The Project Gutenberg EBook of Othello, by Gustave Dubarry

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Title: Othello

Author: Gustave Dubarry

Translator: D. Alda de Sousa

Release Date: April 7, 2009 [EBook #28526]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OTHELLO ***




Produced by Pedro Saborano





 

Capa do livro

 

 

OTHELLO

 

 

 

Editor e proprietario, F. A. de Miranda e Sousa. Comp. e imp. na typ. da Empreza Lusitana Editora, pertencente ao editor C. do Ferregial, 23—LISBOA.[2]

[3]

G. DUBARRY

OTHELLO

Trad. de D. Alda de Sousa

 

 

 

 

LISBOA
EMPREZA LUSITANA EDITORA
Calçada do Ferregial, 83

DEPOSITARIO NO RIO DE JANEIRO
LIVRARIA EDITORA JACINTO SILVA
Rua Rodrigo Silva, 7[4]

[5]

 

 

 

 

I

O rapto

Era a epoca mais feliz e florescente da aristocratica Republica de Veneza. As esquadras disputavam vantajosamente aos turcos a supremacia no Mediterraneo, e nas costas gregas, Rhodes e Chypre unidas ao feliz povo da poderosa Senhoria, diziam eloquentemente ao ottomano que não era nada facil arrancar a presa ao leão de S. Marcos, quando este a colhera nos seus afilados dentes.

Vivia-se por então no tempo em que a espada não podia enferrujar dentro da bainha, pois nos breves intervallos durante os quaes os exercitos não luctavam de povoado em povoado, de nação em nação, os individuos, sem distincções de cathegorias nem de classes, inventavam mil pretextos para guerrearem entre si, receosos talvez de olvidarem no repouso o manejo das armas.

Por causa d'isto e tambem com receio dos innumeraveis[6] «briganti» e roubadores de bolsas que, durante a noute, vagueavam pela poetica cidade dos canaes, nem todos se atreviam a transitar por ella fóra de horas, pois estavam certos de que nada bom encontrariam nas suas escuras e mysteriosas ruas.

Eis porque causava certa extranheza ver a tranquilidade com que dois cavalleiros, jovens e de elegante porte, se bem que tal elegancia fosse mais notavel no que aparentava menos edade, conversavam passeando pela solitaria praça de S. Marcos á uma hora da madrugada d'uma noute de inverno.

Devemos ponderar que a tranquilidade, a que acabamos de alludir, referia-se sómente ao facto dos cavalleiros não recearem dos perigos nocturnos que os ameaçavam em tal sitio e a horas tão mortas da noute; por outro lado, os dois homens pareciam dominados por viva agitação, a julgar pela vehemencia dos gestos e pela animação com que sustentavam o seguinte dialogo:

—Digo-te, meu caro Yago, que semelhante coisa é impossivel, dizia o mais novo e de melhor apparencia dos dois interlocutores, tão impossivel como o Adriatico poder devolver a sua Senhoria o Doge o annel que este lhe deu no dia das suas nupcias.[1][7]

[1] Allude á cerimonia que celebravam os Doges no dia do seu advento, e no qual simulavam casar com o Adriatico arrojando para o mar uma preciosa joia, que era o annel de nupcias.

—Pois eu asseguro-te, nobre Rodrigo, replicou o mais velho dos cavalleiros, que trajava á militar e ostentava a divisa de alferes, que vi com os meus poprios olhos tua prima Desdemona, ha pouco mais de uma hora, fugir de casa do pae, o senador Brabancio, e saltar para uma gondola, onde a esperava esse maldito africano, que Deus confunda.

—Pois bem, os teus olhos trahiram-te, apresentando á tua fantasia como real o que não era mais do que um sonho. Ah! as garrafas de vinho de Chypre que bebeste esta noute, tiveram mais força do que a tua resistencia de bebedor habituado ás libações, e puzeram-te completamente borracho, respondeu de mau humor aquelle a quem o seu companheiro dava o nome de Rodrigo.

—Dizem, e com razão, que de namorado a tonto não vae mais do que um passo! exclamou o alferes Yago em tom desdenhoso.

—Porque dizes isso? porguntou com altivez Rodrigo. Tratas acaso, de insultar-me?

—Deus me livre de tal coisa, respondeu Yago. Queres dizer-me o que ganharia com isso?

—Seja pelo que fôr, o facto é que me chamaste tonto.

—Não, disse que estavas enamorado, e desafio a que o negues.

—Seria inutil, pois sabei-o tão bem como eu, confessou Rodrigo. Mas deixemo-nos de discussões inuteis e vamos ao que importa. Se o que me acabas de dizer não é uma infame mentira ou estupida fantasia de bebado; se a minha prima Desdemona[8] esqueceu a honra de sua familia, o respeito e as cans de seu pae, toda a sua juventude de pudor e recato que a tornavam a donzella mais pura de Veneza; se esqueceu tudo isto, repito, para lançar-se nos braços d'esse mouro de rude linguagem e de rosto enegrecido, como qualquer infame Messalina, preciso será crer de hoje para sempre que a mulher, desde que nasce, é materia affeiçoada para o vicio e o ser mais ignobil que existe sobre a terra.

—Enganas-te, nobre Rodrigo, e a tua paixão e ciumes fazem-te ver as cousas, augmentadas até á exageração ridicula, replicou tranquilamente Yago. A mulher, na realidade, não é boa nem má, pura ou impura, mas simplesmente mulher e, como tal, joguete das circumstancias. A culpa do que succede não a tem ella, mas sim o velho tonto do pae que, depois de a ter encerrada como monja durante dezessete annos, deixou entrar em casa Othello com a mais ampla liberdade, consentiu que visitasse tua prima, conversasse com ella no mais absoluto isolamento, e, emfim, cruzou tranquilamente os braços, emtanto que o lobo rondava incessantemente em redor da ovelha.

—Mas, replicou Rodrigo irritado, quem poderia suppôr que uma joven tão innocente e virginal como Desdemona, podesse chegar a enamorar-se de um homem negro e feio como esse maldito mouro?

—Outro qualquer que não tivesse sido um velho imbecil como teu tio Brabancio, ou um namorado cego como tu, teria suspeitado que esse mouro,[9] precisamente pelo que tem de extraordinario, poderia chegar a deslumbrar e a seduzir a donzella, como realmente succedeu. Ignoras por ventura, continuou Yago animando-se emquanto fallava, que ninguem conhece Othello melhor do que eu, e que é este exactamente o motivo do odio mortal que lhe tenho? Esse homem é feio, concordo; de rude linguagem e desabridas maneiras, mas nasceu como o leão para dominar e vencer, onde quer que se encontre; a alma d'elle é grande como o espaço e profunda como o abysmo; o coração é de gigante, e n'elle os sentimentos humanos, com tudo quanto ha de leal e de nobre, desenvolvem-se até assumirem proporções do sobre natural; junta a isto uma vida romantica, cheia de peripecias emocionantes e curiosissimas, sustentada á custa de uma lucta constante com os homens, com as feras e até com os elementos; emfim, um homem de sangue real, realeza moura, mas que vale tanto como outra qualquer, um homem de sangue real, repito, que perde seus paes, é vendido como escravo, foge atravez do deserto e, sem outras armas do que a coragem pessoal, a força d'um hercules, se assenhoreia das selvas virgens, das quaes desaloja os tigres e os leopardos: que depois se apresenta entre os homens e pratica com elles o mesmo que com os temiveis moradores dos bosques; que chega a Veneza quando a Republica está a ponto de tornar-se provincia de Constantinopla, e, com o seu valor lendario e o seu talento de general a salva, destroe os inimigos e devolve todo o brilhante esplendor á vacilante[10] Magestade. Pensa em tudo isto, repito, apresenta tal homem prodigioso a uma rapariga de desessete annos, enamorada, como todas, do maravilhoso poetico, do extraordinario, e á fé de cavalleiro te juro, que a fealdade e a rudeza materiaes d'um mouro desapparecerão ante os olhos da virgem innocente, para não lhe deixar ver mais do que o lado poetico da varonil e sobrehumana figura do heroe, ante a qual surgem empequenecidos até ao ridiculo, os peralvilhos loiros e affemininados que tenha visto pisar até então as alcatifas dos seus salões.

—A julgar pela discripção que acabas de fazer de Othelo, não parece senão que estás tão enamorado d'elle como minha propria prima Desdemona, ponderou sarcasticamente Rodrigo.

—Porquê? replicou Yago com maior sarcasmo. Porque o conheço e conservo o senso commum necessario para poder apreciar no seu justo valor as qualidades d'esse homem e dar conta exacta da influencia que taes qualidades podem exercer no coração d'uma joven? Que disparate suppôr que eu amo Othello! Pelo contrario, odeio-o com todas as forças da minha alma e de boa vontade inventaria qualquer novo tormento para vel-o morrer na mais horrorosa das agonias. Preferiu-me a esse florentino, Miguel Cassio, a quem nomeou seu tenente, deixando que eu, com o estupido pretexto de que ignoro a estrategia militar, continue sempre alferes, o que é peor ainda. Fallando francamente, não tenho base firme para fundar as minhas suspeitas, mas chegou-me a parecer que o[11] maldito mouro e minha mulher, Emilia, dormiram mais de uma vez no mesmo leito que paguei para celebrar as bodas. Só esta suspeita faz com que sinta todos os martyrios do inferno nas entranhas e deseje vingar-me de Othello, de maneira que cause horror ao proprio Deus das vinganças. Por isso te procurei esta noute, accrescentou o alferes fixando em Rodrigo os olhos chammejantes. Estás apaixonado por tua prima Desdemona, e o homem que eu odeio roubou-ta; pois bem, se me promettes fazer tudo quanto te disser cegamente e sem discutir as minhas indicações, garanto-te que Othello pagará o seu crime e Desdemona acabará por arrojar-se nos teus braços sincera e profundamente arrependida do que fez.

—Devéras? Não me enganas? esclamou Rodrigo louco de alegria.

Juro-o! respondeu Yago com um gesto de convicção; se me obedeceres em tudo, antes de um mez Desdemona será tua.

—Que tenho a fazer para tanto? perguntou Rodrigo disposto aos maiores sacrificios para conseguir o amôr da prima.

—Primeiro, disse Yago, que nunca perdia a presença de espirito, ganhar o tempo que temos perdido discutindo aqui como dois tontos, ou como dois homens despreoccupados, que não teem nada a fazer, quando cada minuto que se perde é um seculo, difficil de recuperar.

E no relogio de S. Marcos soaram n'esse momento duas horas.

—Já duas horas! esclamou Yago, arrastando[12] comsigo o amigo, emquanto fallava. É bastante tarde e ainda precisamos de correr muito!

—Onde me conduzes? perguntou Rodrigo desconfiado, mas seguindo docilmente o alferes.

—Ao palacio de teu tio, para communicar ao pobre velho a sua deshonra e a fuga da filha, se é que elle ainda não deu por tal, como é provavel, pois deve dormir a estas horas, ajuntou Yago.

—Mas vamos provocar um escandalo! replicou o primo de Desdemona, a quem, como cavalleiro que era repugnava semelhante especie de delação.

—É isso precisamente o que nós necessitamos: um escandalo, disse Yago, sem deixar de arrastar o amigo. Um escandalo que fira o orgulho e a vaidade de um dos senhores mais poderosos de Veneza, e que obrigue o Doge a castigar o culpado com todo o rigor que exigem a gravidade da falta e as duras leis da Republica. Basta-me tanto para vêr satisfeito o meu odio, continuou o miseravel com feroz sorriso, depois Othello será destituido do seu posto de general e de todas as honras, como auctor de um delicto que attentou contra a dignidade de um dos membros do Senado, sem contar as penas corporaes que cahirão sobre elle e que serão verdadeiramente terriveis, pois conheço bem a justiça veneziana e sei que é inexoravel n'este ponto.

E, ao proferir taes palavras, Yago ria com um riso sedento de sangue.

Entretanto chegaram ao magnifico palacio do[13] senador Branbancio e, depois de baterem ruidosamente á grande porta de entrada, obrigaram a criada a despertar o amo, que deixou o leito e recebeu os nocturnos visitantes com a vontade que pode suppor-se.

Mas esta má vontade não tardou em converter-se em estupefacção levada até á atonia, que por sua vez se transformou n'uma indignação que esteve a pontos de o enlouquecer, quando o sobrinho o informou da fuga da joven e virginal Desdemona, rapto que se negou obtinadamente a acreditar, a começo, mas que em breve poude ver comprovado, depois de pessoalmente percorrer todos os cantos do palacio com a mesma minuciosidade que empregaria se, em vez de procurar uma mulher, se tratasse de um objecto menos que imperceptivel.

Era que o infeliz velho tinha ante os olhos a realidade e recusava admittil-a, ditoso ainda com a illusão de que tudo aquillo não era mais do que um pesadelo horrivel, do qual não tardaria a despertar.

Assim, quando lhe foi impossivel duvidar e que teve de se render fatalmente á evidencia, a sua dôr não conheceu limites e, no cumulo da desesperação, amaldiçoou a filha e todas as mulheres chamando-lhes encarnação viva de Lusbel, da qual tinham até a infernal formosura; renegou o ceu e a terra e não deixou de lastimar-se e blasfemar até que, vencido pelo peso da propria afflicção, sómente lhe ficaram energias para lamentar com soluços convulsivos a immensa desgraça que acabava de cahir-lhe na encanecida cabeça.[14]

Passada a angustiosa crise, reanimou-se um pouco, e com as forças voltou-lhe o orgulho e a altivez de patricio venesiano; a partir d'este momento só pensou em vingar o ultrage recebido, para o que era preciso, antes de mais nada, apoderar-se do autor da sua deshonra, do infame que lhe roubara a filha.

Por conseguinte e sabendo por Yago que Othello se encontrava áquellas horas nas margens do Adriatico, e não longe do porto, onde estava ancorada a galera destinada a transportal-o nas suas expedições guerreiras, reuniu a toda a pressa alguns soldados, e pondo-se animosamente á frente da pequena escolta, ordenou a seu sobrinho e a Yago que o guiassem até o sitio onde poderia encontrar o raptor de Desdemona.

Rodrigo prestou-se de bom grado a acompanhal-o; mas o alferes, que tinha razões sufficientes para recear que o mouro o visse em companhia dos que iam perseguil-o, allegou tão plausiveis e logicos motivos, que o vingativo e furioso pae consentiu em que marchasse deante de elles, precedendo-os a boa distancia, para que quando a ameaçadora comitiva chegasse onde estava Othello, elle se encontrasse já ao lado do chefe, ao qual teria entretanto explicado satisfatoriamente a sua ausencia.

Assim fizeram, com effeito, adeantando-se Yago a passo largo, pelo caminho mais curto e seguindo-o lentamente, Brabancio, Rodrigo e os homens de armas que os acompanhavam.

Precisamente no momento em que Yago se[15] apresentava ao general, recebia este uma embaixada do Doge, que, apesar do adiantado da hora, estava presidindo ao Conselho dos Dez convocado a toda a pressa para assumpto de vital interesse da Republica e que exigia a presença immediata do general ante o Conselho.

—Está bem, respondeu gravemente Othello aos emissarios do Doge que acabavam de dar-lhe esta ordem. Já os sigo; para fallar verdade, preferia aguardar o dia de amanhã para tratar negocios graves; pois asseguro-lhes, senhores, que esta noute tenho mais coração do que cabeça. Mas o Estado está acima de tudo e obedeço o sua senhoria. Partamos.

—Alto ahi, perro traidor, ladrão de honras, corruptor de donzellas! gritou uma voz colerica e cheia de ira, no momento em que o mouro e os commissionados do Doge se punham a caminho.—Pára ou mato-te como o miseravel que és! Que fizeste de minha filha? Vamos, responde, infame Restitue-me Desdemona!

Ao encontrar-se cara a cara com Brabancio, que, como já terão advinhado os leitores, era quem o increpava tão asperamente, o mouro ficou preplexo por um instante e sem saber, realmente, que partido tomar, pois era a primeira vez na sua vida que ouvia um homem insultal-o de tal modo. Mas recuperando acto continuo o sangue frio, dominou a situação com um simples esforço da poderosa vontade e respondeu brandamente ao velho:

—Senhor, reprimi a vossa colera, que não tem razão de ser, pois nem eu sou ladrão de honras, e[16] menos ainda corruptor de donzellas. Vossa filha seguiu-me esta noute voluntariamente, como está disposta a confessál-o, e, apesar de ha tres horas ser minha mulher, permanece todavia tão pura como os anjos do céu. Juro-o pela minha espada!

—Mentes como um cão! gritou fóra de si o velho. Minha filha não te seguiria de boa vontade e ainda menos se prestaria a ser esposa de um infame hereje como tu! Recorres a tão estupida desculpa para te livrares de cahir nas minhas mãos. Mas enganas-te, miseravel! continuou irritado Brabancio, avançando um passo mais para Othello, enganaste, se julgas ser-te facil escapar á justiça e á minha vingança. Vês estes homens que me acompanham? accrescentou voltando-se e apontando com o braço hirto para os companheiros; pois bastará um signal meu para te arrancarem com os seus punhaes a alma do corpo, se vacilas um só momento em me seguires.

