....{58}

O céo, no entanto, enchera-se d'uma luz suave e esbranquiçada. Grandes nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as bandas da cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluço d'almas penadas fazia farfalhar a matta proxima, causando arrepios de mal-estar ás supersticiosas moças que estavam no cemiterio.... Agora calára-se a orchestra.

Subira um prégador para um pulpito armado ao ar livre, sob uma arvore de grande côma sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos tragicos, uma homilia contristadora sobre a transitoria felicidade mundana e a perenne bemaventurança celestial.

As mulheres,—mães, filhas, esposas,—que o ouviam, ficavam caladas, muito sérias, com os olhos grandemente abertos fixos em seu rosto bronzeado; no intimo, porém, no fundo da consciencia, levantavam um brado de maldição áquella felicidade que lhes roubára a companhia dos entes queridos e amoraveis.

Um homem de cabeça encanecida, que vagueava levando pela mão uma creança de tenra edade,—um lindo e pallido orphãosinho,—voltou-lhe costas nervosamente, soluçando, e fugiu para junto de um pobre tumulo tranquillo, em cuja grade se lia este lancinante poema de uma só phrase:—Á minha esposa....

No céo, as nuvens afastavam-se, evolavam-se{59} como alegrias fugitivas ou prazeres expulsos, erguiam-se n'uns grandes rendilhados phantasticos de miragens variadas.

A lua appareceu, como uma saudade enorme e cruciante, n'uma serena magestade tumular, que impoz vago soffrimento ao coração de todos. Os brandões e vélas perderam o brilho, ficaram como pyrilampos lantejoulando os sepulchros sob o luar diaphano, a cuja claridade continuava o pregador a recordar a omnipotencia de Deus.

Os bonds estacionados na praça encheram-se de passageiros. Minutos depois seguiam pela estrada da Independencia, replectos de homens, de senhoras tristes, com physionomias de soffrimento.

Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos homens. O largo estava illuminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquella noite a penultima da festa annual.

Então, os mesmos homens que estavam rendendo ha poucos minutos uma saudade á memoria de um amigo, d'um irmão, d'um pae, desciam agora ao centro da festa popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as casas de jogo,—propellidos pela fascinação demoniaca e terrivel da roleta!{60}
{61}

Rio abaixo

(Ao dr. Gaspar Costa)

A canôa seguia mansamente, per si só, impellida pela correnteza.

Sentado á prôa, fumando n'um cachimbo de longo taquary, o caboclo fitava com o olhar indolente os altos e esguios assahyseiros e as longas folhas das bananeiras d'um verde-claro alegre, beijados pelos ultimos raios do sol, que escondia-se por traz da ilha das Onças.

Na pôpa, debaixo d'uma tolda de palha d'ubim, estava o senhor moço, abanando-se{62} com uma ventarola de pennas vermelhas, ao lado da senhora moça, que espreitava para fóra, por um dos pequenos postigos lateraes. A seus pés, dormitava o cão Mururé, com um pedaço de lingua escarlate caída para o lado esquerdo, entre os dentes meio visiveis.

O cheiro acre da marezia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos mattagaes da ilha proxima; cantos sonoros de passaros chegavam até á embarcação, n'uma suavidade docemente melancholica, que fazia sorrir de alegre ternura os dois viajantes.

—Que bonita paizagem, Antonio!

—É certo! Razão tinha eu dizendo-te que gostarias immenso da viagem.

—Quando chegamos ao sitio?

—Ás 9 horas, isto é, d'aqui a tres ou quatro.

—É pena chegarmos tão cedo!

—Dizes bem: vamos tão contentes....

E beijaram-se n'um impeto de prazer extraordinario.

O caboclo, que, por acaso estava a olhar para elles desde alguns momentos, voltou o rosto, embaraçado, sentindo queimar-lhe as tostadas faces um ardor de sangue equatorial em ebulição. Puxou do cachimbo demorada fumaça, para tranquillisar-se.

Os outros, os dois recem-casados,—porque Antonio e Luiza eram noivos: tinham-se matrimoniado quinze dias antes,—experimentavam, debaixo da tolda, uma sensação{63} de ineffavel bem-estar ao verem-se n'aquelle magestoso socego, sobre o Tocantins, dentro da embarcação. Felicitavam-se mutuamente,—com o olhar cheio de caricias,—por haverem podido esquivar-se á vida agitada que levavam em Belém, sempre rodeados de visitas, cujas conversações banaes, nullas, pouco interesse lhes davam. Mas agora,—como iriam viver felizes durante aquella quinzena de fuga, em a tranquillidade bucolica da roça, sosinhos, passeiando sem companheiros importunos, ao longo do rio, tirando caranguejos da lama, lavando reciprocamente as mãos na agua azulada e murmurosa dos igarapés!.... E que festas fariam á hora do jantar, comendo peixinhos pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio nas mattas do sitio?!....

Suggeridas pelo sopro de socego que parecia rodeal-os no meio do rio, estas idéas levaram-n'os a conversar animadamente, risonhamente, sem attenderem a que o sol não mais vibrava os lategos luminosos no dorso da corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da canôa, afim de gozarem da viração fresca e cheirosa que agitava n'um movimento descompassado as velas mal colhidas ao mastro.

Sempre assentado á prôa, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o caboclo{64} olhava agora para o poente, como confidenciando mentalmente com o sol, que deixára um rastro avermelhado no céo, onde agrupavam-se em desordem nuvemzinhas côr de nácar, violetas, azuladas, plumbeas, côr de perola. Do lado opposto, levantava-se a noite, n'um andar manso, mathematico, extinguindo a pouco e pouco o crepusculo bruxoleante.

O gorgeio dos passaros cessára na ilha das Onças, que já tinha ficado atraz, a longa distancia; só chegavam á canôa os compassos em andante do canto de um carachué que saudava a noite d'uma pequena ilha, rente á qual passou a embarcação.

—Vê ahi no meu relogio que horas são, José, ordenou Antonio ao caboclo.

—Seis e trinta e oito, sinhor.

—Oh! então saiámos d'aqui, filha, vamos tomar fresco.

Vieram para fóra.

Luiza soltou uma exclamaçãosinha, sonora como um soneto de Paulino de Brito, engraçada como uma satyra de Julio Cezar, com a sua voz d'um timbre argentino como um filete de agua morna caindo n'uma banheira d'oiro lavrado:

—Ah!—fez ella.

E deixou-se ficar de pé, encostada ao hombro do marido, extasiada, em frente ao pittoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.

Largo em aquelle sitio, achamalotado{65} pela brisa, o rio abraçava numerosas ilhotas rasas, cobertas d'uma vegetação opulenta, que esbatia-se n'uns tons escuros, quasi indecisos, no limite do horisonte. Um socego de tabernaculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete do céo, onde as estrellas começavam a scintillar como as pedras preciosas d'um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem occupava n'esse instante um espaço do firmamento. Ao longe, á direita da terra firme, tremulava uma pequena luz. A agua do rio, no fim da vasante, esgueirava-se pelo costado da canôa n'um murmurio dolente. A súbitas, na solemnidade do silencio, resoou um grito d'ave nocturna.

—Accende a lanterna, José,—disse Antonio ao caboclo, que obedeceu logo, voltando depois á sua posição habitual na prôa, fumando.

Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da embarcação, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes jarros com roseiras florídas.

Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido foi á pôpa buscar um chale, cobriu-lhe com elle os hombros, conchegando-lh'o muito ao pescoço, amoravelmente.

Depois sentou-se ao lado d'ella. Era profunda a escuridão. Do logar em que achavam-se, apenas viam na prôa um ponto vermelho{66} como um carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo. Este se tornára invisivel na densidade das trevas.

Antonio e Luiza sentiram-se bem n'aquella solidão: entraram a conversar baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de tão agradaveis recordações. Era para ambos uma innarravel felicidade poderem pairar, assim a sós, das peripecias do curto namôro, dos longos annos que elle passou a amal-a silenciosamente, das emoções e impaciencias do dia do casamento, quando approximava-se a hora em que o parocho de Sant'Anna teria de unil-os.

Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias, n'uma excitação dos sentidos. Um movimento instinctivo,—inconsciente, talvez; cheio de affecto e volupia, com certeza,—uniu-lhes os labios n'um prolongado beijo de paixão, vibrante como um côro juvenil.

Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posição.

Poz-se a pensar nas passadas e saudosas épocas da sua felicidade, fruída com a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetação selvatica e cheia de grandiosidade das florestas amazonicas...

E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosíssima, respondeu áquelle{67} beijo nascido de duas bôccas amantes no silencio de tão linda noite paraense.

Entretanto, a canôa seguia mansamente, rio abaixo, impellida pela correnteza.{68}
{69}

Ao despertar

Ao sr. A. R. d'O. Gomes

Nem tudo o que luze é ouro.
          PROVERBIO POPULAR.

I

A alcova nupcial em noite de noivado.

Um perfume suave de flôres volita invisivelmente pela atmosphera da peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas variegadas em côres desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas{70} discretamente cerradas... Uma lámpada com vidros baços, côr de leite, esparze branda luz em torno, sem crepitação, n'uma solenne impassibilidade, que dá certo ar magestoso ao silencio do recinto.

Dois pares de pantufos de sêda branca escancaram as cavas como n'um bocejo, sobre a fina alcatifa azul, aos pés da cama.

Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flôres de larangeira repousa meio escondida sob um lenço de fina baptista com um monogramma bordado.

Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pállida e trémula, seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira preguiçosa o elegante espartilho e o corpinho de labyrintho....

Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se lhe antolhavam na vida que ia começar em breve, deixou-se escorregar pelos finos lençóes e descançou a bella cabeça de paraense morena, em cima do travesseiro macio como a flôr do algodoeiro....

E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios contrahidos n'um leve rictus de satisfação, de ventura.

Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n'uma pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado:

—Permittes?....{71}

E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaçados, sonhando felicidades paradisíacas, um perfume suave de flôres volita pela atmosphera da peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas multicores desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente cerradas.

II

O casamento realisado n'aquelle dia fôra o epilogo de um longo namoro de seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como indisposições subitas, brigas e malquerenças de alguns mezes por causa de nonada, e, depois, de repente, pela influencia de não sei que espirito benefico, pazes feitas com abundantes expansões apaixonadas, reconciliações ternas e carinhosas, que os prendiam temporariamente n'um enlevo.

O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios, brazileiro obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfação{72} do homem rico que vive contentíssimo da sorte.

Creara para a filha um ideal—um casamento com um bacharel. Similhante aspiração, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa roda, para a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo,—a mulher morrera-lhe de parto, ao dar á luz um ente rachítico, inviavel,—deixava a filha nos salões e ia procurar as mesas de jogo, para encurtar o tempo.

Assim andaram os dois, por espaço de muitos mezes, em verdadeira peregrinação á cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz attendel-os e appareceu-lhes na fórma de um elegante mancebo, que dias antes chegara de Pernambuco, sobraçando o pergaminho que lhe conferia o titulo de bacharel em direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das graças de Paula. Aquella cutis morena e avelludada; os olhos d'ella,—duas bólas d'onix engastadas em amendoas de jaspe, sombreadas por longos cilios sedosos;—os longos cabellos d'ébano, ondeando-se-lhe pelas espaduas de farta carnação; aquelle bonito torso de opulentos seios na apojadura da juvenilidade;—tudo n'ella prendia-lhe o enamorado espirito em os laços d'uma paixão tão sincera quanto profunda. Mas, sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava a grandes êxtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso espiritualisado e{73} prenhe de beatitude, eram os alvos dentes que perlavam as carminadas gengivas d'ella, quando Paula fitava-o sorrindo, com duas covinhas sobre as faces, bem junto ao rosto d'elle, como desejando magnetisal-o.

Uma tarde, após haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas, foi para casa com a alma perfumada pelo prazer e tão enthusiasmado sentiu-se, que sentou-se á secretária e entrou a fazer uma poesia,—elle que jámais fizera versos!—uma poesia em que abundavam as palavras—seductora virgem, divinal espirito archangélico, em uma terrivel mescla d'enormes pés quebrados, com grande escandalo das regras formuladas por A. Feliciano de Castilho.

Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial.

Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo só pensava nos dentes da noiva, n'esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o encantavam.

E phantasiava um capricho, cuja lembrança era sufficiente para lhe dar ao corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o primeiro beijo que désse á mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca!

Afinal, aquelles dentes eram uma obsessão para Alfredo. Para qualquer parte que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula sorrindo-lhe amoravelmente,{74} incitando-o a uma tentativa agradavel de roubo de um ósculo. O colete, que elle enfiava n'esse instante, assumia a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos hombros, perto dos quaes pulsava o coração, arfando em anhelos. E, quando o padrinho appareceu entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que já era tempo de ir para a egreja, estava tão abstracto da vida regular, tão concentrado em suas phantasiosas meditações, que abraçou-o commovido, murmurando:

—Que bella dentadura, que tens!

III

Na egreja e á ceia opipara que seguiu-se á ceremonia religiosa em casa do velho pae de Paula, durante a longa e—para elle,—enfadonha conversação subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros, Alfredo só pensava na dentadura da noiva, enterrado n'uma poltrona, com a fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao ouvido, com um sorriso eloquente por traz do lenço amarrotado{75} na palma da mão, opiniões em nada favoraveis á sua reputação de sobriedade em assumpto de succo de uva....

—Que te parece o gajo, hein?—diziam.—Pois isso é lá cousa que se faça? Embebedar-se no dia do casamento....

—Que escandalo!

—Grande c.... O que elle merecia eu bem sei.

E seguiam por esta norma os commentarios—todos reçumando idéas gordurosas e indecentes.

Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente, muito lisongeiado pelas felicitações que lhe foram feitas, com acompanhamento de expressivos beliscões pelos braços e nas gordas bochechas. Afinal, somente faltava-lhe descartar-se do velho sogro que, impassivel como um abbade após a ceia, fumava a um canto, affagando com amortecido olhar a fumaça do charuto, além de forcejar por combater a força dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao cerebro, em razão do abuso que antecedentemente fizéra das bebidas, á mesa, quando brindára, com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe politico do partido e ao Manoel{76} do Rosario, o commerciante que não trepidava em tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasiões de aperto....

 

Que elle, Alfredo, devia, e com muita razão, sentir a impaciencia espicaçar-lhe as costas,—ponderou de repente o sogro, sorrindo malicioso;—que não se enfastiasse, porém, visto como ainda lá estava na alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a toilette. Era natural aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por ellas havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de hymineu elle tivéra nos braços da sua Sancha, uma odivellense tentadora como um demonio formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a evocação da memoria da esposa! Como tinham vivido felizes, n'uma pacata amizade inalteravel, abundante em amorosidades agradaveis e interminas! Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia tratar de imital-o, para fazer a felicidade d'aquella creaturinha innocente e sem defeitos physicos ou moraes que d'aquelle dia em deante devia ser sua mulher. Que a poupasse, que lhe não desse trabalho em demasia para não a fatigar: o dóte d'ella unido ao dinheiro que elle tinha, poderia porpocionar-lhes uma existencia descuidosa nos braços d'uma indolencia salutar propicia á gordura....

E entrava em demoradas considerações{77} a respeito da bôa vida,—como sectario da vadiação, que era.

Appareceu n'esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo recolher-se ao quarto que lhe fôra destinado para passar a noite em casa dos noivos.

Alfredo não quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abraço ao velho e correu á alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos bellos dentes de Paula.

IV

A alcôva nupcial na manhã seguinte ao dia do casamento.

Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na peça e vae beijar as rosas de varias côres que, emergindo de grandes jarros de porcellana, pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos espelhos, como invadidas por um pudor, em razão dos amorosos ruidos que durante a noite inteira sairam, por intermittencias de longos socegos, d'aquella cama honestamente encoberta pelos discretos{78} refolhos das cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam alegremente, cumprimentando o sol e fazendo a côrte ás gallinhas, que cacarejam esgaravatando o chão.

E um como effluvio de ventura evóla-se pelo aposento....

E a luz da lampada de vidros fôscos diminúe de intensidade, bruxolêa palpitante, ameaçando extinguir-se....

Em cima da commoda, a grinalda de flôres de larangeiras occulta-se mais debaixo do lenço de custosa cambraia, como envergonhada, ou como enxugando n'elle as lágrymas que o espirito da Pureza houvesse porventura derramado sobre suas pétalas inodoras....

Aos pés da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de sêda branca escancaram as cavas, n'uma expressão de abhorrecimento pela demorada immobilidade, n'uma expressão de appello aos pés que devem calçal-os.

De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem desperta. E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven noivo, em cujos labios se desenha um franco sorriso de satisfação intima. E lá dentro, na meia sombra que as rendas projectam, dorme ainda a formosa Paula, semi-núa, no inconsciente despudor de um somno que foi agitado...

Alfredo olha para todos os lados, muito{79} contente e risonho. Ao ver o raio de sol que beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua ventura n'um devaneio de grande felicidade por vir.... Mas de subito, estarrecido, confuso, muito pállido e crispando as mãos, entra a tremer todo, com as feições demudadas, os cabellos arrepiados na cabeça encandescida!

Á cabeceira do leito, sobre o elegante guéridon de jacarandá, estava uma dentadura patenteiando um céo de bôcca postiço e acinzentado, feito de massa!.....

E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos pequeninos dentes eguaes e perfilados correctamente....

Então, sentindo enormes dôres em todo o sêr, com o espirito prostrado pela emoção violentíssima, Alfredo cambaleou, soluçando, e foi caír á beira do leito, lavado em lágrymas, a murmurar n'um gemido:

—Estou roubado, estou roubado!{80}
{81}

Poemetos em prosa

I
Bidinha

A Mucio Javrot

Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração ideal e faceira, haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a. Sem o sentir bem, ella começou a amal-o, a amal-o tambem.... Quando, por acaso, encontrava-o em casa da prima, córava, julgava soffrer e gosar a um tempo e entrava a fital-o amoravel{82} e longamente, com essa persistencia abstracta dos verdadeiros extases apaixonados....

O poeta conheceu não ser indifferente áquella moça tão pállida, tão triste, cujo olhar tinha os fluidos voluptuosos das paixões ardentíssimas...

E, não sei bem porque, fugiu-lhe: passou um mez sem ir á casa da prima da Bidinha, para não vel-a. Depois, de si proprio envergonhado, lá foi e encontrou-a, mais pallida ainda.... e com os olhos,—aquelles tentadores, faiscantes olhos eloquentes,—mais, muito mais bonitos... Teve pena d'ella: n'um momento em que ficaram sós na sala,—onde rescendia o perfume d'um ramo de resêda posto n'um jarro em frente ao retrato d'uma velha senhora de fronte enrugada e olhar suave—declarou-lhe amal-a desde muito, intensamente.

Ella, a Bidinha, a pállida donna do álbum que recebêra aquelles ternissimos versos, d'uma inspiração idéal e faceira, sorriu, estremeceu e murmurou apenas quasi inintelligivel som.

