The Project Gutenberg EBook of Agulha em Palheiro, by Camilo Castelo Branco

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Title: Agulha em Palheiro
       Quinta edição

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: December 16, 2008 [EBook #27541]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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Notas de transcrição:

[A] Nesta 5ª edição desta obra detectámos uma falta de texto muito significativa. Parece ter sido removida por descuido do editor, e por isso resolvemos adicionar no local próprio o segmento em falta. Usámos para o efeito o texto da 2ª edição, de 1865, sem alteração ortográfica. Para evidenciar esta alteração marcámos o segmento de texto inserido com entre as marcas [A] e [B], e nesta versão html ainda alterámos a cor de fundo para melhor realçar a diferença.

Foram ainda encontrados diversos erros de impressão, que por não terem qualquer impacto na interpretação do texto, foram corrigidos sem qualquer nota.

OBRAS

DE

CAMILLO CASTELLO BRANCO

EDIÇÃO POPULAR

XXII

AGULHA EM PALHEIRO[2]

 

VOLUMES PUBLICADOS

I—Coisas espantosas.

II—As tres irmans.

III—A engeitada.

IV—Doze casamentos felizes.

V—O esqueleto.

VI—O bem e o mal.

VII—O senhor do Paço de Ninães.

VIII—Anathema.

IX—A mulher fatal.

X—Cavar em ruinas.

XI e XII—Correspondencia epistolar.

XIII—Divindade de Jesus.

XIV—A doida do Candal.

XV—Duas horas de leitura.

XVI—Fanny.

XVII, XVIII e XIX—Novellas do Minho.

XX e XXI—Horas de paz.

XXII—Agulha em palheiro.

[3]

 

CAMILLO CASTELLO BRANCO

 

AGULHA EM PALHEIRO

 

 

 

 

QUINTA EDIÇÃO

 

 

 

 

LISBOA
Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA

LIVRARIA EDITORA
Rua Augusta, 50, 52 e 54

1904[4]

 

 

 

 


LISBOA
Officinas Typographica e de Encadernação

Movidas a vapor
Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.º

1904[5]

 

 

 

DEDICATORIA

Ao poeta das creanças, das flores, do Amor, da Melancolia e dos desgraçados

AO ILL.mo E EX.mo SR.

ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO

Honra da Patria, honra dos que o prezam, e amam a Patria

OFFERECE

O AMIGO, O RESPEITADOR, O DISCIPULO MAIS DEVEDOR

Camillo Castello Branco.[6]

 

DUAS PALAVRAS

A primeira edição d'este romance saiu de uma typographia do Rio de Janeiro. Parece que houve proposito em desdourar os prelos brasileiros! Poderá parecer tambem que se intentou desdourar o auctor; mas semelhante suspeita não vingaria, attendendo a que não é coisa verosimil alguem escrever assim. O que mais depressa poderia crer-se seria que o escriptor mais fleumatico morresse de fulminante desgosto, vendo a sua obra tão damnificada, e suja de todas as nodoas, para lavagem das quaes se crearam as quatro partes constitutivas da grammatica.

Imprime-se o livro, como o auctor escreveu o manuscripto, e chama-se segunda edição, porque o titulo e substancia da obra está no livro publicado no Brasil.

 

Porto, janeiro de 1865.[8]

 

AGULHA EM PALHEIRO

 

I

Em 1803, o sapateiro de Manuel Maria Barbosa du Bocage era Francisco Lourenço Gomes, estabelecido na calçada do Sacramento, em Lisboa.

Francisco Lourenço era, n'aquelle tempo, rapaz de dezoito annos; mas, por sua muita esperteza e actividade, merecera que o pae lhe confiasse a gerencia da loja, grandemente afreguezada.

Os poetas notaveis do tempo calçavam todos de casa de Francisco Lourenço; um só, porém, o maioral de todos, o repentista Bocage, calçava gratuitamente.

Os coevos do poeta recordam-se de o terem visto quasi sempre mal entrajado de casacas, pantalonas e chapéos: mas, no tocante a botas, dizem todos que o vate Elmano primava em aceio, e raro dia saía á rua com ellas sem muito lustro de fina graxa.[10]

Este accidente da vida de Bocage, omittido nas biographias do immortal improvisador, escriptas por Castilho e Rebello da Silva, tive eu a fortuna de apanha-lo casualmente. Assim, pois, se explica a distincção das botas de Manuel Maria entre as dos seus collegas e rivaes do botequim Nicola: Francisco Lourenço, o sapateiro dos casquilhos d'aquelle tempo, era amante de versos. Principiára saboreando as trovas chôchas de José Daniel; e ditosa correra a vida pedestre ao infausto poetrasto, em quanto a admiração do sapateiro lhe foi prodiga de botas; quando, porém, o moço ouviu Bocage improvisar na festividade de Corpus-Christi, fatal hora badalou para o auctor do Almocreve das Pêtas, que nunca mais encontrou graça no seu Mecenas de bezerro e sola.

O enthusiasta de poesia presenteou Bocage com umas botas, e a quitação de dois remontes que lhe devia. O poeta, não vezado a taes galhardias do vulgo profano, posto que a pouco mais subisse a capacidade do claro auditorio seu, retribuiu a generosidade do moço com prosa chan, mas muito mais sincera e cordeal que os versos.

Francisco tomou a cuidado seu mandar todas as manhãs buscar o calçado do poeta predilecto, e devolver-lh'o brunido e lustroso como um espelho; e, apenas as solas se gretavam ou os saltos iam entortando, logo novas botas, em fazenda e feitios primorosas, iam saudar o vate acordado para um novo dia dos seus desvairados prazeres de praças e tavernas.

A repetição d'estes brindes abriu, no animo generoso[11] e popular do poeta, as portas á confiança timida do artista. Francisco Lourenço teve a honra de almoçar com Bocage no botequim das Parras, e d'aqui sairam juntos a jantar n'uma horta do Campo-Grande, onde Elmano, fiel aos seus usos e costumes, bebeu á tripa fôrra, e poetou, consoante o auditorio lhe beliscou a musa escandecida.

O sapateiro, instigado por sua doce embriaguez, que era suave e honrada embriaguez do amor casto a uma prima, revelou ao poeta a sua paixão, e pediu-lhe umas quadras natalicias para festejar os annos da sua amada. Esta confidencia rebentou do coração do moço alli pelas alturas de S. Sebastião da Pedreira. Bocage, sem mais averiguações, entrou n'uma tenda, pediu papel, disse a Francisco Lourenço que escrevesse, e improvisou torrentes de quadras que extravasaram da folha de papel almaço. O sapateiro amante chorava de alegria; e o especieiro ficou pasmado e maravilhado de ter tido em sua loja o famoso poeta, que era o esfarrapado idolo do povo, como todos os idolos do povo, que assim os quer esfarrapados, ou tarde ou cedo os esfarrapa, se elles lhe cáem nas mãos bem ageitados.

Francisco Lourenço, ao despedir-se do poeta, que ia passar a noite em casa do marquez de Anjeja, delicadamente lhe introduziu na algibeira do collete uma peça. Que bizarria de animo! Uma peça seria hoje o primeiro dinheiro que um editor portuguez offereceria a Bocage pela propriedade de um volume!

Bem empregados seis mil e quatrocentos réis! A[12] prima de Francisco, ao ver-se cantada assim, e, de Maria que era, transformada em Marilia, ganhou ao primo tamanho amor, que logo d'ali esqueceu sagradas promessas, que fizera a outro; e tanto foi, que, estando ella a bordar um coração varado por duas settas em cruz, com o intento de mandal-o ao rival de Francisco, o symbolico lencinho, dias depois, estava em poder do primo, que o beijava em transporte de jubilo.

Bocage via a seus pés o mais ditoso dos amantes confessando que aos seus versos devia a immensa felicidade, que lhe não cabia no peito. Esta situação, grata ao genio, reaccendeu-lhe o estro em novas flammas. Um soneto divino caiu no coração do reconhecido moço, que foi logo d'ahi leva-lo ao coração de Marilia.

Esta menina era filha de um colchoeiro da rua Augusta, filha unica, e esperançada em bom patrimonio—que seu pae, tio materno de Francisco Lourenço, passava por abastado. Além d'isso Maria Luciana era galantinha, arranjadeira de casa, prendada, e amiga de ler livros de devoção, e o Almocreve das Pêtas, e o Anatomico jocoso, obras do engenho humano, que o bom do colchoeiro pasmava de ouvir, e, com as mãos nas ilhargas, era todo elle então uma risada, que não ha conta-lo.

Depois, porém, que Maria Luciana lera os dois poemas de Bocage, que lhe diziam respeito, o seu poeta valido era o grande cantor, e os livros ao divino pareciam-lhe coisa de moer a paciencia. A reformada creatura, quando a mãe lhe tirava das mãos as rimas de Bocage, e a obrigava a lêr o Retiro espiritual[13] e a Novena de Santa Ursula, zangava-se tanto lá no seu interior, que chegava a duvidar que Santa Ursula e sua mãe tivessem senso-commum!

Não desagradava ao colchoeiro o sobrinho. Seu cunhado, além da acreditada loja na calçada do Sacramento, possuia no Cartaxo uma quintinha de recreio e algumas terras lavradias, e vinhedos herdados e adquiridos pelo officio. O rapaz desempenhava, em annos verdes, o bom governo da loja, e mostrava tendencias a ganhar freguezia de gente limpa, com quem elle se relacionava. Porém, estas boas predisposições eram rijamente contrariadas pela funesta noticia, que lhe chegara aos ouvidos, e vinha a ser: o escandalo de ter ido o moço algumas vezes almoçar ao botequim das Parras, em companhia de poetas! Esta reluctancia durou dois annos, ou mais; mas, a final, como quer que Maria perdesse a saude e amarellasse, o colchoeiro, que não tinha outra filha, deixou-a casar, dotando-a com seis mil cruzados.

No fausto dia do casamanto, Francisco Lourenço foi convidar Bocage para jantar em sua casa. O poeta estava enfermo; prometteu ir n'outro dia, se não morresse d'aquella aneurisma que o tinha nos umbraes da eternidade. As portas da eternidade, porém, estavam a abrir-se, n'aquella hora, ao mais inspirado e desditoso genio que ainda viram portuguezes, sendo tantos os inspirados e desditosos á competencia de desgraça com elle!

Poucos dias depois, n'esse anno de 1806, morreu Bocage.

Francisco Lourenço chorou-o, como se ás lavaredas[14] d'aquelle incendio d'alma tambem elle tivesse aquecido os embriões do seu talento. O artista não era poeta, nem tinha o parvulez de crer-se tal porque adorava Bocage. O que elle tinha era a paixão do bello, com a entranhada magua de não ter sido educado e guiado por aquelle rumo de magestosa desgraça. Bem sabia elle que Luiz de Camões morrera sem lençol em que amortalhar-se, e Antonio José da Silva n'uma fogueira, e Maximiano Torres nos presidios da Trafaria, e Garção na cadeia, e Quita na indigencia, e Bocage no desamparo. Sabia-o, e invejava a brilhante desdita de taes destinos, ao passo que os grandes de entendimento rojavam aos pés dos grandes da fortuna seu ignobil servilismo para não emparelharem na invejavel miseria com os Camões e os Bocages.

Quando acontecia Francisco Lourenço dar largas a sua candida alma, lamentando o mau fim dos grandes espiritos em Portugal, os freguezes, que o ouviam, disfructavam-n'o, como hoje se diz, e iam chancear á custa do sincero artista. A voga, que lavrou da sua mania lamuriante, grangeou-lhe freguezia. Os peraltas e piza-verdes iam, acintemente, ás chusmas tomar medidas de botas, buscando azo de o moverem á costumada dissertação. Muitos o ouviam discorrer tão de sizo em tal materia, que saiam mais commovidos que dispostos a motejarem a louvavel sensibilidade do moço. Aos mais intimos ou mais velhacos recitava elle as quadras natalicias, que Barbosa du Bocage improvisara em S. Sebastião da Pedreira, e o soneto posterior, ao qual o coração de sua mulher de todo em todo se rendera.[15] Estes eram os que divulgavam, como ridicula, a confidencia do sapateiro; e nunca lhe perdoaram ter elle na sua sala, impressa em pergaminho, e encaixilhada em retabulo dourado, a estrophe do epicedio a Elmano, por Francisco Manuel do Nascimento, que dizia assim em linguagem de anjos:

«Elmano! oh! vate! A abelha em teu moimento,
     Sempre o seu mel componha!
Manná dos céos, e balsamos da Arabia
Alli distillem; louros enverdeçam,
     Heras, nevados lirios!
Basto rosal, com mil botões o abrace!
Mangerona, tomilho e a flôr vermelha
     Que annuncia em queixumes
De Ajax a dôr, n'um ai tinto em seu seio!
Do Sado as Nymphas, nymphas do aureo Tejo
     E as indicas Nereas
Com lagrimas a campa lhe humedeçam!»
............................................

Francisco Lourenço recitava com lagrimoso enthusiasmo estes versos, e como thema os tomava para maldizer a nação e o governo que deixavam morrer de fome de pão e da patria o auctor de tão doridos queixumes, o exilado Filinto Elysio. E d'isso riam os casquilhos, os miseraveis cujo nome ninguem sabe, e cujos netos a gente não conhece, quando os topa ahi por esse Chiado e Rocio, cascalhando, com seus avós, umas risadas alvares, unico symptoma de vida intellectual que dispensam n'esta sua pasagem sobre o globo, que é d'elles e das moscas.

O pae de Francisco Lourenço afez-se a ouvir o[16] filho fallar de poetas, e achava-lhe razão. Ouvia-o queixar-se da nenhuma educação litteraria que tivera, e sentia sinceramente não ter aproveitado as tendencias de Francisco. Dizia elle:

—Olha, rapaz, eu tinha um parente, que ia muito bem com a sua vida, em quanto olhou pela loja de mercearia que seus paes lhe deixaram. Depois assentou o pobre Francisco Dias Gomes em se fazer poeta, e deixou ir o negocio pela agua abaixo, a ponto de deixar para ahi a familia pobre. As obras d'elle andam impressas por esse mundo á custa da academia; mas isso não remedeia, em quanto a mim, a pobreza da familia. Ora eu, como tinha este exemplo na familia, resisti á tua e á minha inclinação. Achei que o melhor era dar-te o officio que me deu a mim muito trabalho com bom estipendio, e vida socegada. Já agora, Francisco, o remedio é conformares-te com a tua sorte. Se gostas de ler, lê, que eu não te levo isso a mal; mas bom será que olhes sempre para o essencial, que é a loja. Deixa-te de acamaradar com gente de outra laia, que a final ha de dar-te mau pago. Trago cá as minhas desconfianças de que muitas pessoas veem aqui fallar comtigo em poesias, e vão lá para fóra zombar de ti. Eu, que t'o digo, é por que alguem m'o disse. Lê os teus livros no teu quarto; mas na loja, se alguem te fallar em versos, fala-lhe tu em botas. Cada qual no seu officio. Ora agora, como estás casado e pódes ter filhos, farás o que melhor entenderes: educa-os como quizeres, que eu, graças a Deus, hei de deixar-vos o necessario para fechardes a loja, e cuidar n'outro modo de vida.[17]

Desde este dia Francisco Lourenço comediu-se nas palestras litterarias. Os disfructadores deram tento da reforma, e foram rareando a pouco e pouco. Se o provocavam a discorrer sobre Camões, Bocage ou Filinto, o ajuizado Francisco lançava mão da craveira, e dizia:

—Já não conheço de versos; agora o que sei é medir pontos de pés.

—Spondeus ou dactilos? atalhou um faceto de mais presumido chiste.

—Pés de toda a casta, replicou Francisco, pés mesmo dos que são a quatro em cada sujeito, como posso provar a vossa senhoria.

O farçola entendeu que o sapateiro lhe chamava quadrupede: suspeita bem cabida, mas não cabalmente averiguada.

O certo é que este freguez deixou de o ser de Francisco Lourenço; e outros de sua roda se afastaram tambem, visto que o mestre se esquivava a ser pasto de seus ocios.

Que selvagens tempos aquelles!

Francisco Lourenço, se vem cincoenta annos depois, sem embargo de ser um habil sapateiro, poderia entrar dignamente na republica das lettras: começaria versejando, em solteiro, estas faceis quadrinhas, cheias de fogo e alma, com que todos os marechaes das lettras velaram as armas, ao vestirem-se cavalleiros para a crusada da civilisação. Depois escreveria o seu folhetim, variado em côres, como um mosaico de differentes linguas, e com atrevimento de idéas, que forçariam a critica a qualifical-as de originalidades. Francisco Lourenço teria uma luneta,[18] um charuto, e um bigode encerado, e uma esquina alli no largo de Camões onde encostar os hombros, vergados sob o peso da cabeça prenhe de idéas. Depois, naufragado o coração, Francisco Lourenço iria salvar a humanidade, com o seu septicismo, nas regiões da politica. Faria, portanto, a um tempo botas para os pés, e sciencia para a cabeça da humanidade. Se absurdos fados o bafejassem, Francisco Lourenço subiria a ministro, e ninguem lhe perguntaria d'onde veio, nem a tripeça ainda quente lhe seria desdouro. Esta é a unica vantagem que a civilisação tem trazido para a fusão dos homens n'um só principio derivativo do pae commum. Cá, tanto faz vêr do acume das grandezas cair um homem no raso da lama, como erguer-se da lama um homem ao mais culminante da escala social. Ninguem se espanta, nem sequer pára a discutir estes vulgares accidentes da reformação social.

Isto assim é que é bom.[19]

 

II

Posto que a leitura lhe deliciasse muitas horas do dia e noite, Francisco Lourenço cuidava attentivamente no bom regimen de sua casa. Era elle quem talhava a obra superior, e a distribuia aos officiaes, quem recebia as damas freguezas, e com muito bom modo satisfazia seus caprichos. Os dias sanctificados passava-os com sua mulher e pae no Cartaxo, onde ia formando deposito de livros, amigos da velhice, como elle dizia. Tencionava Francisco ir lá passar o ultimo quartel da vida, empregando-a, sem outras distracções, no enlevo dos bons auctores que ia conhecendo.

A carinhosa esposa ajustava perfeitamente com os prazeres intellectuaes de seu marido. Nunca elle descobriu pagina de livro encantador que a não lesse a sua mulher. Como não tinham filhos, sobejavam os ocios do arrumamento das coisas domesticas.[20] Maria sentava-se a costurar, nas noites de inverno ao lado da banca de seu marido. Elle recitava com emphase, e ella chorava ou admirava-se com delicado sentir do coração ou espirito. A Cantata de Dido, a pagina mais maviosa entre as mais inspiradas da poesia portugueza, já ella a sabia de cór, á custa de ouvi-la e honra-la com as suas lagrimas. Ouvira ella ler todos os poetas nacionaes antigos e do seu tempo, excepto José Agostinho de Macedo, que Francisco aborrecia por ter sido o detractor de Camões, e o émulo atrevido e torpe de Bocage. O artista, quando acertava de encontrar o frade graciano, sentia calafrios na espinha; e, segundo elle dizia, vontade de escorchar com um pontapé aquelle ôdre de vinho e peçonha.

Em 1816, dez annos depois de casado, Francisco Lourenço agradecia a Deus a felicidade do primeiro filho, quando o já não pedia nem esperava.

—Ainda estou em edade de poder educal-o, e vel-o homem—disse o festivo pae a sua mulher.—Tenho vinte e nove annos: quando meu filho tiver a minha edade, posso ainda viver, como vive meu pae, sadio e robusto. Já sei para quem estou enriquecendo esta livraria. A minha velhice ha de ser um descançar em leito de rosas. Irei d'este mundo, deixando na alma de meu filho uma boa porção da minha essencia.

Não deve o leitor duvidar d'esta linguagem levantada em bocca do artista. As mais vulgares e rasteiras coisas da vida, naturalmente, se haviam vestido, em seu espirito, com as galas da poesia, cujo perfume lhe rescendia em tudo. O seu permanente[21] privar com poetas, ou com a natureza, mãe de todos, e mais mãe dos que a amam sem lhe devassarem os segredos, necessariamente influenciariam a singela alma do homem, que para sentir vibrar as cordas todas da poesia, estava nos primeiros arrobamentos de pae.

Por esse tempo falleceu o velho Lourenço e o pae de Maria. A herança de ambos daria sobeja independencia a Francisco; porém, a existencia da creança, dilatando o alcance das ambições paternas, desviou-o do antigo proposito de passar a loja, e ir viver folgado em sua quinta. Um filho é realmente um aguilhão que aperta os temperamentos mais desleixados em grangeio de bens de fortuna. Já lhe queria parecer a Francisco Lourenço que quarenta mil cruzados em propriedades era pouco patrimonio para o seu Fernando; e quando bastasse a um filho, quem saberia os filhos porvindouros? Se fossem mais de quatro, reflectia o pae, pouco menos de pobres ficariam todos. Entendeu, pois, em proseguir no trabalho, afanar-se cada vez mais, encurtar as horas de leitura, e augmentar o numero de officiaes, a fim de exportar calçado para o Ultramar.

No anno seguinte nasceu uma menina, e outra no anno immediato. Sem querer desagradecer a Deus, Francisco desgostou-se da duplicada mercê das meninas. Andava elle scismatico e melancholico a escogitar no futuro que havia de preparar a suas filhas. O bom homem cuidava que sem educação scientifica ninguem podia ter futuro; e lamentava não poder crear suas filhas, pondo o fito nas Bernardas Ferreiras de Lacerdas e Violantes do[22] Céo, litteratas famosas que o leitor conhece. Acudia a senhora Maria Luciana ás tristezas de seu marido, dizendo-lhe que as meninas podiam ser freiras, e instruirem-se no seu convento. Isto consolava as tristes apprehensões do pae; mas era ainda pouco para allivial-o do desgosto de não ter filhos, que podessem ser tres grandes poetas, ou, ao menos, tres sabios que é um grau de sciencia muito mais facil de attingir, no voto d'elle, e no meu tambem.

Fernando, aos quatro annos, frequentava as primeiras lettras; aos nove annos estudava latim com admiravel intelligencia; assim, até aos dezeseis, cursou humanidades, no intento de ir graduar-se a Coimbra.

N'esta edade Fernando conhecia os poetas latinos e portuguezes: lia uns com seu pae, e traduzia-lhe os outros, explicando os pontos obscuros de Horacio e Ovidio.

Grande era o dissabor do moço, quando vinha das aulas, e via, atravez da vidraça que abria para o pateo, seu pae talhando o bezerro de umas botas ou o duraque de uns sapatos. Ia elle ter com sua mãe, e pedia-lhe que aconselhasse o pae a passar a loja, e remediar-se com o bastante, que já tinham para viverem em decente mediania. A boa mãe não se esquivava de pedir tal coisa; mas admoestava Fernando a evitar quanto podesse mostrar-se envergonhado do officio de seu pae.

O imprudente moço não deu o devido peso ás reflexões da mãe, e insistiu no seu desgosto e rogos. Bem póde ser que os condiscipulos lhe atirassem á cara, como despique de inveja dos progressos[23] d'elle, o seu nascimento humilde. Aquelles tempos eram infamados com muitos exemplos d'este barbaro quilate. Á peonagem nem a muita riqueza a salvava dos remoques da fidalguia. Nos collegios, os mestres eram os primeiros a darem o exemplo das preferencias. A applicação no moço da baixa tracção era menos louvada que a preguiça no escolar de familia illustre. Este escarneo do Evangelho chegava até Coimbra, onde se degladiavam primazias de nobreza, e só com muita paciencia para ultrages e desprezos, conseguia formar-se o filho do artifice, que não se abalançava a entrar em communhão de sciencia com os privilegiados da boa fortuna.

É, pois, de crêr que Fernando Gomes, matraqueado pelos condiscipulos, desejasse que seu pae levantasse mão do officio de sapateiro, que mais que outro qualquer—sem podermos dar razão do porque—se presta á zombaria nas facecias dos chocarreiros.

Aventurou-se, um dia, Fernando a pedir ao pae que fechasse a loja.

—Porque?!—perguntou Francisco Lourenço.

—Porque...—tartamudeou o filho—se meu pae quer formar-me... não me parece...

—Diz, homem!—acudiu o pae á indecisão de Fernando, com semblante transtornado—não te parece o que?

—Que seja bom ter loja de...

—De sapateiro?... parece que te custa a dizer a palavra sapateiro! Sapateiro, sim!... Queres tu dizer que te envergonhas do officio de teu pae?[24]

Fernando baixou os olhos e não respondeu; mas o silencio era, no caso, a mais eloquente das confirmações.

—Está bom—disse Francisco—descança que se ha de remediar tudo o melhor que puder ser. Hoje não vaes á aula. Amanhã falaremos.

Francisco Lourenço fechou-se no quarto com sua esposa, e, antes de referir o que passara com o filho, rompeu n'um choro soluçante, que a consternada mulher não sabia como explicar nem consolar.

Falaram largo tempo. O marido saíu de melhor sombra. Maria chamou Fernando e disse-lhe:

—Deus te perdôe o mal que fazes a teu pae! Eu não quiz dizer-lhe que fechasse a loja, e tu commetteste a imprudencia de lh'o dizer!... Fernando, d'esta vez vali-te; mas não caias n'outra. Olha que teu pae é tão bom como severo. Segue a carreira que elle te dá, e deixa-o lá com a sua vida. Cuidas que teu pae acha prazer em estar na loja a trabalhar? Enganas-te. Bem sabes quanto apaixonado elle é de livros. Se trabalha, para ti é, e para tuas irmãs. O que temos seria bastante para um, se tivesse juizo; mas seria quasi nada para tres filhos. Tu não has de querer ser doutor, e ver tuas irmãs sem nada. Vae á aula; e, se alguem te disser que és filho de sapateiro, responde-lhe tu que tens muita honra em ser filho de quem és... Póde ser que os fidalgos, que t'o disserem, te devam a ti o par de botas que trazem ...

Estas judiciosas razões não consolaram a Fernando.

A resposta foi um calado despeito, e uma visagem[25] de desdem, que Maria viu com os olhos humidos.

Decorridos poucos dias, Fernando foi ter com sua mãe, e disse-lhe que não tornava á aula, porque os seus condiscipulos o vexavam. Descendo a explicar o vexame por miudos, disse que o filho do conde de tal, zangado com elle por ter-lhe corrigido um theorema de geometria, lhe replicara qual era a figura geometrica de uma tomba; e se as entrecospias em logica pertenciam ao dilemma. A mãe não conheceu o travôr do epigramma. Chamou o marido, e quiz que o filho repetisse o conflicto diante de seu pae. Francisco ouviu-o, doeu-se, dissimulou o pesar, e disse-lhe:

—Irás frequentar outra aula.

—Acontece-me o mesmo em toda a parte, contrariou Fernando com certo desabrimento deshumilde.—Emquanto o pae estiver n'este modo de vida, hei de ser enxovalhado por todos os condiscipulos, tanto monta em Lisboa, como em Coimbra.

—Está bom, disse serenamente o pae. Eu vou pensar e resolverei.

A resolução foi prompta. Francisco Lourenço entrou no quarto onde Fernando estudava, e disse-lhe:

—Arruma esses livros, que já te não servem de nada. És sapateiro como teu pae e teu avô.

Fernando perdeu a côr, e quasi o sentimento. Francisco Lourenço saíu, e foi verter torrentes de lagrimas no seio da mulher, exclamando a intervallos:[26]

—Lá vão todas as minhas esperanças!... Assim havia de ser, porque ouvi a voz da minha vaidade, e nunca me lembrei que um filho podia ter vergonha do officio do pae... Vê tu, mulher, que soberba maldita eu andei gerando e engrossando no animo d'aquelle rapaz! Se eu lhe désse largas, onde iria dar comsigo tamanho orgulho! Ahi tens tu a sciencia a desnaturar-me um filho!... Santo Deus! Bem m'o pregava meu bom pae!... Quantas vezes lhe ouvi dizer que eu, se fosse um sabio, me correria de o vêr a elle na baixa condição de sapateiro!... Não posso nem devo consentir que meu filho se deshonre por amor da sabedoria... Se a sociedade o vexa, paciencia; que fuja da sociedade. Eu antes o quero sapateiro honrado, que filho infamado pela ingratidão. Façamos um homem de bem, e os nobres que façam os sabios ... Mas é dôr, é uma grande afflicção, ter de renunciar ao proposito de tantos annos! É por isso que eu choro ... e bem vejo que é fraqueza chorar! Tenho pena d'elle; tenho-a de véras... mas só assim é que eu posso resgata-lo das mãos do mundo, que m'o ha de perder!

Maria Luciana tentou demover a intenção do marido com razões, e mais que tudo com lagrimas. Lembrou ella que o mandassem logo para Coimbra, onde os condiscipulos o não conheciam. Este remedio azedou mais a ferida do artista.

—Pois eu, exclamou elle, hei de estar evitando que o meu nome seja conhecido?! Hei de esconder-me para que meu filho se não envergonhe? Hei de recommendar a Fernando que não diga em[27] Coimbra quem é seu pae, ou consentir que elle me negue para ser mais bem recebido? Que respondes, Maria? ...

Não respondeu nada a pesarosa mulher. A dizer a verdade, com que argumentos responderia ella, sem molestar-lhe o espirito? O ponto mais sensivel da questão era a dignidade do homem mecanico, trabalhando para engrandecer o filho. Se este desejo e afan lhe era deslustrado por desprezo do seu mister, qual gloria lhe restava? Quem lhe asseverava a elle que o filho, mais tarde, fugiria d'elle como d'um estorvo ao seu maior engrandecimento?

Não obstante, Maria chamou o filho, e mandou-o pedir perdão a seu pae, se não queria ir para a loja trabalhar com os officiaes.

—E porque não hei de eu ir?!—respondeu placidamente Fernando, com grande assombro da mãe.—Eu não tenho vergonha de ser sapateiro. Quero sê-lo quando m'o chamarem.

—E não te importa o tempo que perdeste a estudar, Fernando?—tornou a mãe, commovida pela briosa resolução e desapego do filho.

—Não perdi de todo o tempo: serei um sapateiro illustrado como meu pae o é. Antes isso. Terei horas de estudo e horas de trabalho. Não receio que me humilhem na loja.

Fernando, obedecendo aos novos impulsos do momento, não sabia bem o que dizia, nem, a menos que a natureza se não houvesse singularisado n'elle, devia insistir muito tempo em pontos de tão isempta grandeza de animo.

N'aquelle mesmo dia desceu á officina, e disse[28] ao pae que lhe talhasse o seu serviço. O pae encarou n'elle com muita amargura e disse-lhe:

—Vá para cima!

Os officiaes olharam-se com espanto, como adivinhando a significação d'aquelle incidente. Fernando, desde a idade de nove annos, nunca descêra á casa de trabalho, nem trocára palavra com algum dos officiaes. Estes, por ironia, e lá muito em secreta maledicencia, denominavam-n'o o fidalguinho, e riam á sucapa, quando, atravez das portas envidraçadas, o viam passar no pateo sem lhes virar um canto de olho.

A situação de Francisco Lourenço era afflictiva. A corajosa apresentação do filho desarmara-lhe a tal qual ira, que elle muito precisava azedar com a rebeldia, para tirar a limpo o seu plano. Pensava elle que o estudante recebera aterrado a nova: não se enganou; mas longe estava de cuidar que a reacção do brio o determinasse a acceitar sem custo um tirocinio de sapateiro. A verdade é que ambos estavam enganados: o pae com a franqueza do filho, e o filho com a sua propria coragem.

Não sabia Francisco que dizer nem fazer. Evitava encontrar Fernando; mas forçoso era verem-se á mesa da ceia. O artista não poude engulir bocado. Maria ensopava o lenço em lagrimas. Fernando, grave, mas não triste, ia comendo, segundo o seu costume, e fazia o prato de suas irmãs, extranhas ás amarguras dos paes.

Quando as meninas, depois de darem graças a Deus, se retiraram ao seu quarto, Fernando disse com muita brandura:[29]

—Porque hão de estar tristes?! Eu já disse á mãe que acceito qualquer posição que meu pae me der. Estou muito em tempo de aprender o officio: se meu pae não quer que seja o seu, indique-me outro. Vou sem saudades dos livros, nem pesar de esperanças perdidas em grandezas do mundo.

—Mas envergonhas-te de ser filho d'um homem do povo!—atalhou o pae.

—Não me envergonho: vocemecê não entendeu bem a minha magua. O que eu não posso supportar são as zombarias dos meus condiscipulos, que por força me hão de encher de fel o coração, e fazerem-me mau. Qualquer que seja o officio mechanico que me derem, viverei com os meus eguaes, e poderei distinguir-me d'elles com a minha instrucção, sem que ella me faça alvo dos seus motejos. Isto é o que eu desejo e penso.

—Tens dezesete annos, Fernando!—disse o pae—É tarde para recomeçares nova carreira.

—Eu me applicarei para ganhar tempo. Não lhe dê isso cuidado, meu pae.

—E queres ser sapateiro?

—Serei...

Como este serei foi dito! Que livro eu tenho debaixo d'aquella palavra! Que volume de psycologia, de physiologia de coração, de philosophia transcendental, de tudo quanto ha ahi attinente ao homem, eu era capaz de extrahir d'aquelle serei! Da accentuação que Francisco Lorenço deu á palavra sapateiro, tambem podia formar-se outro volume psycologico, physiologico, um tractado completo do espirito homem em todas as suas variantes desde a sinceridade[30] do santo, até á ironia do demonio de Goëthe, que era o mais argucioso e ironico argumentador, que o inferno cá mandou, depois dos enviados que prégaram a distincção entre homem e homem![31]

 

III

Aquelle dia e o seguinte passaram em indecisões do pae e do filho. Fernando esperava as ordens, sem ousar abrir um livro. A pobre mãe andava, de um para outro, a negociar a reconciliação: ao marido dizia que Fernando não podia nem devia retroceder: ao filho prégava-lhe sermões de paciencia para tolerar os ditos dos companheiros de aula, e ter bastante vaidade de ser filho de um operario honrado. O certo é que Maria com os seus sermões conseguiu revirar o animo do filho a tal ponto, que o moço, olhou em si, e viu-se ridiculo por dar tamanho pêso ás chufas dos condiscipulos.

O que a mulher quer, Deus quer: é o titulo de um livro francez, que póde ser um proverbio em todas as linguas. Francisco Lourenço, com os seus assomos de louvavel dignidade, ia transtornando a carreira do filho, tão de longe pensada e afagada; ora[32] Maria Luciana, em termos brandos, com o imperio de lagrimas, com aquelle feminil despotismo que tudo amolga e dobra, mais cedo do que devia esperar-se, reduziu o filho á rasão e consciencia de verdadeiros brios.

Não contente ainda, levou Fernando a pedir perdão ao pae de o ter magoado com as suas vaidosas queixas, promettendo honrar-se em confessar por si mesmo, e com orgulho, o officio de seu pae.

Francisco Lourenço resurgiu do seu quebranto, chorou mais doces lagrimas, e perguntou a Fernando se elle queria ir logo para Coimbra, e concluir lá os estudos preparatorios.

Fernando mostrou desejos de ir, e logo os satisfez.