O africano contemplou fixamente, durante um segundo, o encolorizado pae de Desdemona, e no bronzeado rosto deixou transluzir uma expressão terna e compassiva; depois ergueu a poderosa cabeça com um gesto de leão e lançou um olhar de supremo desprezo aos homens que acompanhavam Brabancio.

Em seguida respondeu com voz meiga e socegada:

—São poucos, senhor, para obrigar Othello a que faça o que não quer, emquanto estas duas mãos possam manejar uma espada ou estrangular um homem, e ao pronunciar estas palavras, o mouro[17] estendeu os atleticos braços n'um tal gesto, que todos, até o proprio velho, retrocederam um passo e soffreram uma especie de calafrio que lhes chegou até aos ossos; são poucos, repito; seriam necessarios mais homens e, sobre tudo, homens de tempera, differente d'esses que vos acompanham. Mas ha outras razões mais poderosas, continuou o formidavel africano com a mesma brandura até ali mantida, que vos impedirão agora de pôr mão sobre mim.

—Quaes? rugiu o velho cego pela ira. Julgas por ventura que te vaes livrar com as tuas valentias?

—Não, respondeu friamente Othello; livro-me pelo menos agora, porque assim é a vontade do Doge, que acaba de chamar-me para que compareça sem a menor demora ante o Conselho dos Dez, o qual, presidido por elle, se acha reunido n'este momento para tratar de assumpto de gravissimo interesse para o Estado, e a respeito do qual, segundo parece, necessitam conhecer a minha opinião. Agora bem; proseguiu dizendo o mouro deliberadamente, ousarieis oppôr-vos á vontade do Doge e do conselho, e tolher que se executassem as suas ordens, que, como sabeis, são sagradas na Republica, expondo-vos, talvez a pôr em perigo a segurança do Estado?

—Ceus! Fallarás verdade? exclamou Brabancio desesperado ao ver que a presa estava prestes a escapar-lhe.

—Estes cavalleiros podem responder-te, affirmou o mouro, indicando os commissionados do Doge,[18] que permaneciam a poucos passos de distancia, testemunhas mudas da acalorada scena.

—Assim é, nobre Brabancio, affirmou o que parecia ser o chefe do grupo. Quanto acaba de dizer o general é absolutamente verdade.

O velho senador pareceu ficar um momento atordoado com o peso da noticia.

Mas, de prompto, ergueu a cabeça, os olhos faiscaram-lhe com a viva satisfação da vingança satisfeita, e perguntou ao chefe dos commissionados:

—Disseste que o Doge está n'este momento presidindo ao Conselho dos Dez?

—Assim o disse e assim é, nobre Brabancio; respondeu o interpelado.

—Pois bem, n'esse caso, continuou o pae de Desdemona, que melhor accasião do que esta para exorál-o a que faça justiça? Por muito grave que seja o assumpto que presentemente o occupa, não poderá sel-o tanto que o impeça de ouvir a queixa de um senador da Republica, sobre tudo de um senador da minha ascendencia, contra um bandido que o Estado abrigou incautamente, no seu seio. Ides á presença do Doge, não é assim? Pois bem, eu vou tambem e assim ganharei tempo, em vez de o perder, como suppuz. Já vês, concluiu o raivoso velho dirigindo-se a Othello, que não ha poder humano que te livre da minha vingança! Vamos ter com o Doge e pedir-lhe justiça!

E todos formando um grupo compacto abandonaram as margens do Adriatico e perderam-se lentamente nos solitários e tenebrosos labyrintos da poetica cidade dos canaes.[19]

II

Othello

Apezar da gravidadade das circumstancias, o Doge não poude conter uma exclamação de surpreza ao ver entrar Brabancio na sala onde se celebrava o conselho, acompanhando Othello, sem que para isso trouxesse ordem sua. Lançou pois, um olhar colerico ao velho senador e perguntou severamente:

—Quem se atreve a desobedecer d'este modo á minha vontade e ás leis da Republica, que prohibem a entrada na sala do Conselho a todo aquelle que não tenha ordem expressa de comparecer ante mim?

—Eu, Senhoria—respondeu em tom firme, e attitude respeitosa o pae de Desdemona.—Eu, que venho pedir-vos justiça para o irreparavel ultraje que lançaram nas minhas cans e no meu nome de patriota.

—Tão urgente é o caso e tão imperioso e vehemente[20] o teu desejo de ver reparado o agravo que recebeste, para olvidando toda e qualquer consideração, entrares n'este recinto sagrado para todos os cidadãos da Republica?—replicou o Doge com enfado.

—A Vossa prudente e sabia rasão julgará por si mesma—disse Brabancio sem se deixar intimidar pela attitude severa do Doge, attitude que se reflectia nos dez membros do Conselho. E, acto continuo, indicando a Othello que permanecia de pé a seu lado.—Este homem, que a Republica acolheu em hora aziaga para todos, acabou de roubar-me a filha, deshonrando-a, deshonrando-me tambem e lançando uma mancha indelevel sobre toda a nobreza veneziana, sobre o nobre nome que me orgulho de usar. Justiça, Senhoria, contra tamanho criminoso! justiça, se não quereis que eu renegue a propria terra em que nasci!

—Tranquillisa-te, bom Brabancio—respondeu o Doge com benevolencia—se é certa a accusação que acabas de fazer contra esse homem, contra esse habil e heróico general que mais de uma vez tem dado provas da generosidade do seu coração, salvando a Republica, eu te prometto, como cavalleiro veneziano e como magistrado supremo do Estado, que justiça te será feita! Bem disseste affirmando que o ultraje que recebeste recae sobre todos os teus compatriotas. Mas sabes, prudente velho, que os momentos actuaes são em extremo solemnes e as circumstancias gravissimas? Os turcos dirigem-se contra ilha de Chypre, com uma poderosa esquadra, e d'ella se apoderárão, facilmente se[21] não realizarmos um verdadeiro milagre de vontade e de força. Agora bem—proseguiu o Doge, com convicção.—Sabes o que significa para Veneza a perda da ilha de Chypre? Significa ver-se reduzida a Rodas no Archipelago; é a ruina do seu commercio com a Grecia e com toda a parte oriental da Europa; é o principio da decadencia do seu poder no Mediterraneo, e quando Genova, Florença e o Pontificado saibam isto, cahirão sobre a orgulhosa soberana do Adriatico como um bando de abutres sobre uma aguia ferida e enferma, para repartir os seus restos e insultar a sua passada grandeza. Immensa e justa é a tua dor, pobre velho, mas ante as calamidades que ameaçam a Republica, tu, varão sabio e prudente, responde: que significa a desgraça de um individuo, de uma familia, de uma dôr pessoal por grande que seja, comparada com o soffrimento de um povo?

—Perdoe-me a Vossa Senhoria e o sabio Conselho, respondeu humildemente o velho; ignorava as terriveis noticias que me acabaes de communicar e cega-me a dôr e a soberba. Soffra eu e os meus mil vezes, dado que se salve a Republica! Se a pessoa que a póde salvar é esse homem, terminou indicando Othello, desde este momento retiro a minha accusação e esperarei pacientemente, para lavar a mancha cahida sobre o meu nome, que venham melhores tempos! Veneza e a Republica acima de tudo!

E, ao dizer estas palavras, o nobre velho pareceu verdadeiramente transfigurado pelo generoso enthusiasmo que lhe trasbordava do coração, enthusiasmo[22] que se communicou instantaneamente a todos os circumstantes, exceptuando Othello, que permaneceu sereno e frio como estatua de bronze. Mas apenas acabou de fallar o pae de Desdemona, e antes que o Doge tivesse tempo de responder-lhe, agradecendo a nobreza da sua conducta, como pensava fazel-o, o mouro estendeu o braço direito, como dando a entender que queria pedir a palavra, e ao ver que os membros do Conselho inclinavam a cabeça, com um gesto de approvação, começou com voz grave e pausada:

—O sabio e prudente Conselho, assim como a Senhoria que o preside, vão perdoar-me expôr a minha opinião a respeito de tudo quanto succede, sem que previamente me tenham auctorizado para tanto.

—Era o que pensava agora fazer, pois não foste chamado para outra cousa, heroico Othello, disse o Doge com benevolencia; falla pois, com liberdade absoluta.

—Primeiro que tudo, proseguiu o general, occupar-me-hei, como é de justiça, do mais importante; quer dizer do que diz respeito ao Estado; depois tratarei da accusação que este velho acaba de lançar contra mim. Nada receiem! Serei breve, muito breve, porque pouco, na realidade, tenho de dizer com respeito aos dois assumptos. Por outro lado não é este o momento opportuno para dispensarmos palavras, mas sim de praticarmos actos; além d'isto a minha linguagem é rude e desataviada de galas.

«A Senhoria de Veneza e o sabio Conselho ignoram[23] decerto que a unica eloquencia de que posso orgulhar-me é a das acções.

—Precisamente aquella de que hoje necessita a Republica, observou o Doge gravemente.

—Pois tel-a-ha, respondeu Othello com convicção absoluta. O que tenho a dizer com relação aos turcos que buscam apoderar-se da ilha de Chypre, reduz-se a isto: Montano, a quem deixei como governador na ilha, com plenos poderes para que me substituisse durante curta ausencia, é um militar valente como ha poucos e experimentado como nenhum; adora Chypre como um filho adora a mãe, apesar de não ter nascido lá; dispõe de bons elementos de combate e, por muito vigoroso que seja o ataque dos turcos, saberá resistir durante alguns dias, os sufficientes para que, sahindo eu esta mesma noute ou, para melhor dizer, esta manhã, de Veneza, tenha tempo de surprehender os otomanos antes de que logrem pôr nas torres da ilha o estandarte da meia lua.

—E crês, general, perguntou anciosamente o Doge, que dispões de bastantes recursos para dominar e vencer o grande contingente de homens de guerra e armamento naval com que, segundo noticias fidelissimas recebidas, os turcos se aprestam para a lucta?

—Essas noticias exageram, ou mentem, replicou friamente Othello. O sultão está gravemente empenhado nas guerras com Castella e com Papa, e não pode dispor de grandes elementos de combate. Que Montano resista sómente oito dias, que me sejam favoraveis os ventos, e respondo pela[24] minha cabeça, que a Republica conservará em seu poder Chypre e dará uma nova e forte lição ao seu constante e teimoso inimigo, que o manterá na reserva durante muito tempo. Othello, que nunca mentiu, jura-o pela sua lealdade ao Estado.

E o altivo africano contemplou com tão fria serenidade os individuos do Conselho, que estes sentiram que a confiança, uma confiança absoluta, voltava a renascer-lhes nos corações.

—Assim pois, perguntou o Doge ao mouro, partirás hoje mesmo para Chypre?

—Apenas o sol doire com os seus raios o extremo do mastro real do meu navio, a quilha d'este rasgará as ondas orgulhosas do Adriatico em direcção á ilha, respondeu Othello. Mas antes, Senhoria, ordena-me o coração e a lealdade responder ás accusações d'este velho e deixar terminado este assumpto. Peço-vos que não me negueis o favor de me ouvirdes e de fallar agora mesmo na causa que vou submetter ao vosso recto juizo, Senhoria; porque, apesar de tudo, poderia morrer na nova empreza que vou emprehender e por cousa nenhuma do mundo quereria que pezasse sobre o meu nome a affronta que Brabancio acaba de lançar sobre elle com as suas palavras, ante o Conselho...

—Falla pois, Othello—disse o Doge, com deferencia;—mas, como ha pouco disseste, procura ser breve, o mais breve que te seja possivel, porque não ignoras que o tempo urge e os momentos perdidos são preciosos.[25]

—A brevidade convem a todos—disse o africano;—porém mais a mim do que a ninguem, porque d'ella depende o exito do meu plano de batalha e da sorte da minha existencia. Não receieis pois, Senhoria, e escutem, ouçam-me todos, com os corações de homens e toda a consciencia de magistrados, porque é a minha honra, a minha vida e a minha felicidade que jogo n'este momento.

Calou-se o mouro e, durante alguns instantes, pareceu como abstrahido em meditação dolorosa; depois, erguendo a altiva e bronzeada fronte com o gesto leonino que lhe era peculiar, olhou cara a cara para o Doge e para os individuos do Conselho com olhos nos quaes se reflectia toda a lealdade do seu grande caracter, e começou em voz grave e pausada, que condizia perfeitamente com a soberba majestade da attitude:

Barbancio accusou-me ante vós, Senhoria, de que esta noute lhe raptei a filha para deshonral-a e deshonral-o a elle e a toda a nobreza da Republica.

—E assim é; atreve-te a negál-o! gritou fóra de si o velho senador, a quem a recordação do rapto da filha despertara toda a colera que, durante momentos, havia parecido abandonál-o.

—Nego-o, porque não é verdade—respondeu friamente Othello—Desdemona deixou esta noute a casa de seu pae para seguir-me, para acompanhar seu esposo, porque meia hora depois de ter pisado o tapete da minha gondola, enlaçava-se com o meu o seu destino ante os altares.

—É mentira, uma infame mentira!—rugiu o[26] velho—A minha filha não póde ser a esposa de um cão hereje como tu!

—Tanto póde, que o é—affirmou categoricamente o mouro, sem perder nem por um momento o sangue frio.—Além d'isso, não casou com um hereje, pois creio no Deus dos christãos, porque é o Deus da mulher que adoro.

—Então é porque a enlouqueceste, porque a embruxaste com feiticerias e artes magicas!—exclamou Brabancio no paroxismo da ira. D'outro modo, é admissivel que uma donzella tão pura, tão formosa e delicada como Desdemona, se enamorasse de um horrivel negro como tu?

D'esta vez as palavras do colerico velho feriram por certo alguma fibra sensivel e devéras intima do coração de Othello, porque a côr bronzeada do mouro branqueou durante um segundo, e o general, erguendo mais ainda o alto e poderoso busto, murmurou com voz moderada, mas na qual, apesar de tudo, se sentia vibrar um furacão de sentimentos ignorados.

—Sempre a mesma phrase! Um horrivel negro! Como se ha-de enamorar uma virgem, bella e pura como Desdemona, de um horrivel monstro como Othello! Ignoro, senhor—continuou o africano dirigindo-se d'esta vez ao senador,—se as mulheres veem mais longe e mais profundo do que os homens, mas para dita nossa e honra sua é preciso acreditar que sim, e que a vossa filha viu a minha alma. A minha alma, ouvem, senhores? que é a de um homem como vós, como a vossa, velho implacavel, como a de todos os homens brancos[27] emfim, e que ainda talvez valha mais do que a de muitos d'esses, porque está firmemente temperada na desventura e na lucta pela existencia.! Uma lucta horrivel, espantosa capaz de aniquillar, o melhor coração de toda a nobreza veneziana á qual—continuou com gesto de leão,—egualo, se não supero em raça, porque se ella nasceu em berço doirado, o brilho de uma corôa real illuminou meu nascimento. Sim, orgulhoso nobre; sou, quando menos, teu egual, porque descendo de reis, e sou teu superior em valor moral, porque estou purificado pela desgraça. Vencidos meus paes por um inimigo, não tão poderoso, porem mais astuto e mais cobarde do que elles, fui vendido com meus escravos, como um egual de taes miseraveis. Sim, o leão foi comprado revolto e mettido entre uma jaula de cães; mas a escravatura não se fez para os leões e eu fugi da minha jaula matando os guardas e correndo para o deserto, que era o meu ambiente natural. Ali lutei com as féras para disputar-lhes o alimento, e digo-te sinceramente que ellas são mais leaes e mais nobres na luta do que a maioria dos homens com quem tenho deparado antes e depois de vencel-as. Mais tarde, farto da solidão, fui de povo em povo, de nação em nação, e desde o estreito de Gibraltar até ao dos Dardanelos, reguei o caminho com sangue de cobardes e lagrimas de corações agradecidos. Quando, por ultimo, o Destino me trouxe para entre os vossos, a Republica tremia como presa prestes a ser devorada pelo turco, pelo genovez, pelo florentino, pelo romano, por todos os[28] seus inimigos, emfim. E eu firmei-a; derrotei aquelles que queriam a sua queda para a fazerem em pedaços, dei estabilidade á Republica vacilante, e a minha mão acostumada a apertar sem tremer a garganta dos tigres, cravou no ponto, mais alto da Europa a bandeira de Veneza.

«Que sangue haverá, pois, na cidade de S. Marcos que possa envergonhar-se de se misturar com o meu?