D'ahi em deante, a felicidade uniu-os sempre em amorosos colloquios nocturnos, em aquella mesma sala.

*
*      *

Tempos depois, teve o poeta de fazer uma viagem. Os protestos de mutua fidelidade{83} foram longos, como longa deveria ser a ausencia. Dando-lhe o aperto de mão de despedida, quasi desfallece a Bidinha, tal foi a angustia que atravessou-lhe o coração!

*
*      *

Por um artificio da sorte, o poeta esqueceu-se da encantadora creança a quem jurara amor perante o retrato da velha senhora de fronte enrugada, emquanto rescendia na sala o perfume d'um ramo de resêda.

Ella esperou-o durante mezes, durante annos.... Oh! lancinante dôr das longas espectativas!... Espera-o ainda....

Á tarde, quem fôr ao pequenino quintal da casa d'ella, poderá vel-a sentada sob um grande jasmineiro estendido ao longo de vasta latada,—com o olhar suave e tristemente fito nas paginas d'um album, soluçando baixinho palavras de saudosa recriminação.

Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração idéal e faceira, haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a!...{84}

II
Paraphrase ossianica

A Frederico Rhossard

Ó bella, ó seductora Malvina, sae do teu refugio nocturno, desce do rochedo sinistro onde o vento-norte ruge em torno de ti. Acerca-te de mim.

Inflammados sulcos os phantasmas dos mortos traçam sobre as nossas torrentes. Ouço-os passar no meio dos turbilhões e suas vozes fanhosas são os unicos sons a perturbar o magestoso socego das trévas.

Ó tu, cuja mão branca e delicada desferia melancholicos gemidos nas harpas de{85} Lutha, tenta ainda consolar-me com teus hymnos poeticos e dolentes. Desperta essas cordas adormecidas, canta, ó Malvina, e reaviva o meu genio, cuja chamma foi sopitada pelos annos implacaveis.

Vem a mim, ó Malvina gentil, na obscuridade d'esta longa noite que entristece-me. Porque privaste-me da meiguice de teus cantos! Quando o regato cae na colina e róla, depois do furacão, sob a luz radiante do sol, o caçador escuta-lhe com prazer os suaves murmurios, sacudindo a humida cabelleira.

Assim a tua sonorosa voz, Malvina, encanta o amigo dos finados heróes. Infla-se meu peito; o meu coração palpita. Delinêa-se a meus olhos o passado. Vem, ó Malvina, não divagues mais no meio das ténebras!{86}

III
O parocho da aldeia

Ao Padre Dr. Leorne Menescal

É a providencia da pobre aldeia aquelle joven sacerdote de tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus.

A sua parca mesa está sempre ás ordens dos mendigos, a sua porta aberta sempre aos viajantes, a sua bôcca incessantemente murmura consolações ás pessoas que soffrem.

Muitas vezes, alta noite, vão chamal-o para ministrar os socorros da religião a algum enfermo, em qualquer das aldeias{87} que formam a serrana freguezia. Então, levanta-se ás pressas, monta a cavallo e lá vae montanhas fóra, a galope, ladeando tenebrosos precipícios, sob a chuva, tiritando de frio, impassivel como um heróe e contente comsigo mesmo, sentindo-se alegre por ir cumprir um dos mistéres que lhe impõe a sua profissão, tão bem comprehendida por sua bella alma!

Nada o assusta, nada o intimida, pois tem a certeza de que todos aquelles montanhezes simplorios amam-n'o sinceros e respeitam-lhe os conselhos de paz e bondade.

Quando começou o movimento abolicionista na Fortaleza, o recto sacerdote arvorou-se em defensor dos escravisados na sua modesta parochia da serra de Baturité. Em poucos mezes, graças a seus esforços e á illimitada sympathia que a todos inspira, as aldeias sob o seu vicariato não tinham um sêr captivo: todos eram eguaes!

Quando sae de casa, encaminhando-se á pequena egreja, cuja torre branca de neve lança-se para o firmamento no alto de verdejante collina, as creancinhas, que bricam ás portas das casas, acodem a beijar-lhe a mão e as mães saudam-n'o respeitosas, balbuciando uma benção....

Aos domingos, á prédica do Evangelho, vi-o, por differentes occasiões, fazer com a uncção de sua palavra, que as lágrymas borbulhassem nos olhos dos assistentes. Domina-os a todos com o seu irreprehensivel{88} modo de viver, fertilíssimo em bons exemplos.

Nada possue: dá tudo aos necessitados, sem ostentação, naturalmente!

Ah! bemdito sejas tu, Providencia da pobre aldeia, ó caritativo sacerdote de tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus!....{89}

IV
Ao Sol
[2]

A Fernando A. da Silva

Ó tu, que rolas por cima de nossas cabeças, resplandecente como o escudo de nossos paes; d'onde saem os teus raios, ó sol? D'onde vem a tua luz? Caminhas em tua magestosa formosura. Vendo-te, escondem-se as estrellas no firmamento; pállida e fria, a lua afoga-se nas ondas do occidente. Ficas sosinho, ó sol: quem poderia acompanhar-te o curso?{90}

Caem os carvalhos das montanhas; as proprias montanhas são minadas pelos annos; o oceano eleva-se e abaixa-se alternadamente; a lua eclipsa-se no fundo dos céus; só tu és sempre o mesmo.

Alegras-te sem cessar em tua brilhante carreira. Quando o mundo está sombrio pelas tempestades, quando o trovão ribomba e vôa o raio, saes radiante do meio das nuvens e ris do furacão!

Mas, ai! em vão brilhas para mim! O velho bardo já te não vê os raios, quer fulja a tua doirada cabelleira entre as nuvens do oriente, quer trema ás portas do poente a tua luz bruxoleante.

Mas talvez, como eu, só possuas uma estação e teus annos terão um termo: virá talvez um dia em que empallideças no meio da carreira e a aurora proxima em vão esperará o teu regresso.

Regosija-te, portanto, ó sol, na força da tua juventude! A velhice é triste e abhorrecida: parece-se com as tíbias claridades da lua, as quaes perdem-se entre nuvens dilaceradas pelo vento norte, quando este semeia ao longe as estevas murchas, quando o humido nevoeiro envolve a collina e o viajante transido tirita nos caminhos desertos....{91}

[2] Vertido de Ossian.

V
Remember

A Paulino de Brito

I

Não tens então no peito a minima raiva contra mim?—perguntei-lhe admirado, fitando-a todo commovido pelo prazer das recentes pazes.

—Não! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os loucos anneis dos seus cabellos tremulavam faceiros, n'uma opulencia, n'uma prodigalidade de adoraveis effluvios fascinadores. E toda a sua pequenina pessoa,{92} delicada e meiga, parecia desabrochar as florescencias gentis das suas graças, dos seus divinos dotes triumphantes em meio á pujança da invejavel mocidade!

—Pois bemdita sejas tu, candida e pura, amada e amante virgem, que tanta bondade tens n'alma, quantas são as seducções capitosas do teu bello rostinho, coroado d'esses loiros cabellos, cujos anneis, loucos e faceiros, tremulam opulentos, em adoravel prodigalidade de fascinadores effluvios!—retorqui arrebatado em grande enthusiasmo, attraíndo-a castamente para mim, n'um impulso de gratidão, ainda todo commovido pelo prazer das recentes pazes.

E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que manifestara-se no roubo d'um beijo,—d'um pequenino beijo fugitivo,—áquella bemdita virgem, candida e pura, cujo delicado corpo como que desabrochava as divinas graças triumphaes em gentis florescencias de invejavel juventude pujante!

As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse enthusiasmo da minha amante virilidade em face das seducções capitosas de tão bello rostinho!..

II

Mas anoitecêra de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos jasmineiros{93} rescendentes maior escuridão communicava á parte do jardim onde haviamos feito pazes, após o intemerato roubo de um beijo colhido nos rubros labios mádidos da minha pequenina amante fascinadora.

Um silencio embaraçador enleiava-nos em tíbia indecisão. A loira cabecinha d'ella descansava indolente no meu hombro, com os lindos anneis undiflavando-se-lhe tranquillos, concentrados, ao longo das correctissimas espaduas.

E uma tentação chegou-me a súbitas, sob a latada que abrigava-nos com seus rescendentes jasmineiros floridos, entre o silencio enleiando-nos embaraçadoramente em tíbia indecisão.

Já tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descançar-me no hombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,—um fugitivo beijo pequenino e casto,—nos humidos labios da minha gentil e tentadora amante.

Ella, porém, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rapida e precavida. Uma das mãos subiu-lhe célere á altura da cabeça, ameaçadoramente. Bateu o pésinho, n'uma expansão de enfado incipiente....

—Se reincidir, não perdôo mais!—exclamou, avisando-me, com a voz ainda repassada de toda a indolente volúpia de pouco antes e fugiu-me das mãos extendidas{94} nervosamente, mais rapida que esses doces momentos de goso que me concedeu, emquanto descançava a fronte no meu hombro, com os formosos anneis da adoravel cabecinha louca undiflavando-se-lhe tranquillos pelas correctíssimas espáduas.

Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio á escuridão, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas após o roubo de um beijo,—do primeiro beijo, pequenino e casto,—aos ardentes labios mádidos da minha bemdita virgem.