Não comprehendia a mãe como pudesse ir sósinho, por esse mundo além, um menino de dezesete annos! Queria acompanhal-o, estar lá algum mez a ordenar-lhe a casa, ou esquadrinhar familia que lh'o recebesse e tratasse. Fernando, já sciente do que era vida de estudante, dissuadiu a mãe do seu proposito, e prometteu regular-se de modo que nem o desaconchego o molestasse, nem seus paes se arrependessem de o deixarem ir entregue a si mesmo.

Fernando tomou casa em Coimbra, e viveu sósinho, e arredado de todo o concurso de academicos. Esta soledade não era de genio nem gosto. Embora tivesse elle dito que se honraria de confessar cujo filho era, manda a minha fidelidade de historiador asseverar, que o moço se esquivava dos condiscipulos folgasãos para forrar-se á contrafeita honra de se apregoar filho d'um sapateiro.

Poucos dias depois de sua estada em Coimbra, organisou-se[33] o batalhão academico para ter parte na guerra da restauração. Fernando Gomes alistou-se sem licença de seu pae. A bandeira hasteada era a da liberdade. As doutrinas proclamadas eram as da egualdade. O filho do artista sympathisava com a causa ventilada desde 1820. Ouvira desde creança citar os egregios nomes de Ferreira Borges e Fernandes Thomaz, arvores frondosas de civilisação, regadas com o sangue de Gomes Freire, e de outros martyres iniciados da revolução. Execrava as forcas hasteadas no Porto, tres annos antes, e em Lisboa, para o supplicio dos academicos. Além de tudo, acorçoava-se do intimo rancor que votava a fidalgos, por ter sido victima dos escarneos d'elles nas aulas de Lisboa. Sobejava-lhe causa a justificar o enthusiasmo com que pediu uma espingarda, e, primeiro que nenhum, se fardou, e impacientou com a demora da primeira batalha.

Maria Luciana, quando tal soube, quiz ir em cata do filho: o marido antecipou-a no intento, e foi a Coimbra. O batalhão academico ia já marchando caminho do Porto. Francisco Lourenço retrocedeu para Lisboa, cogitando em mandar soccorros a Fernando.

Devemos conjecturar, sem receio de erro, que o desembarque do libertador no Mindello fôra saudado de todo o coração do amigo de Bocage. Francisco Lourenço, com quanto arredado da phalange dos poetas mortos no começo d'este seculo, embriagou-se no ambiente d'elles, e bebeu a sorvos a liberdade nos hymnos propheticos dos timidos evangelisadores, que a não viram, senão ao longe na inundação sanguinea da França, e nas victorias de Bonaparte,[34] que abrazavam allumiando ao mesmo tempo. Bocage devia de muitas vezes romper em apostrophes contra os frades que o viam amansado nos carceres da inquisição, e nos cubiculos conventuaes. Póde ser que o humilde amigo do poeta, em expansivas horas, merecesse a confidencia das amarguras que ennoitaram o melhor da vida do alquebrado espirito de Elmano. Se isto não bastasse a acrisolar o coração do homem do povo, quer-me parecer que o velho odio a José Agostinho de Macedo—energumeno panegyrista das forcas—bastaria a fazer d'elle um acerrimo malhado.

Em quanto a mim, Francisco Lourenço abençoara secretamente a deliberação de Fernando; e, se foi a Coimbra, o intento de tal ida por certo não era estorvar-lhe o ir onde o melhor da mocidade academica levava suas forças de alma, e o prestigio da intelligencia, com que muito se move e reanima a força material das massas. Póde ser que o artista levasse recheadas as algibeiras de peças para fornecer o moço, e preparal-o para as contingencias de emigração. Esta hypothese dá em certeza, quando vemos Francisco Lourenço empenhado com uma casa mercantil ingleza para fazer chegar ás mãos do filho avultada quantia, que o moço recebeu com alegres hymnos á liberdade ... e ao dinheiro tambem.

Fernando Gomes, em todos os recontros com o inimigo, deu provas de grande e imprudente coragem. Foi duas vezes ferido, e muitas vezes obrigado por disciplina a retirar do fogo. N'aquellas vertigens de bravura, que tanto pódem ser desprezo da vida, como culposa ambição de gloria, nenhuma consideração[35] de obediencia o retinha em seu posto. Lá, os camaradas, denominavam-n'o o pequeno diabo, termos que se conformavam com a pequenez e magreza do seu corpo. O imperador já o conhecia de vista e de nome: muito fôra preciso para realçar entre tantos bravos, saídos dos bancos escolares, e quasi todos a competirem em intrepidez com José Estevão de Magalhães, aquella vivida lampada que ainda hontem se apagou no altar da patria, se é que das cinzas d'elle a arvore da liberdade não tem sempre de haurir seiva para reflorescimentos novos.

Terminada a guerra nas provincias do norte, Fernando Gomes, condecorado com o habito da Torre e Espada, foi a Lisboa abraçar sua familia, e seguir as manobras do exercito que rebatia o assedio de Lisboa.

Depois da convenção de Evora-Monte, e de todo apaziguada a guerra civil, Fernando tornou para Coimbra a começar sua formatura em direito.

Proclamada a egualdade, extinctos os privilegios, rotos os diques que estancavam as prerogativas das raças nobres, e derramado o thesouro das coisas boas á vida por todos os homens indiscriminadamente, era de esperar que Fernando Gomes se désse por contente de ter nascido filho de um sapateiro, visto que o sapateiro ficava social e legalmente egualado ao titular. Tambem assim o esperava o, ha pouco, valente soldado das linhas do Porto, e, agora, desvelado e distinctissimo soldado nas lides da intelligencia!

Sublime engano!

Os seus mesmos camaradas, quer invejosos da[36] condecoração, quer da intelligencia, uns com outros celebravam sarcasticamente os triumphos do filho do mestre Francisco Lourenço. Os conterraneos diziam que as suas melhores botas as deviam ao engenho do sapateiro-poeta da calçada do Sacramento; os provincianos, pela maior parte oriundos de uns fidalgos de meia-tigela, como lá dizem uns dos outros, não apertavam, sem repugnancia, a mão de Fernando, nem se detinham a falar com elle, quando podiam ser vistos e censurados pelos academicos de Lisboa.

Isto acontecia um anno depois da restauração dos direitos do homem! Trinta annos já rodaram sobre esse facto de ridiculas convenções, e o filho do sapateiro é ainda hoje, e o mesmo será d'aqui a cem annos, um conviva chamado pela lei a sentar-se á mesa universal; mas a lei é uma tola: lá está o fiscal d'estas universaes communhões, que tranca os cancêllos do banquete, e diz ao filho do sapateiro o que já Horacio lhe dizia: ne sutor ultra crepidam; ou tractent fabrilia fabri, que tudo quer dizer: «não se admittem sapateiros cá.»

Fernando recalcava em flagellador silencio o seu pesar. Nem mesmo a sua mãe se abria. Quando esta lhe perguntava que tratamento recebia de seus condiscipulos, o academico respondia:

—Tratam-me bem.

—Os tempos mudaram—accrescentava o pae.

—Mudaram; os homens é que não—dizia Fernando; e de salto, aventava assumpto que désse córte na conversação penosa.

Proseguiu o moço em sua formatura, e concluiu-a[37] com ser premiado no ultimo anno, como em todos tinha sido.

Suppunha Francisco Lourenço que seu filho, notavel pelos serviços prestados á restauração, e por seus premios, fosse chamado ás funcções da republica, sem que as elle solicitasse. Decorreram mezes, sem que o correio de algum ministro batesse á porta de Francisco Lourenço a procurar da parte de seu amo o valente e intelligente bacharel.

O artista, de véras offendido de tamanha incuria, queixou-se d'isso ao filho. Fernando sorriu da boa fé e crença de seu pae, e disse-lhe que estava sinceramente arrependido de não ter renunciado ao estudo, quando chegou a descer á loja para sentar-se entre os officiaes.

Este arrependimento, sincero ou não, desgostou o pae, e toldou-lhe o rosto de tristeza inconsolavel.

Fernando foi ao Cartaxo, onde Francisco Lourenço tinha o melhor da sua livraria, comprada em nove annos com dispendiosa liberalidade de bibliómano. Como o local era triste, e a bibliotheca mui convidativa, o bacharel alli passou um anno, quasi só, raras vezes visitado por seus paes. Leu muito, leu tudo, e ardeu em desejos de ir vêr os locaes descriptos nos livros de viagens, e os monumentos perpetuados na historia. Virgilio e Dante deram-lhe o amor ás ruinas da Italia, Byron ás da Grecia, Lamartine, Chateaubriande e Volney ás do Oriente.

Pediu a seu pae moderados recursos para viajar dois ou tres annos. Francisco Lourenço, antes do filho lh'os pedir, quizera offerecer-lh'os, pesaroso de o ver assim solitario, e receioso d'algum funesto[38] resultado em tão contumaz estudo. Deixa-lo ir, porém, custava-lhe a vida; e a estremosa mãe, quando era consultada a tal respeito, dava o seu parecer com lagrimas.

Aos rogos de Fernando nenhumas razões empeceram: Maria Luciana transigiu com o assentimento do marido.

Os recursos pedidos eram muito inferiores á liberalidade com que o pae lhe estipulou o dispendio de dois annos, confiando-lhe, afóra isso, ordens de quantias indeterminadas. Tal confiança era bem cabida no moço, que durante a guerra e a formatura, cerceara, ainda de suas mesadas, economias com que comprava livros de recreio.

Sahiu Fernando por França em direitura á Italia. Deteve-se em Roma alguns mezes, que lhe pareceram rapidos e deleitosos. Ninguem o conhecia; a ninguem procurava. Sósinho, de ruina em ruina, vivia com o passado, e dava pouquissima de sua admiração ás grandezas do presente. Conversava com Ovidio em Sulmona, com Virgilio em Mantua, e com Horacio em Tibur. Deliciavam-no mais as ruinas do theatro de Marcellus, que as pompas do Vaticano. Qualquer estatua mutilada, extrahida das escavações dos esboroados templos dos idolos, lhe tomava mais espirito e contemplação que as obras primas de Miguel Angelo.

Encontrava portuguezes emigrados n'aquellas paragens, onde D. Miguel de Bragança procurava hospitalidade á sombra da theara pontifical. O principe de Portugal, com quanto convisinhasse do Vigario de Christo, que tem as chaves do céo, não sabemos[39] se teve fome: as chronicas contemporaneas dizem que sim. O successor de S. Pedro de certo lhe emprestaria as chaves do céo, se sua alteza quizesse para lá ir, as chaves porém, dos reaes celleiros e cofres, essas é que decerto lhe não emprestou. Os papas dão muito mais facilmente as ambrosias celestiaes, que umas sopas diarias aos principes proscriptos.

Não sei se Fernando Gomes pensava n'isto quando via o senhor D. Miguel de Bragança, e um emigrado portuguez lhe dizia que o rei não tivera com que comprar leite para o almoço d'aquelle dia. O emigrado que estas miudezas referia era um major Pacheco, que seguira o seu soberano, espontaneamente, desde o embarque até Roma. Casualmente o encontrara Fernando por lá escondido nos pardieiros da Roma dos Cezares, ou meditando nas virtudes de Tito, ou nas cruezas de Nero. Qualquer das meditações frisariam como o infante desterrado, que uns chamavam-lhe Tito, e Nero outros, posto que elle não fosse uma nem outra cousa: era apenas uma creança, quando rei; e um instrumento cego em mãos de togados infames, de prelados devassos, e de fidalgos estupidos. Desde que o raio, forjado ao fogo da civilisação e na bigorna mysteriosa do tempo, o fulminou a elle e aos seus, o filho de Bragança ficou sendo um desgraçado digno de respeito, de commiseração, e de real parentella mais compassiva e generosa.

Ora vejam em que ladeira eu ia escorregando agora: Ahi está o meu pobre romance guindado a umas alturas de transcendental politica, d'onde[40] se lhe não acudo, o coitado vinha abaixo estoirar n'alguma estrondosa parvoiçada! E tudo isto veio assim de seu natural. Por amor d'aquelle major Pacheco de Lobrigos que Fernando Gomes topou lá n'umas ruinas do Colyseu, ou cousa assim. E insisti n'este ponto, porque eu conheci em Villa Real, ahi por 1847, este major que voltara de Roma poucos mezes antes, e andava esmolando pelo Douro, com as suas barbas apostolicas, e grandes oculos de metal branco. Depois tornei a vel-o, estendido na estrada que conduz de Villa Real a Chaves, traspassado por duas espadas, e com a cabeça fendida até aos dentes. Fôra assim espedaçado pelas hostes do conde de Vinhaes, que mais acima mandou espingardear o general miguelista Mac-Donell, a cujas ordens andava o major Pacheco.

E como quer que este ancião assim espostejado, e sepultado no adro d'um presbyterio contiguo á estrada, deixasse uma filha linda e pura como um anjo, e esta filha enlouquecesse de dôr, escrevi eu n'estes tempos uma elegia em prosa muito dorida, a qual publiquei no Nacional do Porto. Em tão má hora dei a lume este testemunho de minha compaixão por os dois infelizes, que ambos jaziam mortos, e não sei qual d'elles mais cruelmente morto, em tão má hora digo, que se pude sair vivo das garras dos sicarios, mui pouco catholico sou em me não ter pesado a cera, e converter esta cera em cirios, e adornar com estes cirios o altar das liberdades patrias!

Agora é de mais![41]

 

IV

Transferiu-se Fernando Gomes á Grecia. Estanceou com o seu Homero e Byron de um a outro padrão das fabulosas façanhas, historiadas em Thucidides e Plutarcho. Viu Grecia degenerada escrava, e de todo perdida para a resurreição da sua dignidade. Não teve um suspiro que lhe désse em hemistichio de ode, ou decima de hymno, como toda a gente faz quando carpe um povo cancellado do mappa das nações livres. «Nações livres!—dizia entre si Fernando Gomes.—Eu sei cá o que são livres! nem homens livres! Liberdade de morrer de fome, em toda a parte a ha, graças a Deus e ao progresso! Poemas ao trabalho e ao artista, em toda a parte se escrevem, graças á metrificação e aos especuladores ociosos, que deificam o suor e as mãos calosas, sentando-se em espaldares flacidos, e vedando o accesso de seus gabinetes aos[42] operarios suados, calejados e sujos! Em toda a parte se mantem em nome da liberdade, e se chora em nome da servidão! Oh! meus pobres gregos, deixai-vos viver e morrer em vossa lethargia, que, se sacudires o torpôr de sobre o peito, virão depois uns próceres e éphoros, como os antigos, que vos hão de uns pôr o pé no peito desentorpecido, para subirem ao ponto donde vos atirem para baixo com muita injuria e muito desprezo da vossa ignobil raça de servos redimidos por elles!»

Assim devia falar comsigo e com os gregos o nosso viajante.

Mezes depois, temos Fernando em Paris, onde o senhorêa profundo fastio. Muito especial devia ser a compleição de moço de vinte e seis annos, que se anojava em Paris!

Passou á Allemanha, marinhou os pincaros da Suissa, e desceu outra vez á Italia, fatigado d'alma e corpo, triste como um desterrado, saudoso do seu Cartaxo, saudoso de paes e irmãs; porém sem forças com que aproar no rumo da patria.

Estava em Florença: restavam-lhe dois mezes dos dois annos concedidos. Releu Virgilio e Dante, Petrarcha e Tasso, os seus amigos de Italia, os seus guias e commensaes, as pallidas sombras que o seguiam até ás regiões convisinhas do sepulcro, ás tenebrosidades mysteriosas do sonho.

E hei de eu acreditar (diz a leitora que sabe o que vale) hei de eu acreditar que Fernando não encontrasse nos mais formosos pontos do globo as mais formosas creações do universo? Não viu elle uma ou cem mulheres... (cem senhoras, emendarei[43] eu, se vossa excellencia permitte) ou cem senhoras que o tirassem pelos cabellos d'essa escuridade de alma em que o exquisito moço se engolfava com as pataratas dos Virgilios e Dantes, e outros que taes pesadelos de um espirito que almeja diffundir-se e embeber-se nas delicias da poesia, tres vezes santa, do bello ideal!?

Respondo: tem vossa excellencia razão de estar assim pasmada do homem: eu tambem, com quanto já saiba a preceito o que é pão bolorento por dentro e cordas de viola por fóra, começava a espantar-me, justamente no ponto em que vossa excellencia fez favor de interromper-me.

Não ha duvida nenhuma: a cousa é muito para assombros. Bravia é a arvore que aos vinte e seis annos não floresce nem fructifica! Anasada alma deve ser essa que se dispende toda em extasis de livros velhos e paredes velhas, e historias revelhas, que nem recontadas por Michelet ou Castilho se podem aturar. Com um homem assim o romance era impossivel. Quem houvesse de descreve-lo, iria na piugada d'elle por esse mundo fóra, onde ha plinthos e peristylos derrocados, e confundi-lo-ia com algum troço de columna corynthia ou jonica. Fernando seria empolgado pela caterva empedernida dos antiquarios, que dariam com elle n'este museu de Lisboa, onde não ha nada que o valha, a não ser o titulo do edificio, que é museu de si mesmo.

Estava eu, pois, a despenhar-me com o meu estylo espalmado na voragem dos escrevedores malditos da paciencia humana, quando, n'estes apontamentos[44] que me dirigem, encontro o capitulo intitulado: primeira e ultima paixão de fernando gomes.

Primeira e ultima! exclamei. Não gosto d'isto! Com uma só paixão hei de eu encher duzentas paginas! Uma só paixão, n'estes nossos dias, em que vinte e quatro horas bastam para o prologo e o epilogo da tragedia, se é tragica a paixão!

Comecei a lêr desanimado; cobrei esperanças no segundo capitulo; ao terceiro obrigar-me-ia, sendo preciso, por escriptura, a escrever dois volumes; ao quarto fechei o manuscripto, e coordenei os apontamentos pelo theor seguinte:

Demorava em Florença uma familia portugueza, expatriada por affecta á realeza absoluta. Compunha-se esta familia de pae e duas filhas. O emigrado era um ex-desembargador do paço, ministro da Alçada, que assignara o accordão de pena ultima comminada aos academicos de Coimbra que, em 18 de março de 1828, mataram, no Cartaxinho, os lentes Matheus de Sousa Coutinho, Jeronymo Joaquim de Figueiredo, e feriram outros que, no dizer do accordão, iam beijar a mão ao serenissimo senhor infante regente pela sua feliz chegada a estes reinos.

Bartholo de Briteiros se chamava o realista. Uma das meninas era Eugenia, e a outra Paulina. Em quanto á linhagem, estude quem quizer a origem dos Briteiros, que ha de encontra-la desde logo que as aguas do diluvio universal se recolheram ao centro do globo, e consentiram que os casaes contidos na arca procreassem os Briteiros e outras familias do mesmo tamanho genealogico. No que toca a riqueza,[45] dizia-se que Bartholo possuia, em cada provincia de Portugal, duas, e tres e mais quintas: o que eu não averiguei por me parecer desnecessario.

O emigrado vivia regaladamente na Praça do Dome, o mais vistoso local de Florença, servido de muitos creados, em palacio exornado de primosas alfaias e baixella. O vassallo de D. Miguel de Bragança pompeava faustos de rei, em quanto seu senhor, o tão chorado principe dos seus amigos, mendigava em Roma. Este contraste offerece um lado de muita philosophia, que eu me dispenso de explanar por ter muito amor a quem me lê, e me não lerá, se eu me entro a enredar em camisa de onze varas... (Cá em Portugal já se não diz varas: é metros: camisa de quinze metros e vinte e cinco centimetros, corresponde a isso; por causa da metromania não se ha de perder o anexim que é expressivo).

Escreve Méry a respeito de Florença: «Não me espanta que proscriptos e exilados, violentamente arrancados aos costumes de suas patrias, se lancem nos braços d'aquella Florença, que é mãe commum dos que padecem, e para todos se desentranha em palavras consoladoras...» E n'outro relanço das suas Noites de Italia: «Entende-se facilmente que homens e mulheres de alto porte, condemnados a exularem, pelo infortunio d'esta epocha tão atormentada, confluam a Florença de todos os pontos da Europa. O exilio aqui é menos penoso: não será paradoxo termos em conta de exilados todos os que vivem longe d'aquella cidade.»

Bartholo de Briteiros, guiado pelo instincto, e[46] não pelos viajantes—que o magistrado não lia viajantes—deu comsigo na formosa Toscana.

Estanceavam por lá, em 1834, polacos proscriptos e muitos refugiados nobres da França, cujos exforços se mallograram na Vendéa. O palacio Orlandini, onde residia o principe de Monfort, irmão mais novo do imperador Napoleão, era o receptaculo de todos os proscriptos illustres, em nascimentos, artes e sciencias.

Bartholo de Briteiros, tinha a illustração triplicada da fortuna. Era notorio que elle mobilara faustosamente um palacio campestre em Poggi Bonzi, e d'alli saia de passeio, em graciosa berlinda, com suas filhas, a Val d'Arno, á Poggia Imperiale, e a quantos pontos convergia a nobreza toscana.

Isto lhe dera renome e accesso aos palacios Orlandini, Ricchardi, Strozzino.

A formosura das filhas contribuia não pouco para a consideração que o pae gosava. Eram duas gemmas inestimaveis que sobredouravam a hypothetica riqueza do fidalgo portuguez. A mais nova era Paulina; quem perguntava porém qual das duas fosse a mais velha? Cada uma estava n'aquelle desabotoar de florescencia, e irradiação de graças, que seriam delicias da vida humana, se cada mulher bella assim, ao tocar os dezesete annos, alli ficasse, inamovivel, indestructivel, perpetua imagem do anjo, dominadora do tempo, e assim de gala, para entrar com todo o viço de sua formosura, e esplendor de encantos, em corpo e alma, na gloria do seu Creador.

A mãe d'estas duas meninas morrera aos vinte annos,[47] quando, em Lisboa, reinava como primeira em belleza. Os dois seraphins, que deixara no berço, conforme iam crescendo, recebiam do céo os dons soberanos que sua mãe levara. Aos quatorze d'uma, e quinze annos d'outra, dizia-se que a mãe não fôra mais linda que ellas.

O desembargador desvelara-se medianamente na educação litteraria das filhas. Era elle homem de poucas lettras, e muito dado aos ocios de uma certa ignorancia, que é o supremo bem d'este mundo pelas muitas e boas horas de lerda pachorra em que a alma se embala no regaço d'ella. Briteiros sabia de jurisprudencia o necessario para convencer-se do pouquissimo que necessitava saber um magistrado palaciano, bemquisto para as alçadas, e braço inflexivel para hastear patibulos. Chamado sempre para mordomar n'estes festins de cannibaes, o amigo do throno e do altar via em si um homem dos antigos tempos, e gloriava-se. A juizo d'elle, os homens dos tempos antigos, eram os romanos, que condemnavam á morte os filhos, se o bom regimen da patria o requeria. Não cuidem, porém, que o austero Bartholo de Briteiros frouxamente acariciava as filhas, ou as affastava de si como cousas incompativeis da gravidade do seu funccionalismo e meditações. O contrario, de todo em todo. Brincava com ellas; com uma em cada braço, em quanto meninas até aos nove annos, andava de sala em sala, e assim recebia as mais circumspectas visitas. A orçarem por senhoras, nem assim as desquitava da obrigação de brincarem com elle: escondia-se nas dobras dos reposteiros, e queria que o andassem[48] procurando. Muitas vezes saía d'estes brinquedos para assignar ao lavrar o accordão de uma sentença de forca, muito firme de pulso, e convicto da sua fidelidade aos principios, á moralisação dos povos, á ordem publica, e á justiça, filha primogenita de Jesus Christo.

N'aquelle dia em que o exercito libertador assomou em Almada, e o Telles Jordão foi espingardeado, Bartholo de Briteiros, ainda duvidoso do desesperado desenlace da causa que elle julgava vencida por parte de seu rei, enfardelou á pressa o mais valioso de sua casa, ensacou muito cabedal em moeda que tinha herdado de avós, prescreveu ordens aos seus mordomos e caseiros das provincias, e embarcou em navio inglez, ancorado no Tejo, com as duas meninas palidas de susto.

Horas depois, saía barra fóra, quando já em Lisboa repicavam os sinos á fuga do duque do Cadaval, e ao approximar-se o duque da Terceira. A esse tempo estalavam apedrejadas todas as vidraças do palacio de Bartholo de Briteiros, ás Amoreiras, e a populaça, a brava e briosa gentalha, apossava-se, por direito de conquista, da mobilia do desembargador, e repartia, a soccos fraternaes, o espolio do miguelista.[49]

 

V

Estava Fernando Gomes em Florença, conforme o seu costume em toda a parte, sequestrado de toda a convivencia, visitando antiguidades, lendo outras, e como que mumificando-se a si proprio entre tantas velharias.

Alguem disse a Fernando que o hospedeiro principe de Monfort mostrava aos seus visitadores a espada que Napoleão floreara na batalha de Marengo. Posto que o nosso portuguez presasse muito mais contemplar a lança de Leonidas ou o punhal de Bruto, não quiz perder o lanço de ver o sabre oriental do maior capitão do mundo, depois de Alexandre, e Cesar, dizia elle.

O princepe recebeu-o no gabinete, onde estava escrevendo as suas Memorias: mostrou-lhe a espada, facultou-lhe o exame dos tropheus d'armas, recolhidos n'um armario envidraçado; e bem assim[50] as chaves de ouro da cidade de Breslaw, quaes o imperador lh'as dera, congratulando-o pela conquista d'aquella cidade.

Fernando, incitado a fallar pelo tom familiar do erudito principe, deu de seu saber muito boa conta sobre pontos de historia antiga, romana e grega, monumentos, batalhas, sciencias, e tudo quanto mereceria ser archivado em volumes grossos de soporiferas academias. O ex-rei de Westphalia deleitou-se em ouvi-lo, não sabendo ainda se era expatriado da Vandêa o cavalheiro que tão correctamente fallava lingua franceza.

Fallou de si Fernando em breves termos, dizendo-se portuguez, soldado da liberdade, o infimo dos seus fautores em Portugal. Accrescentou logo que deixara a liberdade do seu paiz, e saíra a procura-la n'outros pontos do mundo, a fim de compara-la com a que deixara na sua terra, rachitica, derrengada e aleijadinha.

Gostou o principe da grave sombra com que o douto moço mofava da liberdade dos portuguezes, (gente malquista sempre dos Bonapartes) e prolongou a palestra até horas de jantar. Fernando despediu-se já fatigado da convivencia: o filho do artista dava pouco pela gloria de conversar fito a fito com um ex-monarcha, irmão do heroe de Austerlitz, das Pyramides e de Friedland.

Dias decorridos, Fernando foi convidado, em nome do principe de Monfort, a passar a noite no palacio Orlandini. Cogitou o moço no mais urbano modo de esquivar-se ás pesadas honras de tão luzida sociedade. A educação acanhara-o; e os dissabores,[51] suggeridos por causa de seu nascimento, eram-lhe um constante espinho a impellirem-no para longe de ajuntamentos. Assustava-o de mais o receio de encontrar portuguezes nos salões do principe, e ter de responder-lhe ás naturaes perguntas entre conterraneos que se encontram em paiz estrangeiro. Precisamente quereriam saber o seu nome, o nome de seu pae, as suas relações na patria, as mil coisas que se presumem sabidas de homens que viajam e se relacionam com principes. Todos estes barrancos lhe empeciam o caminho do palacio Orlandini, e nenhum expediente lhe suggeriram com que delicadamente recusasse o convite. Sacrificou-se ao dever de quem tinha sido tão affavelmente tratado por personagem assim venerada nos prestigios da magestade, a magestade dos heroismos, mais imponente que a do sceptro hereditario.

Antes da sua entrada no palacio, chegara Bartholo de Briteiros com as bellas meninas. Em quanto as duas portuguezas levadas pelas damas se gosavam da frescura da noite nos jardins, que muitas vezes serviam de salões, Jeronymo Bonaparte conversou com Briteiros largamente ácerca do moço portuguez que muito o encantara com a sua vasta erudição, e perguntou ao hospede se conhecia Fernando Gomes. O fidalgo franziu a testa, e disse:

—Não sei dizer a vossa alteza quem seja Fernando Gomes. Os Gomes em Portugal não sei quem sejam. Antigamente houveram os de bom toque; mas de D. João I para cá não acho menção d'elles nas chronicas. É appellido obscurecido, ou se perdeu.[52]

—Póde ser que o seu patricio achasse o Gomes perdido!...—disse o principe com ar de riso.—O que eu sei é que o portuguez Fernando Gomes sabe muito, e entretem com assumptos, aborrecidos quando a gente os lê nos livros, ou nos monumentos. Gostei muito d'elle, e estimarei que a minha estima agrade ao seu patricio.

Pouco depois foi annunciado Fernando Gomes, e logo conduzido á sala em que já estavam as damas da primeira jerarchia toscana; e, entre tantas e tão perigrinas, as nossas angelicaes portuguezas, honrando mais a terra de Camões, que quantos diplomatas nos andam lá por fóra engrandecendo.

Bartholo de Briteiros fitou os olhos no portuguez, e lá entre si disse: «Não conheço: isto é homem ordinario.»

—Tem aqui um patricio—disse o principe a Fernando.—É emigrado, e pae das duas meninas, que o senhor além vê, que parecem madonas. Ditosas revoluções as que obrigam a sair do seu ninho as formosuras que Deus faz para que todo o mundo as veja! O senhor de Briteiros é um pae ditoso, que se revê nos seus dois cherubins, dignos de Florença mais que de Lisboa. Os modelos que Raphael e Ticiano adivinharam, justo é que vivam em Italia, que é o céo das artes e das maravilhas. Não conhecia o senhor de Briteiros?

—Não, senhor—respondeu Fernando.

—De onde é o cavalheiro?—perguntou Bartholo.

—Sou de Lisboa.

—Talvez que, se me disser o nome de seu pae, eu possa conhecer a sua familia.[53]

—Vossa excellencia não conhece de certo o nome de meu pae. Sou filho de um homem do povo.

—De onde saem os reis do genio—ajuntou Jeronymo Bonaparte.

Bartholo fez um gesto insignificativo com a cabeça, e disse, passados minutos:

—Veio de Portugal ha muito tempo?

—Ha vinte e tres mezes.

—Como estão as cousas por lá? Quem governa a canalha?

—Governa-se ella, presumo eu—disse Fernando.

O principe sorriu e murmurou:

—A resposta é um livro completo. A canalha governa-se a si em Portugal...

—Em Roma no reinado dos Cezares e no Baixo Imperio, e em toda a parte onde as nacionalidades se dissolvem—accrescentou Fernando.

—Diz muito bem!—acudiu Briteiros—Portugal está em dissolução. O senhor é necessariamente realista!

—Não, senhor. Fui soldado nas linhas do Porto. Pugnei a favor da liberdade, synonimo de humanidade. Servi-me a mim, servindo as classes abatidas pelo privilegio. Se me enganei, a culpa não foi minha.

—Mas enganou-se...—atalhou Bartholo com má cara—A canalha é que reina.

—Mas com gravata, luva branca, espada, chapeu de plumas, e arminhos—ajuntou Fernando Gomes.

—E isso é bom?—redarguiu o fidalgo.

—É bom como lição, como experiencia...

—E depois? quando se quizerem emendar, era uma vez Portugal...[54]

—Seremos hespanhoes, inglezes, ou turcos, mas com juizo—disse Fernando.

—Ahi está o patriotismo dos malhados—exclamou Briteiros.

—Basta de politica—interveio o principe de Monfort, a quem destoara a violencia da ultima phrase do ex-ministro da Alçada.

Fernando ficou pensativo a um canto do salão, meditando no appellido Briteiros. Sabia de cór os nomes dos signatarios do accordão que enforcou os academicos. Não lhe era extranho o feio aspecto d'aquelle homem. Devia ser elle: ouvira em Lisboa dizer que o mais façanhudo dos algozes vivia em Florença, com grande luxo, e segura posse de seus bens na patria. Odiou-o; não poude mais fital-o em rosto. Pensava em sair da sala, quando Jeronymo Bonaparte lhe disse:

—Venha ver as suas lindas patricias, que desejam conhecer o portuguez... Mas tome tento em não argumentar com o pae. O senhor de Briteiros é contumaz inimigo do povo e da liberdade. Cá entre os meus hospedes francezes é conhecido por Luiz XI. O homem é um apologista das gaiolas de ferro para uso das avesinhas que cantam a liberdade. Detesta Lamartine, que escreveu contra a pena de morte, e defende que a arvore da liberdade deve ser cortada, torada, serrada e afeiçoada á maneira de forcas. Tem de bom que salga as suas theses com muita inepcia: gente emigrada não póde desprezar estes perrexis do riso, por isso o senhor de Briteiros é muito procurado. Agora vamos ver que duas flores saíram d'aquelle bravio matagal.[55]

Approximou-se o principe de Eugenia e Paulina.

—Aqui está o seu patricio, minhas senhoras—disse elle, indicando a Fernando uma cadeira—conversem; espaireçam saudades da sua terra.

Retirou-se o apresentante, deixando o filho de Francisco Lourenço penosamente enleiado.

—Está ha muito em Florença?—perguntou Eugenia.

—Ha dois mezes, minha senhora.

—Lisboa é mais linda, não é?

—Lisboa é a patria; mas Florença é a perola do mundo—disse Fernando.—Não vi na Grecia vestigios de lá ter havido uma Florença; e, com tudo, a Grecia era a colmeia dos mais doces favos do mundo antigo. Aqui me parece que vejo resurgidas as delicias da Roma imperial, os jardins de Lucullo, os marmores jorrando espadanas de crystal, as thermas de Antonio, os...

Reteve-se Fernando. Reparou que o estavam escutando duas meninas, que, no ar do semblante, pareciam escutar idioma desconhecido. Que sabiam ellas de Lucullo e Antonio, as florinhas dos anjos, que da vida e mundo apenas conheciam o espaço perfumado de seus virginaes aromas? A ellas que se lhes dava de Florença, onde viviam tristes, com saudades do seu jardim de Lisboa, onde tinham cada uma seu canteiro, e em cada canteiro as plantas do seu amor? Seis annos havia que tinham deixado a patria, e ainda se diziam uma á outra: «Ainda veremos as nossas casinhas de murta? Já arrancariam as trepadeiras que se entrançavam em redor das janellas do[56] nosso quarto?» O que ellas queriam era ouvir falar de Portugal, de Lisboa, do seu palacio, e talvez das suas flôres. Conheceria Fernando as flôres que ellas tinham?

—Tem muitas saudades de Portugal?—disse Fernando.

—Sempre...—respondeu Paulina.

—E quem priva seu pae de voltar á patria?

—Elle não quer!—disse Eugenia—Tanto lhe temos pedido! Responde nos sempre que só volta a Portugal com o sr. D. Miguel... Quando irá o sr. D. Miguel, sabe?

—Não sei, minhas senhoras... Parece-me que o sr. D. Miguel não pensa em lá voltar...

—Não?!—atalhou Paulina—E o papá a dizer que sim!... Então nunca lá tornaremos!

—Tornam, tornam. A final o pae de vossas excellencias vae sem a companhia do sr. D. Miguel, e supponho até que elle póde viver tranquillo sem a protecção do principe. As pessoas, que serviram o partido do sr. D. Miguel, teem toda a segurança em Portugal; d'isto deve estar sobejamente informado o pae de vossa excellencia.

—Diga-lh'o, sim?—tornou Eugenia.