Calou-se o mouro por um momento, e por toda a salla pareceu vibrar a sua potente voz. Othello continuou, sempre dirigindo-se a Brabancio:

—Tua filha sabia tudo isto, sim, sabia-o, porque eu proprio lh'o havia contado; conhece a minha historia, leu em meus olhos e bebeu nas minhas palavras a formidavel e sangrenta epopeia da minha vida; viu-me tal qual sou, e não como me veem os outros, como tu me vês, cego pela ira, e, em vez de achar em mim o monstro a que te referes, viu apenas o homem de coração, que sabe triumphar do Destino e dos homens, e começou por admirar-me, como um ser que valia mais do que todos os fatuos inuteis e vadios que a rodeavam; para concluir, amou-me com o mesmo amor profundo e infinito com que eu a amo. Este é todo o nosso crime, e por elle peço que nos julguem—terminou dizendo, dirigindo-se ao Doge e aos membros do Conselho.

—Tudo quanto disseste nada é mais do que palavras e só palavras!—gritou Brabancio desesperado, pois temia que o prestigio que rodeava Othello inclinasse em seu favor os que tinham de o julgar.—«Os[29] factos fallarão mais alto do que tudo quanto possas dizer em teu abono! Minha filha! Confessa onde occultaste Desdemona! Minha filha que compareça ante vós, senhores, e ella desmentirá essa ridicula novella que acaba de contar-vos este homem, para disfarçar o indigno recurso de que se valeu para desvairar o cerebro e annular a vontade de uma virgem pura e innocente como a propria innocencia!

—É justo—assentiu o Doge, dirigindo-se a Othello.—a tua causa está bem apresentada e melhor defendida por ti mesmo; mas para tratarmos d'ella equitativamente, é necessario ouvir as duas partes. Diz, pois, onde se encontra Desdemona, e nós a faremos comparecer sem perda de tempo para deixar ultimado este assumpto. Porque urge aclarál-o até ao fim; se és realmente, como julgamos, digno da confiança que em ti deposita a Republica, ao enviar-te hoje de novo a defendel-a contra os seus inimigos, ou se terá razão o senador em te accusar com a aspereza com que acaba de fazel-o; em tal caso, as leis do estado, que podem alcançar a minha propria senhoria, haviam de alcançar-te tambem, fatal e necessariamente. Responde, general, onde está Desdemona?

—A dois passos d'aqui, e nada mais facil, para vós, de que mandal-a comparecer aqui e ouvirdes de seus labios as palavras que hão-de perder-me ou salvar-me, visto que daes mais valor ao testemunho de uma mulher do que ao juramento de um homem—respondeu Othello n'um tom de sentida amargura.[30]

—Como!—exclamou o Doge tão surprehendido como todos os circumstantes, e sem prestar attenção na maneira como o mouro pronunciára as ultimas palavras.—Dizes que está aqui Desdemona?

—Sim—respondeu o general—disse.

—Suponho—replicou gravemente o Doge,—que não ignoras que o sitio em que te encontras é o menos a proposito para gracejos?

—Não gracejo nunca—respondeu com certo desdém Othello—Quando me dispuz a seguir os individuos que me enviaste, e depois de ter ouvido Brabancio insultar-me e ameaçar-me com pedir-vos justiça contra mim este mesma noute, considerei, como era logico, que necessitaria apresentar a melhor e a unica testemunha de confiança que póde fallar em meu favor. Por conseguinte, pedi ao meu tenente Cassio que fosse onde estava Desdemona e lhe rogasse em meu nome que o acompanhasse aqui, dizendo-lhe do que se tratava. Ora bem; como estou convencido de que Cassio terá cumprido as minhas ordens, pois é fiel e amigo até á morte, e jámais desobedeceu a quem serve, respondo como já disse, que bastará que que mandeis chamar Desdemona para que esta compareça ante o Conselho.

Com effeito, apenas o Doge deu a um porteiro ordem de que mandasse entrar na sala a filha do senador Brabancio, esta apareceu vestida de branco, com o traje de noiva que talvez não tivesse tido tempo ainda de tirar. Surgiu bellissima na sua pallidez, e serena e firme como estatua de Diana.[31]

Brabancio e todos os circumstantes, exceptuando Othello, soltaram uma exclamação de surpreza e assombro, ao vel-a apparecer como visão celestial, e o Doge disse-lhe com voz affectuosa:

—Approxima-te, preciosa Desdemona, e nada receis, porque a lei e o cavalheirismo te protegem!

A joven aproximou-se com passo certo e firme da mesa do Conselho, sem parecer fixar a attenção em Othello nem no proprio pae, e parando a respeitosa distancia dos juizes, perguntou:

—Que deseja sua Senhoria de mim?

—Que respondas, sob juramento, ás perguntas que vou fazer-te, sem que o medo ou o pezo, nem nenhuma outra consideração humana, te façam occultar a verdade. Comprehendeste?

—Perfeitamente—respondeu com sangue frio Desdemona—Devo advertir-vos, Senhoria, de que não tenho de que recear, e menos de que me envergonhar, e que os meus labios jámais se mancharam com a mentira.

—Acredito e applaudo-te com toda a minha alma—disse o Doge com benevolencia—Agora, responde: conheces esse homem que está a tua direita?—e apontou, indicando Othello.

—Sim, Senhoria, conhece-o e amo-o, porque é meu esposo ante Deus e ante os homens, ha tres horas; juro-o por Christo crucificado, assim como juro que esta noute, por minha propria vontade e sem que ninguem me compellisse nem sequer aconselhasse, abandonei a casa de meu pae para o seguir.

—Mentira! gritou o velho senador desvairado[32] pela colera—Essa mulher está louca, completamente louca! Se assim não fosse, nunca se atreveria a dizer, deante de mim, seu pae, semelhantes vergonhas.

—Não são vergonhas, pae e senhor meu—replicou respeitosa mas firmemente a joven;—mas simples verdades: deixei a casa paterna para seguir meu marido, como, ha muitos annos, tu abandonaste aquella que era tua para seguir tua mulher.

—Maldita, maldita sejas, filha desalmada e sem coração! Aborreço-te e amaldiçoo-te, e nunca mais tornarás a vêr teu pae! Juro-o pelos santos Evangelhos e pela fidalguia da minha raça. Adeus para sempre, e que a minha maldição te persiga por toda a parte!

E completamente transtornado pela desesperação e pela ira que o suffocava, o implacavel velho abandonou, tremendo e cambaleando, a sala do conselho.

—Não chores, preciosa Desdemona, disse o Doge affectuosamente á joven, ao vel-a enxugar as lagrimas que lhe inundavam as faces nacaradas.—A colera de teu pae, ainda que injusta até certo ponto, é no entanto explicavel.

«Mas espero que tão depressa recobre a tranquilidade e o sangue frio, reflectirá e conquistarás de novo todo o seu carinho. No entanto, continuou dirigindo-se a Othello, devolvo-te a estima e a confiança que sempre tive no teu valor e na tua bem provada lealdade. Damos, pois, por terminado este enfadonho assumpto, e dispoe-te a emprehender viagem sem perda de tempo.[33]

—Viagem! exclamou Desdemona estupefacta. Como, Senhoria! Ides affastar assim de mim, tão de repente, o meu esposo, deixando-me na solidão e no abandono mais desconsoladores?

—Assim é necessario, linda Desdemona! respondeu o Doge n'um tom compassivo. Crê que o lamento com toda a minha alma, mas exige-o a salvação e a honra da Republica.

—E onde o mandaes? perguntou a triste desposada com a maior amargura.

—A Chypre, que está ameaçada pelos turcos, e onde faz falta a presença do general mais habil e valente que tem o estado, disse o Doge.

—Pois bem, respondeu a joven n'um tom de resolução inquebrantavel—irei tambem com elle a Chypre. Não diz o Apostolo que a mulher deve seguir o marido? Pois eu opponho-me com toda a minha alma a separar-me d'aquelle que a Providencia collocou no meu caminho.

—Mas, e os perigos a que te vaes expor, indo na sua companhia? observou o Doge.

—Não me importam. Seguil-o-hia, embora soubesse que caminhava para a morte, respondeu a corajosa joven.

O Doge consultou Othello com o olhar, e este sentindo-se tacitamente apoiado pela poderosa Senhoria, atreveu-se a dizer:

—Realmente, não vejo inconveniente em que minha esposa me siga, visto não receiar os perigos que vamos correr juntos. Por outro lado, a mulher de um guerreiro deve ser animosa, e além d'isto a sua presença, longe de diminuir ou quebrantar[34] o meu valor ou os meus talentos militares, multipolical-os-ha até o infinito. Por consequencia, se sua Senhoria e o sabio e prudente Conselho não se oppõem a tal resolução, levarei minha esposa comigo á ilha de Chypre, para onde partirei d'aqui a uma hora. Mas, proseguiu, olhando para Desdemona, para poupar os riscos da viagem, peço ao Conselho que me auctorize a levar comigo todos os officiaes que me são dedicados e que estão acostumados a combater sob as minhas ordens. De este modo, se morrer em qualquer recontro com os turcos durante a expedição, sei que o meu tenente Cassio e o meu alferes Iago, que são meus irmãos de armas, velarão por minha mulher, como faria sua propria mãe.

Assim ficou combinado e, passada uma hora, Othello e Desdemona, com os officiaes favoritos do general, embarcaram em direcção á ilha de Chypre.

O que todos ignoravam a bordo, exceptuando o alferes Iago, que nem o confessou á propria mulher, Emilia, aia de Desdemona, era que, no mesmo navio que albergava os dois felizes esposos, ia tambem o nobre Rodrigo, sobrinho de Brabancio e primo de Desdemona, da qual estava loucamente apaixonado, e a cuja posse não renunciava, apezar de Iago lhe haver dado a noticia de que n'aquella madrugada se realisára o matrimonio da joven.

Mas o alferes de Othello, dotado do maior cynismo, constando que o seu nobre amigo se desesperava, renunciando para sempre ao objecto da[35] sua paixão ao comtemplal-o nos braços de outro, riu-se d'elle e quasi o obrigou a que o acompanhasse a Chypre, disfarçado de marinheiro, promettendo-lhe que, se, como havia dito antes, não lhe desobedecesse em coisa alguma, e muito menos lhe negasse o ouro que corrompe todas as consciencias, arranjaria tudo de fórma a n'um prazo curto, que nunca excederia um mez, a candida e innocente prima cahiria, louca de amor, nos braços do apaixonado primo.

Mas, o que pretendia o mizeravel com tudo isto, era, sómente, enriquecer á custa das joias e do dinheiro de que havia obrigado a prover o ingenuo Rodrigo, e ter este como uma corda mais no arco, para quando chegasse o momento de disparar a envenenada flecha destinada a despedaçar o coração do homem generoso que o acolhera sob a sua protecção e lhe déra a sua amizade e o seu carinho, bem longe de suppôr que abrigava no seio a vibora, que depois havia de causar-lhe a morte com a mordedura venenosa.

Mas não nos adeantemos aos acontecimentos, e sigamos passo a passo o curso da terrivel tragedia que chegou a immortalizar a perfidia de um invejoso e os ciumes de um amante, cujo unico crime consistiu em ser propenso ás paixões, e dispôr de tempera superior áquella em que está forjada a vulgaridade dos homens.[36]

[37]

III

Em Chypre

Duas outras galeras com um bom numero de soldados e infinidade de apetrechos de guerra, acompanhavam a capitanea que levava a insignia de Othello, e na qual este ia com Desdemona, os officiaes e o sobrinho de Brabancio, disfarçado de marujo.

Com estes tres barcos, sómente, contava o general africano defrontar a poderosa esquadra turca, no caso de dar-se um recontro mais do que provavel, visto que os ottomanos, a avaliar pelas ultimas noticias recebidas no momento do embarque, deviam já navegar nas aguas de Chypre.

Mas o heroismo e o talento militar de Othello suppriam tudo, e as tripulações dos tres navios confiavam tão cegamente no chefe, que quasi desejavam esse recontro em vez de o recear.

Não obstante, a situação aggravou-se ao terceiro dia de viagem, até tornar-se desesperada, pois que furiosa tempestade fez sossobrar as duas[38] galeras que acompanhavam a capitanea, e taes destroços causou n'esta, que, deixando-a raza como um pontão e pouco menos do que sem governo, pois o leme soffreu tambem graves avarias e as obras mortas ficaram feitas em pedaços, converteu-a em débil joguete das encrespadas e gigantescas ondas, que a faziam dançar sobre as espumosas cristas como fragil casca de nós.

Ninguem, no emtanto, perdeu a coragem durante aquelle calamitoso transe, apezar de todos estarem firmemente convencidos de que soára para elles a ultima hora. Era que o exemplo de coragem e sangue frio de Othello e sobretudo de Desdemona, que não se apartou do esposo um só momento durante o perigo, seguindo-o por toda a parte com o sorriso nos labios e resolvida a morrer com elle, communicára-se a todos, e ninguem, ainda que a sentisse, queria dar provas de fraqueza, alli onde uma mulher era a primeira a fazer galla do mais extraordinario heroismo.

Mas, por ultimo, no dia seguinte, e depois da noite verdadeiramente horrorosa aquietaram-se os elementos, o furacão diminuiu a furia e foi pouco a pouco acalmando até converter-se em brisa suave e acariciadora. O mar, que durante vinte horas mortaes parecera um Leviathan furioso, transformou-se, por fim, em Iago tranquillo.

Os afortunados viajantes, salvos por verdadeiro milagre, não tardaram em encontrar, junto da desmantelada embarcação, terriveis e numerosos indicios dos destroços que havia causado em taes paragens a formidavel tormenta.[39]

Uma coisa, não obstante, feriu a viva imaginação de Othello. Extranhou ver a excessiva abundancia de cadaveres, restos de navios feitos em pedaços e destroços de toda a especie que fluctuavam sobre as ondas.

Chegou um momento em que a ideia d'esses despojos o atormentára de tal modo, que teve necessidade de communical-a a alguem, pois queria a todo o transe ouvir, a tal respeito, outra opinião.

Chamou por isto o tenente Cassio e o alferes Iago, e sentando-se com elles na tolda do navio, disse-lhes, mostrando o mar, que cada vez apparecia mais juncado de cadaveres:

—Que me dizeis d'isto? Certo deve ter succedido grande catastrophe, pois de outro modo não se explica que haja tantas victimas e tantos restos de navios destroçados. Que opinião é a vossa?

—Se fosse a esquadra turca?—atreveu-se a insinuar o tenente Cassio olhando para o chefe, em cujos olhos surprehendeu um relampago de alegria, ao ver que encontrava alguem, e nada menos do que um homem ponderado, que pensava como elle.

—Neptuno foi tão propicio durante a vossa viagem, general, disse por sua vez Iago com servil adulação, que não admiraria nada que levasse a protecção que vos dispensou até ao extremo de livrar-vos sem combate dos vossos inimigos.

—De qualquer maneira, respondeu Othello, sorrindo affavelmente ao alferes, seja ou não a Providencia que nos auxiliou, é indubitavel que não podemos queixar-nos da sorte, e que esta corôaria[40] dignamente a sua obra e, ao chegar a Chypre, encontrassemos comprovada a opinião do tenente Cassio que, seja dito com franqueza, foi tambem a minha.

Não tiveram de esperar pela chegada a Chypre para saberem da destruição da esquadra turca, de modo innegavel.

N'aquelle mesmo dia encontraram uma lancha tripulada por seis naufragos, todos soldados otomanos, os quaes, depois de serem recolhidos no navio e tratados com todos os cuidados e attenções que a sua lamentavel situação exigia, agradecidos á generosidade que Othello usava para com elles, lhe contaram minuciosamente todos os detalhes da espantosa catastrophe, na qual desapparecera toda a esquadra, exceptuando duas embarcações que, partidas e sem léme, acabaram por perder-se no horizonte á vista dos naufragos, sem que pudessem dizer o que fôra d'ellas; mas a julgar pelo deploravel estado em que as havia posto a tempestade, era mais do que provavel que houvessem acabado por ser tambem tragadas pelo Oceano.

Julgue-se, pois, a impressão que tão faustas noticias fariam nos ditosos viajantes, que viam desapparecer n'um minuto os perigos que ameaçavam a Republica de Veneza, para elles mil vezes mais temiveis e angustiosos, pois lhes tinham ameaçado até então a popria vida.

Quando por fim a desarvorada galera capitanea fez a sua entrada triumphal no bellissimo porto da ilha de Chypre, onde já era tambem conhecida[41] a destruição da esquadra turca, o regosijo e a alegria não tiveram limites; Othello e Desdemona foram recebidos com o fervente enthusiasmo que só se tributa aos heroes, e toda a população distincta da ilha, com o governador Montano á frente, correu a visital-os ao palacio em que se haviam installado, para tributar-lhes sincera e franca homenagem de admiração e de estima.

Othello, pela sua parte, ao assumir, n'aquella mesma tarde, o comando supremo de Chypre, decretou em nome da Republica veneziana festas geraes durante todo o resto do dia e até á meia noute, para que o povo celebrasse, cada qual consoante a sua vontade e gosto, o ter-se livrado, tão feliz como inopinadamente, do terrivel e feroz inimigo que pretendera apoderar-se da ilha.