E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisiveis quasi, n'um recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em face do capricho d'aquella pequenina cabeça loira, de triumphantes graças capitosas, que só admittira e perdoara o meu primeiro atrevimento... ainda tão innocente e retrahido!...{95}

O preço das pazes

A J. A. Pinto Barbosa

I

O meu amigo Ernesto accendêra um charuto, concertára o pince-nes sobre o espirituoso nariz arrebitado; accommodou-se melhor na vasta poltrona, muito fôfa, em que estava sentado deante de mim e começou:

 

—Pois vou referir-te o grande caso a que ha pouco alludi, á mesa, sem poder contar-t'o inteiro, pela importuna presença d'aquellas senhoras.{96}

Afigura-te ao espirito, meu amigo, a mulher mais bellamente divina e mais divinamente fascinadora que possa existir: alta, esbelta, de corpo dotado de umas adoraveis redondezas triumphantes; cutis morena, avelludada; olhos negros e brilhantíssimos,—como duas caçoilas de mysteriosos philtros embriagadores;—cabellos muito pretos e ondeados, rescendentes a bôa olencia de selvática baunilha; um donaire, uma soberania inteira de magestoso porte e fidalga apresentação captivante, capaz de enleiar-nos em toda a série de crimes que ao humano pensamento é dado formular em dias de tôrvas reflexões e sinistras ebriedades peccaminosas: uma revelação pasmosa, um exemplar perfeitíssimo da mulher-unica, da mulher-incomparavel, o archétypo da elevação dos dotes, a civilisada manifestação das nossas lendárias yáras amazonicas! E, a par de tudo isso, um espirito cultivado, uma illustração perfeita de erudita, conversas seductoras borbulhando entre uns dentes alvíssimos, pequeninos e eguaes, feitos de puro marfim, d'uma alvura de leite, engastados em formoso coral, brilhante como os róseos labios humidos da microscópica boquinha sombreada d'um leve buço,—o complemento da seducção, o requinte da tentadora volupia d'aquelle delicioso ser. Imaginaste? Pois bem; assim era a Marócas, a esposa do altivo general Bandeira,{97} velho quinquagenario d'elevada riqueza materialisada em appetitosas centenas de contos de réis, depositados nos principaes bancos do Brazil.

Comprehende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, emquanto a azulada fumaça d'este charuto caprichosamente descreve espiraes no espaço, como poderia amal-a o esposo, vendo-a tão nova, a seu lado, toda entregue a seu amor,—desde os timidos beijos assustadiços repentinamente dados, ás vezes, no vão de qualquer janella dos aposentos desertos de enfadonhas testemunhas, até ao completo desnuamento arrepiado e perfumoso, muito encolhido e cálido, que apresentava-lhe na mysteriosa liberdade pacifica da recatada alcôva, alta noite, com a sua elevada estatura de lyrio a erguer-se, entre neves de rendas, diffundindo aromas que sabia embriagadores, irresistiveis.

Uma fascinação, aquella dupla existencia de accendrado amor. Mutuos caprichos eram satisfeitos com afan, com orgulho, como quem dedica-se a todos os sacrificios para conquistar uma estima á força de constantes provas de louvavel desinteresse.

Confesso não ter ainda visto a repetição d'aquella invejavel existencia d'affectuoso enlevo,—elle no declinar da vida, ella em toda a maravilhosa florescencia dos seus vinte e cinco annos. Passava horas inteiras a contemplal-os, absorto na admiração d'essa{98} alheia felicidade que fazia-me venturoso,—tanto é certo que uma perfeita harmonia de suave existencia rica de affectos possue o dom de espalhar ao redor de si um como jubiloso transbordamento do seu excesso.

Muitos annos haviam já passado, desde que o matrimonio os uniu, quando Marócas fizéra o seu decimo quinto anniversario,—e nem um só instante o arrependimento lhes chegára de se terem para sempre ligado por um prematuro enlace sacramental: era a sua vida actual como a fiel reproducção do dia em que, pela vez primeira, acordando na penumbra da discreta alcôva, deram-se, entre dois beijos pouco ousados ainda, o amoravel tratamento de esposo.

Verdadeiramente admiravel, não achas?

II

Mas houve um dia em que a primeira nuvem d'uma indisposição fluctuou, soturna e lugubre, no bello ceu, puramente azul, da tranquilla felicidade jubilosa de ambos.

Foi uma verdadeira desgraça suscitada{99} por um capricho desarrazoado da formosa mulher do general. Elle tivera o arrojo de negar-se,—pela primeira vez, é certo,—a satisfazel-o, e a Marócas soffrera em cheio no coração a dureza da áspera repulsa. Longos fios d'interminaveis lágrymas deslisaram-se-lhe dos grandes olhos tentadoramente languidos, pisando-os com força, circulando-os das roxas manchas tristonhas que têm os infelizes habituados ao pranto.

Mas esta manifestação de fraqueza apenas algumas horas durou,—emquanto o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos desmarcados o soalho, já meio arrependido da quasi brutal violencia com que resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa.

Depois veiu a reacção, em seguida á crise hysterica dos abundantes prantos silenciosos. Uns assomos de magestosa indignação, muito concentrada e muda, chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente duros meios de infligir ao marido memoraveis ensinamentos de justas represalias.

E a Marócas prometteu elevar-se acima de si propria, ser tão rispida como brutal havia sido o incivil do general.

Ai, meu caro amigo! Foi severa a licção! O pobre general Bandeira mais d'uma vez sentiu-a espicaçando-o, quando o despeito da Marócas, ao fim da primeira semana, obrigava-o ainda a passar as noites sosinho{100} em seu quarto,—n'uma triste solidão de viuvez frigidissima...

Tentou o velho militar soffrer a dura necessidade, resistir-lhe com valentia, refreal-a dominada no fundo de seu sêr. Seria possivel que não tivesse a força de vencer-se, elle, o illustre soldado de quem tanto temiam os paraguayos, annos antes, nas selváticas solidões onde o nosso exercito ferira tão sanguinolentos combates contra as guerrilhas do valente Lopez?

Mas, pouco depois, aquellas enthusiastas resoluções enfraqueceram, como cae uma véla, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe subitamente o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa.

O general desejou capitular, ne extrêmo das forças. Um arrependimento, cujo peso a necessidade tornava insupportavel, chegou-lhe após essas momentaneas resoluções de superiores resistencias... impossiveis n'aquelle pobre e velho espirito d'homem tolamente embeiçado pelas captivantes graças da mulher.

Com effeito, capitulou.

Uma noite, quando os corredores abandonados não repercutiam mais os passos das escravas e uma luz baça côava-se pelos fôscos vidros de lampadas discretas, saíu cauteloso da sua alcôva e, com o coração a pulsar violento, dirigiu-se ao quarto da mulher.

Á porta, parou, indeciso.{101}

Um rumor d'agua revolvida vinha pelo intersticio das folhas de madeira entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e mangerona sensualmente esmagadas em opoponax, diluidas na doce tepidez da agua.

Marócas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na simples ingenuidade descuidosa da sua tranquilla innocencia de mulher que em nada de mau pensa.

Quiz o velho retroceder, porventura ruborisado do passo que estava dando. Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um bello corpo, feito d'ámbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto, vaporisando a tépida emanação subtil das suas frescas, rosadas carnes bellamente seductoras e deliciosamente juvenis.

Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas, afflando precípites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas. Empurrou a porta, correu para junto da mulher e lançou-se-lhe aos pés, choroso, supplicante, todo caricias e doces palavras bondosas, impetrando o perdão, solicitando um armistício, pedindo pazes selladas com a ardencia d'uma deliciosa e suprema compensação!

Ella, porém, a Marócas, impassivel e impertubavel—ao tempo que envolvia-se toda em fino lençol de transparente cambraia, n'um gracioso rubor de impeccavel{102} donzella,—estendeu o braço para a porta e, mostrando-lh'a, disse ao general estarrecido:

—Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quizér apparecer n'este quarto no caracter de esposo idolatrado.

E elle teve de saír,—ao reconhecer a impossibilidade de persistir n'uma resistencia, que só poderia ser-lhe prejudicial.

III

O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir um meio bastante forte, pelo qual podesse alfim rehabilitar-se perante a mulher, sem, todavia, encontrar um expediente, que triumphantemente o salvasse da terribilíssima colisão.

Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosíssimos: sêdas, joias e finas pedrarias em todo o Pará não houve, que logo as não comprasse profusamente, para amimar a caprichosa Marócas, reclusa em forte baluarte de duras reservas embaraçadoras. Nada{103} conseguia, senão augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha de enrubecida vergonha, pela capitulação a que estava a sujeitar-se, com toda a mesquinhez das pequeninas baixezas.

Um caso fortuito, porém, veiu livral-o d'apuros, quando o soffrimento pesava-lhe já como a brutalidade esmagadora d'um bloco de granito atado aos hombros desformados de mísero anão corroído por toda a série das enfermidades secretas.

Aconteceu que, n'aquelle mesmo tempo, fôra o general Bandeira convidado para examinador de mathematicas, durante os exames da commissão especial da delegacia geral da instrucção secundaria do municipio da côrte,—essa creação absorvente e desconchavada, que tira toda a força autonómica dos nossos lyceus provincianos, reduzindo-os ás simples e modestas proporções de insignificantes escholas de primórdios scientificos e litterarios, destituidos do mínimo valor perante as academias superiores do Imperio...

Mas dispensemos esta tirada pedagógica, meu excellente amigo, e continuemos na exposição dos acontecimentos que prometti referir-te.

O general acceitára e convite com extraordinario gaudio do delegado especial, a quem eram familiares os inflexiveis rasgos de rude catonismo do Bandeira. Disposto a{104} conservar as suas tradições de severo examinador, preparava-se para dirigir-se ao Lyceu, no dia marcado, quando—oh! admiração!—appareceu-lhe no quarto a mulher, a Marócas, arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas rendas sobre o cólo, por cima das mais appeteciveis redondezas túrgidas que é possivel imaginar.