—Não me atrevo a aconselhal-o; porém, se o sr. Bartholo de Briteiros quizesse ouvir o meu parecer, dir-lhe-ia que o partido liberal só persegue os seus proprios amigos.

As meninas não entenderam a doble intenção d'estas ultimas palavras. Fernando, em virtude do nenhum uso que tinha de trato com senhoras, compunha sempre as suas phrases em estylo sentencioso,[57] como se as estivesse palestrando com philosophos ou politicos.

A mim, comtudo, o que mais me espanta é a facilidade com que Fernando Gomes dizia aquellas coisas, mais ou menos convinhaveis ás pessoas com quem falava! Não o insandeceram duas mulheres que eram lindas a capricho de Deus! Poder estar assim um mortal, razoando em termos communs, diante de espiritos para quem se fez a linguagem mellica do madrigal, a poesia, como ella é no Oriente, e como os hebreus a saberiam lêr no cantico dos canticos! Pois não tinha elle olhos, á mingua de coração! Acaso o temperamento lymphatico póde tanto que as imagens objectivas se não espelhem na retina, e o coração não tome conta dos filtros que os olhos lhe côam como arames abrazeados de electricidade?!

Eu sei cá!...

Fernando, passado um quarto de hora, saiu do lado das filhas de Bartholo de Briteiros, e desceu ao gabinete do principe, onde sua alteza estava fumando e tratando assumptos litterarios com artistas, poetas, e eruditos de differentes paizes.

O principe chamou-o á sua beira, e segredou-lhe:

—Pois fugiu-lhes?! Não o entretiveram as patricias? Já sei o que foi: as pequenas não sabiam nada de Roma e Grecia... Mas lindas de véras, não? Qual lhe parece mais moldada pelos velhos typos da sua predilecta Grecia?—disse Jeronymo Bonaparte com jovialissimo rosto.

—São formosas como portuguezas—respondeu Fernando Gomes—mas em Londres seriam mediocremente[58] graciosas. Os typos gregos eram menos correctos; todavia a fórma antiga, como a estatuaria a perpetuou, exprime os estupendos lances das tragedias que não se adivinham nas physionomias aperfeiçoadas pela lima das gerações. As cabeças de marmore parece que ainda fremem cheias de vulcões. O busto das Aspazias, Corinnas, Faustinas e Cleopatras dardejam fogo d'aquelles pedaços de Carrara e Paros. A mulher viril da esplendida antiguidade, conforme a civilisação a veiu entronando atravez dos seculos, mais e mais se foi amollentando em feminilidades. Ganhava em prestigio o que perdia em realeza de forças. A mulher esculpturada em Roma e Grecia, ainda amante e amada, incutia pavor aos seus sacerdotes; a mulher dos nossos tempos é uma creança que se quer acariciada e bajulada como se as graças da infancia lhe aquilatasse o merecimento.

—Parece-me porém—interrompeu o principe de Monfort—que as vantagens são a favor da mulher comtemporanea, da mulher mulher. Que entende o cavalheiro?... As suas patricias, a meu vêr, são perfeitas mulheres para se amarem sem inveja de gregas e romanas...

—Certamente.

—E saiba que teem sido pretendidas de grandes senhores da França, da Polonia, e da Italia. E o avarento pae não as cede ás mais remontadas stirpes nem aos mais abastados concorrentes. Fidalgo diz elle que o é dos mais antigos das Hespanhas; e, como o senhor Fernando sabe, o Creador ordenou, quando fez ou refez o globo, que a Hespanha[59] ficasse sendo um estanque de fidalgos retemperados por sangue ostrogôdo, alano e suevo, sangue barbaro, que teve quatro mil annos a sua nobreza escondida nas florestas do norte... Advirto-o, meu amigo, d'esta avareza do senhor de Briteiros, que não vá succeder apaixonar-se o senhor por alguma das suas patricias!... Eu ficaria com eterno remorso de o ter apresentado, se o visse ámanhã a braços com um amor funesto!...

Fernando Gomes sorriu-se das graciosidades do principe, e saiu, pouco depois, do baile.

No restante d'aquella noite não viu Grecia nem Roma. Por sobre os vastos destroços, que compunham as necropolis da sua memoria, adejava um cherubim em nuvens de perfumes, era tudo primavera com seus devaneios; flôres e mocidade e verdura em tudo: de tudo tirava esperanças que lhe chamavam a alma ao futuro. O passado, então, pareceu-lhe melancholico: a poesia dos imperios pulverisados avultou-lhe como horrenda soledade; e o sol do dia seguinte encontrou-o ainda buscando no esplendor das suas visões o cherubim, que era, em todo o rigor da fidelidade, a imagem de Paulina Briteiros.[60]

 

VI

Tinha expirado o prazo da viagem, estipulado por Fernando, e aceite por seu pae. No penultimo mez dos dois annos, recebeu o moço carta de Francisco Lourenço, instando por sua ida antes de concluido os dois annos, se possivel fosse. O artista dizia assim em sua carta:

 

«Está pactuado o casamento de tuas irmãs.

«Gracinda casa com um official de secretaria, rapaz de bom proceder, e familia honrada. Genoveva, não menos feliz, vae unir-se a um capitão de mar e guerra, homem já entrado na edade, mas muito estimavel, e muito do agrado d'ella. O prazer de nós todos seria que assistisses a esta festa, e enxugasses as lagrimas de teus velhos paes, quando as duas meninas, na mesma hora, se apartarem de nós! A estas dôres chama o mundo festas. O apartar-me[62] de meus filhos quer o mundo que eu o festeje, como se approximasse mais de minha alma! Que tristeza será a d'esta casa se tu aqui não estiveres, filho! Que direi eu ás lagrimas de tua mãe, e ella ás minhas!... É preciso que nos ampares a ambos: aos teus braços é que ambos pediremos força para acceitar com resignação esta dôr obrigatoria, pela qual alguns paes recebem parabens! Não me detenho a pedir-te que venhas. Surda estaria a tua alma se não ouvisses os dois velhos que te estremecem...»


Eu podia escrever muitas paginas soberbas de hyperboles, umas minhas, e outras copiadas, para dizer quanto Fernando amava Paulina; porém, n'essas muitas paginas, seria tudo pouco para dizer tanto como n'esta linha: Fernando leu a carta de seu pae, e não sahiu de Florença. Isto vai sem ponto de admiração, porque eu, em materia d'amor, estou como Horacio a respeito de tudo mais: nihil mirari. Maiores desatinos que o de Fernando Gomes reclamam indulgencia das almas bem formadas, almas que não sejam raio de luz sem calor n'uma pouca de lama, ou humano barro, que dispara no mesmo.

Fernando mentiu a seu pae: disse que estava enfermo de febres, apanhadas em Roma nas lagôas pontinas. E mentiu sem vergonha de si mesmo! A celebrada honra de Epaminondas é a fabula mais paradoxal da antiguidade. Amasse elle uma Paulina, e estivesse em Florença, em Florença que, no dizer do author de André Chénier, «é como a Circe que maneata os forasteiros de invisiveis liames, e[63] lhes dá continuada festa de musica, paisagens, perfumes, pompas e mulheres, a fim de incutir-lhes o esquecimento do seu paiz!...»

Fernando fugiu ás musicas e aos perfumes da magica cidade. O seu amor era taciturno e solitario, como um luto de saudade inconsolavel. Nascera em rebentações de fogo como as lavaredas da Sicilia. Estava debaixo do céo italiano; incubou-se d'aquelle fogo, bebeu a peçonha da immensa mansenilha, que braceja serpentes de mortal amor por todos aquelles remansos fataes de Genova, Piza, Veneza e Napoles. O céo esperara-o n'aquelle ponto para lhe emborcar d'um jorro todo o amor, que lá em cima é glorificação, e cá em baixo inferno. As flôres de sua alma desabrolharam das mil côres da esperança, e no viço de primeiras; mas logo amarelleceram. O formidavel «impossivel!» bateu-lhe na cabeça e peito, para que a razão e o coração morressem a um tempo. A razão morreu para não reagir. O coração vivia com centenares de cabeças como a hydra. O coração é a salamandra de seus proprios incendios; lacera-se, como o pelicano; de cada golpeada tira golfos de sangue, e n'este sangue medram esperanças, cada dia mais infernadas. Este é o amor maldito dos que amam, como amava Fernando a creatura divinisada por todos, isempta de todos, vigiada pelos olhos coruscantes do velho, que tinha coração de pae, com ferocidades de rei das selvas, velador dos seus leonculos.

Seria este imaginar impossiveis uma hallucinação do nosso homem? A gente mais sisuda e mais desbaratada em lidar com o mundo não lhe acontece[64] tantas vezes fazer pé atraz, diante de travancos que uma borboleta transmonta a brincar por entre arbustos floridos? N'este artigo de mulheres, quantas vezes se nos figuram castellos roqueiros umas sobrancerias que lá ao pé se alhanam como relvados macios, planos, chãos, e todos desentranhados em boninas, que se estão como offerecendo ás solicitas abelhas, e até a zangãos damninhos!

Ora vamos ver se Fernando cae das alturas por onde se anda após do cherubim, e vem cá baixo á estrada coimbran, ao amor rameraneiro, de theor e modo que o estylo possa assingelar-se o necessario para ser bem entendido e estimado. Fuja todo o romancista de entender com personagens que trazem a cabeça de telhas acima: a nossa linguagem lusitana é pouco para exorbitancias taes. Os francezes dizem tudo o que querem, e até o que não ha, nem tem ideia correspondente. Os allemães tambem. Cá entre nós, boa gente do velho Portugal, gente que é toda vulgo nas paixões quotidianas, quem quizer remedar extrangeiros nublando os ares com fumaças de idealismo, despega em tolice tamanha, que não será assombroso fecharem-se-lhe as portas da academia real das sciencias, ou negar-se-lhe venera da ordem de S. Thiago da Espada! Não póde ir mais longe o menos preço dos parvos.

Paulina via todos os dias Fernando na piazza di Dome, sobre a qual se abriam as janellas dos seus aposentos. Chamava logo a irmã, clamando pressurosa:

—Vem vêr o nosso patricio, Eugenia!

Assentavam os cotovellos no peitoril do balcão[65] de marmore, e alli se quedavam como duas rolas, a contemplar o portuguez, que as cortejara, e parecia te-las logo esquecido. Não ousava elle fita-las segunda vez! Remirava-as por entre os grupos: e o espaço aereo d'entre quatro cabeças era a suprema ambição do moço, a entre-aberta do céo nas visões de um santo anachoreta.

Algumas noites as filhas de Bartholo de Briteiros viram Fernando no palacio Orlandini.

—Que terá elle que nos não procura?!—dizia Paulina a sua irmã—Mas repara que não dá preferencia a ninguem!

—É tão triste aquelle homem! Serão assim todos em Portugal?—dizia Eugenia.

—Faz-me pena aquella tristeza! acudiu Paulina.

N'outra noite a compassiva filha do fidalgo disse á irmã:

—Chamemo-lo, sim? não parecerá mal?

—Não; pois que mal é chamarmos o nosso patricio?

Eugenia fez signal a um francez, que não era principe, nem duque, nem se quer especieiro rico: era um pintor, um amigo querido de Bonaparte.

—Senhor Leopoldo Roberto—disse ella—conhece aquelle portuguez que está falando com a princeza Carlota?

—Fernando?... Conheço-o desde que elle chegou a Florença—respondeu o palido mancebo.—Achei-o um desgraçado.

—Desgraçado?!—atalhou Paulina.—Que infortunios são os d'elle?[66]

—Os extremos: os do amor sem esperança—respondeu o pintor.

Paulina encontrou os olhos de sua irmã, que pareciam dizer-lhe: «ouves?»

Leopoldo Roberto esperou novas perguntas das meninas. Passados minutos, aventurou-se o artista a perguntar:

—Pois não conheciam o seu patricio?

—Foi-nos apresentado pelo principe de Monfort—disse Eugenia—mas dos seus infortunios não sabiamos.

—É de Florença a senhora que elle ama?—perguntou Paulina.

—É de Portugal.

—E elle está em Italia?!—accrescentou Eugenia—porque não vae então para Portugal?

—Andará a viajar para conhecer se ella o ama, e sente a ausencia—disse Paulina.

—A dama está em Florença. A formosa Paulina conhece-a.

—Eu!...

—Sim, minha senhora. Digo-lhe o grande amor de Fernando, e peço-lhe que o salve.

O pintor ia retirar: Paulina exclamou:

—Venha cá... explique-me esse mysterio... Eu conheço a senhora portugueza que Fernando ama?!

—Os anjos de innocencia nem mesmo tem o coração que adivinha?—replicou Leopoldo—Hei de eu por força dizer-lhe que Fernando queria morrer sem que a imprevista Paulina soubesse que o matava?!

As meninas não proferiram um monosyllabo.[67] Leopoldo, o ascetico amante de Carlota Napoleão, approximou-se de Fernando, que falava com a princeza. Levava nos olhos uma alegria desusada. Carlota mudou de local, e o pintor disse a Fernando:

—Quebrei o encanto. Paulina sabe que a amas. É bom que estas mulheres se glorifiquem com saberem os nomes das victimas. Morrer obscuramente!... morrer ignorado da mulher por quem diluimos a vida em lagrimas de sangue! Isso não! é preciso abrir larga fenda no peito, arrancar fóra o coração, e mostrar-lh'o. Então sim! ao menos servimos á gloria da mulher que se amou. Ella, se não póde dizer «amei-o,» diz «matei-o!» e póde ser que o diga com piedade; venha, pois, essa piedade posthuma, que deve ser regalo do cadaver! Que maior serviço posso eu fazer-te, amigo?

Fernando apertou convulsamente a mão de Leopoldo, saiu aos jardins a dilatar o peito, a desdobrar da alegria que vos commove como os assaltos do medo. O pintor não o seguiu, dizendo:

—Vae só, que eu não tenho alegria nem lagrimas que esconder. Recorda-te sempre de mim: propiciei-te o idolo em cujas aras era desconhecido holocausto. Agora pódes acabar, que cumpristes a tua missão. A minha ainda está imperfeita.

Para que o leitor me não tome como cousa de destemperada imaginativa este Leopoldo Roberto, pintor francez, amante de Carlota Napoleão, peço-lhe que abra um livro de Eugenio Pelletan, o qual livro se chama Horas de Trabalho. Ahi, por algures, achará em resumo, n'aquella linguagem diamantina do illustre professor de philosophia, a historia[68] dos amores; e, logo na pagina seguinte, a historia do suicidio do pintor.

Hão de ver como elle atirou com o peito ás puas do despedaçador impossivel, e arquejou voluptuariamente n'aquellas agonias, sem esperança de sentir a mão da princeza enxugar-lhe o suor glacial. Reparem no quadro que elle aperfeiçoou na vespera do seu dia final. São scenas campezinas: obreiros que vão ás ceifas e voltam dos campos coroados de espigas. Oh! que formosissimas visões antecedem os paroxismos do talento! Que lucido agonisar o dos genios? Quem ha de crêr na mortalidade da alma, quando ella assim se rejubila ao pé do golfão em que o corpo se despenha como pedaço de materia postulosa e tábida?

E não te salvou o anjo da arte, ó poeta das primaveras, dos arreboes, e dos crepusculos? Não tinhas uma Galathea em cada uma das tuas camponezas? Não te palpitavam aquelles corações debaixo da palheta? Já sabias que a tua immortalidade estava á porta do seu templo, para abrir-t'o logo que a lousa te batesse em cheio sobre o craneo estalado pela bala?

Que princeza te valia uma inspiração das tuas noites desveladas!

Quantas rainhas de virtudes deixaste lá em baixo escondidas nas florestas que perpetuaste em teus quadros!

E não as amaste, como prodigo, e as déstes ao mundo, que t'as ama e as adora nas galerias, nos museus, nos empórios das summas maravilhas do bello![69]

Olha ahi por esses palacios de principes, na Florença, em que premeditaste morrer, olha ahi como as turbas se enlevam no teu genero immorredoiro!

E vê tu quantas princezas, como a tua Carlota Napoleão, desceram do solio ao exilio, do exilio á tumba, da tumba ao esquecimento; e os teus poemas ficam; e o teu espirito revive em céo e terra, e o homem pára diante da tua sombra, e deplora que uma princeza não subisse a ti para tu não desceres a procura-la no bojo negro do teu inferno, ou nas explendorosas serpes da chamma em que te abrasaste, ó crysalida d'um anjo![70]

 

VII

Queremos agora vêr como procede o portuguez.

A poesia do mysterio está aguada. Descerraram-se d'entre as nevoas as duas estrellas que devem approximar-se ou repellir-se. A constellação é mais de esperar, quando os prenuncios são d'esta ordem.

Tenha-se em seus brios, Fernando Gomes! Portuguezes são pouco dados a beberem trago a trago uma prosaica morte em ideaes mysterios! Costumâmos abrir o coração e despejar á flux quanto lá ha. Se nos desdenham, a dignidade propria nos rehabilita. Se nos acolhem, damos pelo commum excellentes maridos, carinhosos paes, e preciosos jarretas na velhice.

Romances d'amor, que desandam em morte de tuberculos moraes, não pegam cá. Isto é terra de Hespanha e o céo de Italia, como diz o mais poeta dos portuguezes, o dulcissimo Castilho. Ama-se como[72] na Italia, e entendia-se como em Hespanha. Quem quer saber o que é amar em Italia, leia Byron em Veneza, e Henry Beile em todos os seus romances, e peculiarmente na Physiologia do amor. Eu gosto de indicar as fontes limpas, para que me não attribuam aguas sujas, nem acoimem o romance de hoje em dia de pêco e ôco de conhecimentos uteis.

Ora vamos lá ao conto, que está a meada a desencadilhar-se.

Fernando Gomes venceu o seu pejo, e voltou dos jardins ao salão. Um francez, desconhecido d'elle, perguntou-lhe se era o portuguez Fernando.

—Sou o portuguez Fernando—disse o moço.

—As suas patricias encarregaram-me de perguntar a Leopoldo Roberto se o senhor sahira; Leopoldo Roberto não sei onde está: porém, como encontro o senhor, creio que lhe dou prazer communicando-lhe directamente os cuidados das senhoras de Briteiros.

Fernando agradeceu affectuosamente a urbanidade do francez, e convisinhou das meninas, a tempo que chegava Bartholo.

—Patricio e amigo—disse este a Fernando—não fuja da gente. Amigos, amigos, politica á parte.

—Eu não fujo de vossa excellencia—disse o moço côr de rosa, quanto rosas se alastram em rosto de homem trigueiro.

—Pois o senhor sabe—tornou Bartholo—que está um portuguez em Florença, portuguez dos bons tempos, e não o procura?!

—Vossa excellencia até hoje não me deu bastante afouteza para solicitar tamanha honra.[73]

—Vá quando quizer. As minhas portas estão francas a quantos portuguezes, realistas ou não realistas, quizerem visitar um portuguez que honrou sua patria!—Ora o senhor, que saíu ha dois annos de Lisboa, ha de dizer-me se lá viu meninas mais galantes do que as minhas filhas!

Fernando córou outra vez, e tartamudeou; as meninas sorriram; e o pae insistiu na pergunta com certo desplante que não vae mal em velhos folgasãos, e até faz gosto ouvi-los n'estas liberdades, quando se fundam em muito amor ás filhas.

Fernando respondeu:

—Posto que eu conhecesse pouquissimo a sociedade de Lisboa, digo, sem receio de baixa lisonja, que as filhas de vossa excellencia seriam em Lisboa, como em toda a parte, bellezas distinctas.

—São a pintura da mãe—atalhou Bartholo.—Minha mulher foi a dama mais linda de Portugal. Deixou-me estes anjos para me ampararem. Se não fossem ellas, eu tinha-me atirado á cova que m'a roubou!

Assomaram subitamente lagrimas aos olhos do quinquagenario. Fernando hauriu prazer d'aquellas lagrimas. Porque? O moço queria presuppôr coração, sensibilidade e affectos brandos n'aquelle homem que lhe avultava de bronze á phantasia.

Passou Bartholo o lenço pelos olhos, e continuou:

—E ha por ahi quem se tenha lembrado de me privar das filhas!... Veem com a palavra «casamento» propôr afoitamente a um pae que rompa os laços de dezoito annos, que lance de si as suas[74] joias, a luz dos seus olhos, o ar do seu peito, e as deixe ir nos braços de uns libertinos fatigados, que as viram hontem pela primeira vez, e ámanhã lhes voltarão a face com sobranceria de maridos! É horrivel este systema de organisação social! A sociedade não se sustenta senão á custa d'estes roubos legaes feitos ao coração de um pae. E isto se chama manutenção da moral!... Deixa-la ser! As minhas filhas são a minha vida. Em quanto eu respirar, quero ve-las, quero te-las ao lado do meu leito de agonia. Custaram-me muito. Ficaram sem mãe muito tenrinhas. Criei-as eu nos meus braços: passava as noites com o ouvido collado á fechadura das alcovas onde dormiam as amas, para, assim que os anjinhos chorassem, acordar as mercenarias creadas. Isto fazia eu, senhor Fernando, quando negocios importantissimos de estado dependiam das minhas vigilias. Cresceram aquecidas pelo meu bafejo. Trouxe-as desde os seis annos na minha carruagem, quando ia aos tribunaes; não as confiava de ninguem. E queriam roubar-m'as agora que estão feitas, lindas, e ricas de felicidade e alegria para me retribuirem o muito que soffri por ellas!... Ainda bem que nenhuma me tem sido ingrata. Quando rejeito os pretendentes, adivinho-lhes a vontade d'ellas. O maximo prazer que me dão é serem dignas de illimitada confiança. Dizem que as vigio; tem-n'o dito o principe de Monfort; é falso, é calumnia; ellas ahi estão que o digam. São senhoras das suas acções: vão onde querem: ordenam seus passeios e visitas; e eu sigo-as com a docilidade e contentamento de uma creança. Ambas[75] ellas sabem que me matam no momento em que me deixarem; e por isso Florença, Londres, Paris tem sido para minhas filhas como desertos... Coitadinhas! querem ir para Portugal; teem saudades de não sei que ninharias pueris!... Deixae estar, filhas, lá iremos, lá iremos em dias mais ditosos. A justiça ha de vencer, porque sois dois anjos, e estaes da parte da justiça. Tendes muita vida para largas esperanças. Voltaremos a Portugal talvez mais cedo do que vós mesmas ambicionaes. O rei... Agora reparo que estou falando com um soldado mindeleiro...

—Não, senhor—atalhou Fernando—não posso gloriar-me da façanha do Mindello...

—Façanha!... Ora essa! que façanha?!

—Coragem, atrevimento, se vossa excellencia antes quer...

—Qual coragem!... O senhor então não sabe a historia contemporanea... Fale-me de traições, se quer que eu lhe explique a façanha do Mindello, que, espremida na mão imparcial d'um critico, dá de si um heroismo negativo, uma pagina de historia que, d'aqui a cincoenta annos, quando os taes sete mil e quinhentos tiverem morrido, será reduzida á data do desembarque d'um principe foragido do Brazil, e mais nada...

Fernando Gomes estava escarlate, e reteve-se a ponto de murmurar apenas:

—A historia não se faz assim. Vossa excellencia está brincando!...

—Brincando!... interrompeu o membro da Alçada.—Creia o que eu lhe digo, que tenho o segredo[76] da rebelião desde mil oitocentos e dez. O senhor nasceu hontem: não sabe nada. Pegou d'uma arma, quando naturalmente largou a espada de folha de flandres, e a pistola de matar moscas...

Paulina fitou os olhos em Fernando, e fez com elles e com os labios a mais ameigadora supplica de silencio e tolerancia. O condecorado das linhas do Porto sorriu-se, já perdida a côr, e fez um gesto mezureiro ás galhofas algum tanto colericas do fidalgo.

Bartholo cahiu de seus azedumes, quasi furioso, na razão e arrependimento do excesso. Com brandos termos e rosto prasenteiro se desculpou, promettendo nunca mais fallar em rei nem roque; e ajuntou:

—Sabe o que faz isto? É eu não ter portuguez com quem fale nas desgraças de Portugal, que tanto o são para gregos como para troianos. Estes emigrados francezes e polacos todos me falam dos negocios da sua terra, e ninguem sabe nada dos negocios da minha. Chamam-me hespanhol, e não querem acreditar que Portugal é uma nação que faz reis e desordens por sua conta e risco. Um francez a quem eu descrevi os tumultos de Portugal, desde que Napoleão lhe quiz lançar as garras, teve a petulancia de me dizer que qualquer poça d'agua suja, examinada com um microscopio, offerecia um rebuliço de vermes admiravel! Confesso-lhe, que se não tivesse duas filhas, havia de pôr a cara ao francez em apuros de ser examinada com o microscopio![77]

Fernando Gomes soffreando a indignação, sorriu-se. O seu primeiro assomo fôra pedir o nome do francez; reflectindo, porém, um momento, desculpou o atrevido com as objurgatorias ridiculas e talvez sanguinarias de Bartholo de Briteiros contra Napoleão, na propria casa de Jeronymo Bonaparte, o irmão predilecto do imperador.

O dialogo terminou assim, sem que as meninas proferissem palavra. Fernando afastou se com tristeza, recordando as vehementes expressões de Bartholo, com referencia ao casamento impossivel das filhas. Quem, d'animo frio, ouvisse o cioso pae de Paulina, daria pouco peso aos termos acres e despoticos do velho: o mais racional seria preparar a rebellião no espirito da filha, e vingar assim a sociedade ultrajada pelo egoismo d'um tyranno de dois corações, sedentos de mais amoraveis affectos, e mirando a elles por providencial influxo. Fernando, porém, com o seu verdadeiro, e, por isso mesmo, timorato amor, ponderou como invencivel a vontade do pae, e inconquistavel a vontade de Paulina.

Estava elle engolfado n'estes pensares, a distancia visivel das meninas. Eugenia chamou-o, e disse-lhe:

—O papá affligiu-o com as suas rabugices?

—Não, minha senhora: eu respeito a paixão do senhor Bartholo de Briteiros.

—Olhe que elle diz assim as coisas; mas não odeia ninguem—disse Paulina.—Quando vae a nossa casa? Estimavamos muito vel-o, para conversarmos muito da nossa terra... Vá ámanhã, sim?

—Com o maior prazer...—balbuciou Fernando.[78]

—Demora-se em Florença? tornou Paulina.

—Não sei dizer a vossa excellencia...

—Depende o demorar-se da vontade de sua familia?—perguntou Eugenia.

—Já desobedeci á vontade de meus paes. Eu devia estar em Lisboa a esta hora... Estou em Florença, e Deus sabe onde o meu destino me chama...

Se Leopoldo Roberto houvesse sido menos explicito com a filha de Bartholo de Briteiros, o tom em que Fernando respondeu á pergunta de Eugenia bastaria a manifestal-o. O silencio de ambas, e a meiga expressão de Paulina foi tambem para elle sobeja prova de que o tinham comprehendido. Os dois corações, n'aquelle instante, esposaram-se em mysteriosas delicias. Tinham-se revelado tudo no magnetico relance d'olhos que se trocaram. Aquellas almas ou se haviam mentido, ou identificado para sempre. Nenhum d'elles assim o pensava. Nós, os que estamos de fóra, é que sabemos decidir d'estes vinculos eternos, e raro nos illudimos. Pena é que cada amante não traga á sua beira um observador, bastante martellado n'estas psycologias, para desde logo caminhar em terreno seguro, com a sibylla ao lado.

[A]Fernando visitou o fidalgo. O acolhimento foi excellente. As meninas reviveram quantas recordações ainda tinham de Lisboa. O antigo desembargador, com insolita moderação, relatou ao hospede a chronica mysteriosa de Portugal desde 1810, a revolução de Gomes Freire de Andrade, a de 1820, e as alternativas sequentes das duas parcialidades. Teve momentos lucidos de consciencia politica, e de admiravel modestia. Pelos modos, se em vez do conde da Barca, ou do conde de Basto, elle fosse o ministro valído de D. João VI, ou de D. Miguel, Portugal voltaria á sua idade de ouro. Para se exaltar era justo que desluzisse a reputação dos privados de D. Carlota Joaquina, e então foi verdadeiro. Deu como decidido ter sido envenenado D. João VI. Contou minudenciosamente a morte do marquez de Loulé em Salvaterra: chamou-lhe golpe de estado: mas a historia ha de chamar-lhe golpe de cajado, porque o palaciano foi morto a pauladas. Deteve-se por descuido a fallar dos supplicios de Lisboa, Porto e Extremoz. Eram tudo, no seu modo de ver, sacrificios necessarios á manutenção da ordem. E argumentava com a historia. O protestantismo, dizia elle, não entrou em Portugal: graças ás fogueiras da inquisição. Em quanto a Europa ardia em guerras religiosas, Portugal gosava pacificamente da sua prosperidade, e da pureza do seu catholicismo. D'estas sublimes paragens da historia portugueza, descia o apologista do fogo depurativo da fé a provar a necessidade da pena de morte como cauterio ás chagas sociaes, antes que ellas contaminem os membros sãos. Etc.

Fernando ouvia-o silencioso. No entanto as meninas, entretidas com os taboleiros floridos dos seus jardins, diziam entre si:

—E tu és capaz de lhe dar o ramo, Paulina?

—Era... mas... que hei de eu dizer-lhe? Ensina-me Eugenia.

—Eu sei cá!... não lhe digas nada... Quando o pae não vir, offerece-lhe

as flores.

—O melhor era deitar o ramo no chapéo.

—Mas se elle o deixa ver ao papá?--redarguiu Eugenia.

—Deus nos livre! E que pensas tu?...

—De que, Paulina?

—Será verdade o que disse o Leopoldo Roberto?[B]

—Se elle te ama?

—Sim...

—Pois não vês?! Eu ia jurar que sim... E tu? tu é que devéras gostas d'elle...

—Penso que sim... E de que serve?!... Este amor que o pae nos tem, é uma prisão! Todas as meninas da nossa idade tão felizes!... e a gente n'esta melancholia, a dominar as inclinações... para o não desgostar! Os outros paes não se importam.[79] A gente vê tanta gente alegre com seus maridos! pois não vê?

—Pois sim; mas tu que queres, Paulina? O pae não nos deixa casar...

—É porque a gente não se tem importado...

—Estás enganada... O pae soube que eu gostava do conde de Rohan, e fingiu que não o sabia. Lembras-te? Uma vez disse-me que se eu amasse alguem em Florença, ia immediatamente comnosco para a Azia! Quando tu em Paris gostaste d'aquelle emigrado portuguez, não viste como elle sahiu logo para Londres?

—Depois, o Albuquerque foi ter a Londres—atalhou Paulina—e o pae foi logo para a Escossia.

—É verdade; e depois, diz a toda a gente que as grandes cidades são desertos para nós! Tu verás, Paulina... Se elle desconfiar que amas Fernando, leva-nos para a Russia...

—Isso leva!

—Então, vê lá se te sabes esconder; e, se fallares com o Fernando, diz-lhe que seja acautelado, senão...

—Como hei de eu falar-lhe?! Não vês que o papá já hoje me perguntou o que hontem estivemos a falar com elle na soirée do principe?... Já me lembrou escrever-lhe duas palavras...

—Ai! escrever-lhe!—atalhou Eugenia assustada.

—Pois então? isso que tem? é crime?

—E se o papá vem a saber que lhe escreveste?

—Quem lh'o ha de dizer?...

—Agora é que eu vejo que o amas seriamente, Paulina.[80]

—Amo: de ti não me escondo, Eugenia.

—Pois então, se queres, escreve-lhe.

—E que hei eu dizer-lhe? Eu nunca escrevi... Tu é que já sabes, minha Geni.

—Diz-lhe que não denuncie que te ama: senão que o papá nos tira logo de Florença.

—Só isso?!

—Pois que mais? Quando elle te escrever, então responderás...


Este dialogo, que parece estirado, correu em menos de quatro minutos. As meninas pediram ao pae licença para subirem do jardim a casa.

Ora aqui tem o leitor como conversam os anjos.

Quem, com ouvidos corporaes, ouvisse aquellas meninas, havia de suppor que estavam alli duas creaturas vulgares, como todas as que procedem de Eva, que dialogava com serpentes, e comia fructas da sciencia do mal! Cumpre saber que os anjos, em quanto perigrinam cá por estes pantanos do globo, fallam segundo ouvem fallar. Parece que ao descerem do céo, trazem, como regra, o anexim: cada terra com seu uso. A gente não acaba de capacitar-se d'isto![81]

 

VIII

Demoremos em Portugal algum espaço. A imaginação, que tem andado acorrentada aos apontamentos lá por essas terras lindas, mas alheias, já tem saudades das suas.

Cá estamos em Lisboa na calçada do Sacramento, em casa do artista Francisco Lourenço.

Estão os dois velhos á meza, onde o almoço lhes arrefece. Nenhum põe mão na comida. Encaram-se, e choram. Gracinda e Genoveva sahiram hontem para casa de seus maridos. Alli estão as cadeiras d'ellas, e sobre a meza as chavenas do almoço, e os guardanapos que lhes serviram dois dias antes.

—E sahiram sem lagrimas!—disse o artista, com a voz golpeada de soluços.

—Como eu saí de casa de meus paes para a tua...—respondeu a mulher.

—Mas que tristeza... que solidão esta, Maria!...[82] Nem as filhas! Nem agora, Fernando... de mais a mais enfermo, tão longe de nós! Que fins de vida os nossos, mulher! Como eu de longe via isto tão differente! Falava-te no prazer de acabarmos entre filhos e netos! vê tu! ninguem, ninguem comnosco!

—Tem paciencia, homem, tem paciencia! Fernando ha de vir logo que esteja bom. As pequenas prometteram passar o domingo comnosco. Para a primavera, vamos todos para o Cartaxo. Não te afflijas, Francisco. Isto, assim triste e sósinho, é hoje. A gente afaz-se a tudo.

—Afaz-se á ingratidão dos filhos? interrompeu o artista.

—Ingratidão! Não é ingratidão! As meninas casaram com o teu consentimento: não foram ingratas.

—Sairam sem verter uma lagrima.

—Pois que queres tu? O Evangelho não diz: «deixarás pae e mãe»? Deixaram pae e mãe por seus maridos. É lei da natureza. Que havemos nós fazer-lhe? Almoça, Francisquinho, almoça.

—E tu que fazes? porque não almoças?

—Que queres tu! Não posso. Tenho um nó na garganta... Tambem eu... E Fernando longe de nós, Maria!... Que te diz o coração?

—Que não tarda ahi. Talvez já venha a caminho. Se vier, não temos carta para a semana. Se estiver ainda doente, escreve-nos. Depois nos lastimaremos homem... Não tentemos a Deus.

A carta, não desejada, chegou. Fernando dizia estar ainda doente, e não poder assignalar o tempo[83] da sua volta. A linguagem era triste: dir-se-ia que a mentira lhe custava lagrimas. Os paes inferiram da tristeza a gravidade da doença. Francisco pensou em ir á Italia; porém, doia-lhe deixar sua mulher sósinha, doente de saudades, e mais lastimosa que elle. Esperou nova carta, contando os minutos por ancias, que o avelhentavam rapidamente. Ia, com sua mulher, buscar allivios a casa das filhas: encontrava uma e outra contentes, cuidando das suas occupações domesticas, cariciosas para os maridos, e levemente commovidas com as afflicções dos paes. A linguagem d'uma era a da outra:

—Não se inquietem, que o Fernando ha de vir. Póde ser que nem esteja doente. Anda por lá a divertir-se, e vem quando estiver farto.