Em seguida, e apenas anoiteceu, retirou-se para o Palacio em companhia de Desdemona, pedindo a Montano para ainda fazer as suas vezes durante a noute, pois alem de estar fatigado, devido á accidentada viagem, era essa tambem a primeira noite em que, desde que se unira a Desdemona, podia encontrar-se a sós e tranquillo com a formosa e virginal esposa.

Montano, como póde suppor-se, accedeu promptamente ao desejo do general governador de Chypre, offerecendo-lhe cumprir o seu encargo de vigiar cuidadosamente os guardas durante a noute, tanto para acudir ás desordens e escandalos resultantes de todas as festas populares, como para não abandonar a vigilancia do porto que, não obstante o desastre casual soffrido pelos turcos,[42] era presa demasiado cubiçada por elles para se descurar, um momento que fosse, observando com semelhante prevenção o famoso e prudente proverbio latino si vis pacem, para bellum, que deve ser sempre a divisa de todo o bom militar.

Caiu a noute sobre Chypre com os melhores auspicios e em meio da alegria de todos os seus habitantes que, já livres das tristes preoccupações que os haviam atormentado até ali se entregaram inteiramente ao gozo das festas que haviam organizado.

Ao dizermos todos os habitantes, devemos descontar dois muito nossos conhecidos, que já não participavam do regosijo commum, e recolhidos n'um angulo do edificio que servia de quartel á guarda encarregada da vigilancia do porto, conversavam animadamente e em voz baixa de assumpto que, a julgar pelo aspecto e gestos de ambos os interlocutores, devia ser de grande interesse para elles.

Estes dois personagens eram Iago, o alferes de Othello e o seu nobre companheiro Rodrigo, sobrinho de Barbancio e desprezado amante de Desdemona, o qual não deixára ainda o disfarce de marinheiro, por assim o ter aconselhado o amigo, como medida de prudencia.

O dialogo que segue porá os nossos leitores ao corrente do assumpto que tratavam, e que, como já terão advinhado, não era outro senão o dos desditosos amores da ingenua victima do alferes.

—A avaliar por quanto pude ver desde que sahi de Veneza, dizia Rodrigo ao companheiro, asseguro-te[43] que, se não fôres o proprio diabo em pessoa, te será difficil que eu consiga o amor da minha bella prima, que dia a dia me parece mais enamorada do horroroso marido.

—Trouxeste comtigo todas as joias e quanto dinheiro podeste reunir, segundo prometteste? perguntou tranquillamente Yago, sem dar a menor attenção ás palavras do amigo.

—Nas minhas malas tenho todas as alfaias de familia, que valem para cima de dez mil escudos de ouro, e quasi outro tanto em moedas novas venezianas e genovezas, respondeu Rodrigo.

—Com menos de metade se comprava, seduzia e conquistava uma rainha, ainda que abrigasse no seio um coração mais duro que as afiadas garras do leão de S. Marcos, disse o alferes em cujos olhos brilhou um clarão de cobiça, ao ouvir as palavras do companheiro.

—Não proponho comprar Desdemona, replicou este, por duas razões: a primeira porque a conheço bem e estou certo que não é mulher que se venda; e a segunda porque receberia um amor que se daria por dinheiro e não por natural correspondencia á paixão que inspira a mulher amada.

—Ta! ta! ta! cantarolou cynicamente Yago, tudo isso são cantatas, bôas, quando muito, para servir de assumpto a rimances cantados por trovadores, depois de opipara ceia em noute de festa. A tua bella prima é como todas as mulheres, e todas as mulheres são como as andorinhas. Namoram-se de tudo quanto brilha; por isso[44] tua prima se enamorou de Othello, porque a seus olhos brilhou mais do que todos os nobres venezianos, devido ao inegavel esplendor das suas maravilhosas proezas.

—Que devo então fazer? perguntou Rodrigo, contemplando Yago com irritação não isenta de espanto. Não me asseguraste que Desdemona está enamorada do marido?

—Nem mais, nem menos, respondeu fleugmaticamente Yago. Mas, por dizer-te que está enamorada, não significa semelhante affirmação que o esteja sempre. O amor de tua prima, nobre Rodrigo, crê piamente no que digo, pois sou homem de experiencia, não é amor verdadeiro, mas ficticio; o que poderiamos chamar amôr de imaginação.

—Como! exclamou, cada vez mais surprehendido, o joven veneziano.

—O que acabo de proferir, continuou o alferes, é precisamente a phrase approximada e perdoa que me gabe ao dizer-te que muito feliz fui em a ter encontrado: um amor de imaginação. O brilho que vê em Othello, e que a deslumbrou, não é outra coisa senão o que se vê nos heroes dos romances, que é precisamente como se apresenta o marido aos olhos de Desdemona. Ella vê o heroe, sempre o heroe. Pergunta-lhe pelo homem, e não saberá responder-te.

—Porquê? perguntou Rodrigo, verdadeiramente interessado.

—Simplesmente porque o homem não existe para ella nem, felizmente para o que respeita a[45] Othello, se preoccupa de procural-o; no dia em que tal faça, o marido está perdido e o mesmo será no dia em que o encontre.

—Não te comprehendo, interrompeu o joven veneziano, que, como todos os seus eguaes d'essa epocha, estava pouco habituado a torturar o cerebro, sentia enorme confusão perante semelhante embroglio para elle inintelligivel.

—Porque não queres comprehender-me, replicou Yago com a mesma tranquilidade do gato que brinca cem o rato. E se não, continuou dizendo, ouve-me attentamente e verás como te explico tudo, em quatro palavras, verás como entendes: tua prima é mulher, não é verdade?

—Essa é de cabo de esquadra! exclamou irritado Rodrigo. Pois que outra coisa poderia ser?

—Não te abespinhes, homem, não te abespinhes! De vagar se vae ao longe e nao tardarei em chegar onde quero, disse o alferes que, semelhante n'isto a todos os miseraveis, se comprazia em atormentar a victima. Responde: é mulher ou não?

—Quem duvida?

—Ninguem, por certo. Ora como mulher, necessitará de um homem que lhe satisfaça as exigencias do organismo; um homem que ame fisicamente, entendes-me agora, alma de cantaro? fisicamente, porque o amor fisico é o unico que póde convir á vida de uma mulher, quando as paixões imaginativas e novelescas, como a agora experimentada por ella, se evaporam e fogem ante a fortaleza brutal dos gritos da carne.[46]

—Bem, de accordo, respondeu Rodrigo que ia começando a comprehender o companheiro.—Mas aonde queres tu ir parar com todas essas philosophias?

—Simplesmente a uma conclusão que não admitte duvidas: tua prima está hoje satisfeita e enamorada porque não vê mais do que o lado poetico do marido, e ainda não se fixou na cara, linguagem, gestos, e no mais que n'elle existe de tosco, de selvagem e de brutal. Mas como o seu amor não póde alimentar-se de sonhos, e um beijo dado por uns labios humidos e vermelhos vale mais para uma mulher do que toda a poesia do mundo, no dia em que esse tigre africano despertar torpemente a carne da mulher, o que n'este momento está fazendo, asseguro-te que, ou não ha senso commum sobre a terra, ou apenas Desdemona se inteire do que então ignorava, quer dizer, de que tem sexo, o negro estará perdido para ella, completa e irremediavelmente perdido. Talvez, nas suas horas de tédio, o recorde e até careça d'elle, como se recorda e se carece, em determinados momentos, de uma historia interessante ou de um fragmento de poema; mas, durante os parentesis da realidade, que são os maiores da vida, precisamos todos, e ella tambem, coisa mais substanciosa e mais pratica: o gastrónomo, carne fresca e appetitosa que desfaça nos dentes; e o amante, carne mais fresca e mais appetitosa que lhe palpite nos braços! Já vês que n'este pobre mundo tudo é questão de carne, meu caro amigo! Ah! ah! ah![47]

E, ao dizer estas palavras o miseravel soltou uma gargalhada cynica e estrepitosa, gozando em desfolhar, uma a uma, as poucas flôres da illusão que ainda vicejavam no coração de Rodrigo.

—Assim, pois, continuou dizendo quando acabou de rir, confia em mim e não tortures a cabeça com supplicios inuteis.

«A noiva de Othello será tua, porque assim jurei e não falto nunca aos meus juramentos, disse com um sorriso de escarneo quasi imperceptivel. E proseguiu acto continuo:

«Apenas terás de me ir entregando joias e dinheiro, á medida que eu vá pedindo, para captivar com ellas o coração de minha mulher, que é o anjo da guarda do Paraiso, e seduzir tambem a coração de Desdemona. Já vês que sou imparcial na minha opinião com respeito a mulheres, terminou o mizeravel, pois que não sendo a minha das peores, não lhe dou mais valor do que positivamente tem.

—E julgas, realmente, que Desdemona se deixará captivar por fim, com dadivas e presentes? perguntou o infeliz apaixonado, cuja certeza a respeito da virtude da prima começava a fraquejar, combatida simultaneamente pelos proprios desejos e pelas perfidas theorias do ruim amigo.

—Dá tempo ao tempo e depois te convencerás do que digo, proseguiu Iago com a firmeza de quem tem certo o triumpho.

«Dá-me tudo o que te pedir e deixa o resto por minha conta. Não te preoccupes mais com tal assumpto e presta attenção, e ao dizer estas palavras baixou a voz e adoptou uma attitude mysteriosa;[48] ha outra coisa e outra pessoa que constituem um grande perigo para os teus amores.

—Que queres dizer?—perguntou Rodrigo sobresaltado.

«Explica-te mais claramente porque os teus enigmas apenas servem para me atormentar.

—Não tens reparado na assiduidade com que o tenente Cassio segue para toda a parte Desdemona, e na singular preferencia que esta lhe dispensa constantemente, mesmo na presença do esposo?

—É certo! exclamou Rodrigo empallidecendo; até agora ainda não tinha dado importancia a semelhantes detalhes; mas acabas de abrir-me os olhos, e não ha duvida que tens razão de sobra para assim fallares. Que infame! acabará, talvez, por entender-se com Cassio, procurando n'elle o homem a que ha pouco te referias? Se assim fôr, posso perder as ultimas esperanças, pois o meu amor não se verá jámais correspondido!

—Enganas-te, porque estou eu aqui para o evitar respondeu Iago, fingindo carinho affectuoso.—Tenho o meu plano. Esta noute preciso que me ajudes, para varrer esse empecilho, de fórma que não torne a molestar-nos em vida.

—Como?—perguntou Rodrigo.

—É muito simples; primeiro que tudo, é perciso fazer que Cassio, perca a estima de que desfructa junto de Othello, e que este o demitta do seu posto de tenente, para dar-m'o. D'este modo, affastado para sempre do general, não terá pretexto para approximar-se de Desdemona e todas[49] as suas seducções e artificios resultarão completamente inuteis. Entretanto eu, investido nas funcções do meu novo cargo, poderei converter-me em sombra do mouro e, por conseguinte, de tua prima, e não me parece necessario encarecer as vantagens que poderás tirar d'isto para os teus amores.

—É certo!—exclamou o moço veneziano, contemplando com admiração e gratidão o amigo—Mas como te vais arranjar para levar a cabo o teu plano e em que poderei auxiliar-te?

—Da maneira seguinte: d'aqui a uma hora, pouco mais ou menos, vou cear em companhia de Montano e de Cassio no quartel que existe n'este mesmo edificio. O tenente é tão mau bebedor que não póde resistir a um só copo do riquissimo vinho d'esta ilha. Ora bem; hei de fazer o possivel para que beba dois ou tres, o que bastará para o embriagar como a qualquer mendigo e, em seguida, busca sahir-lhe ao caminho e, sem o provocar, farás que te dirija algum insulto, cousa que não será difficil, porque quando está bebedo, é aggressivo. Replicar-lhe-has acto continuo e continuarás discutindo até conseguires que te bata. Como farás tudo isto, procurando não te affastares do quartel, onde se effectuará a ceia, gritarás de modo que Montano e eu possamos ouvir-te. Então acudiremos ambos, eu occupar-me-hei de ti, e deixaremos que os dois se entendam, na certeza de que Cassio, homem sereno e senhor de si quando está no estado normal, é indiabradamente provocador e insultante quando se embriaga, o que lhe[50] succede poucas vezes na vida, e não deixará de puchar pela espada para responder com ella ás amigaveis indicações que lhe dirija Montano; fará sangue, certamente, e então entrarei eu em scena para armar tal escandalo, que Othello terá de inteirar-se necessariamente do caso. Ora bem; como não transigiria nem com o proprio filho em pontos de disciplina, surprehenderá Cassio em falta grave, precisamente no momento de guarda, e affirmo-te que o teu provavel rival não tornará a pôr no peito a divisa de tenente, que passará a ser minha, e que, a partir d'esta noute, poderás viver completamente tranquillo.

—E estás bem seguro do teu plano?—perguntou Rodrigo ao alferes, quando este acabou de narrar o infame projecto, que o joven veneziano escutára com profunda attenção.

—Certissimo—respondeu Iago—Só preciso que prestes o serviço que te peço.

—Conta comigo—prometteu o sobrinho de Brabancio, decidido a tudo para conseguir o amor de Desdemona.

—Então, mãos á obra—respondeu o alferes levantando-se e apertando a mão do companheiro.—N'este mesmo sitio estás perfeitamente para fazeres quanto te indiquei, porque Cassio sahirá por aquella porta—apontou, indicando uma que havia a poucos metros de distancia.—Espera-o aqui, executa fielmente as minhas instruções, e não duvides de que o triumpho será nosso.

E, acto continuo, o miseravel despediu-se do ingenuo Rodrigo e correu a pôr em pratica o diabolico[51] plano que concebera, não para ajudar o companheiro nos seus amores, como promettera, mas para perder um innocente a quem invejava, e supplantal-o no posto e no affecto de Othello.

*
*     *

Duas horas depois, o sino de alarme tocava desabaladamente no quartel situado junto da doca do porto, pondo em alvoroço toda a ilha, que começava a entregar-se ao somno passada a agitação da festa, e obrigando a saltar do leito, em sobresalto, o proprio Othello, que repousava docemente entre os bellissimos braços de Desdemona.[52]

[53]

CAPITULO IV

O traidor

A minuciosa exposição que Yago fizéra a Rodrigo do plano que tinha in-mente, bastaria para que os nossos leitores tivessem noticia exacta de quanto havia succedido durante as duas horas que passaram desde a separação dos dois amigos até o momento em que o inesperado toque do sino de alarme levou a inquietação e o desassocego a todos os habitantes de Chypre, incluindo n'este numero o proprio Othello.

Mas, se, para maior clareza da narração é imprescindivel por um lado conhecer a descripção pormenorisada do succedido e assim chegar ao desenlace d'esta tragica historia sem uma solução de continuidade que prejudicaria notavelmente a comprehensão dos factos; pelo outro, seria impossivel, omittindo tal narração, seguir passo a passo as interessantes e accidentadas peripecias do complicado drama cuja base principal assenta na ambição[54] e na inveja de uma alma perversa, nascida para a infamia e para o crime.

Assim, sigamos Iago no momento em que, ao separar-se do primo de Desdemona, entrou no quartel onde, á entrada, o estavam esperando para a ceia o tenente Cassio e o nobre Montano, governador da ilha de Chypre e representante da Republica Veneziana, na ausencia de Othello.

—Boa noite, prudente Cassio; saude e prosperidade, illustre Montano, cumprimentou o alferes ao entrar, dirigindo-se aos companheiros e superiores.

—Graças a Deus que vieste; julgavamos que tivesses esquecido que te esperavamos! exclamou Cassio ao vêr entrar o amigo.

—Pelo que prevejo, interrompeu Montano esboçando um sorriso malicioso, este bom Iago, apezar de ter uma esposa deveras formosa, não faz má cara ás mulheres do proximo, especialmente quando são jovens lindas; e como abundam em Chypre as que reunem estas duas qualidades, graças sejam dadas ao Amôr e a Venus, certamente se atrazou, dando uma volta pelas ruas da ilha, com o perverso proposito de render alguns corações mais do seu gosto.

—Acertaria no alvo o vosso gracejo, se visasseis o nosso tenente, que tem, na verdade, fama de irresistivel com as bellas, replicou Iago esboçando um sorriso intencionado, de que só elle percebeu a transcendencia. Quanto a mim detesto as saias, por instincto de conservação, e não trocaria uma só garrafa de bom vinho de Chypre por todas[55] as mulheres casadas, viuvas ou solteiras, que vivem na ilha.

—Parece-me, Iago, observou Cassio affectuosamente, que acabas de fazer duas affirmações duplamente exaggeradas: uma, aquella em que alludes á minha boa estrella junto das bellas, que seja dito de passagem, só existe na tua imaginação, pois confesso-te que, até agora, não tenho na minha folha de serviços uma só conquista que valha referencia.

