Nota de editor:
Devido à
existência de erros tipográficos neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Dez. 2008)
Á COLONIA PORTUGUEZA NO BRAZIL
A LUCTA CIVIL BRAZILEIRA
E O
SEBASTIANISMO PORTUGUEZ
POR
CUNHA E COSTA
ADVOGADO E JORNALISTA REPUBLICANO
PORTO
TYPOGRAPHIA DA EMPREZA LITTERARIA E TYPOGRAPHICA
178, Rua de D. Pedro, 184
1894
A LUCTA CIVIL BRAZILEIRA
Á COLONIA PORTUGUEZA NO BRAZIL
A LUCTA CIVIL BRAZILEIRA
E O
SEBASTIANISMO PORTUGUEZ
POR
CUNHA E COSTA
ADVOGADO E JORNALISTA REPUBLICANO
PORTO
TYPOGRAPHIA DA EMPREZA LITTERARIA E TYPOGRAPHICA
178, Rua de D. Pedro, 184
1894
ÁS HONRADAS MEMORIAS
do
Dr. José Falcão
a mais nobre figura moral do partido republicano portuguez
e de
José Chrispiniano da Fonseca
o melhor dos amigos,
o mais dedicado dos correligionarios e a mais brilhante intelligencia
da mocidade das escolas portuguezas em 1890-1891
|
D.
Estas paginas de propaganda
sincera e patriotica
O A. |
Aos Ex.mos
Snrs.
Dr. José Calmon N.
Valle da Gama
e
Antonio Tavares Bastos
Dig.mos Consul e
Vice-Consul da Republica dos Estados-Unidos
do Brazil no Porto
|
Homenagem
de muita estima
e consideração do
A. |
A revolta de uma parte da armada brazileira,
ás ordens do contra-almirante
Custodio de Mello, em 6 de setembro
de 1893, encontrou no sebastianismo portuguez
o mais franco e decidido appoio.
A imprensa monarchica, na sua grande
maioria composta de simples salariados ás
ordens dos depositarios das graças e dos benesses,
sem as condições de independencia
necessarias a quem pretende escrever o que
pensa, aproveitou o ensejo para novas e torpes
especulações, da natureza d'aquellas a que
deu azo a entrevista de Badajoz entre republicanos
hespanhoes e portuguezes. Por seu
turno, o jornalismo democratico, imperfeitamente
[10]
informado e receioso de errar em face
das noticias mais absurdas e contradictorias,
não poude, a principio, desmascarar, como
lhe cumpria, os manejos indecorosos que, á
sombra de uma bandeira mal definida, os sebastianistas
de aquem e de além-mar iam
urdindo na treva contra as novas instituições
brazileiras.
Só quem por dever de officio conhece a
imprensa monarchica portugueza, o seu pessoal
e os seus processos de combate, poderá
fazer uma ideia clara e nitida dos extremos
de villania a que aqui se desce para,
à
outrance,
defender a realeza expirante e os interesses a
ella vinculados. Nas questões internas como
nos conflictos internacionaes, a injuria, a calumnia,
a insidia, a mentira, a ausencia absoluta
de todos os escrupulos, são materia corrente
de uso quotidiano, e tão formal e completo
é o desprestigio d'esse jornalismo alquilado,
que os seus desmentidos ou negativas,
por via de regra, são recebidos pelo publico
como a prova mais concludente dos factos
ou das affirmações cuja veracidade pretende
contestar-se.
A acção perniciosa d'essa imprensa e dos
[11]
seus agentes, não raro vae até ao ponto de
preparar ao jornalismo republicano verdadeiras
ciladas, cujos effeitos, só mercê de extrema
reserva e de uma vigilancia constante é
possivel destruir. É frequente, por exemplo,
receberem-se nas redacções dos jornaes
republicanos
informações completamente falsas,
apadrinhadas por nomes suppostos e precedidas
das expressões as mais encomiasticas
para a causa republicana e para os seus apostolos.
D'aqui as difficuldades de uma tal lucta
e os excessos de prudencia a que nós, jornalistas
republicanos, somos obrigados, no
cumprimento da nossa missão nobre, honrada
e patriotica.
Se assim succede em questões que se passam,
por assim dizer sob os nossos olhos, e
cuja analyse e critica são relativamente faceis,
calcule-se o que succederá com acontecimentos
que tem por theatro de acção um paiz
distante, estudado pelos portuguezes sob pontos
de vista mais ou menos mercantis e cuja
evolução politica e social se exerce em sentido
diametralmente opposto ao desejado pelo
systema que providencialmente nos explora!
É para nós ponto assente que os
Bragança-Orléans
[12]
e respectivos serventuarios, de
mistura
com todos os especuladores de bolsa
compromettidos na desenfreada jogatina dos
ultimos tempos, se deram as mãos n'esta
campanha que parece terminada com a rendição
do
ex-neutro sr. Saldanha da Gama. E
porque
muita gente o sabe, e porque o sabem o
governo e os republicanos brazileiros e porque
sobre a colonia portugueza no Brazil recahem
as mais graves suspeitas, é necessario
que toda a verdade se diga, que luz se faça
n'esta embrulhada, para que a parte honesta,
viril e sã do povo portuguez não venha a
soffrer as deploraveis consequencias da inepcia
de uns, da insania de outros, da ignorancia
de não poucos e dos interesses inconfessaveis
da maior parte.