Trémulo, o velho, que n'esse mesmo instante havia accendido um charuto, esqueceu-se do lado em que lhe transmittira a luz do phosphoro e enterrou-o desgeitosamente na bocca, em sentido opposto áquelle de que deveria servir-se para fumar satisfactoriamente.

O contacto do fogo na lingua obrigou-o a dar enorme pulo, que estabeleceu entre elle e a Marócas uma distancia consideravel.

A Bandeirinha sorriu do ridiculo do acontecimento; mas, cravando logo os dentes nos diminutos labios vermelhos como papoulas, conservou a necessaria seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o espaço que approximava-a d'elle.

Depois, disse, estendendo-lhe um cartão de visita:

—Váe hoje examinar mathematicas, general?

—Vou... sim...

—Pois então, este moço irá fazer exame por mim...

—?...{105}

—Ouviu...?

—Sim.

—Veja lá como se porta. As mathematicas não são o meu forte. Eu não estou muito habilitada.

E, sem attender ao general, que tentava protestar por aquelle assédio, por similhante reclamação de um escandalo impossivel á sua severidade, a bella Marócas fugiu a correr nos bicos dos pés, arrastando a cauda do penteador, diffundindo no quarto um cheiro innominado de roupas brancas, essencias boas e rijas carnes feminís e jovens.

IV

Chegando ao Lyceu, o general consultou furtivamente o cartão que lhe entregara a mulher:

Antonio da Silva Larangeira{106}

Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Larangeira. Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pallido, de cabellos á quirirú, olhos arregalados e unhas sujas, orladas de escoriações na derme. Que era elle proprio, sim senhor. E uma vóz fanhosa, cheia de bajulações servilíssimas, resmoneou a pequena phrase affirmativa, solicitando ali, em sua exaggerada affabilidade, a complacencia do examinador.

O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela commoção, mal resistindo ao desejo de esbofetear sem clemencia aquelle vadio que tivéra o arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marócas, para induzil-o ao crime d'uma indignidade—arrastal-o a quebrar os seus votos de severa justiça de indomavel rispidez com os estudantes.

D'ahi a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Larangeira, cuja prova escripta não poderia ser peor. Escusado é dizer-te que o pequeno espesinhou a sciencia com toda a coragem d'um preparatoriano ignorante. Como, porém, desempenhava ali as altas funcções de representar a bella Marócas, á falta de Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito empenhou-se para que a indulgencia dos demais examinadores salvasse da guilhotina o infeliz.

Ao regressar a casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando appareceu-lhe a esposa, sempre seductora e rescendente{107} a gratos perfumes finíssimos, Couro da Russia, e jasmim do Cabo.

—Então?—perguntou ella meio-rindo.

—Approvado, affirmou o general deixando pender a cabeça, desfallecido,—talvez envergonhado da sua fraqueza, córando porventura de não haver opposto resistencia á tentação.

—Oh! bello! bello!—gritou a Marócas, lançando-se-lhe ao pescoço, beijando-o com frenesi, apresentando-lhe á flor do rosto—á ponta do nariz—os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das rendas que ornavam o penteador sobre o peito.

Elle abriu os braços, recebeu-a como dentro de si proprio, n'um grande amplexo nervoso—a manifestação penultima do seu intensíssimo desejo de reconciliar-se com a mulher.

Ella impellia-o, devagarinho porém incessantemente, para o sofá perfilado junto á secretária do general, acarinhando-o com o olhar, com a voz, com os labios estendidos em titubeante murmurio voluptuoso.

Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estatua. Immovel, silencioso! So as palpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas grossas lágrymas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas.

—Que tens? inquiriu ella, assustada,{108} beijando-o sobre uma orelha, amimada e tentadora, infantilisando a voz, que logo tomou dulcíssima harmonia.

—Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um escandalo, aquella approvação!

—Ah! volveu ella, abraçando-o com força, reconquistando-o, reconduzindo-o para o sofá, espiritualisada de prazer, sorrindo extranhamente.

E após um instante empregado em oscular a fronte encanecida do esposo,—caíndo ambos para o sofá hospitaleiro—murmurou-lhe ao ouvido, entre um rugeruge de roupas:

—O que é bom custa caro!{109}

Historia incongruente

Ao dr. Franklin Tavora

I

Desde alguns dias andava triste, apprehensivo e taciturno o coronel Fonseca.

A paizagem alegre que cercava a fazenda já não tinha o poder de evocar-lhe aos labios aquelle seu antigo sorriso prazenteiro, com que todas as manhãs saudava o nascer do sol, da janella do seu vasto quarto.{110}

As pessoas da casa andavam escrutando o motivo d'aquella transição subita no animo do velho. As conversas a meia-voz no copiar, á hora da sesta não traziam nenhum resultado elucidativo d'aquellas tristezas sem causa apparente. Todas as interrogacões, que os olhares apresentavam, iam embotar-se na fria reserva do ancião, que persistia n'um silencio desanimador.

E não havia razão para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a fazenda progredia, graças ao magnifico tempo que, havia dois annos, reinava, o gado engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com disposição para o trabalho.

O Thiago, filho unico do coronel, não reparara ainda n'aquellas concentrações do pae. Vivia todo entregue a uma paixão tão ardente como sincera, para ligar attenção a qualquer coisa que se passasse em outra parte que não fosse no proprio coração.

E a Venancia, a formosa donzella que todos os dias obrigava-o a ir á villa proxima, bem merecia aquella dedicação egoistica, porém desculpavel.

Filha de um velho fazendeiro, era ella d'uma bondade proverbial e d'uma honradez reconhecida, sem precedentes de macula. Trabalhadora, vivia a cuidar dos irmãosinhos mais novos que ella, a fazer-lhes a roupa, a apaparical-os, a rodeal-os de cuidados, interessando-se muito pelo bem-estar physico do todos aquelles pequeninos sêres{111} a ella confiados pela mãe, na occasião de morrer.

Entretanto, quem podesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo que era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas.

É certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia para dia mais se ligava de amizade á Venancia da villa, como á rapariga chamavam os da fazenda. E quem se approximasse da maqueira do coronel, quando elle dormia os seus curtos somnos nocturnos, poderia muitas vezes ouvil-o pronunciar estas palavras:—"É impossivel similhante casamento!"

II

Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao seu correspondente da capital, appareceu-lhe o Thiago, dizendo-lhe que necessitava falar-lhe com urgencia.

O velho estremeceu, prevendo talvez{112} que o filho ia acercar-se d'um assumpto ao qual elle fugia ha muito tempo.

Foi a fazer um violento esforço sobre si mesmo que murmurou:

—Fala quando quizeres.

Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silencio por momentos.

O velho Fonseca olhava para elle com as palpebras escancaradas em uma expressão de curiosidade e pavôr. Tremia ligeiramente, com os nervos todos irritados.

—O diabo da gotta quer visitar-me! pensou.

No entanto, Thiago enxugava o pescoço com o lenço e começava em seguida:

—Meu pae, o negocio a respeito de que venho falar-lhe é importante de mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessarios. Vou ser breve, mesmo porque estou morto por saber qual será a resposta de meu pae.—Desejo casar-me.

Conteve o coronel um gesto de indignação e disse, mostrando indifferença.

—Pois casa-te, rapaz. Eu não me opponho.... Contanto que seja a moça escolhida merecedora de ser tua mulher....

—Oh! se tal é a condição que apresenta, posso affiançar-lhe que brevemente me casarei. Bôa e séria, meiga e honesta, trabalhadora e cheia de dedicação, creio que poucas moças como ella encontrei no Pará durante os seis annos que lá estive a estudar no seminario e no lyceu.{113}

—Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes dôres nas fontes, com o coração accelerado, porém a affectar tranquillidade.—Mas então quem é a rapariga?

Thiago sorriu indizivelmente,—com uma beatifica expressão de intensíssima felicidade no semblante, e exclamou:

—É a Venancia da villa, a minha querida Venancia!

O velho ergueu-se impellido pela commoção. Suppondo tal acção um meio de que o pae servia-se para testemunhar-lhe a sua acquiescencia, Thiago ergueu-se tambem e correu a abraçal-o.

Mas o velho, fazendo um lento signal com o braço estendido, paralysou-lhe a vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo:

—Attende-me, Thiago, meu filho! Ha muitos annos que sei de teus amores com a Venancia. Grandes motivos, que talvez conhecerás um dia, impediam-me de favorecer a esses amores, assim como inhibiam-me de oppôr-me a elles desassombradamente. Fingí ignorar tudo, na esperança de que os annos lançassem o tédio sobre as vossas almas captivas uma da outra por aquillo que eu pensava ser o enthusiasmo pela novidade. Com immensa dôr verifiquei o meu engano, porquanto foste fiel á tua palavra, do mesmo modo por que Venancia o foi á sua. Isto seria uma grande{114} felicidade se não fosse uma enorme desgraça. Quer dizer, seria um apreciavel penhor da tua ventura por vir, se o objecto da tua paixão fosse qualquer outra mulher, que não a Venancia..... Olha, Thiago, sem procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me fórça a magoar-te o coração, esquece essa rapariga, deixa de visital-a, ausenta-te de Marajó, vae para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou para qualquer cidade longinqua, onde julgues ser-te facil achares uma mulher a quem possas offerecer a mão....

—Mas porquê, meu pae? interrogou Thiago assombrado, com o coração oppresso debaixo d'uma tristeza incalculavel, sentindo que as palavras do pae minavam-lhe o edificio da felicidade por tantos annos construido com um profundo amor expurgado de malicia.