—Nunca é tarde quando a sorte nos sorri, replicou astutamente Iago.

«Ha quem assegure que estás a caminho de entrar por assalto n'uma praça que mais de um nobre veneziano, teu compatriota, invejaria.

—Não te comprehendo, respondeu Cassio com estupefacção tão profunda como sincera retratada no semblante.

—Saibamos, saibamos que praça é essa e veremos se é digna de disputal-a o bello Cassio! exclamou alegremente Montano.

—Se elle guarda segredo, não sou eu que tenho o direito de desvendal-o, disse hypocritamente o alferes.

—Guardo segredo porque não sei a que aventura te referes, respondeu Cassio de boa fé. Explica-te, peço, porque conseguiste intrigar-me.

—Modestia, pura modestia, discreção levada até á mudez! disse rindo o alferes. Cassio, felicito-te porque és um cavalleiro digno de ter vivido nos bons tempos do rei Arthur. Mas, continuou, dando deliberadamente outro rumo á intencional[56] charada, cada vez me convenço mais de que o mundo está cheio de paradoxos e nós proprios o somos.

—Porquê? perguntou Montano com estranheza.

—Nada mais simples, respondeu Iago. Vocês esperavam-me com impaciencia, o que evidentemente accusa um apetite devorador; por minha parte tambem declaro que não vinha menos resolvido a entender-me com uma boa ceia. Pois bem, em vez de aproveitarmos o tempo predispondo o estomago com meia duzia d'essas veneraveis garrafas que nos escutam, para entrarmos depois heroicamente pelos manjares, estamol'o perdendo lastimosamente, fallando de mulheres, isto é, do assumpto menos substancial e mais perigoso que pode tratar-se entre cavalleiros.

—Indubitavelmente esta noute estás pouco amavel e galanteador para as damas, valente Iago, respondeu Montano rindo.

—Nem mais nem menos do que n'outras occasiões e nem menos nem mais do que o merecem, disse Iago.

E passando em revista meticulosa as garrafas poeirentas que se viam sobre a mesa artisticamente posta, pegou n'uma de respeitavel antiguidade, a julgar pelo aspecto e pela marca que ostentava na rolha, abriu-a e encheu de riquissimo e perfumado vinho os copos dos companheiros e o d'elle. Seguidamente e sem dizer palavra, bebeu-o de um trago e fez estalar a lingua com a placida expressão de um bebedor satisfeito.[57]

Montano fez com o copo o mesmo que Iago fizera com o d'elle; mas o tenente Cassio contentou-se com leval-o aos labios e humedecel-os ligeiramente com o dourado nectar.

—Como! exclamou Iago apparentando indignação e assombro ao ver que o seu amigo voltava a por sobre a mesa o copo tão cheio como o levantára. Não bebes comnosco, ou não aprecias este vinho, herdeiro directo da sagrada ambrosia com que Jupiter obsequiava de vez em quando os seus amigos do Olympo? ignoras, por ventura, desgraçado, que o vinho de Chypre foi consagrado pela historia, atravez dos seculos, até que vencendo o seu rival Falerno, teve a honra de toldar com frequencia o cerebro de Alexandre, de produzir as gloriosas alegrias de Alcibiades, de servir de vehiculo para o veneno que matou Britanico e de inspirar os versos de Nero e os pontapés que o imperial artista dava em Popêa para a expulsar dos festins, quando o estorvava nos seus desabafos amorosos com os mancebos romanos? Ignoravas isto, infeliz? Pois bem, é um peccado de lesa ignorancia, indesculpavel n'um homem ponderado como tu; mas, apesar de tudo, Montano e eu perdoamos-te com a melhor vontade do mundo, dado que honres o historico vinho como nós o honramos.

—Nunca bebo! respondeu gravemente Cassio.

—Porquê? perguntou com curiosidade Montano. É talvez algum juramento?

—Não, respondeu o tenente; a minha repugnancia em beber obedece sómente a que o vinho[58] me ataca de tal modo a cabeça, que basta um copo para transtornar-me por completo e fazer de mim um homem absolutamente diverso de que sou no estado normal.

—Mas ceando, aventurou Iago, é outra coisa, e affirmo que não te succederá mal algum. Além d'isso, proseguiu alegremente para animar o companheiro, estás entre amigos e, se a bebedeira te der para dormir, mandar-te-hemos deitar n'um fôfo e confortavel leito, ou então rir-nos-hemos se te der para nos insultar.

—Um homem embriagado é um ente desprezivel, e por cousa alguma d'este mundo consentiria em chegar a semelhante e lastimoso estado.

—Pois bem, disse deliberadamente Iago; ceêmos; de qualquer forma, affirmo que saberei obrigar-te a brindar comnosco, dado o caso que o nosso exemplo não te leve por motu proprio a provar o historico nectar.

Acto continuo serviram-se os primeiros pratos, e durante minutos apenas se ouviu o ruido produzido pelos dentes ao triturarem os tenros ossos das presas que devoraram.

Inesperadamente Iago levantou-se e enchendo os dois copos que ainda estavam vasios, pegou no d'elle e brindou:

—Pelo feliz matrimonio do nosso general e para que nunca veja perturbado com a mais ligeira nuvem o céu de seus amores com a bella Desdemona.

E dirigindo-se a Cassio, accrescentou:

—Atreve-te a recusar este brinde, e asseguro-te[59] que Othello nunca te perdoará a descortezia, se um dia vier a sabel'a.

Cassio vacillou um segundo; mas, instado por Montano, que juntou os seus rogos aos do alferes, pegou no copo e bebeu-o de um trago dizendo:

—Á saude do general, e pela eterna felicidade do seu matrimonio!

E em seguida cahiu na cadeira, sombrio e taciturno, como arrependido de ter quebrado tão facilmente a resolução de permanecer sobrio.

Continuou a ceia, animada pela pittoresca conversação do alferes e pela alegria natural e espontanea de Montano, e, passado algum tempo, o primeiro voltou a erguer-se, encheu novamente os trez copos, e disse levantando o seu:

—Brindemos pela gloria e prosperidade de Veneza e pelo triumpho das suas armas sobre todos os inimigos!

Montano e elle emborcaram os copos d'um só trago; mas o tenente, sem despejar o seu, disse em tom resoluto:

—D'esta vez não beberei, já lhes fiz a vontade, apezar de contrariado, e por isso espero que não insistam mais.

—Prevês o que se dirá, replicou Iago, sem dar importancia ás palavras do amigo, quando se souber, e saber-se-ha comcerteza, porque as paredes teem ouvidos, que não quizeste brindar pela gloria de Veneza, depois de ter brindado pela felicidade do homem que te protege? Pois toda a gente affirmará, continuou, sem parecer notar o[60] olhar colérico que lhe dirigia o companheiro, que não passas d'um adulador egoista, que pretende afagar os poderosos, para medrar á sombra d'elles, e que, como florentino afinal, te importa pouco que a Republica triumphe ou seja derrotada pelos seus inimigos.

Cassio cravou no miseravel um olhar ameaçador e apertando convulsivamente os queixos um contra o outro, como para conter as palavras que estavam prestes a escapar-lhe dos labios, pegou no copo e bebeu nervosamente até á ultima gôtta.

Outra vez proseguiu a scena, e foi então Montano quem, excitado já pelas libações, ainda que bastante senhor de si, encheu os tres copos e disse apresentando o seu:

—Pela total ruina do poderio turco, e para que o leão de S. Marcos destroce, definitivamente, nas suas garras, a orgulhosa meia lua!

O tenente Cassio, sem que em tal momento tivesse ninguem que o provocasse, foi o primeiro a tocar no copo do nobre anfitrião.

Mas, apenas bebeu o vinho que continha, soltou uma blasphemia, e cravando no alferes os olhos esgazeados, cuspiu-lhe á cara este insulto:

—Iago, és um miseravel!

Immediatamente arremessou o copo contra o solo e sahiu, cambaleando.

—É melhor seguil-o, pois vae em mau estado e pode praticar qualquer disparate! observou prudentemente Montano.

—Não te preoccupes com elle, illustre amigo,[61] replicou Iago com indifferença, Já desabafou commigo e agora irá direitinho deitar-se e curtir a bebedeira.

«Conheço-o perfeitamente, pois ha muito tempo que o acompanho e sei que isto lhe succede com frequencia.

—Como! exclamou Montano admirado. Pois não nos affirmou que nunca bebe?

—Ora! respondeu o miseravel. Isso dizem por causa do general todos os bebedos que resistem pouco e teem, além de medo, mau vinho!

«Aposto dez escudos de ouro em como terás encontrado em tua vida muitos homens, que, como Cassio, teem, poderiamos assim chamar-lhe, o pudor da bebedeira, porque, quando recobram a razão, se envergonham da conducta que tiveram durante o estado de embriaguez.

«Isto, porem, rematou Iago, com malevola intenção, não os impede de tornar a beber, fazendo-se algo rogados para cobrir as apparencias e desculpar o juramento que costumam fazer a miudo, e de que se arrependessem nas occasiões opportunas.

—É certo! disse Montano convencido. Confesso, porém, ter chegado a acreditar ser Cassio um homem de caracter, incapaz das ridiculas pechas dos espiritos fracos. Desprezo os homens que não teem o valor da convicção das suas qualidades e dos seus vicios, e nunca pensei que o tenente de Othello pertencesse a semelhante classe de individuos.

—Porque não o conheces, volveu perfidamente[62] Iago. Quanto a mim, estou habituado a estas scenas, e, como sempre que bebe, me insulta, ouço os ultrages como quem escuta a chuva. Isto te foi dado observar ha pouco.

—Sem duvida, disse Montano n'um tom affectuoso. Bem pode dizer esse bebedo que tem em ti um verdadeiro amigo.

—Sim, estimo-o, respondeu Iago, e prefiro, por isso, que desabafe comigo, a que o faça com outro qualquer; pois o insulto poderia acarretar-lhe desgosto sério, como já por vezes tem estado a ponto de succeder-lhe, quando não me encontro junto d'elle.

—Mas, pôe-se de tal modo quando bebe? Perguntou Montano.

—É verdadeiramente insupportavel; para qualquer outro que não tenha a minha paciencia, torna-se aggressivo e turbulento, e não ha meio de reprimir-lhe as insolencias senão castigando-o severamente.

—N'esse caso, observou Montano em tom de pezar, repito que fizemos mal em o deixar sair d'aqui... Quem sabe, se...

Não poude terminar a phrase, porque n'aquelle momento faziam-se ouvir, não longe d'ambos, os gritos espantosos de um homen que pedia auxilio desesperadamente, e antes que tivessem tempo de se refazerem da surpreza, entrou na sala, com flecha, um individuo vestido de marinheiro, que vinha seguido de perto pelo tenente Cassio. Este proferia a tropel blasphemias e maldições agitando a espada que empunhava.[63]

—Hei de espetar-te como um frango, meu grande tratante! gritou o tenente ao entrar em casa, apóz o marinheiro, o qual, como já terão adivinhado não era outro senão Rodrigo, que havia seguido fielmente as instrucções dadas por Iago para a execução do plano.

—Socorro, socorro, que me mata! gritou Rodrigo com voz que reboou por todo o edificio, despertando os homens de armas.

—Alto ahi, amigo Cassio! exclamou Montano severamente. O que fazes não é proprio de cavalleiro!

—Se ha aqui alguem que não seja cavalleiro, esse és tu, covarde defensor de malandrins, respondeu gritando Cassio, emquanto ameaçava de tal modo Montano com a ponta da espada, que o defensor de Chypre teve de dar um salto para traz e arrancar da que trazia para defender-se, pois corria o risco de ter o peito atravessado pela lamina do adversario.

Limitou-se, porém, a aparar os ataques furiosos que lhe dirigia o tenente, completamente fóra de si, emquanto Rodrigo, Iago e os soldados que haviam acudido, armavam tal barulho com as exclamações e gritos, que o escandalo não tardou em propagar-se desde o porto até ás primeiras ruas da ilha cujos pacificos habitantes perguntavam assustados o que se passava, julgando-se ameaçados por qualquer invasão de turcos.

Entretanto seguia Montano defendendo-se dos ataques do tenente. Mas, num movimento que fez, ao aparar terceira estocada, teve a desgraça de[64] ferir-se, ficando a descoberto, e recebendo em pleno peito a ponta da espada do adversario, que se lhe enterrou duas pollegadss na carne.

Cahiu no solo o nobre patriota, emtanto que os soldados conseguiam desarmar Cassio, que ficára como attonito ao ver Montano por terra. Entretanto Iago escapou-se sem ser visto e logrou assim chegar até o sitio onde estava a sineta de alarme, pela qual puxou furiosamente por bom espaço de tempo.

Os repetidos e violentos toques acabaram de pôr em alvoroço toda a ilha, cujos moradores saltavam apressados dos leitos, tomados do maior panico.

Armou-se uma confusão indescriptivel, e um dos primeiros a abandonar o repouso e armar-se foi Othello, que, depois de acalmar quanto possivel a inquietação de Desdemona, sahiu do palacio, seguido de alguns officiaes, para inquirir as causas de semelhante escandalo nocturno.

Não tardou em averiguar que a origem do reboliço partira do corpo da guarda situado no porto; e quando, ao apresentar-se alli, encontrou Montano ferido, Cassio desarmado e preso de um atordoamento indiscriptivel, que lhe impedia dar qualquer explicação, e Iago lamentando-se tragicamente do occorrido, ficou profundamente admirado; não tardou, porém, em succeder ao assombro uma cólera tal, que fez estremecer de terror quantos conheciam os terriveis arrebatamentos de tal homem, exceptuando o alferes que, longe de atemorizar-se ao ver o general dementado pela[65] colera, sentiu o maior jubilo, enforçando-se todavia para não o dar a conhecer, porque, por muito, que devesse regosijar-se ao ver o exito alcançado pelo seu infame plano, a manifestação mais ligeira de tal regosijo teria sido uma imprudencia que lhe podia custar cara.

Conseguintemente, em vez de se mostrar satisfeito, accentuou mais ainda a tristeza da attitude e o tom das lamentações, e quando Othello lhe ordenou severamente que o informasse de todo o occorrido, o miseravel fez um relato permenorisado, tratando de desculpar apparentemente o amigo, mas, na realidade, aggravando de tal modo a sua conducta e as consequencias possiveis do escandalo a que havia dado logar em taes circumstancias, empregando phrases tão campciosas como intencionadas, lamentando com tão bem simulada sinceridade que por uma ligeira imprudencia, segundo elle dizia, se tivesse chegado até ao extremo de tocar o sino de alarme e interrompido o somno do seu general; fez resaltar, em seguida, com, tão perfida astucia, o desastroso effeito que a grave ferida do nobre compatriota podia causar nos habitantes da ilha, ainda que, segundo accrescentou, Cassio nunca fizera tal cousa a não ser sob o imperio da embriaguez; apresentou n'uma palavra, tão avultados os factos, fingindo diminuil-os, que, quando acabou a narração, condimentada com protestos de lealdade para com Othello e de sincero affecto para Cassio, o general completamente enganado pelas palavras do traidor, e muito mais irritado contra o tenente do que[66] antes de ter ouvido Iago, estendeu-lhe afectuosamente a mão, e disse:

—Vejo que te conduzes para comigo com a mesma prudencia e fidelidade de sempre, emquanto este homem, e indicou Cassio que permanecia a alguma distancia, aguardando ordens e já completamente sereno, abusa da minha confiança pelo modo indigno como procedeu esta noute.

«Pois bem: saberei dar a cada um o que em justiça lhe corresponde. Tu, meu bom e fiel Iago, não continuarás muito tempo sendo alferes, prometto; e quanto ao que diz respeito, accrescentou levantando a voz e dirigindo-se a Cassio, a partir d'este momento ficas exonerado do teu cargo de tenente e privado da minha amizade, de que tão indigno te mostraste.

—Mas general, tratou de intervir hipocritamente Iago, emquanto lhe brilhava nos olhos um fugitivo relampago de infernal alegria, vêde que o castigo é excessivo para a falta!

—Se é, ou não só me compéte julgal-o, replicou Othello. Silencio e acompanha-me ao Palacio.

E, levando após si o traidor e o jubiloso alferes, Othello abandonou o corpo da guarda, deixando Cassio, entregue á desesperação que lhe causava o ignominioso castigo que acabava de soffrer e ver-se privado do affecto e estima de um homem a quem realmente amava como a irmão.[67]

V

O lenço

Montano, cujo ferimento não era tão grave como todos haviam imaginado, principalmente como Iago havia feito suppôr a Othello, foi o primeiro em interceder a favor de Cassio para que se não attentasse contra a liberdade do tenente deposto; e esta intercessão, unida aos costumes da epocha, infinitamente mais tolerantes de que os actuaes especialmente com os que diziam respeito ás questões sangrentas derimidas entre cavalleiros, foi o sufficiente para que ninguem se preoccupasse com o desditoso official e o deixassem viver tranquillo.