Os velhos sahiam mais acabrunhados das frivolas consolações das filhas e genros.

Passadas semanas, chegou nova carta. Fernando, aconselhado pelos medicos, ia convalescer para Napoles; e, logo que estivesse restaurado, voltava para Portugal, immediatamente. Era o resumo da carta; mas o dizer era mais escuro; a espaços lhe tinham fugido uns desmentidos á falsidade. Taes como: Tenho desejado a morte: o futuro é negro, mais negro que a sepultura. E n'outro relanço: Eu nunca devia ter saido da nossa casa de campo. A má estrella não me acharia n'aquella obscuridade. E, finalmente, rematando a carta, dizia: Quem sabe se eu tornarei a ve-los, meu querido pae, e minha santa mãe?... Tenho presagios terriveis.... Era para muita pena vêr os dois velhos, cada um a seu lado, com o rosto entre as mãos, arrancando[84] soluços e exclamações, que ninguem consolava!

—Que mal fizemos nós a Deus!—clamava Francisco. Não fui eu sempre bom filho, bom marido, e bom pae? A quem fiz eu mal voluntario d'este mundo? Quem se queixa de mim do céo para me ver assim, e te ver ahi, pobre mulher, sem consolação de tuas filhas? Que desgraças são estas de Fernando!—proseguia o artista, relendo a carta.—Na doença pouco falla: nunca me disse que doença tinha... Tenho desejado a morte; o futuro é negro, mais negro que a sepultura!... Vê tu estas palavras, Maria! Eu não lhe tenho faltado com as ordens do dinheiro muito a tempo. Já lhe escrevi, admirando e louvando que elle gastasse muito menos do que esperava. Tem tudo o que quer de mim, e ha de ter, se Deus me não transtornar a vida, meios abundantes para viver com decencia... Então por que se chora elle? que má estrella o persegue? porque não ha de tornar a ver-nos?

—A mim...—atalhou Maria—certo é que não... Pouco tenho de vida, Francisco...; mas olha, meu filho, sabes tu o que me lembrou agora de repente?...

—Dize, Maria...

—Estará Fernando por lá apaixonado? Queres tu vêr que elle olhou para alguma senhora, que o traz em torturas, e o pobre rapaz não tem coração que o tire de lá para fóra?

—A fallar a verdade—disse Francisco—a idade das paixões é a d'elle... Póde ser que adivinhasses mulher, e oxalá que sim... Se a paixão fôr bôa, o resultado bom ha de ser; se fôr má ou[85] impropria d'elle, o tempo ha de cura-la... Mas isto não allivia a nossa dôr, Maria! Eu preciso de vêr Fernando; quero com a minha presença reduzi-lo aos seus deveres; não tenho meio de saber o que isto é, se não fôr em pessoa procura-lo. Deixas-me tu ir, mulher?

Maria deteve a resposta alguns segundos, expediu um gemido do fundo da alma, e murmurou:

—Vae, Francisco, vae, eu irei para casa de uma das filhas, se tu quizeres. Não te peço que me leves comtigo para te não dar que soffrer na viagem. Sinto-me muito doente. Vieram as afflicções juntas, e acabaram-me... Pois vae, e não te demores. Dize a Fernando que venha dar-me um abraço, que eu quero despedir-me d'elle; e, depois, que torne para onde estiver melhor.

Francisco Lourenço, sem mais preparativos que um passaporte e dinheiro, sahiu de Lisboa no primeiro navio que lhe deu passagem para porto de Italia.[86]

 

IX

A gente não acaba de capacitar-se d'isto, diz o final do capitulo VII, a proposito dos anjos, que em pousando pé no mundo, perdem memoria do céo, e aclimam-se logo n'estes pantanos, cujas exhalações pestilenciaes teimam poetas em dizer que sobem a glorificar o Creador!

Vamos ao essencial.

Paulina escreveu um bilhete assim:

«O papá é muito desconfiado. Tenha muita cautella, se a separação lhe é tão dolorosa como a mim. Não passeie na praça do Dome áquellas horas. O papá dorme sempre desde as quatro ás sete. Eu tenho uma creada de confiança a quem póde entregar as suas cartas. Adeus. Guarde com amor estas florinhas».

Dobrou em tira estreita o bilhete, e cingiu-o em volta das astes do ramo.[88]

Veja agora a leitora, mais superciliosa em pontos de dignidade e pudor senhoril, como os extremos se tocam! O que o despejo e desenvoltura teria feito, é a innocencia e candura que o faz n'este caso, n'estes amores começados com tal qual originalidade! Aposto que nenhuma dama, amestrada em galanterias, escriptora de resmas sobre resmas de cartas amorosas, se affoitaria a escrever aquellas linhas sem previamente ter recebido irrefragaveis provas escriptas e oraes de uma paixão homicida! Escrever a um homem sem ter sido a isso mil vezes solicitada! ennodoar assim o amiculo virginal! dar uma menina a saber que é capaz de compôr um periodo com sujeito, verbo e caso!

Eu não louvo meninas que escrevem bilhetes, e se sujeitam a uma analyse de regencia; porém, não sei sobre que argumentos hei de fundar a censura. Não censuro, nem louvo. A moral é uma questão de felicidade, segundo as regras do dever n'este mundo. Ora, a meu juizo, a moral tanto se lhe dá que Paulina escrevesse primeiro a Fernando, como Fernando a Paulina. Além de que, a desmoralisação é o escandalo. Escandalo n'este facto, se alguem o dá, sou eu, que conto a historia; todavia, provando eu a final que o acto em si era innocente e as consequencias não desfitaram do mais honesto scopo, é justo que me descoimem do escandalo, e agradeçam a historia.

Em quanto á felicidade, segundo as regras do dever, sou a dizer-lhes que não ha nada mais incerto que as regras do dever em materia de felicidade n'este mundo. Muita gente vae direito á rasão pela[89] estrada do paradoxo. Outra muita gente, a fugir da absurdidade, quebra as pernas no barranco da rasão. Uma menina escreve um bilhete a um homem: o mundo sabe-o, e vitupera-a. Outra menina faz-se vermelha de lacre ao receber a primeira carta de um homem: o mundo tem noticia d'um pudor tamanho, e cita o exemplo d'esta santa a quantas meninas o demonio tentador negaceia. Vae, depois, á primeira abre-se o coração de anjo, uns braços de esposo, e um horisonte de summa felicidade; e á segunda, que em solteira não ousara escrever duas linhas a furto de olhos maternos, depara-se-lhe um marido, que só viu n'ella o merecimento boçal de não saber calligraphicamente dizer que o amava! O primeiro pergunta á sua «Porque me escreveste» e ella responde-lhe:—Amava-te.—O segundo faz a mesma pergunta á sua; e ella, a pudica, a santa do pejo, ha de, por mais que tergiverse, responder-lhe: «Não te escrevi, porque me não merecias confiança». Uma exalta; a outra rebaixa; uma faz-se amar pelo duplo prestigio de sua innocencia; a outra deve entediar mais cedo que o costume, porque embaiu a gente, encampando como innocencia uma boa dóse de velhacaria. Ha muito d'isto; mas não é assim tudo. Já disse que regras fixas nenhumas ha. As meninas n'este ponto, consultem as damas virtuosas e illustradas. A mim não me chamem para coisa de tamanha responsabilidade. N'estes combates das paixões, os romancistas são como os escrevedores que os antigos cabos de guerra levavam comsigo para historiarem as carnificinas: ficam-se cá de longe alapados a verem o fogo, e relatam[90] ao universo os varios successos. Tornemos ao essencial.

Fernando Gomes viu entrar as meninas na sala em que Bartholo de Briteiros lhe andava mostrando alguns bustos de Bartholini, famigerado esculptor de Florença, que cinzelara tambem os bustos de Paulina e Eugenia. Estava o magistrado encarecendo com voluptuoso enthusiasmo a Bacchante de Bartholini, que elle vira na galeria do duque de Devonshire, e contava d'um francez que chegara a Florença, e pedira venia ao esculptor para dar um beijo na sua Bacchante, beijo ardente que parecera filtrar fogo nos beiços marmoreos da lasciva tentadora.

Bartholo mudou de tom, quando ouviu o ciciar de sedas. Entraram as meninas, e approximaram-se do piano. Eugenia tocou: Paulina cantou uma aria da Norma; e, durante o alegro, como o chapeu de Fernando estivesse sobre a cadeira contigua ao piano, e os olhos de Fernando n'ella, e os de Bartholo em uma estatua da Sabina de João de Bolonha, a menina lançou no chapeu o ramo.

Fernando viu, e sentou-se, sentou-se violentado por umas caimbras de pernas. Parece que devia ser unicamente abalado o coração; mas estou em crer que homem amante é todo e em tudo coração.

D'ahi a pouco, eram horas de jantar.

Fernando ouviu o chamamento d'um escudeiro agaloado. Tomou o chapeu: não lhe podiam as mãos convulsas com o thesouro. Aterrava-o a magnitude da sua felicidade. O quer que era de idiota lhe desmanchava as feições. Bartholo convidou-o a[91] jantar ceremoniosamente. Fernando balbuciou expressões confusas de reconhecimento, ajustando bem cerradas com o peito as abas do chapeu e saíu.

Não lhe cabia o coração no quarto da hospedaria. Queria o sol, o azul do céo, os pinhaes, os vinhedos, e as flôres das margens do Arno como testemunhas da sua alegria.

Áquella mesma hora é que os dois velhos, na calçada do Sacramento, se abraçavam, debulhados em lagrimas, e diziam:

—Que mal fizemos a Deus!

Que faces a vida tem!

Fernando leu um poema em cada lettra d'aquelle insignificante escripto. Insignificante, digo! Injustiça de critico litterario, que só vê a magestade do entendimento humano nas ramagens floridas do estylo! Como insignificante! Cada palavra d'aquelle singelo bilhete salvaria Leopoldo Roberto, Chatterton, e quantos por amor se tem lançado nos braços da morte! Dae a cada desventurado, em transes de suicidio, um bilhete assim, de mulher como aquella, e eu vos restituirei um homem com vida exhuberante, com alma recaldeada para todas as adversidades, com amor a Deus e aos homens, retemperado de juizo para se predispor aos gosos da velhice, e d'uma numerosa posteridade—destino humanal mais efficazmente averiguado e demonstrado.

Ao escurecer, Fernando voltou a Florença, e velou a noite inteira, escrevendo. Quando os primeiros raios do sol lhe douraram a ultima pagina da carta a Paulina, a cabeça do moço, calcinada pela[92] febre da felicidade, pendeu sobre a mesa, e immergiu em não melhores delicias de sonhos.

Despertaram-n'o para lhe entregarem uma das succesivas cartas que seu pae lhe estava sempre mandando, quer por navios que saíam de Lisboa para França, quer pelo correio de Hespanha.

Que melancholica transição a da leitura das suas paginas arrebatadas para este chão e monotono escrever do artista:

«Lemos a tua carta com muita magua. Bem me dizia o coração que tu não vinhas! A tua carta entristece mais esta separação de tuas irmãs. Se ao menos tivesses saude, Fernando! Mas doente, sem me dizeres que molestia soffres, isto augmenta a afflicção de teus velhos paes. Muito enfermo deves estar para, ainda com sacrificio, não accudires á nossa saudade! Deus te allivie, e encaminhe para nós.

«Vejo que essa cidade te prende mais que as outras; mas foi-te ingrata, filho. Tiveste saude em toda a parte, e só ahi adoeceste, dizendo-me tu que era um clima celestial o de Florença.

«Talvez te prendessem as memorias d'aquelle poeta que tu me lias, ha annos. Era Dante, se bem me lembro; mas eu queria que o teu coração de filho vencesse os prazeres do espirito; queria que os não esquecesses por amor da sciencia.

«Isto não são queixumes, Fernando, não são. É rabugice estar eu a ralhar comtigo porque a doença te impede de vir. O que eu te rogo, e mando, filho é que, assim que as forças t'o permittirem, venhas dar contentamento á tua boa mãe, que[93] está muito acabadinha, e mais depressa irá ao seu fim, se desconfiar que nos esqueceste...»

 

A carta continuava assim por longo espaço de papel, manchado de lagrimas.

Fernando não tinha a força de alma que caracterisa os homens grandes. Estamos vezados a dar carta de grandeza a uns vermes que não teem lagrimas, nem se deixam alquebrar de vulgares contingencias da vida. O filho do artista depôz a carta, e murmurou:

—Meus queridos paes! como eu vos sacrifico sem saber a que!... Pude enganar-vos para me gosar das primicias de alguma desgraça!

E, respondendo a esta carta, escreveu aquella em que transluzia a muita acerba previdencia do seu futuro, com phrases incongruentes, e por virtude da qual Francisco Lourenço se fizera no caminho de Napoles. [94]

 

X

O marquez de Tavira...

—Temos gente nova na historia?

—É verdade, leitor. Chegou agora mesmo de Roma e Florença o marquez de Tavira, aulico da côrte do proscripto, emigrado desde a convenção, do primeiro sangue de Portugal, sujeito de quarenta annos bem conservados, que parecem trinta, arruinado desde o seu setimo avô, mas ainda rico de umas riquezas inexauriveis de fidalgos portuguezes velhos—a gente de mais industria e artimanhas que eu conheço—não desfazendo nos fidalgos portuguezes novos, que estes, para se esquivarem á arguição de terem avós, avós arruinados, começam por não terem avós, e renegam os paes como logicos que são. Este periodo é de abafar!

O marquez de Tavira hospedou-se em casa de Bartholo de Briteiros. Não se viam desde 1832. Conheciam-se do paço, tratavam-se de tu, e tinham[96] rapaziadas communs, posto que Bartholo se lhe avantajasse em onze annos.

Mania fôra sempre de Briteiros aparentar-se com Cogominhos de Tavira. O marquez dizia que seu avô falava no parentesco dos Briteiros da casa de Robordochão; e, dito isto, regularmente pedia a Bartholo dinheiro, e Bartholo dava dinheiro ao primo marquez, que era expansivo, quando embriagado; e embriagado nas orgias de Queluz, Salvaterra e Alfeite, costumava rir de Bartholo de Robordochão, que dava metal amarello a troco de sangue azul.

O marquez, desde a convenção em que largara a espada de coronel de artilheria, vagueara por França e Belgica, destroçando o restante do patrimonio vendido pelo terço do valor. Depois fôra a Allemanha em cata do senhor D. Miguel de Bragança; e, como encontrasse pobre o real exilado, invocou o seu inquebrantavel espirito e aproou para Florença, onde o chamava a pascacice do primo Bartholo de Briteiros.

O acolhimento frizou com as melhores esperanças.

O marquez teve logo, e muito rogado a possui-los, bellos aposentos, dinheiro a granel, optima convivencia de duas meninas, que o festejavam com franqueza de primas, e as melhores relações de Florença.

Este incídente coincidiu com aquellas tristezas e alegrias de Fernando Gomes, na manhã em que fechava uma carta para Paulina, e abria outra de seu pae.[97]

Bartholo, sedento de noticias, enguliu quantas mirificas pêtas o marquez inventou, concernentes a restaurar D. Miguel no throno. No dizer do industrioso hospede, a Russia estava a disciplinar-se para talar a Europa, e passar o rôdo sobre as corôas usurpadas. O ex-ministro da Alçada, como bebesse mais alguns calices de champagne, no auge de sua alegria gosou-se de visões deliciosas, entre as quaes, se a conjectura me é fiel, avultavam uns triangulos do caes do Sodré, e umas lavaredas do Campo de Sant'Anna. Bartholo quiz pôr luminarias; mas o marquez dissuadiu-o d'uma virtude, que pareceria ridicula a olhos extranhos: a virtude das luminarias!

Passeava, ás seis horas da tarde d'aquelle dia, Fernando na praça do Dome. Paulina estava na janella. Passados momentos recolheu-se, e reappareceu com uma creada. Fernando comprehendeu, e avisinhou-se. Paulina apontou para o muro do jardim, e sahiu da janella.

Caminhou o moço, rente com a parede, e viu a creada debruçada no peitoril d'um caramanchão angular do jardim. Atirou-lhe a carta, e apanhou um bilhete que ella ao mesmo tempo deixara cahir, com uma saudade, flôr que, em parte alguma, tem o nome suave que portuguezes lhe dão.

Dizia o bilhete:

«Ámanhã vamos para Piza, onde temos de passar alguns dias. Vae comnosco o primo marquez de Tavira, que chegou hoje de Roma. Se não fosse o medo e os conselhos da mana Eugenia, pedia-lhe que se fizesse encontrado comnosco. Seria temeridade?[98] Eu lerei muitas vezes a sua carta, sempre que puder fugir á vigilancia de meu pae. São tres dias: paciencia! Mando-lhe uma flôr, que me faz lembrar as da nossa patria... Ainda nos veremos lá, Fernando?...»

Seria temeridade? Este modo de perguntar, esta duvida em que Paulina ficava, teve Fernando na perplexidade de minutos em que o coração usa demorar as suas decisões. A ida do marquez com ella para Piza, o primo marquez, tres dias de ausencia com o primo marquez... Este primo marquez foi quem deu um empurrão em Fernando, pela porta fóra de Florença, caminho de Piza. Seria temeridade? seria; mas o contrario, o ficar, o estar tres dias sem ve-la ainda mesmo que o primo marquez não fosse, isso é que seria pusillanimidade, juizo de mais, excesso que mulheres amantes consideram coração de menos.

Fernando viu Bartholo e o marquez, com as duas meninas, entrarem na caleche. O de Tavira sentou-se em frente de Paulina. O filho do artista esperou que a locomotiva passasse rente por elle, e fitou o fidalgo, emquanto Paulina ia de rosto voltado para ve-lo. Seria já o ciume que lhe afuzilava nos olhos? O primo convencional dos Briteiros era, como já disse, um rapaz de quarenta annos, um gentil rapaz, quanto se póde se-lo, com um fardo de quasi meio seculo no espinhaço. As barbas intensas, nitidas, e negras, os longos cabellos á Saint-Simon, o porte soberbo, as fórmas fidalgas e significativas de destreza e força, as faces ainda rosadas, eram predicados de assustarem um amante de compleição[99] doentia, poucas carnes, estatura mediana, ar e olhar timorato, e outros attributos de que os authores de novellas nunca revestem os personagens fataes, ditos leões.

Assim que a serpe do ciume o mordeu, não havia já consideração que lhe estorvasse o passo. Fernando partiu para Piza, curta jornada de algumas horas. Passou na piazza del Calvalieri, para esperar, n'aquelle centro da celebrada cidade, a passagem da familia. Em que monumentos iria elle procurar Paulina? Áquella hora, a illustre familia de Portugal estava em casa da opulenta ingleza Smith, cujo palacio nas margens do Arno abria seus salões na noite d'aquelle dia. A que parte iria o triste moço, mais triste na soledade da terra estranha, onde elle, como de si dizia Méry, se julgava, ao meio dia, o locatario unico de uma grande cidade? Foi ao Campo santo, vasto jazigo dos que morreram lidando na conquista do sepulcro de Jesus Christo. Seria aquelle o local mais ajustado á sua dôr? Os tristes sem consolação, como que refugiados da vida, se travam em mysticas confidencias com as cinzas dos que passaram seu dia chorando e, alli enxugaram as ultimas lagrimas no lençol humido da leiva.

Ao entrar no cemiterio, Fernando recordou as palavras d'um illustre viajante, que tambem lá fôra a recobrar-se de alentos para arcar com a desventura do seu curto dia:

«O Campo santo exhala poesia de morte, a poesia do nada, a poesia da immortalidade. Este é o verdadeiro cemiterio do christão: não se sente aqui[100] a constricção d'alma que nos causa o tumulo do homem, suave e religiosa melancholia vae comvosco por entre as quatro galerias funebres, e vos inspira pensares de morte sem pavor. Este torrão não se desentranha em ossadas, nem o verme corroe as carnes: é terra milagrosa que preserva os corpos do insulto das herpes. Envolve-se em magnifico lençol de relvados floridos; inquadra-se em puras e graciosas ogivas do marmore alvissimo: é terra de Jerusalem sobre as galerias travadas; os cadaveres dos velhos christãos de Piza estão aqui santificados; é o leito de descanço dos homens fortes, que morreram em Deus, com a espada á ilharga e os rins ciliciados. Quão suave é este ciciar da relva que ressoa ao longo das galerias! Cuidaes ouvir psalmodia entoada por sombras, hymno de sepulcros escripto em linguagem, que, só depois da morte conheceremos.»

Mas não era cemiterio remanso ao soffrimento do moço. Ancias de coração não as suavisa a philosophia da morte. Aquillo serve para os que, n'outro ponto, deixaram fechada a sepultura de suas esperanças.

Passou arrastado o dia, sem que Fernando encontrasse vestigios de Paulina. Na manhã do seguinte dirigiu-se á praça onde se ergue a famosa torre torta, que o leitor tem visto pintada, e que o marquez de Tavira queria ver, mais que tudo. De feito, estavam o curioso emigrado e Bartholo e as meninas ao pé da maravilha, quando Fernando assombrou n'um angulo da praça.

Foi Paulina quem primeiro o viu, e trocou olhares[101] de susto com Eugenia. Bartholo de Briteiros, que já muitas vezes admirara a inclinação mysteriosa da torre, estava mais attento nos palacios da praça, e, de relance, viu parado o portuguez.

—Aquelle não é o Fernando Gomes?!—disse elle ás filhas.

—Parece...—balbuciou Paulina.

—Quem?—disse o marquez.

—Aquelle patricio em que eu te falei, primo Tavira.

—Ah! o mindeleiro?—tornou o primo.

—Tal qual.

—Sempre lhe quero ver o bellicoso aspeito! Ainda não vi um dos sete mil e quinhentos roldões do Mindello—tornou o marquez, dando a saber que tinha sua tal qual instrucção do Carlos Magno.

Fernando, posto que tarde, simulou que não vira Bartholo, e foi indo lentamente seu caminho.

O fidalgo deixou as meninas com o marquez, e atravessou a praça, estugando o passo, para se avisinhar a distancia que elle o ouvisse chamar.

—Sr. Fernando! clamou Bartholo—patricio! vae tão meditabundo! Parece que receia que a torre venha abaixo?!

Fernando olhou com bem fingida surpreza, e retrocedeu a comprimentar o fidalgo.

—Então por aqui!—disse o pae de Paulina.—Acolá estão as meninas, e meu primo o marquez de Tavira, chegado hontem de Roma. Venha cá, se quer conhecer um dos primeiros fidalgos de Portugal.

—Com muito prazer irei comprimentar um primo de vossa excellencia—disse Fernando.[102]

—Aqui está o senhor Gomes—disse Bartholo ao fidalgo—filho de Lisboa, bacharel em direito, e bom rapaz, posto que mordeu muito cartucho nas linhas do Porto, na qualidade de soldado do batalhão academico, e é, aqui onde o vê, cavalleiro da torre e espada, valor, lealdade e merito!...

O sorriso, que envenenava estas palavras, queimou o sangue do filho do artista. Paulina tinha os olhos fitos n'elle, olhos de dôr e compuncção. Se Fernando os visse, daria graças a Deus pela angustia que lhe era premiada com a maviosa paixão d'elles.

O marquez gesticulou ligeiramente um cortejo de cabeça, e disse:

—Consta-me que em Portugal é toda a gente condecorada por façanhas das linhas do Porto!

—Toda a gente, não, senhor marquez—disse Fernando.—Ás linhas do Porto não foi toda a gente, mas todos quantos lá estiveram mereciam bem a condecoração de valor, lealdade e merito.

O legitimista desfranziu um riso de compassivo escarneo, e disse:

—Em quanto a valor, o general Povoas que o diga, se os valorosos o não querem dizer. Em quanto a lealdade, bem se sabe qual foi a lealdade dos bravos que apedrejaram com patacos D. Pedro no theatro, e mataram Agostinho José Freire nas ruas de Lisboa. Em quanto a merito, isso agora é uma questão de barriga: a barriga de cada um é que diz o merito de cada qual...

Fernando olhou de revez o marquez, e disse a Bartholo:[103]

—Vossa excellencia continúa a admirar a torre, e eu vou dar as voltas que preciso, antes de recolher-me a Florença.

O marquez ficou mais que muito corrido d'este ar de desprezo com que Fernando replicou aos seus dizeres, que elle imaginou não só irrespondiveis, mas capazes de atirar a terra com os creditos de uma politica. Bartholo tambem se desgostou do menos preço com que o quidam tratava seu primo, e não teve mão da sua zanga, exclamando:

—Então não tem resposta o que alli disse meu primo?!

—Não, senhor—disse Fernando Gomes.—Dá-me sua excellencia as suas ordens?

—Passe muito bem, senhor Gomes—disse Bartholo, chofrado.

Paulina e Eugenia corresponderam ao comprimento reverencioso de Fernando. Paulina sentia-se contente, soberba da dignidade d'aquelle moço; Eugenia, porém, doía-se da quebra de brios que soffrera o primo, temia que a ira do pae resultasse desgosto á irmã, e anteviu a impossibilidade de nunca mais os dois se approximarem, sem aberta declaração de guerra com o pae.

—Este sujeito—disse, azedado, o de Tavira—quem é lá na sua terra?

—Eu sei cá? É o senhor Fernando Gomes; tal m'o apresentou Jeronymo Bonaparte! Estes Bonapartes, que se fizeram reis mais depressa que os reis do theatro do Salitre e da rua dos Condes, impingem á gente com titulo de notabilidades quantos patavinas os visitam no desterro! Qualquer pintor,[104] esculptor, ou poeta, em casa do principe de Monfort é egual aos duques, e tem uma cadeira ao lado dos principes. Quem lá vae tem de apertar a mão ao pianista Sampieri, ao cantor Tachinardi, á cantora Degli-Antoni, ao poeta Méry, ao pintor Vernet, ao esculptor Bartolini, e ao senhor Fernando Gomes, que, no dizer do ex-rei de Westphalia, é um enorme sabio. Aqui tens tu, primo marquez, como eu conheci o senhor Gomes. Dei-lhe uma vez entrada em minha casa, porque me pareceu humilde o sujeito: agora descobri que elle tem seus fumos de orgulho!...

—Não se me dava de lhe abater a prôa!—atalhou o marquez.—Queria ver se estes valentões do Mindello sustentam a fama cá fóra das linhas...

Bartholo riu-se, e Paulina olhou em rosto o primo com visivel gesto de despeito.

—Porque?!—disse ella, com mal represada ira.

—Paulina!—murmurou-lhe Eugenia ao ouvido.

Bartholo não dera conta d'este incidente, e o marquez, quando ia esclarecer a significação do gesto extranho de sua prima, viu que ella voltava o rosto, e se encobria com as franjas da sombrinha.

—Querem ver que ella ama o tal sujeito?!—disse o marquez entre si, e differiu para mais ao diante a elucidação d'esta importante suspeita.

No dia seguinte a familia voltou para Florença.

Fernando já tinha ido.

Ás affrontosas palavras do marquez de sobra respondera o silencioso desprezo do filho do artista: não obstante, o tom injurioso alanceara-lhe [105] muito dentro o coração, por ter sido Paulina testemunha da zombaria.

Pensava elle que a filha do nobre devia ama-lo menos por ve-lo assim desdourado, e sem vingança egual ao affrontamento. É um inferno, na alma de quem ama, pensar assim![106]

 

XI

Ao cabo de tres semanas de hospedagem regalada, disse o marquez a Bartholo:

—Ora, primo e amigo, é tempo de continuar a minha missão, que interrompi por tres semanas. Bem sabes que a politica me não deixa ser das minhas vontades. Preciso de ir a Inglaterra em serviço do rei e da nossa causa. Tu, como rico em toda a parte do mundo, não queres participar dos trabalhos lentos da restauração: fazes bem, primo Briteiros: eu é que não posso libertar-me d'esta missão diplomatica. Espera-me o Saraiva em Londres, e o rei em Berlim, no espaço de quarenta dias. Aqui tens a razão da minha saída.

—Pois vae, primo—disse Bartholo—mas logo que te desempenhes d'essa missão, volta a viver comnosco em Florença.

—Não prometto.[108]

—Não promettes, marquez? Pois assim nos pagas a boa vontade com que te convido e o muito affecto das meninas, que te desejam comnosco?!

—Se ellas me desejam—tornou o primo com intencional sorriso—isso é que resta demonstrar, primo Bartholo...

—Pois que! duvidas?

—D'uma, duvido; da outra tenho quasi a evidencia que me deseja vêr pelas costas.

—Ora essa! qual d'ellas?

—Permitte que não vamos adiante n'esta penosa conversação, primo... Evitemos desgostos communs. Tanto soffrerias tu, como eu tenho soffrido...

—Que tens soffrido, marquez? Pois ainda agora m'o dizes!...—tornou Briteiros sinceramente inquieto.

—Devêra ter-t'o dito ha muitos dias, desde o segundo em que vi tua filha Paulina... basta.

—Homem! explica-te, se não eu obrigo-te a faze-lo por tua honra!

—Pois que assim o queres, sabe a verdade inteira, e reprehende-me se eu tiver procedido mais segundo os dictames do coração, que os da honra e parentesco. Eu amei tua filha Paulina com paixão. Se não t'o disse logo, foi porque me julguei superior a mim mesmo, e aos despotismos do amor. Muitas vezes em Portugal, em Paris, em Roma, em todas as capitaes da Europa, me julguei vencido por diversas mulheres que encontrei; e, logo depois de chorar a derrota, de repente me rehabilitava pelo esquecimento instantaneo e quasi prodigioso[109] da mulher que horas antes me acorrentava aos seus mais levianos caprichos. Cuidei que o mesmo me aconteceria com tua filha Paulina: aqui é que o meu orgulho pagou amargamente as suas passadas sobrancerias. Verdadeira e insanavel paixão me inspirou Paulina; e, para cumulo de desgraça e vingança d'outras, tua filha, bem longe de amar-me, convencido me deixou de me aborrecer. Primeiro imaginei que Paulina não podia ou não queria amar alguem: isto podia ser; porque ha mulheres sem coração, e ha outras que parecem ter quatro: com os homens dá-se o mesmo caso. Porém, primo Briteiros, a razão do desamor de tua filha era a mais natural do mundo; é por que tua filha amava e ama outro homem.

—O que?!—interrompeu iracundo o fidalgo.—Minha filha ama outro homem! Calumnia! A minha Paulina não ama ninguem; e hade ser tua mulher, se eu quizer que ella seja tua mulher. Entendes tu, marquez?

—Perfeitamente entendi, primo; mas eu é que sou incapaz de permittir violencias, e acceitar esposa violentada. Outrem me julgue tal; mas tu não, Bartholo, que conheces a nossa familia, e sabes que meus avós deram para casa dos reis suas irmãs, e receberam como esposas as filhas dos reis.

—Bem sei, bem sei que foram esses os costumes da nossa familia; mas por isso mesmo é preciso que eu obrigue a minha filha a manter-se na dignidade de seus avós. Quem é o homem que ella ama?

—Pergunta-lh'o tu, primo. Se ella não t'o disser,[110] consente que eu, por honra mesmo de nosso sangue, o não pronuncie.

—Que? pois ella ama algum mechanico? Responde por quem és, marquez! Depressa, que me sobe o sangue ao cerebro!

—Já te disse que ha grande deshonra em tal inclinação, primo... Não forces a minha repugnancia a revelar-te o que de mim mesmo eu quizera poder esconder.

Bartholo de Briteiros andava na sala, aos empurrões das furias, sacudindo vertiginosamente os braços, emquanto o marquez com a face entre as mãos, e os cotovellos encostados ás almofadas de uma ottomana lhe relanceava os olhos de infame penetração. Quando viu que era tempo, ergueu-se, tomou nos braços o pae de Paulina, e disse-lhe:

—Estou vivamente arrependido. Não devia ter dito nada. Era mais nobre esmagar-me no coração, e poupar o teu de pae, e pae como tu és, meu caro primo. Perdoa-me, e perdoa as fragilidades de tua filha. É um amor de creança que ella tem ao...

—Ao... quem?—exclamou Briteiros com uma grammatica desculpavel á sua angustia.

—Porque não hei de eu dizer-t'o, se o enlace mesmo de sangue me obriga a velar pela honra de tua familia, que tambem é minha! Tu nunca suspeitaste d'este Fernando Gomes?

—Fernando Gomes! pois tu crês que minha filha ama Fernandes Gomes?!

—Creio, sei-o, tenho a maxima certeza. Agora não ha que tergiversar. Cheguei ao ponto de me perder no teu conceito, se não adduzir provas. Paulina[111] vae ao caramanchão que está sobre o caminho, e d'alli fala a Fernando, ás horas em que tu dormes a sesta. Trocam-se cartas todos os dias. Estes factos são presenciados por quem os quer ver. Vi eu mesmo, depois que me avisaram. Reprehendi a prima Paulina, em termos de bom e zeloso parente e amigo. Tua filha respondeu-me com azedume, recommendando-me que me não intromettesse na vida alheia. Repliquei com as mais sagradas razões; dei-lhe como possivel, se não certo, ser Fernando algum miseravel dos que de repente se levantaram da lama de Portugal, e vieram no extrangeiro fazer luzir o ouro, que lhes seria vergonha na patria. Rebateu-me com o mais formal e mais descomposto desdem, que meus olhos nunca viram em menina com tal edade e educação, e de tal linhagem! N'esta altura da questão, entendi que o meu dever era deixal-a ao espirito tentador que a quer perder; todavia, mais sagrado dever me admoestou a que te avisasse, primo, para não tomar sobre mim a cumplicidade de alguma enorme desgraça, e mais enorme deshonra. Agora encarecidamente te rogo que te hajas com a cautela e prudencia que tão melindroso negocio requer.

—Que hei de eu fazer?!—bradou Bartholo.

—Sae com tuas filhas de Florença. Vamos para Londres. Eu irei adiante preparar-te aposentos. Lá, se o biltre a perseguir, eu lhe tornarei impossivel o accesso, e a possibilidade de a ver. Se outro passo deres, receio que seja o peor para te saíres dignamente da difficuldade. O ar com que tua filha me falou revela proposito de ferro, e resolução inabalavel.[112] Póde temer-te; mas obedecer-te não. Fia-te em mim, que eu sei o que são mulheres, primo. Finge que não sabes nada. Prepara com qualquer pretexto a tua viagem, e tu colherás depois os bons fructos da prudencia. Se, como creio, tua filha mudar de idéas em Londres, com o mais sincero coração te digo que serei ditoso fazendo-a marqueza de Tavira; mas, para que este enlace se possa fazer, é necessario que ella nunca desconfie que eu fui o denunciante d'este vergonhoso affecto. Convens n'isto, primo Bartholo?

—Convenho, marquez... Seja assim..

Acabava o pae de Paulina de proferir a ultima palavra, quando as duas meninas, pé ante pé, se afastavam ao longo do corredor que conduzia da sala, em que os dois dialogaram, para o interior da casa.

Paulina lançou-se no braços da irmã, e exclamou:

—Oh! que infame é aquelle homem! que infame!... Que hei de eu fazer, Eugenia? diz-m'o por compaixão da tua pobre Paulina!