—Porque assim é necessario,—redarguiu o velho, n'uma vehemencia de gesto e de entonação.

—Pois fique sabendo que, se não explicar satisfactoriamente a causa de similhante opposição, só tomarei as suas palavras como originarias d'uma razão que a edade torna vacillante e digna de piedade!—bradou Thiago já fóra de si, ferido n'essa grande porção de egoismo que todo o homem tem comsigo.

—Ingrato, murmurou o velho, deixando-se{115} caír sentado e chorando copiosamente.—Pois assiste á morte do teu coração, visto assim o desejares: ouve-me!

Pela janella aberta, via-se o vastíssimo campo do lado oeste da fazenda, coberto d'uma vegetação uniforme de capim crestado pelo sol. Vitellos saltavam ás cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos, pastavam tranquillamente os fios de curto capim secco, abanando as longas caudas n'um compassado movimento automatico. Ao longe, um toiro preto, perfilado e sério, olhava para a linha escura do horisonte, entretido em lamber as ventas lustrosas de ranho com a flexivel lingua côr de cinza de charuto. Um cheiro almiscarado d'erva sêcca e de excremento de boi subia até ao quarto. Vaqueiros zangarreavam n'umas flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de mamãoseiro. Urros melancholicos de vaccas chamando pelas crias casavam-se com essas faceis melodias bucolicas, vibravam pelo espaço em propagações suaves que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flebil de extrema ternura. E da linha do horisonte, que recortava-se muito distante sobre o azul escuro do ceu, levantava-se vagarosamente a noite, magestosa e tranquilla em sua imponencia seductora.

O velho enxugou as lágrymas e começou a falar.{116}

III

—Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa mãe nos faltou. Até agora não sei como possivel me foi resistir a essa desgraça, que eu a principio reputei capaz de tirar-me a existencia. Tres annos passei encerrado n'este quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber ninguem, apenas gozando em tuas innocentes caricias um pallido reflexo d'aquelles grandes affagos que a tua idolatrada mãe fazia-me constantemente. Passados esses tres annos, comprehendi que o teu futuro exigia-me impozesse silencio á minha dôr, e cuidasse de nossos bens, para dar-te uma bôa educação e, depois da minha morte, fazer-te herdeiro de uma riqueza sufficiente á tua manutenção. Saí, pois, do quarto, pedindo mentalmente á alma de tua mãe tomasse este sacrificio como feito por amor de ti e, por consequencia, por amor d'ella. Negocios meus exigiam que eu fizesse frequentes viagens á villa, onde, ha vinte e tres annos, isto é, quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora amazonense, mulher d'um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador da villa. Essa senhora era o retrato{117} vivo de tua mãe. Por um phenomeno de impressionismo,—sem o querer, sem o sentir—fui-me enlevando das graças d'ella, até chegar ao ponto de pensar que tua bôa mãe tornára á vida e volvêra a amar-me como d'antes!

Quando eu ia á villa, hospedava-me em casa d'esse antigo companheiro. Tal convivencia maior augmento deu ao meu amor, que transformou-se em grande paixão, toda enthusiasmos e vehemencia. As fazendas de Chaves faziam com que o marido d'ella se ausentasse muitas vezes da villa, deixando-me ao lado da mulher que.... poupa-me a vergonha de communicar-te que.... titubeou o coronel, muito triste, com os olhos mareados de lágrymas, a arfar do peito e a contrahir o rosto n'uma visivel agonia causada pelos remorsos.

—Emfim,—disse com energia e, desta feita, dando expansão ao pranto,—o resultado d'essa criminosa, d'essa infame e baixa paixão, foi o nascimento d'uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente suppoz ser sua filha....

—E essa menina é... Ve..nan..cia?—inquiriu Thiago com os olhos arregalados, os cabellos crispados, as mãos fechadas fortemente, sentindo fraquejar-lhe o espirito ao embate de tamanha commoção.

—Sim, Thiago, sim, é Venancia, fructo da minha infamia, a filha do crime, a filha d'um amigo traidor e d'uma esposa miseravel{118} que não soube resistir á minha tentação! É Venancia, a mulher com quem te queres unir pelo.... casa...mento! É tua irmã, insensato!...

E caíu redondamente para traz, agitado nas convulsões da gotta, da sua molestia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rêde de maqueira, fulminado pela morte, que providencialmente o livrou d'uma vida que d'ahi em deante só poderia ser de tormentos e angustias indiziveis.{119}

A licção de "Paleographo"

A Heliodoro de Brito

I

A escrava Josepha teve, n'aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trêdas amarguras do largo e profundo golpe que breve teria de receber-lhe o amantíssimo coração de mãe.—O commendador Pereira de Castro, que d'ali a dias seguiria para a Europa, de concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua resolução{120} de levar comsigo a pequena Isaura, a sua querida filha, a mulatinha amimada, cria de casa, prenda favorita de todas as pessoas d'aquella abastada familia actualmente em vesperas de viagem.

E ella, a mãe extremosa, que só vivia do tenro affecto suavíssimo da filha, na tenebrosa passividade do seu captiveiro,—não obstante a bondade com que era tratada por todos,—teria de ficar no Pará, separada do pequenino ente que deslaçava-lhe o espirito em fulgidas chiméras de loiras phantasias, em meio ao triste vegetar da sua existencia!

Uma dôr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora privados de lágrymas sob o látego inclemente do seu primeiro senhor, antes de ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto silencioso por toda a noite passada em claro após a declaração ouvida pela manhã.

Só a lembrança de tão rude separação fazia-a soffrer tanto; o que não seria a crua realidade?

Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluçando a furto, no dia seguinte,—com os olhos, mudamente cheios de quérulas expressões, fitos na rapariguinha,—acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de benevolencias, consolou-a a meio.

—Que se não affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a familia,{121} d'ali a annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia trazer-lh'a instruida, educada, elegante e feliz,—uma verdadeira senhora. Até ella, Josepha, se arrependeria então da sua tolice actual, porque reconheceria os beneficios que tinham querido fazer-lhe á filha. Pois não era certo que todos ali tratavam-n'as tão bem, á mãe e á filha e que esta era tida menos como uma ingênua do que como se, realmente, fosse originaria do casamento d'elle commendador com sua esposa? Confiasse a Josepha em seus senhores e o futuro mostrar-lhe-ia com exuberancia a justeza do seu proceder.

Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava. Eliminal-a, porém, d'alma, era impossivel, que não póde um coração de mãe deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestações, lhe roube o ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos frémitos delirantes da mais intensa dôr.

II

A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a pequena Isaura.{122}

Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas afflicções, não pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n'a as outras escravas atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de tudo, olhando em frente, como se divisando estivesse nos curtos longes do horisonte limitado uma visão, só para ella creada, a attrair-lhe poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas as forças vivas do espirito e da razão.

Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a ás pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expressão do rosto, como quem está acostumado a pensar e agir por vontade de outrem.

O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta. Bateu desusadamente o coração da preta. Aquelle papel não poderia ser senão da sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao socio, pedia-lhe sempre informasse á Josepha estar a filha d'esta com saude, muito desenvolvida e bastante adeantada nos estudos. Segurou a carta a tremer, e ficou-se a olhar longamente aquelle homem, que sorria-lhe docemente, compadecidamente.

—Anda, vae, disse elle; é uma carta de tua filha.... escripta por ella propria.

Escorreram lágrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim dava-lhe{123} precipitados pulos ao coração. Conservou-se, todavia, immovel deante do branco, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma coisa.

Elle pareceu comprehendel-a:

—Queres que a leia?

—Sim, sinhô, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos sentidos, a divina musica ignorada das dôces palavras escriptas pela mão infantil da filha.

O socio do Castro leu:

 

MINHA QUERIDA MÃE,

Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n'um collegio e d'onde lhe envio milhares de beijos n'esta carta, a primeira que por meu punho escrevo, para lhe contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da minha santa mãe e o grande desejo que sinto de estudar muito, para voltar depressa para onde está a mãesinha do meu coração. Ante-hontem fiz dez annos e o meu protector offereceu-me uma bonita penna d'ouro, dizendo-me que com ella deveria escrever-lhe esta carta, minha boa mãe. Tenho passeado muito e gostado immenso d'esta bella cidade, onde o meu{124} prazer seria completo se a senhora aqui estivesse junto da sua filha.

Abençôe-me e receba mil beijos que lhe envia

 

ISAURA.

Paris, 30 de dezembro de 1887.

 

Josepha chorava, soluçando, quando ouviu o nome que rematava a carta,—simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras, comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura.

III

Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Pará tinham festiva apparencia, transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira a escravidão no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes girandolas de foguetes e o écco ingente de milhares de vozes bramindo{125} enthusiasmadas louvores e vivas em honra ao glorioso successo. Galhardetes e corêtos erguiam-se pelas ruas. Bandas marciaes diffundiam no espaço alegres harmonias de cálidos hymnos excitantes.

Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral regosijo.

Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para todos os lados, temendo fossem surprehendel-a.

Quando teve a certeza de estar bem só, esboçou nos roxos labios um sorriso espiritualisado e, tirando do seio um velho Paleographo, abriu-o nas primeiras paginas murmurando commovida:

—Vamo' estudá a licção. Nhô Manduca, disse que p'r'ó mez que vem já posso lê a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus?

E curvou a cabeça para o livro, na obstinação das grandes vontades vencedoras.{126}
{127}

Ao soprar á véla

Ao Sr. José Feijó d'Albuquerque

I

Ás 8 horas da noite, quando chegou o marido, veiu a Candida, a saltar alegremente, recebel-o á porta da varanda, arrastando a longa cauda rendada do penteador de cambraia branca.