Mas, como se comprehenderá, esta tranquilidade só podia referir-se ao que representava a segurança pessoal de Cassio; o que pouco lhe importava, preoccupado como estava, até á desesperação, pelo castigo que lhe haviam imposto: o mais doloroso que poderia ter soffrido, especialmente se[68] levarmos em conta que a esse castigo ia unida, como dissemos no capitulo presente, a privação da amizade e da estima do chefe.

Cassio, pois, não parecia o mesmo desde a amaldiçoada noute em que se desenrolaram os lamentaveis factos que narrámos; concentrando-se constantemente no desconsolo e na tristeza mais profunda, permanecia sempre só, fugindo do convivio e da vista das pessoas e, mais do que de ninguem, do infame Iago; pois que uma especie de presentimento o fazia advinhar, ainda que muito vagamente, a parte activa que o miseravel tomára em todos os acontecimentos.

Não obstante, um dia em que segundo o costume que havia adoptado desde a noute fatal, se entregava aos seus solitarios passeios á beira mar, viu approximar-se o alferes de Othello, o qual se lhe dirigia com o sorriso nos labios.

Em tal sitio, onde não havia nenhuma casa, era impossivel a Cassio occultar-se, escapulir-se, ou responder com despreso ao cumprimento que lhe dirigiu o alferes; tal procedimento constituiria imprudencia perigosa, tanto mais que carecia de base solida em que apoiar as vehementes suspeitas que contra elle abrigava.

Por conseguinte fez das tripas coração, como se diz vulgarmente, e, ainda que com instintiva e invencivel repugnancia, correspondeu ao amigavel sorriso de Iago e apertou a mão que este lhe estendia, e que de boa vontade esmagaria entre os dedos.

Em breve a repulsão e antipathia começaram[69] a dissipar-se lentamente, para dar logar á surpresa e ao assombro, quando ouviu fallar o alferes, que se expressava d'este modo:

—Acredita, caro Cassio, que lamento o succedido, ainda mais profundamente que tu; pois não ha duvida de que, em rigor, eu sou o unico causador de tudo o que deu motivo a tão lamentavel occorrencia, com a minha insistente imprudencia, obrigando-te a que bebesses. Conhecendo-te como te conheço e sabendo o inimigo que és do vinho, e que não resistes a um só copo, o meu dever era evitar a todo o transe a tentação de brindar, em vez de induzir-te estupidamente a tal. Foi o que fiz, em má hora para todos. Perdoa-me, pois, como me perdoou Montano, de cujo ferimento sou o verdadeiro culpado, ainda que indirectamente, e ao qual já dei as explicações que devia para justificar-te a seus olhos como mereces; perdoa-me, repito, e acredita que, se á custa do meu sangue pudesse evitar por completo o occorrido e fazer desapparecer as suas consequencias, fal-o-hia de boa vontade.

Cassio deixou fallar Iago sem o interromper, e embora as palavras do alferes causassem n'elle á medida que o traidor as proferia, a extranha impressão que dissemos anteriormente, limitou-se a responder com visivel frialdade:

—Bem! Quem se lembra já de semelhante cousa? O que está feito, está feito, e o melhor que podemos fazer é esquecer.

—Não, por Deus, querido Cassio!

«Eu, pelo menos, longe de esquecer, devo recordar[70] constantemente, para que, servindo-me de exemplo esta rematada asneira, me impeça de para o futuro praticar outra egual. Depois, proseguiu alegremente, isso de o facto não ter remedio parece mais conforme com o fatalismo do nosso general, do que com a grandeza de criterio de um sabio florentino como é o tenente Cassio.

—Já não sou tenente de Othello, replicou Cassio com tristeza. Estavas presente quando me depoz e me negou a sua amizade.

—Se o não és, não tardarás em sel-o de novo, affirmou intencionalmente Iago.

—Que queres dizer?—perguntou Cassio, cada vez mais surprehendido e começando a arrepender-se finalmente de ter suspeitado da amisade do alferes.

—Quero dizer—respondeu este dando-se ares de protecção carinhosa para com o antigo camarada,—que conheces mal os homens e que és demasiado leviano para te entregar á desesperação.

—Que conheço mal os homens?—exclamou Cassio corando, pois que adivinhava a quem a phrase intencional do amigo visava.

—Sim, conhecel-os mal—insistiu Iago—e desconfiaste de mim. Vamos, confessa—accrescentou batendo affectuosas palmadas no hombro do amigo.

—Juro-te...—replicou Cassio.

—Não jures—interrompeu-o o alferes—porque mentirias, e isso é indigno de ti. Mas para vingar-me como devo da maneira como pensaste a[71] meu respeito, vou castigar-te dizendo que, á força de atormentar o cerebro procurando a maneira de remediar efficazmente todo o occorrido, estou seguro de ter dado com um meio que, não só te devolverá o posto, mas que te ganhará tambem de novo a amisade e a estima de Othello.

—Como! exclamou Cassio, admirado, estreitando agradecido a mão do alferes.

—Muito simplesmente—respondeu este—por meio de Desdemona.

—De Desdemona? Não te comprehendo—disse Cassio.

—Pois a coisa não pode ser mais clara—replicou Iago com convicção absoluta.—Vejamos: não foste tu, durante muito tempo, o unico confidente dos amores de Othello e da bella filha de Brabancio?

—Certamente—respondeu Cassio, mas ignoro como podeste saber isso, que é segredo para toda a gente.

—Menos para minha mulher Emilia—rectificou Iago—pois Desdemona não tem segredos para ella. Mas, adiante; fallemos do que importa. Assim pois, a esposa do nosso general deve estar, e está, profundamente agradecida, pois deve-te primeiro que tudo, a felicidade de que disfructa e o amor de Othello. Além d'isto, consta-me que tem em grande estima o teu cavalheirismo e o teu talento, e que te aprecia tanto quanto póde apreciar outro homem uma mulher apaixonada do marido.

—É certo—concordou ingenua e modestamente Cassio—que Desdemona me distinguia entre os outros[72] officiaes do seu esposo. Mas d'esta distincção á sympathia que dizes dispensar-me, ha muita distancia, e creio que a tua grande estima por mim, te faz exagerar e não pouco.

—As mulheres não sabem equivocar-se, nem exagerar n'este sentido—replicou perfidamente Iago—e a minha assegurou-me o que te acabo de dizer, por tel-o ouvido dos proprios labios de Desdemona.

«Que dizes agora a isto?

—Digo—respondeu Cassio, córando, pois sem saber porquê sentia a vaidade ferida com as palavras do bandido—que mesmo que assim fosse, qual a vantagem que me advirio?

—Ainda o perguntas?—inquiriu Iago, simulando a mais perfeita admiração. Perdoa dizer-te que és o mais innocente dos mortaes, pois só uma candidez como a tua póde ignorar que, quem como tu, tem pela sua parte a mulher, conta tambem sem duvida, com o marido.

—De que forma?—perguntou Cassio, sem comprehender onde queria chegar Iago, que não fazia mais do que seguir a linha que traçára ao infame plano para envenenar o coração de Othello e anniquillar-lhe a existencia, destruindo a felicidade que elle encontrava no amor da esposa.

—Assombra-me a tua innocencia, ingenuo Cassio! exclamou Iago.—Perguntas-me de que modo has de arranjar-te para chegares até Othello tendo por mediadôra Desdemona?

—Sim, pergunto—confirmou, porque não vejo meio de me approximar da esposa do general, estando-me[73] prohibida, ainda que tacitamente, a entrada no palacio.

—Indubitavelmente, se não tivesses quem te ajudasse—respondeu o miseravel—não te seria muito facil, não. Mas quem conta, como tu, com amigos resolvidos a tudo para te ajudar, consegue o que quer, se tem a coragem precisa para ganhar a partida.

—Como!—exclamou Cassio reconhecidissimo—Acaso tu?...

—Eu, precisamente não,—interrompeu-o o alferes; mas sim minha mulher, que, compadecida de ti e convencida pelas minhas supplicas, cedeu, a proporcionar-te uma entrevista com Desdemona, que sabe o que se passou e pende para o teu lado.

—E accedeu a receber-me?—perguntou anciosamente o tenente.

—Ás primeiras palavras que Emilia lhe disse intercedendo por ti—respondeu Iago,—e accrescentou que te receberia com muito gosto e que, com maior ainda, intercederia por ti junto do esposo, convencida d'antemão que alcançará o perdão da tua falta, fazendo que sejas reintregrado no posto de tenente.

—E quando julgas que lhe poderei fallar?—interrogou Cassio, com justificada impaciencia.

—Quando te agradar; agora mesmo, se quizeres—disse Iago.

—Agora mesmo?—exclamou Cassio surprehendido.—Está então prevenida da minha provavel entrada no Palacio?

—Desde esta manha, segundo me informou minha[74] mulher. Apenas chegues, Emila conduzir-te-ha á sua presença.

O leal e ingenuo Cassio estreitou carinhosamente entre os braços o ignobil amigo, e disse-lhe com a voz tremula de commoção:

—Perdoa-me, caro Iago, pois tinhas razão quando disseste que chegára a duvidar de ti! Perdoa-me, repito, pois se soubesses que só e desgraçado me encontrava!...

—Não fallemos mais em tal!—interrompeu Iago dando-se ares protectores. Eu teria pensado o mesmo, e talvez não tivesse tido a nobreza de o confessar, como acabas de fazer. Esqueçamos, pois, essas criancices, occupemo-nos sómente da tua completa rehabilitação junto de Othello. Estás decidido a fallar com Desdemona esta noite?

—Quando quizeres—respondeu Cassio, que se sentia tornar á vida desde que, com as palavras do falso amigo, lhe havia dado entrada no coração a esperança.

—Pois vamos, e não percamos tempo—disse Iago tomando o braço do camarada e encaminhando-o para o Palacio.—Consta-me que Othello não se encontra agora no Palacio e, por conseguinte, não póde haver occasião tão opportuna como esta para encontrar Desdemona só e poderes fallar da tua causa com o maior enthusiasmo; ainda que, como já te informei, pouco terás a dizer, porque a esposa do general é em teu favor e defenderá a questão até conseguir ganhal-a, sem duvida alguma.

—Tenho um escrupulo—observou Cassio, parando,[75] em seguida, e obrigando Iago a deter-se.

—Qual?—perguntou este, franzindo ligeiramente as sobrancelhas, porque se Cassio não se prestasse a seguil-o, cahiria pela base todo o edificio do infame projecto que tramára para acabar de perder quantos lhe eram odiosos.

—Se Othello—respondeu Cassio,—sabe que visitei o palacio e fallei com a esposa a occultas, isto longe de predispol-o em meu favor, irrital-o-ha mais ainda contra mim do que já está. Perderemos então terreno, em logar de o ganhar.

—Em primeiro logar—ponderou astutamente Iago,—Desdemona se encarregará de lhe explicar satisfactoriamente tudo, com o que ficará bastante justificada a tua conducta; depois, este passo acabará de o convencer de que estás decidido a tudo para recuperar a sua estima e affecto.

«Além de que—terminou—o mais provavel, poderemos dizer o quasi certo, é que não chegue a saber da tua visita ao castello, pois entrarás por uma porta occulta e minha mulher estará esperando, para levar-te á presença de Dedemona, sem que possa surprehender-te nenhum corioso indiscreto. Já vês, que tudo está bem preparado e que não tens nada a recear.

Para fallarmos a verdade, tal mysterio, tal jogo de palavras e de precauções para afinal penetrar clandestinamente e como um ladrão na moradia do seu antigo general, nada menos que para fallar a Desdemona sem consentimento do esposo, não acabaram de convencer o leal e honrado official de Othello; mas como, apesar de tudo, não tinha[76] por onde escolher e queria a todo o custo recuperar o cargo perdido e a affeição do chefe, deixou-se levar docilmente pelo infame amigo até ao palacio do governador, no qual entrou, como havia dito Iago, por uma porta occulta, junto da qual o deixou o alferes, affirmando-lhe que o viria buscar mais tarde para que o puzesse ao corrente do resultado da entrevista, ainda que este não podia ser senão completamente satisfatorio.

Conforme disséra Iago, Emilia esperava Cassio por detraz da tal porta, e apenas o tenente entrou, conduziu-o, atravez de corredores e galerias estreitas, até aos aposentos de Desdemona, sem que ninguem suspeitasse da sua mysteriosa visita ao Palacio.

A pura e formosissima esposa de Othello, que realmente apreciava Cassio, cujas excellentes qualidades conhecia e estimava, bem como a cega dedicação do official pelo mouro, recebeu-o affectuosamente, ouviu-o com a attenção e benevolencia de uma irmã e prometteu alcançar o perdão de Othello, ao qual fallaria em seu favor n'aquella propria noute, explicando-lhe a verdadeira causa do succedido, e apresentando o cavalheiroso e leal Cassio tal como este realmente era, e não como o havia feito apparecer aos olhos de todos e, principalmente aos do general, um conjuncto de circumstancias desgraçadas.

Cassio, derramando lagrimas de gratidão, ajoelhou ao despedir-se, para beijar a mão da sua protectora, vendo, louco de alegria, que voltava a brilhar para elle o sol da esperança.[77]

Desgraçadamente, no momento em que pousava os labios na nivea mão de Desdemona appareceu Othello ao fundo do largo corredor que dava accesso ao salão em que se encontravam a esposa e o tenente.

O general, que vinha acompanhado de Iago, estremeceu violentamente ao ver Cassio de joelhos ante a esposa e beijando-lhe a mão.

A colera que experimentou só póde comparar-se ao indescriptivel assombro que lhe tomou os sentidos durante alguns momentos, deixando-o cravado no mesmo sitio e sem poder pronunciar uma só palavra. Quando tornou a si e seguiu avançando até onde se encontrava sua esposa, Cassio já tinha desaparecido, pois que a inesperada presença do general desconcertou-o de tal modo, que, sem prever as consequencias da sua fuga, nem atender a outra cousa do que ao receio de se encontrar frente a frente com Othello depois do imprudente passo que acabava de dar, abandonou o salão precipitadamente, sem dar attenção ás observações de Desdemona, que o aconselhava a ficar.

—Desde quando é permittido a esse bebedo e mal educado cavalheiro entrar em minha casa sem eu saber e atrever-se nada menos do que a beijar de joelhos a mão de minha esposa? perguntou Othello á jóven, em tom irado.

—Cassio não é nenhum bebedo e tão pouco mau homem respondeu docemente Desdemona. Pelo contrario, é o amigo mais fiel e mais leal que tens, e ha muito tempo que o provou, ajuntou ella olhando para Othello intencionadamente e alludindo[78] aos valiosos serviços que o official havia prestado a ambos durante o periodo dos seus amores em Veneza e ás occultas do senador Brabancio, seu pae.

—Sei perfeitamente o que devo a respeito da lealdade d'esse e de todos os meus amigos, replicou brutalmente o mouro, sem necessidade de que ninguem mo recorde.

«De hoje em diante prohibo-te terminantemente que recebas nos teus aposentos qualquer homem sem o meu consentimento e, muito menos, individuos que, com a sua desprezivel e escandalosa conducta, se tornaram culpados do meu justo despreso.

—De boa vontade te obedecerei n'isto como em tudo, e não receberei jamais nenhum homem sem que tu me auctorises a tanto, respondeu com doçura angelical a bella esposa do ciumento e apaixonado mouro. Mas, por esta vez, te rogo, meu querido amigo, que perdoes a Cassio e lhe devolvas a estima e o affecto que d'antes lhe dedicavas e que tanto merece.

—Não quero, entendes? não quero tornar a ouvir pronunciar em minha casa, e muito menos aos teus labios, o nome de tal homem. Ouves? Pois bem, aconselho-te que não o esqueças, pois não gosto de repetir as ordens que dou, rugiu Othello.

—Não esquecerei, esposo meu, disse Desdemona, sem perder nem um instante a inalteravel doçura. Mas asseguro-te que, tu, tão prudente e generoso sempre, és injusto n'esta occasião com o pobre Cassio.[79]

—Outra vez? gritou o mouro fóra de si. E sentindo que a cólera que o dominava o arrastava a uma brutalidade, da qual teria de arrepender-se, abandonou precipitadamente o quarto, dizendo com voz agitada para o alferes: Segue-me, Iago!

O infame não fez repetir a ordem, e sahiu na esteira do general, não sem fazer um profundo e servil cumprimento a Desdemona.

Quando se encontrou no corredor só com Othello, começou a murmurar em voz baixa:

—Que imprudentes! Quem o tivera advinhado! Chama-se a isto jogar com a propria vida!

Othello, que apezar da ira que o dementava, ouvira perfeitamente as insidiosas palavras do alferes, que com tal proposito as havia dito, embora apparentando fallar para si, agarrou violentamente Iago pelo pescoço, de tal modo que esteve a ponto de o estrangular e perguntou-lhe:

—Que dizes, mizeravel? quem são os imprudentes e os que jogam com a vida?