—Que has de tu fazer, filha?... Eu sei!... Soffrer como eu soffri, quando o pae nos tirou de Paris...

—Isso é que não!—replicou Paulina—Não me deixo assim esmagar! Fernando ha de ir tambem para Londres. Vou escrever-lhe e contar-lhe tudo... se o não puder ver, terei a coragem de soffrer e esperar, com a certeza de que elle está tambem em Londres... Pois que pensas tu?... Eu não posso esquecel-o, assim como tu esqueceste o francez, Eugenia! É porque tu o não amavas; se o amasses, a desesperação te daria forças! Tenho-as; sinto-me[113] capaz de tudo!... O malvado!... á custa de que infamia elle queria fazer-me marqueza!...

—Eu logo te disse—atalhou Eugenia—que não fazias bem em falar com tanta soberba, quando elle te reprehendeu...

—Fiz muito bem! desenganei-o: está desenganado para sempre... Agora tudo que elle fizer são indignidades, e cada dia, e cada hora, hei de abominal-o mais.

Aqui tem a leitora bem significada Paulina n'este conhecido verso:

Ás vezes branca nuvem cospe um raio!

Quem diria que tamanhos vulcões de colera se escondiam no sereno peito da gentil creatura, que parecia talhada de molde para soffrer docilmente o martyrio! Ahi está o que faz o sol de Florença! Devem-se á Italia aquellas conflagrações! Em Portugal me quer parecer que Paulina não fosse aquillo. A minha espionagem de romancista nunca me alviçarou casos identicos de barreiras de Portugal a dentro. Por isso mesmo é que eu tenho de ir em cata dos meus personagens lá fora, para alternar, com lances de estremecer, as frias historias que tenho posto em livros de que ninguem se espanta, e que passam por as mais frias, insipidas, e inertes lucubrações do espirito humano. Esta agora, sim!

Paulina cortou o folego da imprecação para ir escrever a Fernando.

Poz em resumo o dialogo do pae com o marquez, e a resolução de ambos. Pedia-lhe que os seguisse[114] para Londres, e averiguasse onde se alojavam. Asseverava-lhe que, á custa de tudo, se haviam de ver em Londres; e terminava, com a mais candida desenvoltura que póde ter uma menina, dizendo que, extremos de perseguição, ella fugiria para elle, e seria sua esposa.

Na tarde d'este dia Bartholo de Briteiros deitou-se a dormir a sesta: assim lh'o impoz o cauteloso espião. Fernando já tinha em si a carta e a resposta. Appareceu na praça do Dome, e Paulina no caramanchão. Poucas expressões se trocaram depois que Fernando atirou a carta.

A resposta era qual a delicada menina podia mais ambicionar. O amante sentia-se menos desditoso do que ella se imaginava. Para elle a afflicção de Paulina era extrema prova de amor. Antes a queria assim contrariada, e acrisolada ao fogo da oppressão. Incutia-lhe animo e esperanças. Promettia, mediante o auxilio do ministro em Londres, espiar os menores passos do marquez e de Bartholo. Se a não acoroçoava a fugir de seu pae, antevia, como primeira hora de sua felicidade sem nuvem, aquella em que Paulina se confiasse á sua honra. Do marquez dizia apenas que era inferior ao seu nojo, e lamentava que os grandes fidalgos andassem a competir em aviltamento com a mais infima ralé.

O marquez, escondido n'uma loja da praça, presenciava os passos de Fernando. O homem, que tanto preleccionara acerca da prudencia, não teve mão de si. O demonio da pobreza espicaçava-o! Era o demonio da pobreza que prevalecia ás furias[115] do ciume. Saiu da loja, e veio ao meio da praça por onde Fernando caminhava com a altivez que dá a felicidade do coração.

Viu elle o marquez, e, a seu pesar, dardejou-lhe um olhar de desprezo, que parecia provocação. O neto de reis, se havia de ir ávante, e deixar o verme, parou, metteu as mãos nas algibeiras; e fez um tregeito de pernas, e assobiou umas toadas, que fariam as delicias de um faiante em pleno goso de seus tavernaes meneios.

Fernando sorriu-se, e caminhou.

—O senhor ri-se?—exclamou o marquez.

—Ri, sim, senhor—disse placidamente o filho de Francisco Lourenço.

—Que quer dizer o seu riso?!—replicou o fidalgo.

—Que vossa excellencia é uma pessoa irrisoria.

—Mas eu arranco-lhe os figados pela boca, bradou o marquez.

—Operação difficil!... tornou Fernando sorrindo.

—Julga-me da sua bitola, sô villão?

—Eu não sei como hei de julga-lo, senhor marquez, depois que o julguei tolo!

E approximou-se com magestosa serenidade. Fernando parecia crescer, nutrir, illuminar-se, e tornar-se mesmo grande aos olhos do convencionado de Evora-Monte.

—Tem de dar-me uma satisfação com armas! replicou o marquez. Joga alguma que não seja o arcabuz do cerco do Porto?

—Não senhor; não jogo armas.[116]

—Quer dizer que não se bate?

—Bato com todas.

—Tem padrinhos?

—Os dois primeiros homens que se encontrarem. O primeiro já eu vi.

—Quem? diga-o, para lhe enviar os meus.

—É um pintor: chama-se Leopoldo Roberto.

—Lá me quiz parecer! disse o marquez gargalhando uma risada secca.

—Que lhe quiz parecer a vossa excellencia?!

—Que os seus padrinhos haviam de ser pintores ou cousa que o valesse...

—A coarctada é miseravel, senhor marquez! vossa excellencia é um covarde, que não vale o desprezo do pintor.

O marquez de Tavira levou as mãos ás proprias respeitaveis barbas. Puchou as mechas a um lado e outro com tregeitos muito de incutir terror em almas fracas. Deteve-se um pouco n'esta operação minacissima, e tirou do peito alfim estas memorandas coisas:

—Villão seria eu se expozesse a minha vida ao revez de sujar-me com tal competidor! Precisamente o senhor é um aventureiro, que anda a farejar mulher dotada cá por paizes onde lhe não conhecem a suja betesga d'onde saiu. Lá na patria sabem-lhe o nome, ou ninguem lh'o sabe, é mais acertado dizer!... Convinha-lhe a filha de Bartholo de Briteiros? Que atrevimento de ambições o seu! Afinal, que espera colher d'esta aventura?... A correcção dada por um lacaio de meu primo!

—Se o lacaio tiver mais coragem do que vossa[117] excellencia, em cujos hombros assentaria cabalmente a farda.

—Miseravel!...—rugiu o marquez!

—Tolo!—replicou Fernando.

O primeiro voltou as costas; o filho do artista permaneceu no seu posto alguns minutos, encarando as duas meninas, que os viram approximar da praça, e esperavam, atribuladas, a infelicidade do encontro.[118]

 

XII

Decorridos dez dias, chegou a Napoles Francisco Lourenço. Aqui o trouxera a certeza anciosa de encontrar seu filho em convalescença, se é que Fernando o não enganára com o louvavel intento de o poupar a maiores afflicções. Durante a viagem para França, o artista entendeu que saíra precipitadamente de Lisboa, sem agenciar relações que o dirigissem a Napoles. Quem o guiaria n'uma grande cidade como aquella? Estaria o filho n'um hotel ou nos arrebaldes?

Para remediar semelhante imprevidencia, dirigiu-se, torcendo o seu itenerario, a Paris, e apresentou-se ao ministro portuguez, expondo o seu destino. O ministro deu-lhe carta para Napoles.

Poucas horas depois da chegada, Francisco Lourenço tinha a certeza de que seu filho saira de Napoles dois annos antes, e nunca mais ahi voltára, e[120] a certeza tambem de que o moço estava em Florença, havia quinze dias.

Saiu Francisco para Florença, cuidando que seu filho peorára, ou melhorára a ponto de dispensar a convalescença n'outros ares. Com as recommendações que levára de Napoles, soube em pouco tempo que Fernando embarcára em Genova com destino a Londres.

—A Londres!...—exclamou o velho.—Então é certo que meu filho me vae fugindo.

—É mais natural que o vá procurando—respondeu a pessoa a quem o artista ia de Florença recommendado.—Póde ser que seu filho fosse embarcar para Portugal em algum dos portos de Inglaterra. O certo é que, minutos depois da sua chegada a Londres, o senhor ha de saber onde seu filho está hospedado, se é que elle lá está. Entretanto as minhas informações dão que Fernando Gomes—continuou o chefe da policia de Florença—estava mais ou menos ligado com uma familia portugueza emigrada, cuja cabeça é Bartholo de Briteiros, residente n'esta cidade por espaço de dois annos e tantos mezes. Dizem mais que Fernando Gomes e um tal marquez de Tavira concorreram a amar uma filha do senhor de Briteiros, e por ciume se insultaram na praça do Dome.

—E meu filho—atalhou Francisco Lourenço com amargura—não esteve doente?!

—As minhas informações não me dizem que elle estivesse doente, e penso poder asseverar-lhe que seu filho gosou em Florença a melhor saude. Encontrei-o miudas vezes em casa de Jeronymo Bonaparte,[121] onde elle era muito estimado do principe. Comquanto não estivessemos relacionados, só de o ver devo crer que o senhor Fernando Gomes passasse bem, a julgar pelo seu aspecto não doentio, posto que pallido.

Munido de indicações e uma carta, Francisco foi esperar em Genova a sahida de um barco inglez para Falmouth.

Tão rapidamente quanto em Florença lhe prometteram esclarecimentos, recebeu-os em Londres, na repartição da policia, onde lhe deram um policeman que o guiou á rua, hotel, e numero do quarto em que assistia Fernando. O velho fez mentalmente o elogio da policia britannica.

Bateu Francisco Lourenço na porta indicada. Abriu-lh'a o filho.

—Entro com os braços abertos!—disse o velho convulsivo de jubilo.—Não te venho ralhar, filho!...

Fernando abraçou-o com fervor, e limpou-lhe as lagrimas copiosas.

—Minha mãe como está?—disse Fernando...

—Doente a deixei... Deus sabe como ella está... Acho-te bom, meu Fernando... Ainda bem!... Não cuides que eu antes queria achar-te doente... Perdôo-te a mentira, porque... antes assim... E agora?... Agora vens ver tua mãe?...

—Descance, meu pae—atalhou o enleiado moço.—Descance, e depois...

—Não póde ser depois, Fernando... Que faço eu aqui?! Não vim vêr Londres; vim procurar-te, vim chamar-te. Se me não seguires, que faço eu longe de tua mãe, que a esta hora mal sabe que[122] voltas tenho dado... Era melhor que me não dissesses que ias para Napoles: poupavas-me tanto desgosto e fadiga!... Bem vês que estou muito velho... Não me deixaste assim... Em tres annos ninguem envelhece tanto...

—Perdão, meu pae!—exclamou Fernando, apertando contra o seio as cans do velho lagrimoso.

—Tanto chorar, na minha edade, é sorte de poucos... Vejo tantos paes, com os meus annos, em socego, á espera da morte, rodeados de seus filhos, fartos e ricos do fructo dos trabalhos d'elles...

—Tem razão...—atalhou Fernando—mas esses são os paes que teem filhos menos desgraçados que eu! Eu queria contar-lhe a minha vida... uma só palavra a explica... é uma paixão, meu pae, que me deshonrou aos seus olhos; por amor d'uma mulher lhe menti, e me envileci em minha propria consciencia...

—Não estás deshonrado aos meus olhos, Fernando... Desgraçado é que me pareces, filho... Não me contes a tua vida, que a sei. Lá deixaste em Florença as tuas memorias... Isso mesmo por que m'o não disseste? Antes isso que o engano. Eu não me espantaria que deixasses pae e mãe por uma mulher. Tuas irmãs tinham sido criadas no regaço de tua mãe, e fizeram o mesmo... Deixaram-nos sósinhos. Mas poderás tu dizer-me que futuro é o teu? que tencionas fazer? Bartholo de Briteiros, esse mau homem, que tem uma historia escripta com sangue, foge-te com a filha para Londres. Que vens tu aqui fazer? Queres tirar-lh'a?

—Não, meu pae; quero vel-a, unicamente vel-a;[123] porque no dia em que perder a esperança de a tornar a vêr, hei de matar-me para esquecel-a...

Fernando escondeu o rosto no seio do pae, e exclamou:

—Deixe-me chorar, que são as primeiras lagrimas. Não houve coração algum que m'as recebesse...

E soluçava convulsivamente nos braços do velho, que o apertava ao peito com tremuras de compaixão e amor.

—Diz-me tu, filho...—tornou com muita brandura Francisco Lourenço—essa senhora despreza-te?

—Oh! não!... O desprezo seria a minha salvação—respondeu Fernando com vehemencia.—A desgraça é ella amar-me, e ser uma santa em dedicação e sacrificios. Por amor de mim foi tirada de Florença para Londres; e ha quinze dias que a cada instante a espero aqui... fugindo á crueza do pae, que quer casal-a...

—E tu has de acceitar uma filha fugida a seu pae?...—interrompeu o velho.—Vê se podes, á custa mesmo da vida, ser honrado, filho! Seja o pae um malvado, seja a filha uma santa, embora...; mas não te absolvas em tua consciencia, se consentires que essa menina fuja para ti.

—Mas o pae faz-me a injustiça de suppôr que eu não irei logo recebel-a como esposa? Não sabe que ella é...

—Sei que é rica... os Briteiros são muito ricos... Isso é que me queres dizer, Fernando?...

—Não, senhor; queria dizer-lhe que Paulina Briteiros[124] não é mulher que algum homem possa victimar, por mais infame que ser possa; ora eu, meu pae, amo-a com esta paixão que vê. O mundo não nos perdoaria a culpa de nos unirmos contra a vontade de seu pae?

—O mundo não vos deixaria unir sem grande perseguição, filho. Antes de alcançares o descanço de uma honrada lucta com a sociedade, serias muitas vezes infamado, esmagado e talvez vencido.

—Espere, meu pae!... cale-se!—exclamou de subito Fernando.—Estes passos são de mulher...

—Será ella, meu Deus!—disse Francisco Lourenço.

Fernando foi á porta, viu a criada confidente de Paulina. A moça assim que o viu debulhou-se em lagrimas, e balbuciou:

—A menina não pôde escrever-lhe... Está-se preparando para sair com o pae... Recebeu ordem de repente. Vai para um convento da Irlanda: foi o que elle lhe disse, a não querer ella casar com o maldito marquez. A senhora D. Paulina não verteu nem uma lagrima, e respondeu: «Irei para onde o pae quizer; não caso com o marquez, que é um villão». Que coragem a d'aquella menina! Depois fez-me um signal; e eu corri a participar-lhe isto. A senhora D. Eugenia manda-lhe pedir que, para salvar a irmã de morrer no convento, indo o senhor para fóra de Londres, talvez se conseguisse que o pae a deixasse ficar em casa, e manda-lhe dizer que o faça se tem amor á pobre menina.

—E porque não hade elle fazel-o?—atalhou Francisco Lourenço.—Diga vocemecê a sua ama que ao[125] lado de Fernando está seu pae, e que meu filho, por amor da senhora que soffre tanto, nos ha de obedecer a ambos.

—É impossivel!—exclamou Fernando allucinado por sua enorme angustia.—É impossivel desamparal-a no maior aperto da perseguição! Para que me quer meu pae em Portugal, se eu vou lá morrer?!... Que vil eu seria no conceito de Paulina, affastando-me na occasião em que ella mais precisa do meu conforto?... Diga á sr.ª D. Eugenia—proseguiu elle voltando-se para a criada—que eu não posso obedecer lhe, salvo se ella entende que a minha morte remedeia os desgostos de sua irmã. É de crer que sim; mas eu é que estou convencido que Paulina quer que eu viva.

Francisco Lourenço fitava o filho com os olhos embaciados de lagrimas, e não o contradisse.

A creada saíu com um bilhete d'oito linhas escriptas por Fernando.

Após breves instantes de silencio d'ambos, o filho disse serenamente:

—Meu bom pae, eu agradeço á Providencia poder n'esta hora falar com um homem a quem devo as primeiras luzes da minha intelligencia. Maior desgraça seria a minha, se meu pae não podesse comprender-me, indultar-me, e compadecer-se. Accuso-me de o ter enganado; era mais honroso dizer-lhe que tinha coração, mas eu cuidei que mentindo, sem medo de ser descoberto, salvava a irreverencia inseparavel de confidencias taes a um pae. O meu engano duplica o merecimento de ser perdoado. Conhece a minha situação, meu pae. Com[126] a alma despedaçada lhe digo que não sei como remedial-a. Quer que eu o siga? Seguirei: já vejo de todo e para sempre negra a minha vida... Seguirei; mas uma hora virá em que meu pae se lastime por ter imposto ao meu coração a sua respeitavel vontade. Se quer que eu viva e procure alguma saída d'este circulo de ferro, deixe-me seguir Paulina á Irlanda...

—Bem, filho—atalhou o velho contrafazendo placidez e seguridade de animo—Concedo o que desejas e precisas; mas escuta: os meus haveres são poucos; tuas irmãs casaram dotadas; tu pouco tens gastado comparativamente ao que eu antevia; mas assim mesmo excede o que devia ser teu dote. A officina dá pouco, porque a tenho desamparada. Desde que em Lisboa se estabeleceram sapateiros francezes, muita freguezia me deixou. Não me affligiu este desprezo do que é nosso, porque, bemdito seja Deus, contava com o pouco para muita felicidade. Eu estou reduzido a tres contos de réis, e os bens do Cartaxo, que outro tanto poderão valer. Acabado isto, irei pedir agasalho a uma tua irmã, e tua mãe a outra; e tu, que és formado, a todo o tempo conseguirás algum emprego que te alimente. O fim da nossa vida póde assim talhar-se, e Deus permittirá que não seja peor. Digo-te isto para que saibas com que pódes contar, Fernando. Lança as tuas contas; e, quando vires que tens consumido o que possuo, tem tu a generosa compaixão de não pedir mais. Eu comigo não posso contar para o trabalho. Estou com pouquissima vista; mais de uma vez n'estes ultimos annos me tem ameaçado[127] a cegueira. Corre tudo na loja por conta dos officiaes: uns roubam, outros desmazelam-se; ninguem tenho em que possa fiar-me. Aqui tens singelamente dito tudo. Agora sê o que poderes ser em favor d'essa senhora; mas não te deshonres por causa do amor. Eu creio que é falso o amor que leva o homem á indignidade.

Fernando, após breve pausa, respondeu:

—Eu sabia quaes eram os haveres de meu pae, quando saí de Lisboa. Viajei dois annos, gastando o menos que podia. Como o meu viver era só, e indifferente ás regalias das cidades em que passei, restringi as minhas despezas á sustentação parca, e ao vestido mais urgente. Assim mesmo gastei muito em proporção do que devia gastar. Pouco tem hoje meu pae para a sua subsistencia: não devo pedir-lhe um quinhão d'essas migalhas. Irei ensinar linguas na Irlanda: sei um pouco de todas as que se falam na Europa. Muitos emigrados portuguezes aqui viveram assim. A fome illude-se com pouco.

Francisco Lourenço abraçou o filho, e murmurou:

—Não quero, filho, não quero isso assim. Quando a necessidade te obrigar ao trabalho e á independencia dos impossiveis recursos de teu pae, eu t'o direi sem pejo, nem pesar de te ver humilhado. Então trabalharás para ti, e verás quão doce é o pão negro que se lavra com o proprio suor...[128]

 

XIII

Paulina leu o bilhete de Fernando, que dizia assim:

 

«Ver-me-has em toda a parte; e, quando me não vires, sabe que eu contemplo o céo que te cobre, ou te espero em outro mundo para uma outra vida. Vivo ou morto, a minha alma será sempre comtigo, Paulina! Ámanhã parto para Irlanda. Não sei se é para Dublin que te levam. Eu te encontrarei... Até lá.»

 

E estava alli, á beira d'elle, o choroso velho, aquelle pae amantissimo, quando Fernando escreveu: Ámanhã parto!... A crueldade dos filhos que amam! Que fragil é tudo isto que ahi chamam leis da natureza, quando o amor, aquella creança dos fabulistas, mesmo ás cegas, lhes atira um encontrão![130]

Em quanto Paulina relia o bilhete e o mostrava á irmã com a douda alegria de mulher amada, Bartholo de Briteiros, encerrado com o marquez de Tavira, dialogavam d'este theor:

—Mas não me saberás tu explicar o contentamento com que Paulina se está preparando?!—dizia Bartholo.

—Aquillo é febre que arrefece depressa, primo Briteiros. As mulheres são assim.

—E era capaz de entrar no convento, e esquecer-se de pae, irmã, e tudo!

—Nos primeiros dias, sim; depois, quando lhe faltasse o animo, e não visse o Fernando, nem tivesse noticias d'elle, modificava o seu parecer a respeito de conventos e de amor. As mulheres são assim, primo Briteiros. Umas ha que são capazes de morrer por orgulho, e outras por soberba são capazes de se envilecerem. Mas a nossa Paulina não ha de morrer nem aviltar-se, visto que o convento é uma fabula, e a fria Irlanda se não ha de gosar de a ter nos seus mosteiros. A creada desempenhou perfeitamente o papel, pelos modos. É o dinheiro mais bem empregado que tu tens consumido para salvar tuas filhas das unhas dos aventureiros...

Corte-se aqui o dialogo para dar um esboço muito pela rama d'esta ladina creada, que tambem tinha a honra de ser portugueza.

O marquez descobrira que ella era a intermediaria de Paulina e Fernando. Aconselhou, por isso, Bartholo que a seduzisse com dinheiro a ir participar a Fernando que a menina se recolhia a um[131] mosteiro da Irlanda; e ao mesmo tempo, da parte de Eugenia, lhe pedisse que se retirasse de Londres, a ver se assim abrandavam os rigores do pae. A creada accedeu á proposta com o mais admiravel desapego de gratificação. Saiu logo a cumprir o mandado, e recebeu o bilhete de Fernando. Na fiel entrega do bilhete a Paulina é que assenta o elogio da creada. Bartholo ficou contente d'ella, e Paulina extremamente grata á expontanea resolução da creada. Mas é pena que tanto a ama, como a creada, como Fernando Gomes fossem enganados por cavillações suggeridas pelo marquez de Tavira, que era o mais refinado velhaco de que ainda tivemos noticia!

Agora ate-se o dialogo.

—Foi bem lembrada a tua ideia, primo!—tornou o ministro da Alçada, como que orgulhando-se de ter na sua parentella um sujeito com ideias.—O homem agora vae dar comsigo em Irlanda. Quem diabo lhe ha de lá dizer que nós vamos para Madrid?

—É verdade!—exclamou o inventor da ideia com radiosa ufania.

—Quando elle o souber—tornou Bartholo—espero eu que tu sejas meu genro, e minha filha feliz... Palavra de cavalheiro! eu não tinha alma de a fechar n'um convento! Quero-lhe muito, e por isso t'a dou com a condição de que nunca sairá da minha companhia, primo.

—Já te disse que a minha maior dôr seria separar-me de ti, primo Briteiros! Se ha pessoa n'este mundo que eu preze tanto como a tua filha, és tu![132] Ainda mesmo que Paulina me fique odiando para sempre, e não venha a ser minha mulher, crê tu que tamanho golpe não cortará os vinculos de amizade que nos prendem. Serei um teu dedicado irmão, um vigilante mordomo do teu bem estar, capaz de todo me sacrificar ao zêlo com que tu olhas pela ventura de tuas filhas.

—És honrado, primo Tavira!—exclamou Bartholo—Conta com o amor da minha Paulina, quando esse maldito demonio a tiver deixado...

—D'elle estás tu livre, Briteiros! Se outro peor não vier depois... mas eu terei astucia para te salvar de todos.

A creada, que captivara a confiança do amo, como sentisse remorder-lhe o remorso de ter, apesar de tudo, atraiçoado a menina que a tratara sempre como amiga, desde a infancia de ambas, cogitou no modo como foi industriada, e de si para si decidiu que a ida de Paulina para um convento de Irlanda era um logro a Fernando Gomes. Levada d'esta apprehensão, e do desejo de remediar o mal, se era um mal ser ecco da mentira, foi manso e manso colar a orelha á fechadura da porta que separava Bartholo e o marquez das salas mais frequentadas da casa. A parte do dialogo que ella escutou era a mais importante. O amo erguera a voz, quando perguntou ao marquez:

Quem diabo lhe ha de dizer que nós vamos para Madrid?

—A criada respondeu entre si: «Hei de ser eu» e foi de corrida contar a Paulina o que ouvira; e, instantes depois, ia a caminho do hotel de Fernando[133] com a nova, e já em toda a seguridade de sua consciencia. O filho do artista ouviu o contra annuncio com prazer. Estava a seu lado o velho, como a gosar-se em lagrimas das poucas horas de convivencia com seu filho. Esperava dar-lhe na manhã do dia seguinte o adeus de indeterminada, e talvez eterna separação. A nova foi de prazer para ambos. Francisco Lourenço iria com seu filho para Hespanha, e te-lo-hia menos longe de si. O prazer de Fernando, de natureza diversa, consistia em ser Paulina menos sacrificada por amor d'elle. O convento avultava-lhe com mil angustias, que lá não existem. O receio de a ver sossobrar entre ferros, em lucta com os apertos monasticos recommendados por Bartholo, era a mais pungente de suas dôres. Entreluziam-lhe esperanças em Madrid: mais facilidade na fuga, mais protecção nos costumes; amigos que lhe dessem auxilio; e a breve jornada a Portugal.

N'este enlevo de alegrias, forçoso era que viesse logo o desconto. Francisco Lourenço, quasi sem ponderar o valor da pergunta, disse a Fernando:

—Essa senhora sabe de quem és filho?

—Nunca m'o perguntou...

—Nem tu lh'o dirias... mas tens tu reflectido n'este ponto? A senhora D. Paulina de Briteiros amar-te-hia se lhe tu houvesses dito que teu pae é o sapateiro da calçada do Sacramento? E amar-te-ha, quando alguem, bastante curioso, ou encarregado de saber o teu nascimento, a informe de que o viajante portuguez, posto que viva de seus proprios recursos, é filho de um sapateiro?[134]

Fernando odiou-se a si proprio n'este momento, e respondeu com um gesto desabrido.

O artista achegou-se do filho para lhe vêr o rosto, cujas alterações seus olhos não alcançavam. E disse:

—Fizeram-te mal estas reflexões, Fernando?

—Fizeram, meu pae—disse o moço agastado.—Por isso mesmo, para me forrar d'estas agonias horriveis, melhor fôra que me tivesse dado a felicidade do artista. Eu seria a esta hora um homem com a alegria pura de todo o homem que trabalha, e tem suas ambições e coração circumscriptos a muito pouco. Que fatal lembrança a de me arrancar da minha esphera, para que eu hoje não tenha nenhuma! Os pequenos regeitar-me-hão como os grandes me regeitam, quando souberem quem eu sou!...

—Deus se compadeça de ti!—murmurou o velho, limpando as lagrimas—e me perdôe a mim o mal que te fiz, pelo muito que tenho expiado a minha vaidade de te fazer maior do que teu pae. Valha-te o Senhor! Que direitos tens tu a uma felicidade que te custa humilhações? Para que a procuras afincadamente, se vaes de rastros após ella! Por que has de tu querer hombrear com os grandes, se eu apenas te fiz entrar n'uma carreira por onde levarias teus filhos á grandeza! São as tuas cartas de bacharel formado que te arremessam aos despropositos das ambições? Ou é a tua intelligencia que te diz que não nasceste para a mediania? Se é a tua habilitação, faz que ella te sirva, filho. Entra como quem és, e o pouco que és, na estrada da honra: faz realçar o teu merecimento com tua[135] mesma humildade, e lá irás dar ao ponto onde chega o homem honrado, todo o homem, ainda que a muitos pareça que não. A tua intelligencia é impossivel que te aconselhe esse odio ao acaso que te fez nascer de paes mechanicos. Eu, filho, li quanto pude, estudei quanto os meus poucos principios me permittiram; e Deus sabe que nunca tive pejo de ser quem era. A razão esclarecida é o que falta aos homens que se envergonham de não terem nascido já nobres, já respeitados, e idolatrados do mundo. Pensava eu que, allumiando a tua razão, te dava armas para combateres os prejuizos e preconceitos miseraveis das raças. Fiz o contrario, filho; justamente o contrario...

—Não, meu pae...—interrompeu Fernando—perdoe-me, e não se afflija, por amor de minha mãe lh'o rogo! Eu tenho o presentimento de que ainda hei de provar-lhe que me não vexo da baixeza do meu nascimento... esta dôr foi uma irreflexão, meu pae. Tem o coração estes desgraçados caprichos... Caprichos, e mais nada... Se Paulina me perguntar quem sou, dir-lhe-hei quem sou; se quizer saber quem é meu pae, dir-lhe-hei ufanamente quem é meu pae. Por que não?... Aquella candida alma deslustrar-se-hia em me ter pertencido? Então que torpe deve ser o coração humano! Com que prazer e ardor eu iria buscar á derradeira ordem social a mulher pobre, a filha do varredor das ruas, a filha do carrasco, que me desse o seu amor, sem perguntar-me a minha origem?...

Alongou-se o dialogo entre os dois, que terminaram abraçando-se, e chorando.[136]

Era tempo de se aprestarem para a viagem. Fernando, sabendo que a familia Briteiros havia de atravessar o Canal no dia seguinte, de passagem para França, tomou nota da saida de um navio de Plymouth para portos de Hespanha. Resolveram seguir o caminho mais perto, consultando a vontade de seu pae.

Pessoa extranha, que observasse o aspecto de Fernando, veria as nuvens que lhe assombreavam a alma. Embaciára-se-lhe, não sabemos por que maravilhoso influxo, a limpidez da esperança, com a qual até áquella hora conseguira affrontar a adversidade. Era o desalento, um não sei que de contricção intima, que paralysa as faculdades robustas da vontade n'um quasi morrer de toda ella.

As terriveis hypotheses do pae, concernentes ao sapateiro em amores com a illustrissima pretendida do marquez de Tavira, poderiam tanto!

O orgulho do coração do homem do povo será capaz de aniquilar tamanha paixão?

Ha exemplos; mas tão obscuros que nenhum romancista quer fazer obra por elles.

Em novella, criada para as folgas de grandes damas, e galans mancebos, enfastiados d'outros gosos, qual romancista baixa das alturas da sua imaginação a historiar quadros sociaes de sapateiros?

Se em Portugal os sapateiros lessem, tal livro seria comprado por uma classe e pagaria as fadigas do popular escriptor.

É precisa muita abnegação para isto, n'esta terra e com esta gente, que acha mesmo illiteraria a palavra «sapateiro».[137]

Artista, recommendam-me que diga artista, para não offender o apparelho articular das pessoas afidalgadas de nervos!

Já é! ha poucos mezes contei, romanceei, panegyriquei a vida de um gallego n'um volume de duzentas e tantas paginas! É rastear muito esta arte! Ha tanto principe na historia portugueza a pedir romance! e tanta princeza tambem!

Por que não hei de eu escrever historias de principes e de princezas, e deixar os sapateiros subir algum tanto na escala d'umas qualificações modernas que elles se vão inventando para seu uso, que a isso os obriga o menos-preço d'esta luminosissima e fraternal civilisação?

O nome de sapateiro está a sumir-se. Já muitos do menoscabado officio se denominam artistas d'artes correlativas... dos pés. Dos individuos cultos, que os mettem n'estas andanças e chibanças, deviam elles chamar-se não sapateiros, mas ferradores.[139]

 

XV

O secretario da embaixada portugueza em Madrid havia sido camarada de Fernando Gomes no cerco do Porto; e seu contemporaneo na universidade. Approximara-os mais em Coimbra o paralelo dos nascimentos: eram ambos filhos de artistas. Separados depois da formatura, um para os cargos publicos, outro para as viagens, continuaram sempre correspondencia de bons amigos. O secretario da legação recebeu a nova da chegada de Fernando a Madrid, e maravilhou-se de encontral-o sumido n'um quarto de obscura estalagem.

Contou o bacharel diffusamente a historia dos seus vagabundos amores, e explicou a obscuridade e recato em que tencionava viver para não causar desgostos á filha de Bartholo de Briteiros. Queria elle existir secretamente em Madrid, de modo que o pae de Paulina o imaginasse na Irlanda, procurando a[140] reclusa nos conventos; entretanto, era seu intento diligenciar casarem-se judicialmente, ou, no extremo d'algum imprevisto accidente, fugir com ella para Portugal. O amigo escusava prometter-lhe todo o auxilio. Era este um dos academicos que frequentavam a universidade em 1828, quando os dois lentes foram assassinados. Fôra elle um dos sorteados para a impolitica vingança; como quer, porém, que estivesse enfermo n'essa occasião, forrou-se assim ao incommodo de ser estrangulado. Ora Bartholo de Briteiros, como sabem, tinha sido o mais impassivel signatario do accordão: o amigo de Fernando vira caminharem á forca os seus condiscipulos; e tal rancor ganhou aos juizes, que só o nome de Briteiros lhe trouxe aos olhos faulas de raiva mal abafada pelo correr de dez annos. Para elle era não só prova de amigo, mas desforra de inimigo coadjuvar o camarada das linhas do Porto a zombar das astucias do ministro da Alçada.

Com tal protecção, Fernando soube a hora em que chegou Bartholo, a rua e hotel onde se aposentou; e Paulina, pouco depois da sua chegada, recebia d'uma creada do seu quarto, na hospedaria, uma carta de Fernando.

Francisco Lourenço, cuidando que assim ficavam bem encaminhados os honestos intentos de seu filho, seguiu para Lisboa. A mãe, anciada de saudades de ambos, quando viu o marido sem o filho, arrancou um ai, e perdeu o sentimento. Volvendo a si, ouviu com pasmo a miuda narrativa dos casos acontecidos ao esposo, e deu graças a Deus sem arguir a dura alma do filho. Á santa mulher, para[141] sua consolação, bastou lhe saber que Fernando vivia. O procurar elle sua felicidade, na idade propria do amor, com tantas adversidades, foi á boa mãe maior motivo de compadecimento que de censura. Como, por momentos, o considerou morto, era natural que tudo lhe perdoasse, estando elle vivo. Assim ficaram os dois velhos, esperando que inesperadamente lhes apparecessem casados o filho e a gentil fidalga. Francisco Lourenço foi ao Cartaxo dar ordens a confortos da casa, mobilação, e mais aprestos, sendo que Fernando mostrara desejos d'ir alli descançar annos, ou talvez a vida toda, qualquer que fosse o incerto desenlace de suas canceiras.

Bartholo e o marquez de Tavira davam-se os embora do feliz exito da sua falcatrua. Viam Paulina alegre, dada a bailes e a theatros, com bom rosto para o proprio marquez, e nem por sombras magoada d'alguma fugitiva saudade! O fidalgo continuava sempre a dizer «que as mulheres eram assim». E o pae de Paulina admirava a esperteza e acume seu futuro genro.

Raro dia faltava á menina carta de Fernando, por intervenção do secretario da legação, que acintemente acceitara o conhecimento do marquez de Tavira, para mais de perto collaborar na derrota do Bartholo.