Quanto se demorára elle! .... Porque não voltou mais cedo? A sua Candinha já sentia tantas saudades!.... Elle não imaginava o que era estar uma pobre mulher mettida em{128} casa, durante uma tarde inteira, sem ter a seu lado o esposo querido, o seu idolatrado amigo!....

E affagava-o amorosamente, fazia-lhe cafunés pelo alto da cabeça, causando-lhe uns arripios sensuaes pelas costas, eriçando-lhe os cabellos dos braços e pernas.

Que não podera vir mais depressa,—objectava o marido, sentando-se n'uma poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de concupiscencia para a mulher.—Bem esforços fizera, mas inutilmente. Encontrara-os a jantar, ainda no começo; teve de esperar no jardim por espaço de meia hora, brincando com as creanças, para entreter-se. Os pequenos são altamente endiabrados: sujaram-lhe as calças brancas com as mãos gordurosas.... Depois, tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins e á mulher.

—E acceitaram?—interrogou a Candida, saltando para as pernas do marido, a rir muito, com os labios abertos lindamente, frisando-se graciosos e mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.

—Qual! Responderam-me que não cediam a escrava por dinheiro algum, maximè sabendo que nós a desejavamos para a libertar. Aquella gente está cada vez mais negreira! Emfim, escolhe-se outra qualquer, comtanto que seja o dia de teus annos digna e liberalmente solennisado por mim. Continuemos, porém. Estava eu disposto a{129} saír, bem arrufado com o dr. Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, aquelle sujeito vermelhudo, cuja cabeça está mais limpa de cabellos que os teus joelhos....

—Deixa-te de tolices....

—Agarraram-me para um solo manhoso, que durou até agora, e isso mesmo porque levantei-me e saí á viva força!.... Agora,—concluiu sorrindo,—aqui tem você o seu Roberto, cheio d'amor e paixão, disposto a matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a querer-lhe muito, a fazer-lhe as vontades todas!..

Sempre sentada sobre as pernas d'elle, Candida semi-cerrou os olhos n'uma vertigem lubrica, e estendeu para a bocca de Roberto os seus labios frescos e perfumados d'esse olôr exquisito e bom, peculiar ás mulheres que se tratam.

Mas ergueram-se de subito, n'um enleio: apparecera á porta que dava para o corredor o moleque Euzebio, com o bule de chá....

II

Depois do chá, Roberto accendeu um charuto, foi buscar um livro e, accommodando-se{130} n'uma grande voltaire, poz-se a ler. Ficou a Candida defronte d'elle, a miral-o.

Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois bicos de gaz encerrados em globos de crystal finamente lavrado. Com os cotovellos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas afflantes descançando nas palmas das mãos, Candida continuava a olhar para o marido com uma expressão extranha, suave, repassada de ternuras dulcíssimas.

Parecia lançada á contemplação da propria felicidade. Era justamente aquillo que, annos antes, phantasiára a sua sonhadora imaginação de burguezinha estragada pelos mimos de seus paes extremosos e pacóvios: viver honesta ao pé de um marido bonito e de bom coração; estar sempre junto d'elle, para o consolar em todos os desgostos, rir com elle nas horas de alegria, ser-lhe sempre de uma fidelidade irreprehensivel e, sobretudo, contemplal-o a todo instante, silenciosa, longamente, envolvel-o nas sentimentaes suavidades do seu enlanguescido olhar de creoula amoravel! Nunca sentira-se tão feliz como depois de seu casamento com o Roberto, havia quasi dez mezes. Nem uma só contrariedade tivera após aquella noite commovente, em que recebeu o primeiro beijo do noivo no silencio de uma discreta alcôva toda cheia de flôres, rendas, fitas e perfumes! E com{131} que alegria, com que assomos de risonha infantilidade não ficou, na manhã immediata, quando leu no Diario de Noticias as linhas seguintes, que decorou á força de as repetir baixinho?—"Uniram-se hontem á noite em matrimonio, na egreja de Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado commerciante da nossa praça, e a Exma. Sra. D. Candida Annunciada Seixas, filha do nosso amigo sr. Pandolpho Seixas, proprietario abastadíssimo. Foram padrinhos os srs. Silvino Cunha e Anthero de Mendonça e suas exmas. consortes. Aos jovens conjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das felicidades a que têm jus por seus dotes distinctissimos." Ficou a nadar em jubilo, toda desvanecida por ver o nome nos jornaes, commovidíssima pela lembrança de que, áquella hora, a cidade inteira estava sabedora da realisação de seus intimos desejos de moça apaixonada!.... D'ahi em deante começaram a viver como dois anjinhos, como ella queria. Roberto era sempre de uma delicadeza affectuosa e séria para com a sua Candinha, que tambem, valha a verdade, contribuia, segundo seu poder, para tornar-lhe suave e alegre a vida. Ella achava impossivel que duas pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas por dá cá aquella palha... Entretanto, assim acontecia ás vezes. Ahi estava, mesmo no Pará, a d. Clotilde que, no dizer das más linguas, era uma jararaca{132} para o marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estephania, era outro: passava a vida pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao domicilio, esbordoava a mulher que era mesmo uma dôr de coração! Mas com ella assim não succedia, graças a Deus! O Roberto era pontual como um cobrador á hora de recolher ao lar: ás 5 da tarde mandava fechar o armazem, tomava o bond e vinha logo para junto d'ella, de onde não se arredava senão ao outro dia pela manhã, afim de ir novamente para o trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma de vida: ella conhecia de mais o genio do marido para receiar qualquer mudança futura. Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beiços, com a importante noticia que ella tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se necessario contar-lhe tudo... Porém como? A vergonha apertava-lhe a garganta assim que ella abria a bocca para falar... Mas hoje diria, estava resolvida! Quando? agora?—Agora não; deixal-o com a leitura, que está tão entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como ficaria satisfeito o Roberto! Que prazer para elle!... para elle, que era tão lindo, tão bom, tão amado!....

Tudo isto pensava ella, continuando a fitar o esposo n'um enlevo apaixonado.{133}

III

De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surprehendida, a Candida pendia para o peito a formosa cabeça, disfarçava fingindo ler n'um livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o marido continuava na leitura, tornava a pregar no rosto d'elle o seu ardente olhar, como se desejasse cobril-o com toda a vehemencia da paixão.

Ouvindo soarem no sino de Sant'Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro.

—Vamos dormir?—propoz.

Candida estremeceu e levantou-se.

O moleque veiu fechar as portas e janellas e apagar o gaz.

No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcôva. Em cima do velador, uma véla côr de rosa ardia n'um castiçalzinho de porcellana de Sévres com pinturas allegoricas de Amores alados e Chiméras volitantes. No centro, uma causeuse de setim azul estava cheia de laços, corpinhos de renda, brochuras esparralhadas, n'um abandono adoravelmente dissymétrico. Vidros de perfumarias com rôlhas de crystal{134} reluziam em cima do toucador de jacarandá, lançavam scintillações cambiantes ao espelho inteiriço do grande guarda-roupa que havia no meio de uma das paredes lateraes.

Ao fundo erguia-se a cama,—pudicamente occulta entre as rugas de um cortinado de labyrintho finíssimo, suspenso do tecto por uma passadeira doirada.

Levantava-se d'aquella cama um quê de evaporação de felicidade inenarravel, que penetrava no espirito dos dois esposos pelos sentidos do olfacto e da vista. Parecia-lhes acharem-se deante do tabernaculo de seu amor, do altar de sua existencia feliz e encantadora. Para Candida, sobretudo, ella tinha uma importancia transcendental: evocava-lhe uma recordação agri-dôce, que fazia-a sorrir bondosamente depois de nove mezes de agradabilíssima co-habitação conjugal....

Quando iam deitar-se, Candida enlaçou a cabeça do marido com os braços descobertos,—mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de cambraia enfeitada de rendas do Ceará.

Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos effluvios,—essas queridas exhalações de mulher amada,—n'um enlanguescimento concupiscente.{135}

—Olha, murmurou ella conservando-se na mesma posição, beijando-o na testa.—Quero dar-te uma noticia muito bôa....

—Qual é?—perguntou Roberto estreitando-a nos braços.

—Tenho tanta vergonha!....

Esta exclamação pronunciou-a Candida desprendendo-se do amplexo do marido e dando um pulo para o leito.

—Anda, fala, menina, que tolice é essa?

—Então apaga a luz, primeiro; póde ser que ás escuras eu me sinta mais animosa! ....

Roberto soprou a luz da véla e disse deitando-se:

—Agora....

Candida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com as pontas dos frios dedos trémulos. Depois, a subitas:

—É que,—murmurou com umas brégeiras risadinhas reprimidas,—é que eu.... estou grávida!

Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,—o beijo com que o esposo tenta revelar a indizivel alegria de vêr convertido em realidade o seu mais persistente anhelo,—respondeu áquella confissão prazenteira, na propicia escuridade da alcôva matrimonial....{136}
{137}

No baile do commendador

Ao sr. Ulderico Souza

Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras!

E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro sorriso, com as rendas finíssimas do seu leque amarello-canario, de varetas de madreperola.

—E porque, não me dirá? insistiu o doutor Machado, debruçado sobre a cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um ardente olhar vibrado{138} atravez o crystal do monóculo petulante.

—Porque—?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro esquerdo, polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida é uma boa mestra, doutor, e eu tenho recebido d'ella bem duros, bem crueis exemplos!

—Apezar de ser tão nova assim?