«Atrever-te-hias a suspeitar, infame, de minha esposa, da minha Desdemona?!

«Falla, cão, ou morrerás ás minhas mãos, aqui mesmo!

Iago não respondeu, pela simples rasão de que não podia fallar, apertado como estava entre os ferreos dedos do furioso africano.

Mas, levando a mão ao bolso, tirou d'elle um lenço de seda, bordado nos quatro cantos, e estendeu-o a Othello, emquanto fitava eloquentemente o marido de Desdemona.

Este retrocedeu alguns passos, como horrorisado,[80] e fixando no lenço um olhar de louco, murmurou com phrases entrecortadas, a voz cheia de angustia:

—Como! O meu lenço!

«O lenço que era uma reliquia de minha mãe e de que fiz presente a Desdemona como a joia mais preciosa que possuia! A melhor prenda dos nossos amores em mãos extranhas!...

«D'onde o roubaste, traidor?—gritou a Iago, prompto a lançar-se de novo a elle.

—Cassio! Cassio é que o tinha e tirei-lh'o! apressou-se a responder o alferes, receando realmente pela sua vida, ao vêr a espantosa attitude de Othello.

—Tinha-o Cassio?—rugiu o mouro.

«Ira de Deus! Mas isso é impossivel! Impossivel!

«Mentes, traidor, infame! Diz-me que mentes ou te arranco as entranhas!

—Não o posso dizer, general, porque sou demasiado fiel para vos enganar.

«Esse lenço, que nunca vos mostraria, a não ser n'um caso especial como o de hoje, para salvar a minha vida, tirei-o a Cassio, repito, e a elle o havia entregado Desdemona alguns dias depois do vosso casamento. Eu proprio, que estava occulto, a alguma distancia, pois suspeitava d'ambos, lh'o vi dar!

«Juro-vos que daria a vida para não despedaçar o vosso coração como o faço n'este momento; mas ordenais-me que falle e não tenho outro remedio senão obedecer.[81]

Othello, cuja bronzeada pelle se havia posto repentinamente côr de cinza, quiz pronunciar algumas palavras, mas não poude; arrancou a gola do gibão que o apertava, soltou uma especie de suspiro rouco, como o estertor da agonia, e o seu athletico corpo de gigante cahiu sobre o tapete, debil, apesar das herculeas forças, para resistir ao furioso furacão das selvagens paixões que a intriga do infame Iago lhe desencadeára na alma.

O miseravel, ao ver cahir o desditoso esposo de Desdemona, esboçou um sorriso horrivel e murmurou entre dentes:

Isto vae ás mil maravilhas, e já falta pouco para o fim.

«Que bruto, hein? Se não venho preparado com o lenço, matava-me com certeza! Verdade seja que isto adeantou os successos, que nada perdi com passo!

«Agora vamos chamar soccorro, pois não quero que morra antes de que tenha despachado os outros e eu arredondado a minha fortuna, para o que tenho á mão esse imbecil de Rodrigo e o cargo de tenente que deixou vago esse outro imbecil de Cassio.

E, ditas estas palavras com sangue frio e cynismo espantosos, junto do inanimado corpo de Othello, o traidor revestiu uma apparencia de dôr e de lastima que teria invejado o mais habil farçante do tempo, e foi correndo em busca de soccorros para a sua infeliz e crédula victima.[82]

[83]

CAPITULO VI

Os embaixadores

A terrivel crise soffrida por Othello, em consequencia das infames calumnias urdidas por Iago e que apresentavam a pura e innocente Desdemona como vil adultera, determinou no arrebatado mouro uma congestão cerebral, que durante alguns dias o teve prostrado no leito, entre a vida e a morte.

Restabelecido, por fim, graças á rigorosa organisação e, mais do que tudo, aos assiduos e ternos cuidados que lhe prodigalisou Desdemona, que o não abandonou um só instante, nem mesmo para entregar-se ao imprescindivel descanso, poude deixar o leito e, n'esse mesmo dia em que se levantou, mandou chamar aos seus aposentos Emilia, mulher de Iago, e por meio de supplicas e de ameaças tratou de arrancar a confissão da culpabilidade de Desdemona julgando acertadamente que, se esta tinha, em verdade, algum segredo[84] punivel, o conheceria, sem duvida, a esposa do alféres, que mais do que uma simples creada da filha de Brabancio, havia sido sempre a sua mais intima companheira e fiel amiga, dispondo, como tal, da absoluta confiança da joven.

Mas, por mais que fizesse para obrigar a Emilia a fallar contra a supposta adultera, como a confidente d'esta nada tinha que dizer contra ella, nada disse, e, pelo contrario, mostrou-se profundamente surprehendida a começo, chegando até a indignar-se, quando se convenceu de que Othello duvidava, mais ainda, estava convencido da traição de Desdemona.

Em vão se esforçou o mouro por fazer com que a nobre mulher proferisse uma só palavra, que désse vulto e alimento e fortificasse os crueis ciumes que lhe mordiam as entranhas; em vão lhe fallou de Cassio e das suppostas intimidades d'este com a esposa. Emilia negou redondamente, pela salvação da sua alma, que existissem taes intimidades, chegando no grande affecto que devotava a Desdemona a increpar Othello por offender a sua ama e amiga com tão miseraveis suspeitas.

Isto fez chegar ao cumulo a irritação e cólera do apaixonado e ciumento africano, o qual, julgando que a serva encobria Desdemona e que, por tanto, fazia causa commum contra elle para atraiçoar o seu amor e lançar inextinguivel mancha no seu nome, acabou por insultar furiosamente Emilia, expulsando-a do aposento com terriveis ameaças e promettendo-lhe que não tardariam em se[85] arrepender do que elle chamava infame conducta de alcoviteira e encobridora.

A fiel e leal criada foi-se chorando com verdadeiro desgosto, e, sem perder um minuto, dirigiu-se ao encontro da ama, á qual referiu o que acabava de succeder-lhe e o que lhe dissera Othello.

Estavam assim conversando, ouvindo Desdemona a Emilia com o doloroso espanto que pode calcular-se facilmente, quando, de repente, as duas mulheres ficaram estupefactas, ao vêr entrar o mouro no aposento.

—Como supponho, disse com rapidez Othello, dirigindo-se a Desdemona, que já haveis fallado mais do que é necessario, e sobre tudo, mais ainda do que para minha honra e para minha tranquilidade convem, creio que essa mulher poderá retirar-se, pois tenho necessidade de fallar a sós comtigo.

—Retira-te Emilia, disse a joven com doçura para a sua creada de quarto. Se precisar de ti chamarei.

A dama de companhia sahiu immediatamente dirigindo um cumprimento carinhoso a Desdemona e quasi sem olhar para Othello, ao qual semelhante attitude irritou mais do que estava.

—Já vejo, começou dizendo com mal reprimida colera, que não te preoccupas a ensinar aos criados o respeito que devem a teu esposo.

—Perdoa a Emilia, respondeu carinhosamente Desdemona; respeita-te e estima-te, como te respeitam e estimam aqui todos, começando por mim e acabando no ultimo dos teus servidores. Mas[86] hoje está nervosa e muito contrariada, como eu propria estou, devido á entrevista que teve comtigo e que me contou, pormenorisadamente.

—Felicito-te por teres servos tão leaes, respondeu sarcasticamente Othello. Já não posso dizer outro tanto.

—Queixas-te injustamente, observou a joven, porque, repito: ninguem aqui faz distincção alguma, senão em teu favor, pois seria eu a primeira a não a consentir.

—Mil graças! respondeu Othello com o mesmo sarcasmo com que anteriormente se havia expressado. Já vejo que não tenho razão de me queixar, e que sou o mais injusto dos homens e o mais contradictorio dos maridos.

—Não quiz dar-te a entender semelhante cousa; mas se assim o fiz mesmo contra minha vontade, perdoa-me, disse humildemente Desdemona.

—Estás perdoada, respondeu o mouro seccamente; e logo accrescentou mudando o tom da voz que tentou tornar o mais indifferente possivel: Ha poucos dias, ao cahir sem sentidos no pavimento, molestei um pouco a mão direita; a começo não me doia nada e por isso nada tambem disse até hoje; agora doe-me bastante e agradecer-te-hia que atasses em redor d'ella qualquer coisa, um lenço... aquelle de seda de que te fiz presente em Veneza, dizendo-te que o guardasses como reliquia, porque era de minha mãe.

Desdemona poz-se pallida como morta ao ouvir o esposo expressar-se de tal maneira. O lenço em questão havia-se extraviado dias antes, e receando[87] os arrebatamentos do caracter de Othello, occultára-lhe tamanha perda, pois não ignorava que o marido sentia por essa recordação de sua mãe, unica que possuia, verdadeira veneração. Calcule-se pois o terror que experimentaria em tal momento, sabedora por Emilia, e pelo que pessoalmente observava no esposo, da má predisposição que elle tinha contra ella, devida a furiosos e injustificados ciumes. Dizer-lhe n'aquelle instante que perdera o lenço, era dispor-se a desencadear contra ella todas as terriveis tempestades d'aquelle temperamento arrebatado até á ferocidade; por outro lado mentir, inventar qualquer fábula que justificasse a falta do lenço, seria tão inutil como indigno da nobreza e da lealdade do seu caracter. Por conseguinte só poude responder, com voz balbuciante, e sentindo que um suor gelado lhe banhava todo o corpo:

—O lenço de seda!... O lenço de tua mãe!... Olha... tenho-o tão bem guardado, que perderia demasiado tempo em dar com elle!... Outro qualquer te servira de egual modo!... Não te parece?...

E a infeliz tremia, olhando o esposo com olhos aterrorizados, e sentindo que ia desmaiar se a espantosa situação se prolongasse demasiado tempo.

—Quero o lenço de seda! Quero-o agora mesmo! respondeu Othello com implacavel aspereza.

—Mas, atreveu-se todavia a accrescentar a infeliz Desdemona, não te disse?...

—O lenço! rugia o terrivel mouro arrebatado[88] já pela selvagem explosão dos ciumes. A desventurada tremeu até ao intimo d'alma; começou o pranto a banhar-lhe as nacaradas faces e, tapando o bellissimo rosto com as mãos, cahiu de joelhos aos pés do cruel marido, balbuciando entre convulsivos soluços:

—Perdão! Perdão! meu querido Othello!... Perdi-o!... não sei que foi feito d'elle!...

—Oh! infame!... confessas, finalmente! accrescentou rugindo furiosamente o terrivel ciumento, acaba de vez a tua confissão, miseravel adultera, vil prostituta!... Dize que o não perdeste; que, pelo contrario o déste ao teu amante, ao traidor que enganava a minha amizade, roubando-me a honra; ao cobarde por quem tinhas, ainda ha poucos dias, a desvergonha e o cynismo de interceder, chegando o teu impudor a defender-lhe as crapulosas e indignas bebedeiras!...

«Confessa, infame, confessa ou te afogo entre as minhas mãos de ferro, feitas para estrangular féras como tu, que tens coração de tigre! ouves, miseravel?! Confessa ou te mato!...

E o formidavel africano, convertido já n'um d'esses irracionaes a que vinha de referir-se, apertou entre as herculeas mãos o gracil e delicado corpo da esposa, a qual, apovorada, abateu a delicada e branquissima garganta sobre o peito, cerrou os meigos e bellos olhos e, soltando debil suspiro, ficou inerte nos braços do temivel esposo.

Ao ligeiro grito desprendido dos labios da joven ao perder o conhecimento, succedeu acto continuo a repentina entrada de Emilia no aposento.[89] Conhecedora do vehemente caracter de Othello, previra, ainda que apenas em parte, as consequencias da conversação do mouro com a innocente esposa, e não se affastára muito do quarto.

Sem embargo, a mulher do traidor alferes nunca previra até onde chegaria a selvagem paixão do africano, e ao ver nas terriveis mãos de Othello o corpo inanimado da querida ama, julgou que elle a tinha matado e, começou a gritar desesperadamente, rompendo em violentos soluços e increpando o ciumento marido com os mais horriveis improperios:

Othello, cujos olhos se injectaram de sangue, e cujo bronzeado rosto instantaneamente se pôz quasi branco, sentiu desejos irresistiveis de arrojar-se sobre Emilia e estrangulal-a; mas, dominando os impulsos ferinos com supremo esforço da vontade, conseguiu vencer-se e, abandonando o desmaiado e precioso corpo que ainda conservava entre as mãos, lançou á criada um olhar de ameaça feroz e sahiu precipitadamente do aposento, como se temesse não ser senhor de si, caso n'elle permanecesse mais algum tempo.

Emilia ficou, pois, só com Desdemona, a qual levantou do chão com o delicado esmero de mãe, e, depois de a deitar no leito, prodigalisou-lhe todos os cuidados que considerou necessarios para a fazer recuperar os sentidos.

Quando a infeliz voltou a si do deliquio, rompeu em amargo e copioso pranto, o que lhe desafogou um tanto o angustiado coração. Depois, em vez de se mostrar indignada contra o implacavel[90] esposo, começou a desculpal-o aos olhos de Emilia, que continuava dirigindo-lhe os insultos mais violentos.

—Meu pobre Othello—terminou dizendo a pura e nobre Desdemona.

«Soffre mais ainda do que eu, porque me ama apaixonadamente, e julga-me culpada, devido a um erro fatal, que é preciso aclarar a todo o custo.

Ditas estas palavras, que lhe punham em relevo toda a angelical formosura da alma, fechou os olhos e, o seu delicado organismo, rendido por fim, por tantas e tão violentas emoções, cahiu n'um profundo somno, que era o melhor lenitivo que podia achar n'esse instante a desventurada para acalmar a dôr que lhe atormentava a alma...

Entretanto Othello dirigia-se para os seus aposentos particulares, com o proposito de encerrar-se n'elle e poder desafogar melhor, no isolamento a raiva e os ciumes que lhe mordiam cruelmente o coração.

Mas, apenas penetrou no salão que lhe servia de gabinete, encontrou-se, cheio de admiração, na presença completamente inesperada em tão dolorosos momentos de quatro cavalleiros venezianos, que acabavam de chegar á ilha de Chypre e o estavam esperando.

De novo conseguiu o mouro dominar as violentas agitações e as crueis torturas da alma, e, depois de trocados os primeiros cumprimentos, perguntou ao mais velho dos quarto, e que parecia ser o chefe, o motivo de tão inesperada como grata visita.[91]

Este, que era o senador Graciano, irmão de Brabancio e tio por conseguinte de Desdemona, começou por abraçar affectuosamente Othello e depois, em voz grave e repousada, expressou-se d'esta forma:

—O Doge, em nome do illustre e sabio Conselho dos Dez, nos manda aqui, valente general, como encarregados de exprimir o agradecimento de sua agradecida Magestade e de toda a Republica pelos valiosos serviços que, n'este momento, como sempre, prestaste a Veneza, no exercicio do teu governo de Chypre.

«Em seguida proseguiu mais gravemente ainda Graciano, ordena-nos que te façamos saber que o Conselho e sua Senhoria necessitam de ti com grande urgencia, para encarregar-te de nova expedição de vital interesse para o Estado.

«Não devemos demorar muito tempo a nossa partida, e por isso, apenas tenhamos descançado das fadigas da viagem, que foi penosa e accidentada em extremo, sahiremos da ilha para Veneza, onde terás a gentileza de acompanhar-nos. Isto tardará tres ou quatro dias, o maximo, tempo sufficiente para que possas tomar as disposições que consideres opportunas para o melhor governo de Chypre, do qual, por ordem expressa do Conselho, encarregarás o tenente Cassio, que de ti tem sempre merecido os melhores elogios quando se te offerece occasião de fazer-lh'os. Eis quanto tinhamos a dizer-te em nome do Doge e do illustre Conselho dos Dez, valente Othello. Está pois cumprido o objecto da nossa embaixada, e[92] agora, rogamos-te encarecidamente ordenes o que necessario for para que possamos desfructar a tua generosa hospitalidade e entregarmo-nos ao repouso de que tanto carecemos.

Um raio que tivesse cahido aos pés de Othello não lhe produziria maior espanto do que o que lhe causou o breve discurso proferido pelo emissario da Magestade. A principio ficou como que aturdido; mas não tardou em readquirir o sangue frio, e respondendo como poude ao senador Graciano, prometteu obedecer, como sempre, ás ordens do Doge e do illustre Conselho.

Seguidamente deu as instrucções necessarias para que installassem os embaixadores nos seus respectivos aposentos.

Depois, quando conseguiu ficar só, sorriso extranho, cheio de ironia e de odio, entreabriu-lhe os grossos labios; mandou chamar immediatamente Yago, e apenas este chegou, disse-lhe sem mais preambulos:

—Ouve-me com todas as tuas faculdades, e sem te admirares de cousa alguma, nem perder o tempo em exclamações inuteis. Fixa bem na memoria o que te vou dizer e obedece á risca.