Paulina entretinha horas de conversação com o amigo de Fernando, intervaladas por troca rapida de palavras concernentes ao intento que os approximava. No animo do fidalgo já a suspeita se ia ingerindo: a assiduidade das visitas do secretario incommodava-o,[142] e tinha-o de atalaia. O marquez inquietava-se não menos que o primo. Acordaram os dois em dar de mão ao visitante diario d'algumas horas. Mas, nos bailes ou nos theatros, o secretario era o flagello dos dois olheiros, que se viam baldeados, como lá dizem, entre Scylla e Charybdes.

Assentou Bartholo em ser pae severo. Apresentou-se á filha. Ia de catadura horrida. Dir-se-ia que empunhava a penna para assignar um accordão de pena ultima.

—Paulina!—disse.

—Meu papá.

—Vamos a contas.

—A contas?!

—Que quer dizer a pertinacia d'este homem, que te não deixa?

—Qual homem, meu papá?—disse ella, pensando que Fernando fôra descoberto no seu esconderijo.

—O homem da embaixada... este mal trapilho que tem o pae em Lisboa a fazer candieiros na rua Augusta.

—Eu sei cá o que elle quer?... O primo marquez foi quem o apresentou, e não me disse se o pae d'elle fazia candieiros.

—Fale-me com mais humildade!—bradou Bartholo.

—Pois eu que disse menos humilde?

—Não quero ironias.

—Ironias!... O papá é injusto comigo!... Eu posso lá saber a razão porque o homem nos procura? Pensei que o faria por delicadeza, por sermos[143] patricios, e conhecermos pouco a sociedade de Madrid.

—Então...—tornou o pae—asseveras-me que elle não tem intenção nenhuma menos respeitosa?

—Pois elle ha de faltar-me ao respeito?... Jesus!

Ó céos! o rosto de innocencia estupida com que Paulina fez aquella pergunta! Ó amor, o que tu pódes e fazes! Que uma dama de bons annos, quarenta pelo menos, puxados á fieira do amor, consiga lograr uma criança incauta, isto está de seu na natureza das cousas; mas que uma menina de dezesete annos, ainda agora a florescer a sua primeira primavera de coração, zombe da vigilancia e perspicacia d'um pae quinquagenario, e o esteja assim logrando com uns dizeres de parvoinha candura!... Uma hora de amor é um curso de theatro completo. Quantas ficções lá se aprendem, com grandes estafas, nas aulas do conservatorio dramatico, vae ahi qualquer menina espigadinha exercita-las todas ante o auditorio da sua familia, se me concedeis que ella tenha uma faisca de lume no olho, e um Etna dentro do peito!

E diz o apophtegma antigo: Amor logra muitas cousas, e o dinheiro tudo! Não é assim: as luzes desmentiram tambem os Senecas e Theophrastos. O dinheiro não consegue desbestialisar o alarve que o tem a rôdos; e o amor vae dentro do espirito mais rombo e bôto, e eil-o que o desentranha em prodigios de subtilezas, argucias, e sublimes velhacarias! E até talento! Ha ahi sujeito que vingou um nome esperançoso n'uma época de sua vida:[144] chegou mesmo a escrever locaes com certo orientalismo; e de repente tapam-se-lhe as valvulas, e o talento suppura por tolice. Que foi? Averigua-se e sabe-se que o homem deixou de escrever as locaes aziaticas assim que a mulher amada casou com outro.

Bartholo não teve que recalcitrar a esta pergunta:

—Pois ha de elle faltar-me ao respeito!?—E depois a exclamação «Jesus!» desarmou-lhe de todo as suspeitas. E, como se tanto fosse pouco, Paulina continuou:

—Não quer o papá que eu fale mais com o Almeida? Não falarei. Verá como lhe volto as costas assim que o vir.

—Não é preciso tanto, nem nada, filha—redarguiu de muito bom rosto o pae—se me tu dizes que o Almeida nada te diz que te preoccupe o coração...

—O coração!—interrompeu a menina com o mais pasmado e lindo semblante.—Ora essa!... O papá está a rir-se de mim, não está?

—Falo-te serio, Paulina... Tenho muito medo da inexperiencia dos teus annos. Tu tens-me feito o sangue de fel e vinagre por causa d'aquelle homem, que me ia roubando a tua estima, e a ti mesma te ia fazendo esquecer de quem és... Ora agora, filhinha, que essa tempestade passou, tu não me dirás que foi o que te moveu a gostar do tal Gomes?... Não te envergonhes, menina, que ninguem nos ouve... Elle não se inculcava sequer pessoa de bem; era um bacharelzito, um inimigo das nossas crenças politicas e religiosas; em quanto[145] á figura, tudo n'elle é plebeu, trivial; mesmo em talento e instrucção, que o principe gabava muito, eu nunca lhe ouvi dizer cousa que admirasse a gente; emfim, queria eu que me tu dissesses por que amaste tal homem...

—Era um passa-tempo, papá!

—Não duvido, Paulina; mas as meninas da tua qualidade, quando galanteiam para se divertirem, escolhem outra casta de homens, para que se lhes não atire á cara com precedentes desairosos, quando ellas amam seriamente, e com proposito de se casarem. Ora diz-me tu cá: se teu primo marquez se lembra de casar comtigo, cuidas que elle ha de gostar que tu hajas acceitado a côrte d'um sarrafaçal sem nome, que andava por esse mundo a gastar uns safados cobres lá do pae, que ninguem conhece?

—Pois sim...—disse Paulina com mal refreada vehemencia—mas como o primo marquez se não lembra de ser meu marido, nem eu o queria, ainda mesmo que elle pensasse em tal...

—Não o querias? então que mais querias tu, filha.

—Eu não queria mais, nem tanto... Quero estar assim solteira, que estou bem... O papá não me dizia, ha poucos mezes ainda, que eu e a mana o matavamos se casassemos!...

—Disse isso, na supposição de que saíeis da minha companhia; mas o marquez, se casar comtigo, não sae da minha casa. É já um contracto estipulado, filha... A minha palavra está dada; contei com o teu são juizo, quando a dei... Que respondes tu, Paulinasinha?[146]

—Deixe-me pensar, meu pae. O primo marquez não tem pressa da resposta, e o papá tambem não. Deixe-me gosar mais algum tempo a minha liberdade, e depois eu direi o que tiver pensado.

—Pois sim, filha: dou-te quinze dias. Sou um bom pae, não sou? Outro qualquer diria: isto ha de fazer-se, porque quero que se faça. Eu, não. Transijo com a minha criança, na certeza de que ella ha de saber-me agradecer a brandura e os carinhos. Não has de querer que eu morra sem te ver marqueza de Tavira! O primo tem os vinculos desfalcados; mas a fidalguia d'aquelle sangue vale milhões para quem se preza de ser maior pelo nascimento que pelos bens da fortuna. Morro consolado se encontrar para tua irmã um marido egual... Em quanto ao secretario da legação, não deixes de lhe falar: trata-o bem, porque, a falar a verdade, lhe devemos a elle a alguma consideração que temos em Madrid. Não me parece mau rapaz; mas zangava-me ve-lo sempre que podia em segredos comtigo!... Que te dizia elle?

—Nada que se não podesse ouvir... Só alguma vez, nos bailes ou no theatro, me fez rir com as suas satyras ás fidalgas hespanholas... é o que elle me diz baixinho, para os outros não ouvirem.

—Ah! é isso?—atalhou com boçal confiança o jubiloso Bartholo.—Então, filha, continúa a rir-te com elle; mas tem compaixão do primo marquez, que arde em zêlos quando falas com alguem.

—Pois que não arda, que eu tanto se me dá como não que elle fale com quem quizer. O pae cuida[147] que posso amar o primo marquez, com vinte e tres annos mais do que eu?...

—Mas parece um rapaz, e ha de ser um excellente esposo, Paulina. Os maridos querem-se d'aquella edade.

—Não sei para que!...—acudiu com perdoavel desenvoltura a menina.

Bartholo ia explicar a vantagem que sobrelevam os maridos de quarenta aos de vinte annos, quando algum incidente privou a minha joven leitora de ver aqui tratada a preceito uma materia, que poderia cooperar grandemente para a sua futura felicidade. Decorreram os quinze dias aprazados para a decisão de Paulina.

N'este espaço estreitou-se mais a correspondencia d'ella e Fernando, já inclinado á suspirada catastrophe do casamento judicial. A actividade do secretario, como agente d'este inesperado desfecho, foi inexcedivel. Opinara elle pela fuga, e depois casarem-se em Portugal. O filho do artista, com o animo abalado pelas honradas admoestações de seu pae, optou pelo casamento judicial, sem prescripção da menor formalidade honesta. Paulina pendia mais ao parecer do secretario, e achava escusadas as demasias de probidade com que o noivo queria tratado o seu casamento. Assim mesmo Fernando reagia á vontade de Paulina, e dizia acceitar o plano da fuga em ultimo recurso. A recusa estribava n'estas razões, dadas por elle ao seu amigo:

—Se eu fujo com Paulina, porei um cunho infamante no meu procedimento. Se eu fosse um grande de Portugal, por brazões ou riquezas, a sociedade [148] diria que eu tomára o violento alvitre da fuga para remover d'um lanço todas as difficuldades antepostas pelo capricho do pae. Assim plebeu, e quasi pobre, se fujo com ella, dir-se-ha que desprezei os meios judiciarios por medo de não achar justiça que ousasse contrariar a vontade do fidalgo poderoso.

—Mas—atalhou o sincero amigo, que sabia muito do coração das damas, estudado em Hespanha—quem te diz a ti que, durante o processo necessario ao supprimento do consentimento paterno, a senhora D. Paulina varia de ideias, e requer a remoção do deposito para casa de seu pae? Quem te diz que...

—Se o fizer—atalhou Fernando—mais tenho de me louvar pelo meu procedimento; claro é que Paulina devia arrepender-se, e dar-me o inferno, as mais tormentuosas agonias que tu podes imaginar. Antes isso, meu amigo: antes essa prova! Poderás tu fazer-me a justiça de suppôr que eu sigo os caprichos d'uma mulher rica?

—Não.

—Pois bem: venha depressa o momento em que eu possa conhecer-lhe a alma, cuja nobreza tu me deixas entrever a luz duvidosa.

—Não é assim: eu previno, e mais nada.

—Prevines a possibilidade do arrependimento, emquanto dura o processo.

—É bem de ver.

—E d'esperar?

—Isso não sei; mas deves temer muito da força do adversario. Os juizes em Madrid são corruptissimos, e pesam na balança o oiro do fidalgo realista,[149] e se o oiro do fidalgo realista pesar o quilate legal, acceitam esta legalidade, em vez d'outra que as leis estatuiram. Esta é uma das faces: a outra é a dos meios empregados no convento onde vae ser depositada Paulina, para a demoverem. Raro acontece que elles não vinguem, ao cabo de seis mezes d'espera. Insisto. Eu, em teu logar, fugia. A meia legua de Madrid estás em segurança. Na semana que vem, entras em Portugal. Chegas a Lisboa, e encontras na primeira egreja um prior que vos absolve. Uma batalha assim vencida é plena e gloriosa: a outra, que vaes dar, costuma ser tão golpeada de contrariedades, que, afinal, o triumpho é semsabor. Mas faz o que quizeres. Decide-te por um dos conselhos, que nunca poderás identificar os dois. Honra e coração costumam andar bem-avindos, mas é só nos romances.

—E fóra dos romances, amigo Almeida—disse Fernando.—Agora mesmo te estou dando a prova. Diante das razoaveis difficuldades que me levantas, ouso ainda insistir pelo deposito, e envergonho-me de ter vacillado entre o processo judicial e a fuga.[150]

 

XV

Paulina convidara Fernando a um colloquio nocturno, na vespera do dia em que havia de ser requerido o deposito. Este convite fôra-lhe suggerido pelo secretario da legação, que antevia mau desfecho do negocio tratado com pannos quentes. Induzira elle a menina a propôr de viva voz e com instancia ao noivo a fuga immediata: esperava Almeida que a presença, a resolução e intimativa de Paulina quebrantassem a firmeza do seu amigo.

Era aquella a primeira vez que Fernando Gomes ouviu a voz de Paulina, depois da saída de Florença. Foi com alegria de coração; todavia algum vago presagio lhe ennublava o espirito.

A familia Briteiros occupava o primeiro andar do melhor hotel de Madrid. Fernando devia entrar ás nove horas da noite e pedir um quarto no entre-sol do edificio. O corredor commum d'estes quartos[152] baixos tinha escada que subia ao primeiro andar. Ás onze horas Fernando subiria esta escada, e encontraria Paulina no tôpo. A excellencia do plano correspondeu á execução. Ninguem occupava os quartos inferiores, excepto um francez chegado á mesma hora. O hospede entrara, e fechara-se em sua camara. Ás onze horas era completo o silencio no andar superior. Bartholo dormia o pacifico somno de quem tomou o chá com algumas inoffensivas gottas de extracto de morfina, ministrado á filha pelo previdente secretario da legação, que assim pensava ir lentamente vingando os condiscipulos enforcados. O marquez recolhia da tertulia ás tres horas da manhã. Eugenia velava com sua irmã, como quem velava em cousa muito de seu interesse, e vae já dizer-se para que não esqueça.

Fernando subiu as escadinhas em espiral.

Quiz-lhe parecer que via um vulto á porta, aberta no cimo da escada, e parou no intento de retroceder. Fez-se um pallido clarão no interior da sala. Assomou á entrada Paulina, e murmurou:

—Sóbe sem receio, Fernando.

—Parece-me que estava aqui gente, quando eu subia...—disse o moço.

—Não te enganaste.

—Quem era?

—Depois saberás tudo: escuso dizer-te que não tem nada comtigo o vulto. É um homem que ama minha irmã: é o conde de Rohan. Não podemos perder tempo—continua Paulina com adoravel alvoroço.—Preferes os mil estorvos com que vamos luctar á certeza da ventura sem o menor desgosto?[153]

—E o que é a ventura sem o menor desgosto, minha querida Paulina?—perguntou Fernando, já meio aturdido pelo magnetismo d'aquella voz, d'aquelles olhos, d'aquellas roupas brancas, d'aquella luz, d'aquelles braços, que, a tremerem, se lhe ousavam enlaçar no pescoço com o mais pudico despejo das almas puras, que tudo fazem com a mais santa das intenções.

—Pois não achas mil vezes melhor que fujamos para Portugal?—tornou Paulina—Tu não me amas, não!... Vê tu que differença do teu coração para o meu!

—Por Deus!—atalhou Fernando.—Eu não te amo, Paulina!?...

—Que quer dizer a tua repugnancia em acabar com isto d'uma vez!?... Ha tanto tempo a soffrer a perseguição de meu pae!... Desde que acabaram os quinze dias, estou n'um martyrio incessante com perguntas, maus modos, e desprezos! E a padecer tanto por amor de ti! Sei que, se fôr depositada, meu pae ha de dar-me dias horriveis de amargura; e, por fim, tu verás que a justiça me entrega a elle para nunca mais saberes de mim, nem eu de ti, meu Fernando! Olha, querido amigo, tira-me d'aqui; fujamos para a tua familia; vamos ser felizes; lembra-te que eu deixo o amor de meu pae, e tudo, para seguir a tua sorte! Leva-me, Fernando, leva-me, porque depois de ámanhã n'esta casa nem tenho mesmo minha irmã que me console as tristezas e saudades. Minha irmã foge ámanhã por noite com o conde. Vão casar-se a Paris. Assim que ella lhe escreveu a chama-lo, veiu logo, e preparou tudo[154] para a fuga. E eu pensava que o teu amor era mais forte que o d'elle!... Porque me não levas, Fernando? Falas-me tanto em honra, meu amado! Eu não entendo os pontos de honra em que me estás sempre falando! O nosso amigo Almeida tambem os não entende. Quando se ama verdadeiramente, as considerações, que tu me fazes, parece-me que ninguem as faz... Que prazer tens tu em que eu vá estar seis mezes ou mais n'um convento á espera que a demanda se decida, sem mesmo antevermos a certeza da decisão favoravel!? Isso é crueldade! Olha que me não vês, Fernando, nem talvez possas escrever-me! Se eu morrer de magua, de quem é a culpa? Quantas vezes te arrependerás de me não ter ouvido n'esta hora?

Não era necessario tanto. Fernando Gomes estava vencido e convencido. As ultimas palavras de Paulina tinham sido cortadas de soluços. Nunca homem algum resistiu a isto! Scipião, o respeitador historico das mulheres, se visse este lance viria outra vez ao mundo dar testemunho de uma virtude, que a sua celebrada continencia usurpava.

Fernando tomou nos braços a soluçante menina, e disse-lhe:

—Fugiremos, Paulina. Fugiremos, quando quizeres. Ámanhã, se te apraz. Deus vê as minhas e tuas intenções. Espero que nunca te arrependas do passo, que o mundo, a seu pezar, não poderá infamar-te.

Paulina expandiu-se em requebros de ternura e raptos de alegria. A combinação de horas, signaes, e menores accidentes da fuga ficou pactuado. Disse[155] a menina que se conservasse elle á escuta algum tempo, emquanto ella ia preparar o pacotinho da mais necessaria bagagem; e, depois, a recadasse no seu quarto, e de madrugada a levasse comsigo, sendo este o melhor modo de não inspirar desconfianças. Como embriagado de alegria, Fernando accedeu a tudo sem contestar; esperou, e recebeu o pacote, que era uma mala ingleza quadrada, cujo peso elle notou com admiração.

Ao romper da manhã, o passageiro, com ar de quem vae entrar nos vehiculos da madrugada, saíu do hotel; sobraçando a mala com grande espanto do creado, que o vira entrar sem ella, e recolheu-se á sua pousada, d'onde logo escreveu ao secretario da legação.

Almeida acudiu logo a felicitar o reconsiderado amigo, congratulando-se de ter elle sido o indirecto motor da saudavel reforma nos estoicos principios do seu camarada. Traçaram o plano facilimo da fuga. Fóra de portas estariam cavalgaduras. O funccionario diplomatico iria com os fugitivos para remover obstaculos imprevistos da policia. Fernando era já o homem avesso do dia anterior. Falava o coração, alliviado do pesadello da impertinente honra.

Sentia-se enlouquecer de esperanças alegres, anciosas, insoffridas da morosidade do tempo.

—Aqui tens a riqueza da minha Paulina!—disse elle sorrindo e mostrando a mala.—Ninguem dirá que eu a raptei por causa d'essa malinha, que deve encerrar algum vestido, e as minhas cartas...

Almeida tomou ao alto a mala, e disse:[156]

—Não: aqui ha alguma cousa mais que sedas e papeis! Isto pesa como ouro.

—Ouro?! estás brincando!—disse Fernando.

—Está aberta a mala. Se não temes a profanação, vejamos o que vae aqui.

—Sim, vejamos—condescendeu Fernando, desfivellando as correias.

Ao de cima iam as cartas em massos, cintadas com fitas de diversas côres. Seguia-se alguma, pouca e finissima roupa branca, cuja hollandilha, e cambraia tomava pouco espaço. Depois, um vestido de seda azul, o que ella vestia no baile de Jeronymo Bonaparte, onde viu Fernando Gomes pela primeira vez. Depois, sobre o fundo da mala, descobriram uma caixa de tartaruga, pouco mais larga e comprida que um palmo. Esta caixa é que realmente pesava como ouro, e estava fechada.

Fernando esteve algum tempo tomando o peso da caixa, em meditativo silencio, e disse:

—Não levo isto: é preciso que faças chegar, antes de á noite, este objecto a Paulina. Aqui vão grandes valores... não levarei comigo, aqui fechada, a minha condemnação. O mundo chama ladrões aos homens que praticam assim. Depressa, Almeida. Inventa o milagre de fazer entregar isto a Paulina, quando não, está tudo transtornado.

—És um homem impossivel!—replicou o secretario da legação, menos escrupuloso que philosopho, se é que se chama acertadamente philosophos, uns sujeitos que sabem receber, em pleno espirito, a luz toda do seculo.—Pois tu recusas acceitar Paulina com as joias do seu uso?[157]

—Recuso. Paulina não tem nada.

—Nem a legitima de sua mãe?

—Paulina é menor: seu pae é que lh'a administra.

—Eu não discuto direito comtigo; limito-me a descobrir que és um asno exemplar, e dá-me vontade de te mandar cavar pés de... Com effeito! Venham aqui aprender moralisação os futuros amadores de meninas que levam caixõesinhos pesados, quando fogem com os amantes!...

—Tens graça; mas eu tenho razão, que é melhor—retorquiu Fernando Gomes.

Emquanto elles altercam já em phrases desabridas, saibamos que rumor é este que vae em casa de Bartholo de Briteiros.

O creado do hotel, como visse saír o hospede de algumas horas com a mala que não trouxera, obedeceu ao instincto da curiosidade, e seguiu-o com todas as precauções. Viu a pousada em que entrára, tomou o numero da porta, e voltou a casa a dar conta ao patrão.

O dono do hotel, timbroso em manter a fama honrada do seu estabelecimento, consultou o alcaide sem aventar suspeitas além das que realmente davam em resultado a verdade inteira do facto.

Sabia elle que o locatario do primeiro andar era um portuguez riquissimo, e que mais de uma vez pernoitara, nos baixos da casa, um francez mysterioso, que tinha intelligencias com uma das filhas do portuguez, segundo elle deprehendera d'uma troca de escriptos, por alta noite, entre as janellas do primeiro andar e sobre-lojas. Estes esclarecimentos[158] deram rastros ao alcaide para suas averiguações.

Com quanto o sujeito da mala não fosse o francez alludido, observou mais o austero hospedeiro que, no mesmo dia, entre as oito e nove horas da manhã, o francez rebuçado cautelosamente sahira com um volume debaixo do braço. Estas coincidencias de dois homens na mesma pousada, na mesma noite, e com volumes iguaes, ou cousa assim, feriram faiscas de penetração na cabeça, aliás cerrada, do hespanhol, que, de collaboração com o alcaide, deu como effeito um consideravel roubo ao portuguez Bartholo de Briteiros.

Esclarecido assim o facto, o alcaide apresentou-se ao fidalgo ás dez horas da manhã, e perguntou-lhe se suspeitava que em sua casa faltassem objectos de valor.

—Não!—disse Briteiros—Quem ha de subtrahir objectos de valor de minha casa?!

—Examine, senhor—disse o subalterno da policia—que a minha obrigação é averiguar, e sem detença.

Bartholo entrou nos quartos de suas filhas improvisamente, e encontrou-as empacotando e dobrando roupa de seu uso.

—Que fazem as meninas?!—perguntou o pae com assombro.

Paulina e Eugenia ficaram tolhidas, interdictas, e incapazes de responder um monossyllabo.

—Que estão a fazer, não ouvem?!—replicou Bartholo examinando a roupa dobrada.

Acudiu-lhe uma atroz suspeita. Fez-se côr de[159] terra. Dilataram-se-lhe em arqueijos as azas do nariz. Raiaram-se-lhe os olhos de linhas sanguineas. Correu ás gavetas dos toucadores e das commodas; remexeu tudo, revistou tudo impetuosamente, e exclamou:

—As caixas das joias!? As tuas joias, Paulina, e as tuas, Eugenia? Onde estão cem mil cruzados de brilhantes de vossa mãe?

Paulina cravou os olhos no chão, perdida a côr, e quasi os sentidos. Eugenia, mais fraca de compleição, e muito timorata, cahiu em joelhos, e exclamou:

—Perdão, meu pae!...

—Roubado! roubado!—bradou o velho—roubado por minhas filhas!

E saiu em vertiginosa corrida e a brados por a casa fora, até entrar na sala onde estava o alcaide.

Paulina, logo que o pae sahiu, disse á irmã:

—Tu és uma miseravel se descobrires alguma cousa. Não pronuncies o nome dos desgraçados, Eugenia! Ainda que nos matem, salvemo-los a elles!

D'ahi a instantes, foram as meninas chamadas á sala, e interrogadas. Nenhuma resposta deram ás perguntas do alcaide. Ás do pae respondiam, principalmente Paulina:

—Os brilhantes e as joias não estão em poder de ladrões.

Mas, no tocante a nomes, nenhuma proferiu palavra.

N'este momento angustioso, entrou o secretario da legação. N'um relance comprehendeu tudo. Briteiros abraçara-se n'elle, exclamando:[160]

—Roubado em muitos contos de réis por consentimento de minhas filhas... E ellas, estas infames, estavam-se preparando para seguir os ladrões! Não haverá justiça em Hespanha, senhor alcaide?

—Ha—respondeu Almeida—e o ministro portuguez, em Madrid, é o funccionario a quem primariamente compete solicitar a justiça em favor do senhor Bartholo de Briteiros. Os passos do senhor alcaide hão de ser dados de accordo comigo. Queiram esperar-me, que eu volto.

Sahiu Almeida, e entrou em sua sege, que o transportou á pousada de Fernando Gomes.

Sem lhe dar completa explicação das causas, obrigou-o a sair, e transportou-o a sua casa. Ahi, simplesmente lhe disse:

—Se o meu plano vingar, d'aqui a pouco ha de estar Paulina comtigo.

E saíu, a desapoderado galope dos cavallos, para o hotel de Briteiros.

Ao apear, disse ao boleeiro:

—Se uma senhora saltar na sege, vai n'um raio apea-la em casa, mas torce o caminho.

Subiu. As meninas tinham saído da sala.

Bartholo e o alcaide estavam ouvindo o depoimento do dono e creado do hotel, que denominavam francezes os conductores dos volumes.

Almeida pediu licença para ter particular conferencia com as meninas. Bartholo cedeu de prompto, entregou-se cegamente ás deliberações do funccionario, que se dava o ar mysterioso de quem tem o fio da meada.

A conferencia foi sem testemunhas.[161]

—Fernando está em minha casa—disse Almeida.—Aqui ha um desesperado recurso, um unico. A senhora D. Paulina entra na minha sege, e é conduzida a Fernando.

—Oh! meu Deus! já!—exclamou ella, erguendo-se para saír.

—E eu fico, Paulina?—bradou Eugenia.

—Pois vossa excellencia tambem quer fugir com Fernando?—disse Almeida.

—Eu havia de fugir esta noite com o conde de Rohan—respondeu Eugenia.

—Fujam ambas!—tornou o secretario, mas onde está esse conde?

—Era hospede cá no hotel... Amo-o ha cinco annos... Vamos, vamos, Paulina...

—Eu indagarei onde está o conde—disse Almeida—Não se demorem.

Alguns segundos depois, o estrepito da carruagem fazia tremer as vidraças do hotel. A visinhança viu o rapido saltar de duas meninas, veleiras como anjos alados, cobertas e encapuzadas de capas de merino branco com bordados e borlas verdes nos capuzes. Ninguem soube dizer mais nada.

O secretario saíu com o alcaide, e Bartholo de Briteiros tornou aos aposentos das filhas, no intento de as mandar vestir para entrarem n'um convento.

Quando assomou á porta do quarto, viu duas creadas debulhadas em lagrimas. [162]

 

XVI

Paulina e Eugenia, menos apavoradas do que suppõe o leitor, apearam no pateo do secretario da legação, e foram guiadas a uma sala, em que Fernando Gomes, prostrado mais que o commum em lances taes, parecia meditar no suicidio. Paulina galvanisou-o moderadamente, apertando-lhe as mãos com mais tremor de ternura que d'afflicção.

—Que abatimento, Fernando!—disse ella, em quanto Eugenia, desalentada pelo quebrantamento do moço, soluçava a chorar, na incerteza do seu destino.

—Isto não é abatimento, Paulina...—disse elle—é porque em verdade eu recebo com dôr a alcunha de ladrão!... Falei-te eu em joias? Que infernal lembrança a de me dares os brilhantes de teu pae!... Quando te disse eu que precisava de ser infame para ser feliz?[164]

—Foi uma indiscrição, meu amigo; mas perdoa-m'a...—disse Paulina—Como os brilhantes tinham sido da mamã, e o papá muitas vezes nos disse que eram nossos, cuidámos que podiamos reparti-los entre ambas, sem medo de que chamassem roubo a isto. Agora não tem remedio a nossa loucura... Não te estejas tu assim a matar, meu Fernando. O crime é meu e não teu...

—Cala-te, pobre criança!—redarguiu Fernando—tu não sabes que mal me fizeste...

Algumas phrases mais, talvez inopportunas, do filho do artista, obrigaram Paulina a chorar e arrepender-se.

Chegou, n'este escuro trance, o secretario, e todos o viram como prenuncio de bonança. Eugenia saíu logo a perguntar-lhe se sabia onde estava o conde.

—Ainda não, minha senhora. Será talvez, difficil encontra-lo, se elle já souber que o perseguem.

—Sou tambem perseguido?—atalhou Fernando.

—Ninguem sabe o teu nome, mas precisamente te procuram na estalagem onde estavas. Porém, como falaste sempre francez, e, por bom alvitre meu, te despediste como quem vae para França, muito diabolica será a alcaidaria madrilense se te farejar aqui. Observo que os meus amigos estão todos tres sem juizo para decidirem o que lhes convém.

—Eu decidi—disse Fernando.

—O teu plano deve ser o unico racional na tua situação: é a fuga. A sr.ª D. Eugenia dir-me-ha o que tenciona fazer se o seu conde não apparece.[165]

—Não apparece!—exclamou ella atribulada.

—Póde não apparecer, minha senhora, e não ha motivo para que vossa excellencia o considere descuidado, covarde, ou traidor.

—Então que eu hei de fazer?!—tornou Eugenia, pondo as mãos com dilacerante angustia.

—Quer vossa excellencia seguir sua irmã, e esperar em Portugal que eu a avise do destino do conde?

—Não lembres á sr.ª D. Eugenia um destino impossivel—disse Fernando Gomes.—Eu não vou para Portugal.

—Como?! não vaes para Portugal?

—Não fujo—replicou Fernando—e, quando fugisse, não iria levar a meu pae a noticia do nome que deixo em Madrid.

—Pois se ninguem te sabe aqui o nome?

—Sabe-o a minha consciencia.

—Pois foge para França—recalcitrou Almeida—ou para a Italia, ou para onde quizeres.

—Não fujo; e perdoa-me, Paulina... Nós não podemos fugir. Teu pae vae receber de minha mão os brilhantes de sua mulher e de sua filha; tu entras espontaneamente n'um convento; de lá requeres dispensa do consentimento de teu pae: sairás de Madrid com honestidade, e eu com honra. É impossivel ser feliz, e dar-te felicidade, se faltarem estas condições á nossa união. Isto é irrevogavel, meu amigo. Por delicadeza e compaixão não discutas comigo. Temo que este anjo suspeite da minha dedicação, se tu me condemnares pela fraqueza das minhas apprehensões.[166]

Paulina teve momentos de suspeita, e outros peores de arrependimento. Quizera ella esconder-se com a vergonha de seu acto a um coração bastante forte, ou bastante desempoeirado, que lhe fizesse sentir com vaidade a grandeza do seu heroismo. Nem elle mesmo a absolvia! elle, por quem a imprudente se perdera no conceito do mundo, e na estima do pae! São pungentissimos os espinhos das corôas que santificam os martyres da honra! Este é um dos casos em que a mulher amada, amigo, sociedade tudo conjura a azedar com mais fel o calix do homem probo! Acontece que o leitor de um romance, que taes casos narra, sympathisa com semelhantes excepções d'este mundo sublunar, mas assim mesmo, o panegyrico do romance é galardão tardio, que não vale a menor das dôres que excruciavam a alma do pobre filho de Francisco Lourenço.

Estavam como atrophiadas as duas meninas. Almeida, sem dizer o seu destino, tinha saído. Fernando encarou na lagrimosa Paulina, correu a ella, e ajoelhou-se-lhe aos pés, murmurando:

—Duvidarás tu que te adoro, ó anjo da minha alma!... Poderás crer que o receio de ser apregoado ladrão me faz baixar ao egoismo de maldizer a hora em que te vi!... Não, não, minha querida filha; não me julgues capaz de afastar uma infamia com outra...

—Degradei-me por amor de ti—soluçou ella—e agora hei de ir morrer n'um convento, sem a amizade de ninguem, perdida no conceito de toda a gente, e tratada com vilipendio por todos... Cuidei[167] que não me tornava indigna aos teus olhos...

—Indigna aos meus olhos!—exclamou Fernando coberto de lagrimas—quando te disse eu palavra que te dê razão de tamanha calumnia! Ó Paulina, eu quero-te pobre, quero fugir comtigo já, mas salva tu da deshonra o meu nome, que ha de ser tambem o teu. Não leves o valor de um ceitil da casa de teu pae. Espera que o boato do grande roubo de cem mil cruzados, de que teu pae te argue, se desvaneça, para que a tua dignidade não fique tão feiamente manchada. Não vês tu que se trata de salvar o teu nome?

—Salva-lo, como?...—redarguiu Paulina.

—Restituindo os brilhantes—disse Fernando.

—De que serve restitui-los? Crês tu que o pae me dará licença de ser tua esposa por isso? Meu pae tem cem vezes o valor dos brilhantes... Ha de perseguir-me atrozmente para eu não casar comtigo, Fernando...




No entanto, o secretario da legação entrou no hotel de Bartholo de Briteiros.

Encontrou o velho prostrado no leito, espertando d'uma demorada syncope. Ninguem ao lado do pobre pae! N'aquelle instante solemne calou-se o velho rancor de Almeida, e falou a compaixão.

—Mataram-me, as ingratas!—exclamou Bartholo—fugiram, fugiram as perdidas! Deixaram-me assim, sósinho, a amaldiçoa-las, agora, e sempre, e na hora da morte...[168]

Almeida deixou-se abraçar pelo anciado velho, e disse-lhe:

—Cobre a possivel serenidade para me ouvir, senhor Bartholo.

—Diga o que quizer, meu amigo. Pouca vida terei para ouvi-lo.

—Suas filhas deviam fugir ao vexame dos interrogatorios judiciaes, e fugiram. Conduziu-as a minha carruagem; estão em minha casa.

—Estão?!...—exclamou Bartholo.

—Estão, como se estivessem na austeridade d'um mosteiro. Vossa excellencia deu-lhes o impulso desgraçado que dão os paes que o não sabem ser. Quiz vossa excellencia pautar o coração de suas filhas: tentou um absurdo, que deu origem á culpa. A natureza reage contra as violencias; e a reacção é quasi sempre indiscreta ou criminosa. Sua filha Eugenia amava o conde de Rohan, sua filha Paulina amava Fernando Gomes. O francez sei quem é de tradição; Fernando, que eu conheço desde as escolas, é um homem de tantas e tão insolitas virtudes, que o mundo actual ha de vêr-lh'as com extranheza. Vossa excellencia impugnou o enlace de suas filhas com estes dois mancebos escolhidos por ellas. Uma, ia ser immolada ao marquez de Tavira, que sae embriagado dos alcouces ás tres horas da manhã; a outra estava esperando a sua hora de sacrificio. O funesto resultado d'estas coacções foi uma e outra conspirarem surdamente contra a insensata tyrannia de vossa excellencia. Fernando Gomes chegava a Madrid um dia antes de vossa excellencia, em vez de estar na Irlanda procurando[169] a senhora D. Paulina nos mosteiros; o conde de Rohan, chamado de França por a senhora D. Eugenia, veiu hospedar-se n'este mesmo hotel.

—E eu sempre vendido e enganado por ellas!...—exclamou Bartholo.