—A vida não escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabeça encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moços dá, por vezes, preferencia, como compensando-os de não terem o discernimento preciso para bem conhecer e evitar os revezes da sorte.

—Mas—é maravilhoso tudo quanto estão a dizer-me os seus divinos labios com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se já não sentisse por sua pessôa—e pelo seu espirito—este indomavel affecto de que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora—e bem profundamente!—depois de ouvir-lhe tão razoaveis e inesperados conceitos.

—Devéras?

—Por certo.

—Oh! é muito amavel....

—Digo a verdade.

—E, todavia, continuo a descrêr...

—Faz muito mal!

—Porquê?{139}

—Ah! já faz perguntas?—Porque quem confessa descrença em similhante assumpto, deseja crêr, ou, pelo menos, não quer descrêr...

—O que redunda no mesmo. Errou, porém, estabelecendo até mim a regra geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convença-se. O mundo tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lições bem rispidas tenho recebido n'elle, para agora, sem discrepancia das suas opiniões, fazer que o sr. acredite nas suas proprias illusões phantasiosas. Pois que! Persuade-se acaso de que jámais poderei tomar ao sério as banalidades da confissão que me cantou ha instantes o seu lyrismo? Estará o sr., effectivamente, tão enamorado de si mesmo, que se julgue irresistivel, fatal? Vaidade sem razão, doutor!

—Como é cruel, minha senhora!

—Não sou cruel, não, cavalheiro: sou justa apenas. E porque sympathisei inexplicavelmente com o sr., é que desejo trabalhar para extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o sentimento.—Permitte-me a liberdade d'uma franqueza?

—Ora essa! Porque não?...

—Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu illimitado.... pedantismo.

—Como diz?

—Ouça bem: o—seu—illimitado—pedantismo.{140}

—E.... mas....

—Olhe, sente-se aqui, a meu lado—Assim. Conversaremos com tranquillidade, emquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as attenções da sala. Escute-me.

Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creança insignificante. Seriam nove noras da noite. A chuva caía sem parar desde que anoitecêra; uma triste chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz oscillante do gaz. Estavamos ao serão, reunidos na varanda, umas dez pessoas: eu, minhas duas irmãs, algumas escravas, e uma preta velha, muito velha e alquebrada, que o trafico da escravatura arrancara aos sertões africanos para transplantar no Brazil.

Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irmãs brincavamos a vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da qual trabalhavam as escravas.

De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e nós interrompemos o brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeças, detinham no ar a mão que empunhava a agulha, ou descançavam{141} cautelosas os bilros sobre as almofadas onde pregavam-se as rendas incipientes.

A velha Eufrasia annunciára que ia contar uma historia da cabanagem, o que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais absoluta tranquillidade. Porque, fique desde já sabendo, a Eufrasia era auctoridade na materia! A sua narração tinha alguma coisa de lugubre, de compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na concatenação dos factos e na flagrancia da nota, ou épica ou bucólica, de que pretendia occupar a attenção dos ouvintes.

Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d'uma fulguração estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos tempos de que ella ia tratar.

Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel obter-se com o ruido da chuva a desabar nas telhas,—a bôa preta começou a referir a pequena historia que passarei a expôr á sua attenta bondade, succintamente, para o não enfastiar com imprudentes delongas.

Da outra banda do rio, á margem esquerda d'este mesmo Guajará que róla suas{142} turbidas aguas aos pés de Belém, uma roça havia, n'aquelle tempo,—em 1835,—que era o abrigo d'uma simples familia de modestos caboclos agricultores: pae, mãe e um filho, rapaz esbelto, no pleno vigor d'uns 20 annos sadíos e bem desenvolvidos.

Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roça era a mais afamada na praça de Belém e a seriedade com que tratavam negocios tinha-lhes aberto largo crédito em casa do seu correspondente na cidade.

O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga da margem opposta do rio, moradora n'um sitio quasi fronteiro á roça. Pelo São João deveriam vir á capital da provincia, effectivar perante um padre a mais persistente aspiração que em peitos amazonicos jámais palpitou e que dava-lhes, na sua só lembrança, uma como ebriedade olympica de soberanas venturas transcendentes.

Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado á pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas falas singellas e apaixonadas.{143}

Horas inteiras, de intensíssimo contentamento, eram as que passava ao lado da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha existencia por vir, quando, a sós no copiar, de mãos entrelaçadas e o olhar perdido ao longe, nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras do fundo, compraziam-se em acastellar illusões, n'umas inflorescencias de amplas phantasias admiraveis.

Similhante existencia, parecia abençoal-a o ceu, na sua clemente bondade rejubilada pelo edificante espectaculo de tão acrisolada paixão.

Mas houve um dia em que a sorte,—sempre inclemente e cynica, doutor!—pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito d'aquella invejavel bonança de duas vidas felicíssimas.

A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas dos revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roças, buscando e fazendo victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais ousada barbaridade.

Em taes condições, a casa dos paes de Thomazia não poderia escapar á visita dos desalmados. Esta foi subjeitada á mais torpe violencia que se póde intentar contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem querido dissuadil-os da infamia,—após assistirem á perpetração selvática do attentado sem nome, soffreram inermes a{144} pena ultima, dependurados, um defronte do outro, em dois galhos de sombrosa sumahumeira!

Escaparam ao rábido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua casa haviam presenceado o que passava-se na róça fronteira e nem um só momento o rapaz, aquelle mesmo namorado férvido da vespera, sentiu um assomo de correr a vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva! Admire que sinceridade a d'aquella paixão, doutor, dias antes apresentada em labiosas florituras de phantasticos arremessos idyllicos! Que grande coração, o d'aquelle homem!

Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe a indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado a sua noiva,—sem ir arrebentar os miólos de um dos abjectos infames, ainda mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa dos sicarios!

Annos depois, quando estabelecera-se a pacificação na provincia, a Eufrasia encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na companhia de torpe mulata animalisada por uma vida de largas materialisações soezes e gordurosas.

Ainda podia rir, ainda tinha canções para zangarrear ao som do cavaquinho!{145}

Lá defronte, porém, a roça, tão florescente d'antes, convertera-se em mattagal e a infeliz Thomazia,—apatetada e envelhecida, coberta de andrajos e chorosa,—tinha simplesmente, como testemunha da sua desgraça, uma creança inconsciente, um filho que dentro d'ella semeára a hedionda selvageria dos revoltosos.

*
*      *

Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de emoção, teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o rosto do dr. Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario, agitando-o vagaroso, com uma certa magestade de soberana vencedora, perguntou sorrindo ironica:

—E crê, depois d'isto, que eu acredite na existencia d'um só homem sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas palavrosas mentiras que o sr. cantarolou p'ra 'hi?{146}
{147}

NOTAS

A CONVALESCENTE.—Achava-se impressa a folha contendo esse pequenino croquis ousadamente dedicado ao sr. dr. Alvares da Costa, quando s. s.ª levado por intrigas vis e a proposito de algumas phrases a seu respeito externadas por mim n'um estudo critico das Primeiras Rimas, de João do Rego, rompeu commigo, n'um artigo sobremódo aggressivo, todo pessoal e rancoroso.

Não quiz, então, riscar o nome que a amizade gostosamente inscrevera em uma das paginas do meu livro e hoje, para provar-lhe a minha lealdade, apresento-a tal qual m'a deu o prélo, antes do inesperado desabrimento de s. s.ª

 

QUE BOM MARIDO!—Este conto, regeitou-o, em dezembro de 1885, o Diario de Belém, declarando-o{148} immoral. Entretanto, esse mesmo exaggerado zelo entibiava-se lamentavelmente quando os jornaes do sul... e a tesoura davam-lhe ensejo de estampar as moralíssimas "grivoiseries" de Catulle Mendès... É o caso mais flagrantemente pífio de criterio e coherencia que tenho conhecido!

No dia seguinte, A Provincia do Pará publicava esse trabalho.

 

HISTORIA INCONGRUENTE.—Foi publicada n'A Arena essa narração, em 1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira carta muito affectuosa e benevolente.{149}

INDICE

PAGINAS
ALEGRIA GAULEZA 9
A CONVALESCENTE 21
DESILLUSÃO 23
A "SERENATA" DE SCHUBERT 33
QUE BOM MARIDO! 45
NOITE DE FINADOS 55
RIO ABAIXO 61
AO DESPERTAR 69
POEMETOS EM PROSA:
    I—Bidinha 81
    II—Paraphrase ossianica 84
    III—O parocho da aldeia 86
    IV—Ao sol 89
    V—Remember 91
O PREÇO DAS PAZES 95
HISTORIA INCONGRUENTE 109
A LICÇÃO DE "PALEOGRAPHO" 119
AO SOPRAR Á VÉLA 127
NO BAILE DO COMMENDADOR 137
NOTAS 147

{150}

ERRATAS

Os mais notaveis erros são es seguintes:
Pags. Linha Erro Emenda
61 5 caximbo cachimbo
93 15 embaraçadoramente enleiando-nos enleiando-nos embaraçadoramente
93 33 estendidas extendidas
107 33 inqueriu inquiriu
114 29 vacillanto vacillante

 

 

 

 

BREVEMENTE

será dado á estampa o novo romance de Marques de Carvalho

SOROR MARIANA

Grande téla descriptiva dos costumes paraenses e servindo de relêvo a um dos mais notaveis escandalos contemporaneos. A obra formará um forte volume de de 300 paginas impressas a capricho.






End of Project Gutenberg's Contos Paraenses, by João Marques de Carvalho

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with this agreement, and any volunteers associated with the production,
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or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
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Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


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