—Já sabeis, illustre general—respondeu servilmente Yago—que sou para vós um cão fiel, e que daria de boa vontade a vida se fosse necessario, para servir-vos.

—Sei, e como chegou agora o momento de pôr á prova a tua amisade por mim, por isso te chamei.

O alferes tremeu, pois ignorava onde queria[93] chegar o terrivel Othello; mas fazendo das fraquezas forças respondeu com voz firme:

—Mandai e obedecerei.

—Acabo de receber uma embaixada de Veneza, que me ordena, em nome da Senhoria, que saia de Chipre, sem demora, para a cidade de S. Marcos.

—Como!—exclamou Yago profundamente surprehendido, apesar da ordem que havia recebido de Othello, de que o não interrompesse.

—Ainda não é tudo—respondeu o mouro com sarcastica amargura, sem fazer caso da exclamação do alferes—O Doge ordena-me tambem que deixe o tenente Cassio encarregado do governo de Chypre.

O infame Yago pôz-se livido de inveja, e tão violenta foi a impressão que n'elle causaram as palavras de Othello que se atreveu a perguntar-lhe:

—E que tenciona fazer, general? Obedecer á Senhoria?

—Não poderei obedecer, ainda que quizesse—respondeu Othello sorrindo ferozmente,—porque os embaixadores partirão dentro em tres ou quatro dias, e esta mesma noite morrerá Cassio de uma punhalada que tu mesmo te encarregarás de dar-lhe.

Brilharam de infernal alegria os olhos do alferes, que se limitou a responder:

—Sou vosso em corpo e alma. Cassio morrerá esta noite....

Mas accrescentou vacillando, porem resolvido[94] a todo o custo a saber o que ganharia de semelhante missão:

—Que pensaes fazer, no que vos diz respeito?

—A seu tempo o saberás—respondeu seccamente o mouro.—Agora, vae-te, pois já disse o que tinha a dizer e esta mesma noite, seja a que horas fôr, te espero para que me dês conta da morte do infame ladrão da minha felicidade e da minha honra.

Pronunciadas estas ultimas palavras, Othello despediu Yago com um gesto, e acto continuo abandonou o quarto.

Apenas se viu só, Yago sorriu com expressão de odio e de ambição satisfeita, e murmurou entre dentes:

—Amanhã, a estas horas, serei tenente e talvez governador da ilha, pois saberei obrigar Othello a que me pague bem a morte de Cassio; quanto a este não serei eu que o hei de matar, mas sim esse imbecil de Rodrigo, ao qual offerecerei a posse immediata de Desdemona se a livrar do official que sempre a está importunando com as suas instantes e vergonhosas declarações; assegurar-lhe-hei que isto me disse ella propria, e que se ainda se não entregou, foi porque teme que Cassio venha a sabel-o e, para vingar-se, conte tudo ao marido. Que o diabo me leve se o estupido Rodrigo não acredita na fabula e não mata o rival! Para tanto facilitar-lhe-hei occasião oportuna, marcando a Cassio uma entrevista na praia ás 11 horas da noite de hoje. Rodrigo matal-o-ha com uma punhalada á traição e eu, que ficarei presenciando[95] a scena, denuncial-o-hei á justiça...—Não, interrompeu o miseravel.—Isto é perigoso, porque o imbecil poderia fallar, e não me convém, pois toda a gente saberia então que o illudi para apoderar-me de todas as suas joias e dinheiro. O melhor, é depois de matar Cassio, matal-o a elle tambem, o que me será facil, porque é muito menos perigoso do que o outro. Assim está bem—terminou dizendo com expressão satisfeita.—Está resolvido: de tal guisa livro-me d'esse parvo que já começa a incommodar-me, e já não tenho nada a temer de Cassio, podendo em troca cobrar o preço da sua morte, sem o menor risco para a minha pessoa...

E Yago dispoz-se a ir procurar Rodrigo sem perda de tempo, para começar a pôr em execução o seu infame plano; mas, antes de abandonar o palacio do governador, enviou a Cassio um soldado encarregado de lhe dizer que o esperasse ás onze horas da noite na praia, pois tinha que communicar-lhe uma noticia de grande interesse para elle.

—Aposto a cabeça em como não faltará—disse o miseravel—regosijando-se antecipadamente com o resultado que ia obter da nova e dupla infamia acabada de planear.[96]

[97]

CAPITULO VII

Crime e Castigo

Avança a noite e os relogios de Chypre dão pausada e gravemente as dez badaladas.

Na alcova de Desdemona, a joven e bella esposa do governador da ilha dispunha-se a deitar-se ajudada carinhosamente pela mulher de Yago, tão fiel e leal servidora, como falso e traidor era para o general africano o infame marido.

—Emilia, disse com voz de infinita doçura a filha de Brabancio; enfeita-me muito e põe-me bonita para dormir. Tenho um presentimento estranho, tão extranho como doloroso, que não me abandona desde esta tarde, e que me annuncia que este vae ser o meu ultimo somno.

—Que loucura! exclamou a criada, tratando de se mostrar alegre aos olhos da ama. Desprezai, senhora, esses tristes e lugubres presentimentos e pensai sómente, pelo contrario, em que vos esperam dias cheios de aventura, pois sois[98] ainda muito nova e a vida começa agora para vós.

—Sim, respondeu melancolicamente Desdemona, mas has de concordar que começa de maneira bem dolorosa! Que será de mim sem o amor de meu esposo?

—Vosso esposo, disse Emilia com gesto de convicção;—não tardará em arrancar pelas proprias mãos a negra venda que hoje lhe tapa os olhos, e que o impede de ver todo o thesouro de virtudes e de felicidades que em vós possue! Então voltará ainda mais enamorado do que nunca, e depois vereis, minha querida ama, como esses maus pensamentos que hoje vos atormentam, não tardarão a converter-se em sonhos côr de rosa.

—Queira Deus que não te enganes! respondeu Desdemona, soltando um profundo suspiro, que pareceu aliviar-lhe um tanto o coração opprimido pela angustia.

—Não me engano, tenho a certeza,—insistiu Emilia alegremente.—Vereis como esta mesma noite o vosso esposo virá ver-vos e implorar o vosso perdão, e ao contemplar-vos tão formosa como os anjos de céu, cahirá de joelhos ante vós arrependido da sua conducta. Como estaes linda, minha senhora!—continuou olhando para a joven com sincera admiração, depois de dar-lhe uns ultimos toques no toucado.—Agora, dormi e sonhai com dias melhores, porque os bons sonhos trazem comsigo a ventura, segundo affirmam.

Dizendo estas palavras, Emilia ajudou a joven a deitar-se; apanhou em seguida as roupas que[99] estavam cahidas, pelo aposento, e olhando cuidadosamente em torno de si, para convencer-se que tudo ficava em ordem, deu as boas noites e abandonou em silencio o quarto, que apenas ficou illuminado pela vaga e febril luz de uma lampada de azeite.

Haviam transcorrido dez minutos, e já os preciosos olhos da joven começavam a cerrar-se, vencidos pelo somno, quando a mesma porta por onde sahira Emilia se entreabriu suave e lentamente, e na hombreira appareceu a alta e soberba figura de Othello.

O mouro avançou com lentidão até ao leito onde repousava a esposa que, ao advinhar, melhor do que via, a sua presença, deu um debil grito de alegria e estendeu os nús e marmoreos braços ao marido, exclamando amorosamente:

—Tu aqui! meu querido Othello! Vens dar-me o teu perdão pela desgraçada perda do lenço?

—Rezaste esta noite, Desdemona? perguntou o general com gravidade meiga e triste, que tinha algo de tragica.

—Sim, esposo meu, respondeu a innocente Desdemona; esta noite, como todas, fiz as minhas orações do costume. Mas, porque me fazes tal pergunta?—interrogou a infeliz começando a sentir-se presa de vago terror, ao ver a sombria e implacavel expressão retratada no semblante do marido.

—Porque vaes morrer depois de findarem os cinco minutos que te concedo para encommendares a Deus a tua alma!—respondeu Othello inexoravel.[100]

—Deus! Que dizes? exclamou a joven, sentando-se no leito, como surprehendida pelo espanto e julgando ter ouvido mal.

—Digo que vaes morrer e que aproveites o tempo que te dou para encommendar a tua alma a Deus, repetiu o mouro com frialdade que fazia tanto damno como o de uma folha de aço. E accrescentou logo: Se o proprio Deus houvesse baixado á terra para me annunciar que morrerias ás minhas mãos, teria duvidado de Deus; já vês se tinha ou não fé no teu carinho! Mas tu atraiçoaste essa fé, e por isso mereces a morte. Sim—continuou implacavelmente o terrivel mouro, exaltando-se á medida que fallava, e sem fazer caso do tremor e da mortal lividez que se viam na desventurada e innocente Desdemona;—sim, mereces e vaes justamente morrer. Mas, por que ainda te amo, apezar de tudo, e vim sem armas, porque não quero derramar o teu sangue, que sempre será precioso para mim, morrerás estrangulada ás minhas mãos, entre estas mãos que com tão ardente amôr te acariciaram nos dias felizes para mim. Vês como te amo, Desdemona? Sim, amo-te, e ainda te perdoaria, se tanto fosse possivel! Mas não é! Não, não é, porque atraiçoaste o meu amôr com um amigo desleal e infame, e porque, não contente com tal crime, para o qual não existe misericordia possivel, urdiste, de cumplicidade certamente com o miseravel, uma indigna traição no intuito de que me chamassem a Veneza e vos deixasse aqui a ambos em completa liberdade para gosarem a infamia praticada.[101]

«Ah! ah! ah! gargalhou o formidavel africano, rindo como um louco.

«Já vês que, apezar da nobre ingenuidade do meu caracter, que me entregou de corpo e alma nas tuas mãos, não é tão facil enganar-me, e que immediatamente advinhei tudo. Sim, proseguiu, recobrando a terrivel expressão de implacavel dureza, advinhei, mas o vosso plano não dará o exito appetecido. Ouves?—perguntou, interrompendo-se para escutar as badaladas dos relogios que marcavam a hora. São onze horas e n'este momento cae o teu amante sob o punhal de um fiel servidor meu! E como passaram os cinco minutos que te concedi para que encommendasses tua alma, chegou tambem para ti a hora da morte!

A infeliz Desdemona quiz fallar, pedir, supplicar misericordia ao terrivel esposo, fazer protestos da sua innocencia, salvar a vida, emfim, porque a morte horrorizava-a e a tal ponto que a fazia tremer e bater os dentes como se tivesse febre; mas tudo foi inutil, porque só teve tempo de lançar um grito desesperado, estridente, horrivel e que havia de se ouvir em todos os aposentos do immenso palacio, alterando com a infinita angustia das suas dolorosas vibrações o profundo silencio da noite.

Os férreos dedos do mouro apertavam ferozmente a delicada e branquissima garganta da innocente vitima, quebrou-se a columna vertebral com um estalido horrivel e o precioso corpo, abandonado instantaneamente a si proprio, sob o[102] impulso do invencivel horror que ao ouvir o espantoso estalido acommetteu immediatamente o verdugo, cahiu pesadamente sobre o leito flexivel e desarticulado, como pesada massa.

Aterrado da propria obra, com os cabellos erriçados e os olhos horrivelmente dilatados pelo espanto, Othello retrocedeu ante o cadaver da infeliz esposa, tratando, talvez, de fugir para apagar da vista o tremendo espectaculo. Mas, n'esse instante abriu-se com violencia a porta do aposento e appareceu Emilia que, desolada e quasi nua, correu para o leito de Desdemona, gritando;

—Senhora! Que vos aconteceu? Respondei, por Deus, respondei!

—Para traz, miseravel encobridora! rugiu Othello, recobrando toda a sua selvagem crueldade, á vista da mulher que julgava cumplice no supposto adulterio da victima. E continuou, agarrando por um braço Emilia: Sim, morreu, e morreu ás pressões de minhas mãos vingadoras, como tu agora vaes morrer, infame, para que não fique no mundo nenhuma testemunha, da minha deshonra!

E o vingativo africano dispunha-se a sacrificar tambem ao terrivel odio aquella nova victima que o destino lhe deparava. Mas, por fortuna para a fiel criada de Desdemona, n'aquelle momento e attrahidos, primeiro por o grito que lançou ao morrer a innocente esposa de Othello, e depois pelos que havia soltado a mulher de Iago, penetraram no quarto Graciano e os tres companheiros da embaixada, o traidor alferes, causa de toda essa espantosa tragedia, e, por ultimo, entraram[103] varios soldados amparando nos braços Cassio, ferido e que havia exigido que o levassem a todo o transe á presença de Othello sem perda de um minuto, pois em breve morreria e queria fallar com o general antes de exhalar o ultimo suspiro.

Ao vêr entrar tanta gente no aposento, e especialmente ao encontrar-se em presença do veneravel Graciano, tio de Desdemona, Othello retrocedeu instintivamente alguns passos e deixou em liberdade Emilia.

Esta correu, como louca, para os recem-chegados, e gritou, rompendo em soluços:

—Matou a minha ama, senhores, o infame matou-a!

—Sim, confessou sombria e altivamente Othello, dirigindo um olhar de desafio a todos os presentes, matei-a, porque sou o unico juiz da minha honra e eu proprio sentenciei a culpada!

—Mentira! gritou de novo Emilia. Senhores, não acrediteis! A infeliz Desdemona era tão pura e innocente como os anjos do céu, e levava a incomparavel bondade de sua alma até ao extremo de amar com todas as energias do seu coração o seu proprio verdugo!

—Tu é que estás mentindo, infame impostora! rugiu Othello, que tremeu até ao mais intimo d'alma ao entrever a possibilidade da innocencia da esposa pela maneira convicta com que fallára a dama. E accrescentou tirando do bolso o lenço de seda, que guardava como prova accusadora: Atrever-te-has a negar que conheces esta prova do criminoso adulterio? Este lenço deu-o minha[104] esposa ao amante, a esse infame Cassio, que o proprio inferno repelliu, pois que ainda o vejo aqui com vida!

Ao ver o lenço, Emilia ficou convertida em estatua; pôz-se livida como um cadaver, as pupilas pareceram querer-lhe saltar das orbitas, e exclamou horrorisada:

—O lenço de seda! O lenço que roubei a Desdemona!

—Que roubaste?—exclamou Othello enlouquecido e julgando ter ouvido mal.—É mentira! Foi minha esposa que o deu a Cassio como prenda dos seus criminosos amores!

—Proximo a entregar a alma a Deus interveio com debil e apagada voz o antigo official de Othello—Juro pela minha salvação que nunca vi semelhante lenço nas minhas mãos e que Desdemona te era tão fiel como póde ser a mulher mais pura do mundo!

«Juro tambem, continuou fallando com grande custo,—que morro victima de um erro teu, general, e assassinado por ordem d'esse infame, que não se atrevendo a atacar-me, enviou um instrumento seu, o qual logrou enganar por meio de outra calumnia, e que, depois de ferir-me, acaba de morrer ás minhas mãos, confessando tudo! Juro, por ultimo, accrescentou Cassio, cada vez com voz mais debil,—que sempre te amei como a um pae, como ao morrer te quero ainda, e que Desdemona, tão innocente e pura como um anjo, não foi outra cousa para mim do que foi para toda[105] a gente; um coração cheio de bondade e de doçura! Juro-o por tudo quanto existe de sagrado!...

E o antigo tenente de Othello cahiu sem sentidos nos braços dos soldados que o amparavam.

—E eu juro—exclamou por sua vez Emilia, encarando Othello, que permanecia atonito, como se tivesse recebido um profundo golpe; juro que esse homem disse a verdade, que minha ama era pura como um raio de sol e innocente como uma criança; que Cassio nunca teve em suas mãos esse lenço, e que fui eu que o roubei a Desdemona, obrigada a tal acto por meu marido e fazendo-o jurar que com elle não prejudicaria ninguem! Juro-o pela memoria de meus paes!

Succedeu então uma cousa verdadeiramente horrivel.

Iago, ao vêr o caminho que tomavam para elle as coisas, fôra approximando-se lentamente da porta para se escapulir sem ser visto. Mas, no momento em que Emilia se calou, Othello saltou sobre elle com a agilidade e a força de um leopardo, e arrancando-lhe a propria espada, enterrou-lh'a nas entranhas até aos copos. Em seguida, voltando-se para onde estava Graciano, e tirando o punhal que o velho senador trazia pendente do cinto cravou-o no proprio peito até ao cabo e cahiu sobre o leito em que jazia o cadaver de Desdemona, á qual deu a alma n'um beijo com o ultimo suspiro.[106]

A dupla acção do formidavel e ciumento mouro havia sido tão rapida, que quando os circumstantes, refeitos do assombro, quizeram intervir, já estava consumada a tragedia.

FIM

[107]

INDICE

Cap. Pag.
I—O rapto 5
II—Othello 19
III—Em Chypre 37
IV—O traidor 53
V—O lenço 67
VI—Os embaixadores 83
VII—Crime e castigo 97

 

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