—Era a justa paga do despotismo com que vossa excellencia dispunha de suas filhas, que tinham em si o despotismo mais imperioso do coração! Pergunto eu ao sr. Bartholo de Briteiros: se suas filhas, para se libertarem d'um jugo violento, deram o extranho passo de prepararem a fuga, que crimes e vergonhas as reterão no mau caminho que tomaram, se vossa excellencia não tiver a prudencia de as chamar a si, e rehabilita-las no conceito do mundo?!... Por em quanto não ha nada que as avilte. O levarem ellas suas joias e as de sua mãe, isso, a meu vêr e de toda a gente, é cousa de si tão desculpavel, que não tem mesmo penas na lei que a puna. O valor moral do acto tambem nada significa. Imagine vossa excellencia que as suas filhas gostavam dos seus enfeites, e, quando fugiam, levaram comsigo esses adornos da vaidade, aos quaes ellas não ligaram valor algum real. Já disse a vossa excellencia que não conheço pessoalmente o conde, amado pela senhora D. Eugenia. Informei-me agora mesmo na embaixada franceza, e soube que o conde era um dos mais nobres legitimistas da França, e tem castellos, senão reconstruidos á moderna, cravejados de muitos brazões, que, se me não engano, podem competir antiguidade com os de vossa excellencia. Este cavalheiro era incapaz de ser o receptador de um furto. Em quanto a Fernando, o[170] portuguez, posto que não tenha castellos nem mais appellido que o Gomes, que vossa excellencia provavelmente não encontra nos seus nobiliarios, os brilhantes que se presumem ter ido n'uma caixa, em tão pouco os reputa elle, que me encarrega a mim de os depositar nas mãos de vossa excellencia. Queira o senhor Bartholo estalar a fechadura da caixa para verificar a identidade dos objectos. Fernando Gomes não sabe o que está ahi.

Almeida entregou a caixa a Bartholo, que apenas o interrompia com variados gestos de raiva, surpreza e condescendencia.

Depois proseguiu:

—Fernando Gomes está fazendo companhia ás filhas de vossa excellencia em minha casa. O conde de Rohan está hospedado na embaixada franceza. O que o conde quer não sei; o que Fernando deseja é que a senhora D. Paulina entre pacificamente n'um convento, e de lá instaure um processo para vossa excellencia ser ouvido na questão de consentimento para matrimonio. Resolvi eu, sem permissão d'uns e d'outros, vir propôr a vossa excellencia o seguinte: suas filhas voltarão para casa, e vossa excellencia consentirá que ellas se desposem com homens de sua escolha, recahindo ella em sujeitos tão benemeritos como o conde e Fernando Gomes. Ouvirei a sua resposta.

Bartholo desceu do leito, amparando-se ao hombro de Almeida. Passou á ante-camara, sentou-se a chorar e enxugar lagrimas, reflectiu alguns segundos, e disse:

—Pois que venham as minhas filhas para casa,[171] e eu cederei o que fôr de razão ceder. Mas, senhor Almeida!... Esta ignominia já deve ser notoria em todo o Madrid!

—Apenas a justiça, auctorisada por vossa excellencia, anda em averiguações inuteis. Mande o senhor Bartholo suspender a vulgarisação que os esbirros estão dando aos desgostos particularissimos de sua vida.

—Vou mandar...—disse Bartholo.

—Veem, por tanto, suas filhas. Eu não levo a certeza dos bons intentos de vossa excellencia. Por isso mesmo ouso lembrar-lhe que, se forem o inverso dos meus bons desejos, as consequencias redundarão todas em desgostos maiores para vossa excellencia, e póde ser que mui grande vilipendio para suas filhas. O senhor Briteiros, se as chama para as castigar com violencias, abre n'esta casa trinta portas por onde ellas podem fugir. Ha uma hora em que um pae reconhece que toda a sua força se quebra diante do aceno d'uma debil criança. A lucta é desigual com o coração, senhor Bartholo...

—Diz bem...—atalhou o velho.—Fui eu que as perdi com a educação, com o mundo, com a vida de Paris e Florença...

—Assim seria; mas o mal é insanavel com cauterios: requer muita prudencia o corrigi-lo. Vossa excellencia póde faltar a suas filhas ámanhã; e o mundo ha de chama-las a si com a educação que lhes deu, e engolfa-las no seu abysmo. Salve-as com tempo, senhor Briteiros. A sociedade dá ás mulheres este nefasto prestigio, que as enthrona, com[172] a condição de se despenharem depois na voragem onde foram buscar a realeza.

—Diz bem...—repetiu Bartholo de Briteiros, que, segundo minha opinião, percebeu levemente o interlocutor.[173]

 

XVII

Almeida foi apresentado ao conde de Rohan, que se envolvera na bandeira franceza, logo que houve noticia do descobrimento da projectada fuga.

Para honra da França, diremos que o descendente do famoso cardeal, quando recebeu o pacote de Eugenia, se bem que o achou pesado, não cuidou que levava metade das joias e brilhantes. A mim, porém, me quer parecer que o illustre conde não faria caramunhas de mau gosto, quando a menina lhe mostrasse os aderesses de ricas pedras. A França, n'isto e em tudo, vae na dianteira dos espiritos. A virtude, lá, é cousa tão contingente, que chega a não ser regra. Menina que foge, não perde aos olhos do seu raptor, nem o tribunal do mundo se entoga com gravidade de juiz para cousa tão futil. O conde de Rohan pensava muito em descobrir Eugenia, e pouquissimo nos brilhantes, quando o cavalheiro[174] d'Almeida lhe foi apresentado pelo benevolo embaixador francez, amigo de ambos.

Contou o secretario os successos decorridos, e a convenção, pouco segura, mas preparatoria para bom resultado, que fizera com Bartholo de Briteiros. O francez, approvando tudo com palavras de muito reconhecimento, pediu a Almeida a grande mercê de ser o apresentante dos brilhantes e dos seus respeitos ao fidalgo de Portugal. Estes respeitos, associados aos brilhantes, fizeram que o secretario notasse a superioridade do espirito da França sobre o de Portugal. Em quanto Fernando se estava n'aquellas lamurias e quebrantos, o conde de Rohan, fumando um perfumado charuto de Havana, com a chavena de chocolate ao lado, sorria mui placidamente, ao passo que o informador contava os acontecimentos occorridos; e, com quanta graça mesureira tinha de seus placidos modos, enviou ao fidalgo portuguez (hidalgo, disse elle) os seus brilhantes e os respeitos d'elle.

—Em quanto á minha boa Eugenia—accrescentou o conde—terá o cavalheiro a benevolencia de lhe asseverar que eu sou sempre o mesmo homem, submisso escravo das suas vontades.

Com tão boas novas, correu Almeida a sua casa.

As noticias foram gratas a todos, posto que Paulina por palavras não denotasse a satisfação intima, que sentira. Póde deduzir-se, sem desairar a menina, que as amarguras de Fernando, aquellas exuberancias de dignidade, o muito falar na honra de seu nome, agradaram mediocremente á filha de Bartholo. Perguntei a differentes senhoras, differentes em[175] temperamento, se o despeito de Paulina seria justo. Com muita magua de meu coração ouvi resposta, unanime de todas—que Paulina tinha razão; que Fernando encerrava nas arterias agua chilra; que um homem, assim apontado em subtilezas de honra, poderá ser um bom guarda-livros, um bom mordomo d'uma casa, mas que ha de sempre ser um amante glacial.

Fiquei suspenso, e prometti refutar semelhantes despropositos, quando escrevesse este romance. Desisto da tenção formada.

Antes quero que o leitor discuta e abysme as senhoras que injuriaram o pobre moço, e acharam extrema graça e galhardia de animo no conde de Rohan.

Entretanto, Paulina, ao despedir-se de Fernando, abraçou-o com exterioridades de muito affecto, e pediu-lhe que não chorasse, accrescentando:

—Tu podes contar sempre comigo, Fernando. Esperanças de que meu pae consinta no casamento, não levo nenhuma; mas se tu entenderes que, por meios da justiça, podemos conseguir os nossos desejos, tão desgraçadamente contrariados quando eu me julgava e te julgava feliz, estou prompta a requerer.

Notem a frialdade d'esta linguagem! Fernando, Eugenia e Almeida todos a notaram. Elle, porém, beijou-lhe a mão, e disse:

—Vae, minha amiga, e esquece-me, se quizeres e poderes. O que nunca poderás esquecer é que o homem, que te não servia para o coração, tinha alguma boa qualidade que ha de eternamente viver[176] em tua memoria. Antes esquecido por ti, que deshonrado por amor de ti, Paulina.

Sobreveiu o secretario com reflexões tendentes a conciliar os animos despeitados dos dois tão amantes, tão doidos de alegria, algumas horas antes; e agora, a separarem-se, com a desconfiança n'alma, a desconfiança que é quasi sempre a doença morta do coração!

Paulina desceu, chorando, encostada ao braço de Almeida.

O filho do artista lembrou-se, n'este acerbo momento, de sua mãe, porque teve precisão de orar, e quem lhe ensinara a oração fôra sua mãe.

Deixemo-lo orar e chorar. Preces e lagrimas assim, os anjos as levam ao Senhor. Áquellas almas disse Jesus: «pedi, e sereis attendidas.»

Os que dão cegamente sua alma a quem a não merece, e rogam a Deus o resgate d'ella, sentem-se livres.

Os que vão de rastros e quasi moribundos sob o pé da injustiça humana, oram, e recobram uma força, que é insulto á covardia dos fortes. Deixa-los chorar e orar.

Deus lhes mostrará os balsamos das urnas que ahi estão a desbordar desde que o Homem-divino perdoou aos que o matavam por ignorancia. Porque não hão de perdoar estes homens de barro á cafila de farizeus que os não entendem?

Da cafila de farizeus exceptuo Paulina de Briteiros. Se eu não podesse estrema-la, rasgava aqui estas paginas, e queimava os apontamentos, para que nenhum collega meu d'este maldito officio[177] saísse alguma vez a lume com a historia d'uma linda mulher com alma tão feia!

Paulina e Eugenia entraram nos seus aposentos, sem verem o pae.

O secretario foi ao quarto de Bartholo entregar a outra porção de brilhantes, e continuar sua missão de conciliador e conselheiro.

O fidalgo denotava boas intenções, em quanto ao conde de Rohan. De Fernando Gomes disse, á terceira pergunta, que havia de pensar no melhor modo de se realisarem os desejos de sua filha.

As meninas passaram aquelle dia sem leve incommodo de sua saude, nem accessos de lagrimas que mereçam chronica. Doe-me ter de dizer que, ahi por fins da tarde, riram com as creadas da figura que ellas deviam fazer, quando saltaram á carroagem, desgrenhadas, com os capuzes das capas encarapuçados á laia de feiticeiras. Esta frivolidade de espirito feminil é cousa tão vulgar, que eu peço á leitora que não levante a pedra, e deixe ir as cousas em paz, como Christo mandou ir uma peccadora.

No dia seguinte Fernando Gomes, instado por seu amigo, saíu com elle em carroagem. Passearam até á ponte de Segovia, e apearam na praça do Sol, onde o secretario havia de cumprir ordens do ministro.

O acaso encaminhara para alli o marquez de Tavira, que trazia o espirito encavalgado por um dragão.

Viram-se e reconheceram-se.

O marquez, cego de sua raiva, parou em frente[178] de Fernando, e disse a brados que muita gente ouviu:

—Ainda tem a pouca vergonha de se mostrar nas praças um biltre que seduz filhas-familias a roubarem seus paes!

Se o periodo fosse mais comprido, morria incompleto na garganta do marquez. O filho de Francisco Lourenço engriphou os dedos com sanha felina. O rancor, brutalisando o homem, parece que lhe dá parecenças com a fera, cuja sanha imita! As dez unhas de Fernando faziam espirrar o sangue gothico do marquez, que escabujava como o Lacoonte de Virgilio nas roscas das serpentes. Cairam ambos de modo que o de Tavira foi fender o occipital no eixo d'uma carroagem, cujo dono fizera alto para disfructar a lucta.

Almeida estava, poucos passos distante, observando o desenlace, que o enchia de jubilo. O marquez, ensanguentado, coberto de lama, e quasi desaccordado, nem de leve se boliu, quando Fernando desencravou as unhas. Approximou-se Almeida, e offereceu ao fidalgo a sua carroagem para conduzi-lo onde quizesse. O soberbo de sua miseria respondeu com uma insolencia, e retirou-se com respeitosa, mas curiosa cauda de gaiatos, testemunhas pertinazes e minudenciosas de todos os conflictos magnificos.

Constou ao secretario que o marquez saíra, no seguinte dia, de Madrid, com direcção a Portugal, onde a presença do convencionado não incommodava ninguem. Parece que Bartholo de Briteiros lhe emprestara dinheiro com que elle podesse na[179] patria sustentar a antiga ociosidade e dissipação de seus avós. E, como não sei se virá de molde lembrar o nome d'este sujeito no decurso da novella, fique o leitor sabendo que o marquez de Tavira, depois de residir em Lisboa alguns mezes, fez-se um liberal rasgado, ou roto, como quizerem, e conseguiu ser nomeado ministro n'uma das côrtes da Europa, e mais tarde governador dos estados da India, d'onde veiu, já muito na flôr dos sessenta annos, casar em Portugal, onde está rico e honrado.

Paulina, sabedora da derrota que soffrera o primo marquez, sentiu uma satisfação que eu sinceramente lhe não louvo, e ao mesmo tempo um accrescimo de estima por Fernando, estima que eu não posso attribuir ao coração. Estas anomalias que a moral reprova e a animalogia desentende, são uns geitos de mulher que avisadamente não discuto. São assim. Deus as faça melhores ou peores, de modo, porém, que fiquem mais decifraveis e intelligiveis.

Bartholo, como é bem de ver, ficou raivoso contra Fernando Gomes, e esteve uma noite toda a scismar no modo menos estrondoso de se desfazer d'aquelle inimigo. Ponderou o malvado intento de lhe comprar a vida; mas occorria-lhe que em Madrid era difficil e arriscado andar em cata de um sicario destro e fiel. Desanimou: mas jurou que sua filha Paulina havia de morrer n'um convento, se teimasse em querer casar com o facinoroso.

Este successo apressou o casamento de Eugenia[180] com o conde de Rohan. O fidalgo colheu informações, que condisseram exactamente com as do secretario, mas muito por miudo. O conde era oriundo dos primeiros soberanos da Bretanha, condes de Porrhoit, viscondes de Rennes, por Alain I, quarto filho de Eudon, que vivia no seculo X. D'esta nobilissima stirpe procediam os duques de Rohan, com esta legenda no escudo: roi ne puis, prince ne daigne, Rohan je suis.

Á vista d'isto, e do mais que deixo á averiguação dos genealogicos, Bartholo de Briteiros deu Eugenia ao conde, liberalmente dotada, e resolveu ir viver em Paris no inverno, e n'um dos castellos da Bretanha, no verão, em companhia de seu genro.

O velho principiava assim a vingar-se de Fernando Gomes.

No jantar nupcial, ao qual assistiram titulares hespanhoes, e a diplomacia dos differentes estados, Bartholo de Briteiros, n'um brinde que propôz a seu genro, disse em remate do discurso:

—Eu morrerei feliz, se vir minha filha Paulina casada com um parente dos Rohan; e, se não puder ser tanto, que seja, e muito ainda será, um nobre da França ou das Hespanhas, a quem meu genro aperte a mão, sem receio de a retirar suja.

—De sangue...—disse Almeida com um sorriso que tinha fogo do inferno.

Esta palavra «sangue» turvou um pouco o vinho que Bartholo bebia. Ao ex-ministro da Alçada quiz parecer que havia n'aquelle dizer succinto uma allusão. Nem que o secretario da legação fallasse em corda![181]

 

XVIII

Fernando Gomes, informado, não por Paulina, mas por Almeida, dos successos que se iam encaminhando a um natural e triste desfecho de tantos trabalhos, póde dizer-se que morreu antes que o matassem. Senhoreou-o amargura serena, sem contorsões; mas profunda, luctuosa, e inalteravel por nenhuma diversão.

Alguma carta que escrevia a Paulina ia breve, desalentada, sem a palavra esperança, sem a palavra saudade, sem a palavra amor.

Divagava por uns nevoentos dizeres, como devem ser os do enfermo de mortal doença, que antevê o fim, e se está, meio vida, meio eternidade, conversando com amigos, que deixa sem saudade e sem esperança de tornar a ve-los n'outro mundo.

Paulina entendia mal esta nova phase do espirito de Fernando, e respondia-lhe queixando-se da seccura[182] de suas cartas; porém, a tibieza dos queixumes podia apostar lethargia d'alma com o apparente regelo das cartas de Fernando.

—Como cahiste n'esse estado? perguntava Almeida ao seu amigo.

—Era o meu estado natural. Assim me conheceste no cerco e na universidade. Paulina emprestou-me uma segunda natureza que eu lhe devolvi em lagrimas, e fiquei como era, peor do que era, porque havia uma virtude em que eu tinha fé—o coração da mulher—e esta crença tambem se foi diluida em lagrimas.

—Injustiça!—interrompeu Almeida.—Não te diz ella que está prompta a requerer o seu deposito?

—Disse, não diz.

—Propõe-lh'o.

—Não. Quero forrar o meu pundonor ao ultraje da negativa.

—Farei eu a proposta, mediante o conde de Rohan.

—Recuso o favor. Quem te diz a ti que o conde de Rohan deseja o casamento de sua cunhada comigo?

—Elle.

—Não creias. O conde de Rohan tem irmãos. Paulina é rica e formosa como Eugenia.

—Imponho-me o dever de não julgar ninguem pelos teus olhos. Tu és uma raridade, um excentrico, uma cousa com geitos de pessoa. Erras quantos juizos fazes. Eu hei de sondar o conde. Póde ser que tudo se consiga sem processo judicial.[183]

O secretario procurou o conde. Fallou amplamente de Fernando Gomes, e das suas injustiças ao caracter de Paulina. O conde mostrou sympathisar com o caracter do portuguez, e disse:

—Eu fallarei a meu sogro.

E falou de modo que as suas ultimas palavras summariam o elogio que se lhe deve:

—O homem, cuja mão eu aperto com sincera satisfação de quem sabe prezar a virtude, é Fernando Gomes. Peço encarecidamente a mão de minha cunhada para este tão modesto como honrado mancebo. Condescenda, meu sogro, para eu poder dar-lhe o nome de provado amigo.

Bartholo de Briteiros respondeu umas palavras oscillantes, que nenhuma resolução significavam. O conde saiu maguado d'esta conferencia, e disse á cunhada:

—Se Paulina quizer casar com Fernando, tem de adoptar meios extraordinarios. Requeira o deposito, que a familia do ministro francez presta-lhe sua casa.

Paulina respondeu:

—Era preciso que Fernando ao menos me enganasse, para eu acceitar o seu conselho. Fernando, quando me escreve, nem ao menos diz que me ama.

—Ama com a mais segura das paixões: a paixão que mata com infernal lentidão.

—Se elle m'o fizesse assim acreditar!...—replicou ella.

O conde inferiu que Paulina estava cançada das virtuosas, incomprehensiveis e fastidíosas singularidades[184] de Fernando. E assim, muito á puridade, o communicou ao secretario.

Bartholo chamou Paulina, e mostrou-lhe cartas de Lisboa. A importancia d'estas cartas ha de ressumbrar na seguinte, que ella escreveu a Fernando:

 

«Meu querido amigo.

«Nem a cegueira do amor me engana. As tuas cartas dizem-me tudo que está em tua alma. Eu não sei por que desmereci aos teus olhos. Não sei, Fernando! Aquella impensada fuga que eu havia de fazer, com teu consentimento, creio que me tirou todo o prestigio. Esta pobre formosura, que tanto encarecias, já te não inspira mesmo as palavras animadoras que releio nas antigas cartas, com o coração traspassado de dôr! O ser rica sabia eu que era cousa nenhuma em teu conceito; mas o ser-te leal ha dois annos, á custa de tormentos tamanhos, cuidava eu que seria um titulo á tua eterna dedicação. Louca mulher, que tão vaidosa julguei merecer o que o mundo não póde dar! Com que me recompensas tu o fel que eu tenho tragado desde que voltei dos teus frios braços para debaixo dos olhos severos e queixosos de meu pae? O teu esfriamento é incrivel! Se me dissessem que amas outra mulher, comprehenderia o homem e a ingratidão. Mas sei que vives só, que vives triste, que tudo te é indifferente, e eu mesma quasi esquecida! Cada carta que me envias é como obrigada pela delicadeza. Palavras inintelligiveis, apprehensões vagas, e nenhuma em que me digas positivamente o que pensas, e esperas de mim! E eu[185] amante como sempre! Capaz de tudo, mas incapaz de me abalançar a novos sacrificios, sem que me tu digas corajosamente: «Luctemos de novo!» Porque m'o não dizes, ó Fernando!?

«Ainda agora saí do quarto de meu pae, onde fui chamada, e entrei a tremer. Mostrou-me cartas de Portugal, cartas forjadas talvez aqui, e mandadas lançar lá no correio. Todas falam de ti miserias que eu me pejo de dizer. Mas adivinho que desejas ouvi-las. Creio que, em dizer-t'as, te allivio de conjunturas dolorosas. Noticiam que teu pae é um sapateiro de Lisboa, que tua mãe era colchoeira, e que andas por aqui a estragar as economias de teu pae, em quanto elle lá está quebrado de trabalho, cerceando ao pão de cada dia para te sustentar uma vida aventureira. São assim miserias d'este jaez. Irritou-me a alegria de meu pae, quando elle com ar de victoria me estava lendo estas calumnias. Não tive mão em mim, e disse-lhe: «Isso é tudo falso. Se o pae de Fernando fosse um sapateiro, não iria visita-lo a Londres, nem lhe daria a decencia com que tem vivido ha dois annos em Florença, aqui, e em toda a parte. Meu pae encontrou-o em casa d'um principe, e o principe de Monfort não aperta a mão a filhos de sapateiros, nem ministros de Portugal em Hespanha o tratariam com tanta consideração, se elle fosse o que essas cartas dizem. Meu pae enfureceu-se dizendo que o Almeida era filho d'um latoeiro, e por isso occultava o teu nascimento...»

Fernando, n'este ponto, machucou a carta na mão direita, e atirou-a aos pés.[186]

 

RESPOSTA

 

«Minha senhora.

«Não mentiram ao pae de vossa excellencia. Sou filho d'um sapateiro, e d'uma colchoeira. Meu pae está ganhando o pão que me sustenta, e vendendo as suas economias para suprir ás despezas que o seu trabalho não alcança. O sapateiro foi a Londres, é certo; mas não foi visitar-me, como vossa excellencia presume: foi pedir-me que voltasse á pobre casa, onde minha boa mãe me chamava para me abraçar antes de morrer. Ensurdeci ao chamamento de minha mãe, e não vi as lagrimas de meu pae. Vossa excellencia tinha-me levado ouvidos e olhos, deixando-me no coração apenas a fibra do remorso de ser mau filho.

«Humilho-me diante de vossa excellencia, não como filho do sapateiro, mas avergado pelo arrependimento de lhe ter occultado a minha humilde origem. Foi o coração que me trahiu, dizendo-me que para vossa excellencia era cousa de nenhuma significação o meu nascimento. Penso que devo ser desculpado d'esta falta: seria grande extranheza andar eu divulgando o meu nascimento. Eu tinha estado em França, e vira ministros sahirem das officinas: e o mundo respeitava-os pela honra dos paes, e por sua elevação com esforços proprios. Tudo me induziu, não a esquecer-me de que meu pae era sapateiro, mas a presumir que me era licito com minhas acções continuar a ser honrado como meu pae, sendo certo, minha senhora, que eu nunca ousei suppôr que meu pae carecia de minhas virtudes para se dar nobreza de si.[187]

«Faz-me pena o desgosto de vossa excellencia quando esta carta estiver lendo!

«O que a senhora D. Paulina de Briteiros tem soffrido por minha causa! Que mal empregados sacrificios!

«Não foi a mão de Deus que a susteve á borda do abysmo, minha senhora? Que immensa vergonha e agonia devia ser a sua, se vossa excellencia a esta hora fosse minha mulher?! Que torturas irremediaveis! Como havia dizer-lhe eu em Portugal o nome de meu pae?

«Nunca pensára n'isto!... Agora me parece incrivel que não pensasse!

«Escrevo-lhe com quanta quietação de espirito se póde, minha senhora. O coração está esmagado. Matou-o a vergonha de ter pulsado em tão baixo peito, vergonha que eu confesso sentir diante da sombra de vossa excellencia, agora, e sempre.

«Veja que horrivel organisação social esta, senhora D. Paulina! Diga vossa excellencia em sua intima e clara razão, se eu merecia ser vilipendiado por meu nascimento, emquanto não praticasse alguma acção infamante! que mal fiz eu á sociedade em ter nascido de operarios?... Desculpe-me vossa excellencia estas perguntas vans, desordenadas e indignas da sua attenção.

«N'este momento vou queimar as cartas de vossa excellencia, menos d'esta ultima a pagina em que, por suas mãos, a Providencia me ministra uma lição, que me póde ainda levantar diante de mim mesmo.

«De novo lhe rogo me perdôe, no silencio de sua[188] consciencia, porque as suas palavras já não poderei vê-las escriptas. Subscrevo-me, com quanto respeito me inspiram suas virtudes, creado de vossa excellencia

«Fernando Gomes.»

 

 

Almeida tinha saído com o ministro para o Aranjuez, para voltar quatro dias depois. Fernando queimou as cartas de Paulina, lendo as primeiras de Florença, quanto as lagrimas lh'o consentiam. Enfardou o seu fato. Comprou passagem na primeira diligencia em direcção á fronteira de Portugal, e mandou entregar a sua ultima carta a Paulina, ao embarcar-se na locomotiva.

Almeida, recolhendo do Aranjuez, encontrou este conciso escripto:

 

«Vou vêr o pobre artista, e a pobre companheira do artista, que não tem culpa dos meus infortunios.

«Com as mãos erguidas te rogo que não digas a alguem o meu destino.

«Terás as minhas cartas regularmente, em quanto viver.

«Graças, meu amigo, pelo coração de irmão que me déste. A recompensa é este chorar que me tolhe poder escrever-te mais. São as ultimas lagrimas do teu Fernando.»[189]

 

XIX

DE FERNANDO GOMES A HYPOLITO DE ALMEIDA

 

 

Lisboa, 4 de agosto de 1842.

 

 

«Meu presado amigo.

«Aqui estou na casa onde nasci, no pequeno quarto em que os livros me iniciaram para tormentos superiores aos que conheceste em minha vida.

«Entrei em casa inesperadamente, e encontrei minha mãe chorando, e nos braços d'ella, uma de minhas irmãs viuva, e alli, ao lado, deitada n'um berço, uma criancinha de dois mezes.

«Minha irmã casára com um capitão de mar e guerra, que morreu em viagem para Moçambique. Fôra ella dotada com dez mil cruzados, cuja maior parte o marido empregou em mercadorias, que levava comsigo, na esperança de grandes lucros.[190]

«O navio deu á costa, e presume-se que meu cunhado se suicidou. A minha pobre irmã ainda ignora que está em pobreza extrema.

«Sabe-o meu pae, que é um santo, e acceita das mãos da Providencia tudo que vier.

«Outra minha irmã, casada com um official de secretaria, vive muito infeliz, e tem querido refugiar-se no abrigo dos paes; o marido, em poucos mezes, leva quasi dissipado o dote, sem mesmo assim poder resgatar-se de descreditos que mais tarde ou mais cedo o reduzirão a vir pedir esmola á porta do seu sogro. Acaba meu pae de me contar estas alegrias, que eu te refiro para que vejas os ditosos auspicios com que entrei nos lares domesticos.

«Meu pae está quasi cego, e minha mãe n'um estado de decrepidez extraordinaria. As minhas despezas dos ultimos oito mezes custaram ao santo velho o sacrificio da venda dos bens do Cartaxo. O que elle não vendeu foi a livraria, nem os manuscriptos de Bocage, seu amigo da mocidade. Disse-me que me salvara os livros para me legar amigos. Perdôa ao bom velho o seu descrer em amigos: elle não sabia que tu eras mais verdadeiro e valedor que os livros.

«O meu futuro é facil de conjecturar. Tenho uma numerosa familia dependente de mim. A outra minha irmã, e uma filha, não tardarão aqui. Meu pae ainda vae á loja examinar, ou finge que examina, o trabalho dos officiaes. Estes são já pouquissimos, em relação com o diminuto consumo que tem a obra.

«Penso em arranjar emprego; mas sinceramente[191] te digo que não sei o para que sirvo, nem como estas cousas se alcançam. Lembra-me abrir loja de conselhos e requerimentos; estou esquecido do pouco que aprendi; careço de muita pratica, e de muita paciencia. Falta-me gosto, alma e vontade. Nenhuns estimulos d'actividade me impellem. Este espectaculo inesperado escureceu-me o espirito de modo que nenhum raio d'esperança já póde reanimar-me. Espero em Deus que esta crise não se demore; e, depois, veremos.

«N'outra carta me abrirei mais comtigo. A oppressão produz no animo dolorosa preguiça. Em contentamento sereno ou nas afflicções agitadas, n'estes dois extremos, é que o espirito se compraz ou desafoga em diffusas cartas. Esta minha dôr é termo medio que prostra e embrutece. Adeus. Teu amigo muito grato

Fernando.»

 

 

DE HYPOLITO DE ALMEIDA A FERNANDO GOMES

 

 

Madrid, 14 de agosto de 1842.

 

 

«Meu Fernando. Quando recebi no Aranjuez, onde tive de demorar-me, a tua carta de despedida, corri logo a Madrid, não esperançado em encontrar-te, mas em ancias de saber o que se havia passado em minha ausencia. Esporeava-me o odio que recresceu n'estes ultimos mezes contra o algoz togado, o villão que me enganou quando eu tinha na mão o fio com que esperava cortar-lhe a vida na garganta.[192]

«Deram-me a tua carta, e contou-me o creado que te vira queimar as de Paulina. Percebi logo que um completo rompimento vos separara para sempre. Odiei-a! Dei-te logo razão, porque eu sabia que tu eras um anjo merecedor de melhor alma.

«Na incerteza de me estarem trancadas as portas de Bartholo, procurei na rua o conde de Rohan, e soube que Paulina estava doente. Perguntei, sem rebuço, que razões se haviam dado para a tua saida repentina de Madrid, e elle sem me dar explicações, instou por saber o teu destino. Não lh'o podia dizer, não lh'o diria, ainda mesmo que antevisse n'esta infracção a tua felicidade. A tua felicidade, digo eu!

«Ha homens que ninguem deve conduzir a uma supposta felicidade: a má sina póde tudo com elles, e reverte-lhes em mal os mais logicos planos do bem. Os proprios amigos se tornam fautores da sua desgraça.

«N'este mesmo dia recebi um bilhete de Paulina, a perguntar-me onde estarias. Respondi que o não podia declarar. Redobraram instancias: permaneci inabalavel. O ultimo bilhete d'ella é este que te envio1. Não calculo o que succedeu para resolução tão improvisa! Dar-se-ha caso, Fernando, que a tua doentia imaginação te enganasse? Poderias tu ser injusto, sem consciencia de o ser? Irias arrebatadamente,[193] onde com alguma hora de reflexão, deixarias de ir?

«Não ouso decidir por mim a hypothese: tamanha confiança me merece o teu bom juizo e reflexiva dignidade. Antes me quiz persuadir que procedeste como devias. Esperei.

«Agora, porém, recebo a tua carta de 4 de agosto. Nem uma palavra a tal respeito! Dir-se-hia que eu sonhei que tinhas amado Paulina, ou tu d'uma para outra semana perdeste a memoria do teu coração! Isto mais me capacita de que a razão do teu proceder foi tão grande que presumes deva eu já sabe-la, e por amor de ti proprio a omittes. Juro-te que apenas sei o que devo inferir dos bilhetes d'ella.

«O conde ignora tudo. Bartholo está com ares de satisfação; nada, porém, diz ao genro nem a Eugenia. Este mysterio mortifica-me. Esclarece-m'o, que o deves ao teu Almeida.

«Falemos agora da tua situação. Compunge-me a sorte de tuas irmãs, e de teus bons paes. Triste espectaculo, na verdade; mas providencial e necessario para a glorificação da tua honra. Precisas de força, e de paciencia para poder emprega-la.

«Queres um cargo publico? Os teus estudos, talento e serviços hão-de obte-lo; mas não cuides que será já, meu amigo. Tu perdeste a occasião de entrar nas secretarias com o arcabuz do cêrco do Porto debaixo do braço. As gravatas dos heroes de gabinete na emigração já se não temem das dragonas. Estamos em tempos pacificos. O que ha seis annos se conseguia e recebia com a mão a cheirar[194] a polvora, é preciso have-lo agora das mãos enluvadas das mulheres, que fazem os despachos nas othomanas, com os ministros reclinados sobre o seio. Advirto-te, para que a decepção te não surprehenda.

«Entretanto, meu caro Fernando, o que tu precisas é de encaminhar desde já a tua pretenção, dando ares de que não pretendes. Resgata os teus bens do Cartaxo, se o comprador t'os ceder: ostenta uma independencia que fira o orgulho villão dos grandes que não supportam animos generosos e isemptos; entra na politica, e escreve, que necessariamente has de escrever coisas excellentes, visto que é esse o ramo de conhecimentos humanos que dá fructo a quem lh'o pede, e para o qual todo o homem está habilitado. A honra ha de ser-te um empeço á boa saída; mas póde ser que a mesma excepção te aproveite. Ora como para estas coisas, e principalmente para a independencia, é necessario o dinheiro, vae ter á rua Augusta, procura meu velho pae, que has de encontrar a bater alguma caldeira, e diz-lhe quem és. Deves saber que eu sou já senhor da legitima materna, e este capital, que excede a vinte contos de réis, lá o tem meu pae á espera que eu lhe dê destino. A tal qual decencia, com que vivo aqui, é meu pae que m'a dá, prohibindo-me que eu gaste da herança de minha mãe. Vê tu que animo este de artista, que ainda não despegou uma semana de trabalhar! Vae lá, meu amigo; elle está prevenido, e sabe que és meu irmão. Pede o que quizeres, para m'o pagares quando puderes.[195]

«Fecho, que está a partir o correio. Escreve muito ao teu

Almeida

 

DE FERNANDO GOMES A HYPOLITO DE ALMEIDA

 

 

Lisboa, 31 de agosto de 1842.

 

«Meu irmão.

«Guardo em minha alma a tua carta.

«Falarei primeiro dos teus fraternaes offerecimentos.

«Fui vêr teu pae, porque desejava conhece-lo e abraça-lo. Que cabellos brancos, e que mãos calejadas aquellas! Que bem e orgulhoso me senti nos braços d'elle! Falla de ti com lagrimas; mas todo aquelle rosto se abre em contentamentos d'um justo!

«Quiz que lhe contasse pormenores da tua vida em Madrid.

«Satisfiz aquella ancia do teu velho. Foi dia de férias na officina a minha visita. Mandou os operarios passear, recommendando-lhes que não fossem á taverna. Depois jantei com elle, e lá fiquei até á noite. Teu pae deita se ao escurecer e ergue-se com a aurora. Disse-me elle quando eu estava para sahir: «Veja lá o dinheiro que quer, doutor.» Respondi-lhe que não queria nenhum. Montou os seus grandes oculos de cobre, arregaçou os punhos da camisa, releu a tua carta, e exclamou: «Então como se entende o que reza esta carta do meu Hypolito?!» Satisfiz ás suas duvidas, dizendo-lhe que o teu offerecimento não fôra solicitado, nem por em quanto me era preciso aceita-lo.[196]

«Assim passaram quatro boas horas da minha vida. Face a face com o principe de Monfort não me senti tão feliz e entranhado de respeito como ao lado do artista, do teu digno pae, meu querido Almeida.

«Beijo-te as mãos pelo amigo que me déste. Em quanto ao dinheiro, deixemo-lo estar, como nosso, na mão do honrado depositario. Quando precisarmos, lá iremos.

«Agora direi pouco de Paulina para te satisfazer, e menos terei que dizer-te, enviando-te uma copia da pagina da sua ultima carta. Ahi tens decifrado o enygma. O filho do sapateiro teve pejo e arrependimento de se haver abalançado ao coração da filha de um Briteiros: pejo de se haver abatido, e arrependido de a ter humilhado. Cahi em mim. Podia ser mais tarde, e mais funestamente para ambos. Deus poupou-me ao aperto de entrar em Portugal, e por esta porta dentro, onde todos choram, com a faustuosa e brilhante Paulina, que está fadada para alegrias e esplendores. Que sentiria aquella alma vendo-se aqui n'este ambiente de pobreza, pobreza que se adivinha em tudo! Alli dois velhos; além duas irmãs uma viuva, outra divorciada; acolá duas criancinhas, cada uma em seu berço, vagindo; lá em baixo o martellar do trabalho; em tudo o cunho de uma maneira de ser incompativel com a indole e educação de Paulina!...

«Que queres tu, á vista d'isto, que eu faça ao coração?

«Suffoco-o; obrigo-o a repartir-se por estas quatro creaturas, que não teem mais ninguem.[197]

«O bilhete de Paulina como não me auctorisas a queima-lo, devolvo-t'o; póde ser que ella venha a envergonhar-se de te-lo escripto, e t'o reclame.

«Persiste em não dizer nada de mim; e, se tenho algum outro favor a pedir-te, é que me não fales d'ella; antes me ajuda a esquece-la.

«Meu generoso pae ainda a tal respeito me não disse palavra. Adivinhou tudo. Tudo me tinha prophetisado em Londres, com estas palavras: Que direitos tens tu a uma felicidade que te custa humilhações? Para que a procuras afincadamente, se vaes de rastros apoz ella? Porque has de tu querer hombrear com os grandes, se eu apenas te fiz entrar n'uma carreira por onde levarias teus filhos á grandeza?

«Na ultima pergunta é que o propheta ouviu demasiadamente os seus arremessados desejos. Esta minha carreira é a da inhabilidade e da pobreza; mas cá estou a refazer-me de alentos para a trilhar. Adeus, meu extremoso amigo. Não acceito o teu alvitre de me fazer politico. Já vi o que isto é. Não estou ainda bastante pôdre para adubar o torrão em que braceja a arvore da immoralidade. Estou envergonhado de ter dado o meu sangue para isto! Ás vezes chego a scismar se Bartholo de Briteiros teria razão!

«Perdôa esta impia ironia. Antes isto que os patibulos. Cada qual enforca a sua honra á sua vontade, e não causa lastima nem espanto. Não ha tempo para mais. Adeus. Teu

Fernando[198]

 

 

XX

DE HYPOLITO DE ALMEIDA A FERNANDO GOMES

 

 

Madrid, 3 de setembro de 1842.

 

 

«Meu Fernando, não espero a tua resposta para te escrever. Tenho só tempo de participar-te que Paulina entrou hoje n'um convento, contra a vontade do pae. O conde de Rohan suppõe que és tu a causa d'este successo. Bartholo suppõe que a filha se enclausurou para de lá requerer casamento comtigo. Elles e eu andamos litteralmente ás aranhas. Ella e tu sois os ferrolhos do mysterio. Sae a mala. Adeus.

Almeida.»

 

 

DO MESMO AO MESMO

 

 

Madrid, 12 de setembro de 1842.

 

 

«Viva Deus! que quebraste os sete cadeados do[200] cofre! Vi o altissimo quilate do oiro da tua honra. Já o conhecia.

«Estas linhas deviam magoar-te; mas não justificam a fuga, e menos ainda o desprezo. Não é desprezo o que sentes por ella; mas, seja o que fôr os effeitos são analogos.

«Paulina, como já deves saber, vive no convento das Therezinhas. Consta-me, de informações exactas, que Paulina está n'um consternador abatimento de espirito. Raro se deixa vêr e apenas sáe da cella para receber, na grade, a visita do conde ou do pae. Eugenia entra no convento, e passa muitas horas com ella; mas nem assim lhe arranca o essencial motivo do rompimento e reclusão.

«Bartholo tem providenciado para o caso de haver deposito judicial. Realisa-se o que eu te havia dito. Sei que de antemão, e por hypothese, já estão alugados os juizes.

«Eugenia pediu-me hontem um encontro no Prado. Insistiu comigo para eu lhe descobrir a tua residencia. Inutil. Jura que Paulina te ama até se deixar morrer, para assim pelo remorso se vingar da tua ingratidão. Estive, sem receio de quebrantar minha palavra, quasi a mostrar-lhe a copia da pagina da ultima carta da irmã. Desisti, por me não parecer, ainda assim, justificavel o teu procedimento, e tambem para respeitar o sigillo de Paulina. Ella, que o reserva, lá tem suas razões, e nós as nossas.

«Aconselhar-te eu? não me atrevo a tanto. Já disse: contra certos destinos é impotente esta logica vulgar, vade-mecum de todos os homens vulgares.[201] Escuta o teu coração, sem menos-preço da consciencia. Obriga a razão a obtemperar a certas e importantissimas pequenezas, que são o essencial da vida. Isto não é conselho: é supplica.

«Bartholo vive muito ha dias com um marquez gallego, que veio ao senado; riquissimo gallego, e descendente dos monarchas de Aragão. Presume o conde de Rohan, com o muito sal do seu espirito, que Paulina corre risco de ser encabeçada na côrte descabeçada de Aragão. Eugenia accrescenta a estas observações que Paulina só sairá do mosteiro, se a não deixarem lá sepultar na clausura. Isto parece-me extremamente grave, Fernando.

«Queres tu que eu ultrapasse as tuas ordens, ou prescrever-m'as novas? Custa-me a ser-te fiel entre as reiteradas insistencias do conde, de Eugenia, e da piedade a que indirectamente me compunge Paulina.

«Anceio a tua resposta.

«Dá outro abraço ao meu bom pae. Diz-lhe que eu vou muito cedo aperta-lo ao coração, e que, se o aborrecimento d'esta vida diplomatica fôr assim augmentando, de certo lá ficarei a ouvir o estrondear das caldeiras. Adeus. Muito do coração.

Almeida.

 

 

DE FERNANDO GOMES A HYPOLITO DE ALMEIDA

 

 

«Lisboa, 12 de setembro de 1842.

 

 

«Respondo, meu amigo, á tua cartinha. A esta hora[202] já recebeste a carta explicativa do meu procedimento. Julga-me, e absolve-me, se fui injusto. O meu destino é vêr que as minhas acções, aconselhadas pelo dever, redundam sempre em gravame alheio e desconceito meu. Estou enganado com o mundo. Devo restringir-me, cada vez mais, n'um curto espaço em que todas as operações de minha intelligencia, se reduzam ao trabalho necessario á vida. Só assim poderei achar um cantinho da sociedade, onde caiba com a minha insignificancia.

«Cuidei que, saindo de Madrid, deixava essa senhora em paz comsigo e com o mundo. Puz o coração debaixo dos pés, e nem assim consigo a liberdade do espirito!

«A entrada de Paulina no convento, a meu parecer, significa uma fadiga de alma, que faz as mulheres eguaes aos homens. Paulina soffreu; creio que sim. Está repousando para reassumir as poderosas faculdades de sua juventude, formosura e aspirações. Póde ser que, ao receberes esta carta, ella tenha já deixado o mosteiro pelas salas; e ámanhã deixará as salas pelo mosteiro. Paulina lê romances. Os personagens femininos, da novella moderna, são quasi todos a copia fiel da brilhante extravagancia do espirito. Leem-se, e a sympathia, em vez do riso, nos impressiona. Imitam-se, onde ha espaço, e é preciso te-lo, ainda assim, para as scenas grandiosas, que, a final, desfecham em tragedias que o mundo, futil e chocarreiro, denomina «comedias».

«Na proxima carta me dirás o proseguimento d'esse estranho passo. Authoriso-te a dizer-lhe, tão directamente quanto puderes, que respeito em silencio[203] todos os seus designios, e peço a Deus, que ao encontro d'elles, lhe saia o anjo da felicidade. Em quanto a ama-la, faz-lhe sentir que eu sou bastante desgraçado para não poder esquece-la.

«Vou ámanhã ao Porto a fim de solicitar o embolso de algumas dividas de calçado que lá devem a meu pae as lojas que se forneciam de nossa casa. Tudo é necessario para ir custeando estas grandes despezas. Já vês que estou feito caixeiro de cobrança de uma loja de sapatos. Para bem desempenhar estas funcções, levo comigo as minhas cartas de bacharel formado em leis!

«Vou ver as paragens onde vimos juntos a morte tantas vezes! Procurarei o rochedo das Antas, onde me encostei ferido no dia em que fui condecorado. Ama o teu camarada d'aquelles bons dias de sangue, de esperanças, de alegrias.

Fernando.

 

 

de Hypolito de Almeida a Fernando Gomes

 

 

Madrid, 25 de setembro de 1842.2

 

 

«Meu amigo.

«Bartholo de Briteiros está na eternidade. O marquez gallego foi o indirecto homicida do lambaz Briteiros! Houve jantar opiparo no hotel. O amphitrião recolheu-se pesado á cama, e, se adormeceu, acordou na eternidade.[204]

«Não fez testamento. Achou o conde umas declarações, ou norma de testamento, que dão noticia da grande fortuna de Bartholo. Orçam-n'a em seiscentos contos, em differentes especies.

«Paulina saiu do mosteiro para a companhia de Eugenia. Fiz a minha visita de pezames ao conde, que me disse ir brevemente a Portugal liquidar a herança do sogro, e vae depois para França. É de suppôr que Paulina acompanhe a irmã.

«Em vista do que, já não receio que a joven menina pereça no mosteiro.

«Ninguem me tem fallado de ti. A tristeza de Paulina sei eu que é inalteravel.

«Diz-me o que fazes: fala-me da tua familia. Teu sempre extremoso

H. de Almeida

 

 

Nenhuma outra carta nos veiu á mão.

Fernando Gomes, voltando do Porto com os creditos de seu pae liquidados, melhorou o pessoal dos operarios, e alargou o seu commercio, creando freguezias de lojas nas terras que percorreu. Em toda a parte encontrou condiscipulos, que se maravilharam de o verem agenciando os interesses d'uma loja de sapateiro. Deu isto em resultado que ninguem o visitou nas estalagens onde se aposentava.

Francisco Lourenço mostrava-se penalisado de vêr seu filho occupar-se em tal mister, tão incongruente com sua educação. Reconhecia a iniciativa melhoradora do estabelecimento; mas, ainda assim,[205] pedia-lhe incessantemente que requeresse um emprego, allegando sua instrucção e serviços.

Fernando, submisso a seu pae, aos prantos da mãe, e meiguices das pobres irmãs, requereu, apresentou ao ministro seus papeis, foi tres vezes á audiencia geral do secretario de Estado, e esperou.

De vez em quando ia examinar o seu nome no livro da secretaria, e lia sempre: esperado.

Este esperado é regularmente o prologo do indeferido. Indeferiram-lhe o requerimento. O logar pedido na thesouraria fôra dado a um filho de regedor, que puzera ás ordens da situação oito votos e quatro cacetes, que valiam vinte e quatro votos.

Fernando leu o despacho no Diario do Governo, leu os commentarios n'um jornal da opposição, e riu-se.

Pegou na medalha de Torre e Espada, embrulhou-a n'um papel de mata-borrão, e enviou-a ao ministro, com esta carta:

 

«Excellentissimo. As honras a quem competem. Faça vossa excellencia presente d'isso ao meu feliz competidor. Ganhei essa coisa por ter suado sangue a favor d'esta causa em que o merito do cacete devia ser instaurado. O cacete venceu. Agora competem aos sacerdotes do pagode, que eu ajudei a erguer, as condecorações que nada prestam aos operarios inactivos. Eu, e o meu competidor, que ceifou o carvalho civico com o cacete paterno, o que fizemos foi derramar sangue de irmãos. Devemos hombrear nas honras. Ora, os arrependidos devem rejeita-las em favor dos contumazes.[206] Deus guarde a vossa excellencia, como todos havemos mister, e de veras lh'o deseja o criado inutil de vossa excellencia, Fernando Gomes, com loja de sapateiro na calçada do Sacramento, n.º 11—Lisboa.»

 

O ministro recebeu a carta e o embrulho. Pensou em autoar o signatario; mas o official maior pediu licença para observar a sua excellencia que a carta não encerrava injuria pessoal nem collectiva, salvo aos caceteiros, por cuja honra não ficava airoso ao ministro saír. Assim acabou o episodio.

Fernando Gomes passou de agente exterior a fiscal da officina. Descia á loja, e examinava de perto a labutação; ajudava a encaixotar o calçado, e assignava, em nome de seu pae, a correspondencia com os freguezes. Os officiaes antigos respeitavam-n'o, dando-lhe sempre o epitheto de doutor. Ora o doutor um dia, alto e bom som, disse a todos os seus officiaes que se chamava Fernando.

Esta metamorphose divulgou-se, contada pelos operarios. É admiravel que ninguem lhe désse grande peso! Muitos doutores disseram: «se elle viu que não tinha geito para mais nada, fez bem em se fazer sapateiro, assim como dizem que o pae se queria transformar de sapateiro em poeta».

O mundo tem d'estes escarneos, que fazem vontade de perguntar ao Creador se está contente com a obra que fez.

Á força de muito observar, Fernando já sabia talhar umas botas como se fosse creado no officio. Diante, porém, do pae não ousava fazel-o, nem os[207] officiaes ousavam dizel-o ao velho. Parecia a Francisco Lourenço que o trabalho de talha andava muito supprido, e elogiava a actividade do contra-mestre encarregado d'aquelle serviço. Elle, por si, o pobre cego, nada fazia já.

Fernando passava todas as noites em casa, ora contando á mãe e irmãs o que vira em suas viagens; ora lendo a seu pae os poetas relidos na infancia, e os livros de historia e viagens, que elle trouxera do estrangeiro. Estas leituras coavam calor de contentamento, a través dos setenta invernos de Francisco Lourenço, e embalavam o rebelde somno da mãe, que acabava por adormecer entre o seu rozario e uma descripção dos gelos polares por Cook.

Esta vida durou assim seis mezes. É de crer que n'este espaço se trocassem interessantes cartas entre Fernando e o secretario da legação. Como as não alcançámos, o que podemos conjecturar é que Paulina se conservou em Madrid esperando que o seu saudoso amigo, alguma hora, alli voltasse, conduzido pelo amor, ou pelo pezar de tão dura ingratidão. Não sabemos se o conde veiu a Portugal liquidar o patrimonio de sua mulher, como Almeida annunciára. Se veiu, é muito de suppôr que ninguem em Lisboa lhe désse noticias do chevalier Ferdinand Gomes, como elle euphonicamente o conhecia.[208]

 

XXI

Estava um dia, 5 de janeiro de 1843, Fernando Gomes na loja da calçada do Sacramento, aviando uma carregação de fazenda para o Porto.

Antes de descer á loja, sua mãe, quando ia para a mesa do almoço, abraçou-se n'elle, e disse-lhe:

—Olha Fernando, tu não crês em sonhos, e eu creio!... Tive um sonho alegre!...

—Então sonhou que vendiamos algumas grozas de botas, minha mãe? Os nossos sonhos alegres não pódem ir mais além d'esta ambição de vender muito sapato.

—Bemdito seja o Senhor, que nos ajuda, filho!—disse a velhinha.—Desde que tu diriges a casa, parece que tudo levou volta! Olha que teu pae já disse que, se assim continuarmos um anno mais, havemos de resgatar os nossos bemzinhos do Cartaxo.

—Então sonhou, minha mãe, que estavamos outra vez proprietarios no Cartaxo?[210]

—Não foi isso, Fernando... Sonhei mais alguma coisa... Sonhei que te via vestido de principe.

—De principe?! Ólé! de principe! Sabe o que deu causa a esse sonho?

—Que foi, meu filho?

—É porque hontem á noite estivemos a conversar a respeito do entrudo, que está á porta. A mãe adormeceu com a ideia do entrudo, e por isso sonhou que me via vestido de principe. Não foi outra coisa, minha querida mãesinha... Venha almoçar, que eu levo-a pelo braço, como em casa de Jeronymo Bonaparte levei uma vez a princeza Carolina.

—Valha-te nosso Senhor! não me deixas dizer o meu sonho até ao fim!—tornou ella, dando-lhe uma fagueira palmada na face esquerda.

—Pois o sonho estava no principio, minha mãe?

—Estava... Credo!

—Cuidei que o principe acabava principe. Querem ver que elle se fez sapateiro?

As irmãs riram; e o velho, abrindo os seus grandes olhos cataratosos, largou tambem uma casquinada de alegre riso.

Fernando temperou o chá de sua mãe, serviu o pae, e proseguiu:

—Ora agora, ninguem a interrompe, mãesinha. Exponha lá as suas alegres visões.

—Tu eras principe; ou estavas vestido de principe; mas, através do peitilho da farda, batido a ouro, via-se-te o coração. Quando tu assim estavas, começaste a chorar, porque descera do céo um anjo, e te levara o coração para Deus. N'isto appareces vestido de negro, muito pallido, menos no logar do[211] rosto onde corriam as lagrimas, que brilhavam como diamantes. Quando assim estavas muito triste, e nós todos a chorar comtigo, torna a descer o anjo, e dá-te o coração, que te havia levado, dizendo-te umas palavras, que se me varreram da memoria. Eis se não quando, appareces vestido todo de resplendores de luz, com um semblante muito luminoso, e uma alegria, como a pintam no rosto dos bem-aventurados que adoram o Altissimo. Teu pae estava como absorto a olhar para ti, eu tambem, todos riamos e choravamos de felicidade, ao mesmo tempo, e n'este momento é que eu acordei.

—Alegre sonho, minha mãe! disse Fernando. O que eu agora queria era que vocemecê me explicasse o como se ha de converter em realidade esse bonito vestido de resplendores.

—Pergunta-o ao Senhor que me deu o sonho, filho, disse a mãe.

—O seu chá arrefece, tornou Fernando, eu faço-lhe outra chavena.

—Pois sim, meu querido filho; tem paciencia, que eu estou a tremer o queixo. A velhice parece que traz comsigo uma constante Siberia!

—Vejo que ainda se lembra das suas lições de geographia, que o pae lhe dava ha vinte annos, minha mãe. Ainda sabe que a Siberia é fria!

—Não, que tu cuidas que a velha ha de ser estupida por que é velha!...—disse ella risonha.—Olha que ainda ás vezes recordo os versos do nosso Bocage, e do nosso Francisco Dias Gomes. Este era do nosso sangue; o outro era do nosso coração, não era Francisco?[212]

—Oh! se era! estou-o vendo, como se fosse hontem, quando elle, na mercearia, a S. Sebastião da Pedreira, me improvisou os versos com que eu te venci, minha ingrata! Amaste-me por não poderes amar o Bocage, não foi? Ora confessa a verdade, que eu agora já não tenho ciumes...

—Olha o tolo!—disse a senhora Maria Luciana, com a bocca cheia pelo bocado de pão, rebelde aos seus raros dentes.—Lá que os versinhos me encantaram, isso te juro eu que sim, Francisco... Não sei o que seria se me dissesses em prosa aquellas coisas... Tu eras tão acanhado quando ias lá a casa! Olha se te lembras que para me dares um raminho de violetas em dia de meus annos, andaste a pedir ao aprendiz, quinze dias antes, que m'o entregasse...

Fernando e as irmãs sorriam, sem quebra de respeito, d'estas amorosas reminiscencias dos dois velhos, que trocavam gracejos, que era um como prazer de lagrimas ouvi-los, de lagrimas, digo, para ouvintes que tivessem coração muito sensivel ás poucas coisas commoventes que tem a vida humana.

Findo o almoço desceu Fernando á loja, como já se disse começando este capitulo.

Acabára elle de dar saída aos caixões de embarque, e outras ordens, quando Hypolito de Almeida apeou d'uma carruagem, com as cortinas corridas por dentro das vidraças.

Fernando viu-o no limiar da loja, e correu a abraça-lo, exclamando:

—Que surpreza! Eu não te esperava, meu querido[213] amigo! Subamos á saleta. Deixa-me ao menos tirar esta jaleca!

Almeida fitou os olhos no amigo do cêrco, de Coimbra, de Paris, de Madrid, e as lagrimas rebentaram-lhe a quatro.

—Isso que é?—disse Fernando.—Que tens tu, Almeida?

—Tenho a alegria, que precisa chorar como a dôr. A tua virtude causa-me uma vehemencia de respeito, de piedade, sensações tão estranhas e fortes, que me fazem isto que vês, estas não sei se primeiras lagrimas de minha vida. O que tu pudeste sobre ti, ó Fernando!

Os officiaes pararam de trabalhar, enleados n'este lance, e chorando sem comprehender o alcance do que viam.

—Subamos—repetiu Fernando commovido.—Vem dar um abraço em meu pae, em paga dos muitos abraços que tenho dado no teu.

—Pois sim, vamos—tartamudeou Almeida, n'uma irresolução.—Vamos... tambem quero vêr tua mãe...

Subiram, e os dois velhos vieram logo espontaneamente á saleta por ouvirem pronunciar o appellido Almeida.

—É o amigo do nosso Fernando—disse Francisco—vem d'ahi, Maria! vem abraça-lo.

Oh meu Deus! que magnificos lances preparam as vossas divinas leis! Quantas vezes, e quantos lances assim passam despercebidos na obscuridade onde vivem os vossos eleitos!

Os dois velhinhos acharam-se nos braços de Hypolito[214] de Almeida, que sentiu em suas faces as lagrimas de ambos. Fernando, electrisado por aquelle instante da vida do céo, beijou a mão do amigo, por que elle assim respeitava e amava seus paes humildes.

Almeida parecia querer dizer alguma coisa que se lhe não moldava á expressão. Aquelle vacillar, e olhar d'um para outro rosto, o começar e recomeçar da phrase, terminou por esta abrupta pergunta á mãe de Fernando:

—Minha senhora, quer ter a delicadeza de offerecer a sua casa a uma dama, que veio em minha companhia, e me está lá fóra esperando na carruagem?

—É sua irmã, senhor Almeida?—perguntou a velha.

—Não tem irmã—disse Fernando.—Será sua esposa. Queres surprehender-me com a tua noiva? é hespanhola?

—Não é noiva—tornou o secretario—é irmã.

—Irmã!—redarguiu Fernando com espanto.

—Sim, irmã, porque tu és meu irmão.

—Como?!—exclamou impetuosamente Fernando.

—Vá, vá!—volveu Almeida—vá, minha senhora, offerecer a sua casa á sua filha Paulina, que vem aqui pedir-lhe a mão de seu filho!

—Fernando já tinha corrido a escada abaixo; mas, a meia descida, parou, olhou para si, e viu-se n'aquelle traje. Hesitou instantes, e disse:

—Porque não?! Ainda me torturas, miseravel vaidade!

A mãe seguia-o de perto, ajudada por Almeida.[215]

Em seguida iam as duas irmãs de Fernando, cada uma com seu filhinho nos braços.

Francisco Lourenço, que mal descortinava as escaleiras, ia mui de manso, tacteando o mainel da escada.

Fernando abriu a portinhola da carroagem.

Paulina saltou-lhe aos braços; e, antes de proferir palavra, rompeu n'um chorar e soluçar tão suffocante, que, nos braços dos dois e da velhinha, foi transportada para o pateo.

Fernando ajoelhou á beira de Paulina, que recostava a face desmaiada ao seio de Maria Luciana. Uma das creancinhas, do colo de sua mãe, estendeu-lhe a mão a um dos anneis dos cabellos negros.

Paulina abriu os olhos, e sorriu á creança, e apertou a mão de Fernando.

Maria, com as mãos erguidas, murmurou:

—É o anjo do Senhor que volta com o coração de meu filho. Vejo-te agora vestido de resplendores, Fernando!

O moço lembrou-se do sonho de sua mãe, e respondeu beijando-lhe a mão.

Ainda agora chegava Francisco Lourenço. Pediu que o deixassem approximar de Paulina, e disse com a voz convulsa de lagrimas:

—Eu lhe agradeço, minha senhora! Eu lhe agradeço o bem que faz ao meu virtuoso filho. Deus a abençôe, santa, que soube avaliar os merecimentos d'este anjo. Deixe-me rojar as cans aos seus pés, que não ha desaire n'esta humildade do pobre velho, ainda que elle fosse um rei![216]

Paulina abraçou-se expansivamente ao artista, e chamou-lhe pae.

—Pae! meu Deus!—exclamou elle—Com que liberalidade me pagaes os padecimentos de alguns annos! Minha filha, que immensa alegria vem trazer a tantos que a pediam ao Senhor! Eu quero que meu filho sinta mais intensa felicidade que eu!...

Paulina sahiu amparada ao braço de Fernando, e no pescoço de Maria Luciana. Entraram na saleta da livraria. Era a riqueza d'aquella casa. Sentou-se a ditosa na cadeira de Fernando, junto á meza onde elle fazia as suas leituras. Relanceou os olhos sobre a mesa, e viu na capa d'um grosso volume de papel almasso esta palavra—Paulina.

Lançou rapida mão ao livro. Leu das ultimas paginas escriptas as linhas finaes, que diziam assim:

 

«Porque te vejo ainda, ó abençoado anjo do meu infortunio! Que luz é que tu me mandas em sonhos, se o meu despertar é sempre no meu abysmo de saudade?... Ainda te verei, ó Paulina?...»

 

Ergueu-se, escarlate d'alegria, o anjo abençoado d'aquelle augusto infortunio, abraçou Fernando com fremente ardor, e disse:

—Pois não vim eu trazer-te a luz dos teus sonhos, meu querido Fernando?[217]

 

CONCLUSÃO

Fernando Gomes não pedia explicações de sua felicidade a Hypolito de Almeida, nem a Paulina de Briteiros.

Aquellas alegrias tinham ainda a vaga desconnexão d'um sonho.

Os enlevos do presente não pedia ao passado a sua razão de existencia.

Os paes, e as irmãs de Fernando, pallidas e melancholicas meninas, tão na madrugada da vida desgraçadas, pareciam estar agradecendo a Paulina o bem que fazia a seu irmão, unico amparo d'ellas.

Almeida, quando pôde falar, sem desdizer da eloquencia das lagrimas da bem-aventurada familia, disse gravemente o seguinte:

—Fernando, eu já te vi de joelhos aos pés d'esta senhora; mas não te ouvi pedir perdão...[218]

—Ah! exclamou Paulina, apertando ao seio Fernando para que has de tu ajoelhar-te? Não quero, meu querido amigo. A mais desgraçada não era eu!... Eu sabia que havia de encontrar-te, Fernando; tu é que não esperavas mais ver-me. Eras incomparavelmente mais atormentado que eu...

—Mas, atalhou Almeida, vossa excellencia dá-me licença de expôr o relatorio conciso... (o sizo, n'estes relatorios d'amores, é extraordinaria coisa...)

Fernando e Paulina sorriram com o secretario, que proseguiu:

—Expôr o relatorio, dizia eu, dos imperiosos acontecimentos que me constituiram na gloriosa obrigação de ser o mais ditoso dos casamenteiros. Permitte vossa excellencia?

—Se fôr sempre engraçado como começa, consinto, disse Paulina.

—Como hei de eu ser engraçado contando uma historia de lagrimas, minha senhora?

—Então não diga, não diga; eu contarei tudo ao meu Fernando. São poucas palavras, meu amigo; é uma só palavra... amava-te; mas o teu Almeida foi um barbaro! Sabia as minhas angustias, e deixava-me morrer. Mandei-lhe pedir do convento, tantas vezes, que me dissesse em que ponto da terra eu poderia encontrar-te!... Por fim calei-me, e esperei acabar alli, e deixar-te uma lembrança que havia de vingar-me... Não recordemos... não queiras que eu recorde o que soffri, até á hora em que me vi livre para te procurar... Aqui estou, Fernando... É a segunda vez que te procuro... D'esta[219] vez não me deixes mais sair do abrigo da tua grande alma...

Não sei se o prolongar o colloquio d'estas felizes creaturas seria dar ao leitor um quinhão do contentamento d'aquella familia; o que certamente me dispensam, é preambular para chegarmos ao ponto do casamento.

Almeida, n'este mesmo dia, voltou com a licença do patriarcha para os esposorios se celebrarem logo, onde aprouvesse aos contrahentes, dentro do patriarchado.

Paulina quiz ser recebida na egreja onde fôra baptisada, e onde estava a sepultura de sua mãe. Do templo de Santa Izabel passaram a visitar, nas Amoreiras, o palacio onde Paulina tinha nascido.

—Pedia-te—disse ella a Fernando—que ficasses aqui, e a nossa familia toda. Vê tu como em vinte e quatro horas o nosso bom Almeida fez mobilar esta casa, ha nove annos deshabitada! Meu pae não consentiu nunca que vivesse alguem na casa onde minha mãe tinha morrido... Olha, Fernando, n'este quarto morreu ella e nasci eu!...

Desceram ao jardim. Lá estavam os canteiros, mas nenhuma flôr das que ella memorava com infantil saudade em Florença.

—Ellas renascerão!—disse Paulina.—Nós teremos as minhas flôres, Fernando! Serão os meus enfeites nos dias memoraveis de nossos prazeres e amarguras! Na felicidade deve ser tão doce recordar os gosos como as lagrimas...

A familia de Fernando aposentou-se no palacio das Amoreiras. A loja da calçada do Sacramento[220] fechou-se, depois que Francisco Lourenço andou repartindo por asylos, e cadeias, e familias pobres, a fazenda com que ia recomeçar a prosperidade do estabelecimento.

O primeiro e unico desgosto que assaltou, de surpreza, Fernando Gomes, foi quererem os governos faze-lo por força visconde. O ministro que, á conta da remessa da medalha e da carta memoranda, o quizera metter nas garras da justiça, era o mais pertinaz thuribulario do homem que, um anno antes, fôra vencido em concorrencia com o filho do regedor. O ministerio estava entalado entre o Banco de Portugal e a divida activa, e a divida passiva, e a divida fluctuante. Fernando Gomes era convidado a salvar a ordem e as liberdades patrias, mediante cincoenta contos, garantidos pelas contribuições directas, indirectas, quinto para amortisação, real de agua... garantiam-lhe os cincoenta contos até com os brilhantes da corôa, se elle pagasse á guarnição do Porto, que ameaçava sublevar-se. Fernando Gomes teve pejo de ser portuguez, e respondeu que pagaria os direitos do viscondado se o dessem ao sobrinho do regedor, o qual sobrinho do regedor—diga-se aqui de passagem—chegou a ser visconde, sem que ninguem lhe pagasse os direitos.

Francisco Lourenço morreu em 1848, e a senhora Maria Luciana dois annos depois.

Tão ditosos lhes correram estes ultimos annos da existencia, que mais parece que os anjos vieram a traslada-los de um céo para outro.

Gracinda e Genoveva educaram seus filhos na[221] abundancia e melindre com que foram educados os de Paulina. Entre a filha do nobilissimo Briteiros e as empobrecidas filhas do artista, nenhuma estrema observavam os servos e a sociedade. As pompas no trajar eram eguaes, e raro se encontrava uma sem as outras nos bailes, onde Fernando ia por comprazer com sua mulher, e ella por comprazer com as invenciveis prescripções do mundo.

Eugenia passava em Paris os invernos, e alguns passou em Lisboa. Todas as damas bem sorteadas em felicidade conjugal, poderiam inveja-la, menos Paulina. A condessa de Rohan dizia que, a não o ter, teria pedido a Deus um marido como o de sua irmã.

São volvidos vinte annos. Paulina deve ter quarenta. É ainda uma d'aquellas privilegiadas formosuras, que Deus faz e conserva para que a adoração dos esposos não afrouxe nunca. Fernando Gomes, a orçar por cincoenta e dois annos, promette prolongada vida: a alegria do coração, e da consciencia é muito na pureza do sangue, no equilibrio nervoso, e n'esta suprema felicidade humana chamada saude, isto havemos de inferil-o da nenhuma concorrencia de medicos e padres ao palacio das Amoreiras.

Quem alli é certo, todas as noites, é Hypolito de Almeida, conde de S. Salvador, par do reino, ministro de estado honorario, e padrinho dos dois filhos de Fernando. Como é riquissimo e solteiro, espera-se que os afilhados lhe succedam na herança.

A um seu amigo contou o conde de S. Salvador que, um d'estes ultimos dias, Fernando Gomes descia[222] a calçada do Sacramento com sua mulher e filhos. Em frente da loja onde morou Francisco Lourenço, parou Fernando, chamou os filhos, e disse-lhes:

—Vosso avô foi cincoenta annos sapateiro n'esta casa. Se alguma vez o orgulho vos quizer perder, vinde aqui, e lembrae-vos que vosso honrado e santo avô foi cincoenta annos sapateiro n'esta casa.

E voltando-se a Paulina, disse-lhe:

—Lembras-te, filha?... Ha vinte e dois annos, feitos em cinco de janeiro, que tu apeaste n'este mesmo sitio... Foi aqui... Minha mãe e eu levámos-te em braços para aquella pobre salinha dos meus livros. Recordas-te, Paulina?

A senhora, com os olhos turvos de lagrimas, apertou a mão do marido, que lh'a beijou sem pejo de seus filhos.

 

Ha um annexim, que diz:

Procurar agulha em palheiro.

É baldado empenho?

Pois eu assevero que, uma vez, procurei uma, e achei-a!

E, desde então, com a minha infinita paciencia, acho tudo que quero, n'este palheiro da humanidade, mórmente quando os individuos, que procuro, teem devorado a palha, e se me apresentam a nu,—coisa que me tem acontecido mais vezes do que mereço a Deus.

Agora não espero achar tão cedo sujeito como Fernando Gomes.

Paulinas de certo ha muitas. As senhoras, em geral,[223] são, como ella, todas, todas, quando encontram homens como aquelle.

Nós, miseraveis despotas e miseraveis escravos, é que as fazemos más ao parecer do mundo; mas na pureza de sua essencia, na angelica porção que trazem do céo, não podemos nós corrompel-as.

Se não, corrompiamos.

Ó santas do infortunio, vós sois, no juizo de Deus, como as santas da virtude!

FIM

[224]

[1] Dizia assim:—«Guarde o seu segredo; mas diga ao seu amigo que ainda o amo, e cada vez mais o admiro. Peça-lhe que me accuse, para eu poder defender-me. Pergunte-lhe se eu mereço tal desprezo!»

[2] Fernando recebeu, voltando do Porto, em começo de outubro, esta carta, com atrazo de oito dias.






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