Não consiste o patriotismo em occultar
sob apparencias enganosas e falsas como europeis
de saltimbanco as culpas, os erros e
os crimes das instituições que ainda nos regem
e dos que á sombra da sua impunidade
protectora nos conduziram á ruina, á miseria
e á ignominia;―dos que malbarataram os recursos
nacionaes e fizeram com que o nosso
nome e o nosso credito fossem arrastados pelas
[13]
praças e esquinas dos grandes centros de actividade
e de riqueza em
placards
insultantes;―dos
que pouco a pouco fôram corrompendo
este organismo a que pertencemos, fazendo-lhe
perder o culto das praticas civicas, adormentando-lhe
as energias, prostituindo-lhe a
individualidade e o caracter;―dos que arvoraram
em systhema de administração o binario
conjugado do imposto e do emprestimo e o
processo governativo da compra das consciencias
alquiladas a peso de ouro;―dos
que, impotentes para conter por mais tempo
a indignação popular e os clamores de protesto,
rasgaram violentamente o pacto constitucional,
supprimindo de facto as liberdades
publicas, o direito de reunião, o direito de
associação, a livre faculdade de interpetrar
pela palavra e pela penna a vontade nacional;―dos
que collocaram a grande familia democratica
fóra da legalidade, burlando o suffragio,
roubando o voto, fusilando o eleitor;―dos
que, ao cabo de largos annos de recurso
ao credito, deixam o paiz sem defesa,
com um exercito sem soldados, e as colonias
sem garantia, com uma armada sem navios!
Não. Não consiste n'isto o patriotismo.
[14]
Antes julgamos que só a exposição
clara e
leal de tantos erros, de tantas miserias e de
tamanhos crimes poderá ainda accordar n'este
povo, tão glorioso outr'ora, tão abatido hoje,
o remorso da sua quasi cumplicidade e um
supremo esforço no caminho da reacção
e do
protesto.
Essa exposição vamos fazel-a, no cumprimento
de um dever e no uso legitimo de um
direito.
De facto, á obrigação de como
patriotas e
republicanos separarmos as nossas responsabilidades
das dos fautores da nossa ruina, accrescem
ainda circumstancias especiaes que
passamos a explanar.
Fomos nós quem, desde o começo da revolta,
sustentamos a sua illegitimidade, em
successivos artigos publicados no jornal
A
Voz Publica, cuja direcção
politica então nos
pertencia.
N'esses artigos, escriptos com a maxima
convicção, lealdade e
desinteresse,
lamentavamos
que portuguezes se associassem aos manejos
sebastianistas, preconisavamos a necessidade
da nossa colonia se inspirar nas novas
ideias de progresso e ordem, appoiando os
[15]
apostolos da causa republicana no Brazil e
creando entre os partidarios das instituições
implantadas em 15 de novembro uma forte
corrente de sympathias, que mais tarde poderiam
constituir uma solida fonte de vantagens
para o nosso paiz, uma vez n'elle estabelecido
o regimen republicano.
Como porém n'esses artigos, por força
de argumentação, fomos obrigados a
expôr,
ainda que ao correr da penna, as miserias, as
ruinas e os vexames a que a monarchia arrastou
a nossa querida patria, alguns compatriotas
nossos, residentes no Brazil, lembraram-se
de accusar-nos de
falta de
patriotismo, o tal patriotismo
que consiste em calar o opprobrio,
occultar as faltas e deixar impunes os grandes
criminosos... só porque são portuguezes!
Eis o que nos leva a formular umas ligeiras
considerações sobre o assumpto, despretenciosas
mas verdadeiras, e hoje mais do
que nunca opportunas.
Muitos dos nossos compatriotas que emigraram
[16]
para a republica dos Estados Unidos
do Brazil, anteriormente ao
ultimatum de 11
de janeiro de 1890, só imperfeitamente conhecem
as actuaes condições de existencia da
politica e da sociedade portugueza.
De facto, até essa data funesta, o medonho
descalabro a que hoje assistimos, presos
de fundado terror, conservava-se ainda latente,
mercê de circumstancias que não vem para
aqui ponderar, e o espirito publico só em percentagem
minima acceitava os receios e as
previsões pessimistas da imprensa republicana.
Viciada pela educação mais corruptora e
anti-patriotica, a opinião, sempre confiante e
desinteressada dos acontecimentos, taxava de
exageradas as gravissimas accusações por
nós
vibradas contra o regimen vigente, e julgando
um pouco difficil o estado do paiz suppunha
no entanto que essas dificuldades poderiam
demover-se pelo emprego dos expedientes usados
com exito até ahi.
Pode dizer-se que a vida politica da nação,
antes do
ultimatum, se concentrava
em um
pequeno nucleo de firmas conhecidas, bastante
desacreditadas já, mas protegidas pela
indifferença
[17]
publica e pela não
revelação dos graves
erros, attentados e crimes, até ahi cuidadosamente
occultados e que mais tarde vieram a
tornar-se do conhecimento de todos.
D'esta indifferença, d'esta ignorancia, partilhavam
os nossos compatriotas residentes
no Brazil e, desde então, longe do local dos
acontecimentos, dos centros de illustração e
propaganda e absortos no labutar insano da
sua existencia consagrada ao trabalho, muitos
persistiram nos seus erros, não obstante o estendal
de torpezas desenrolado aos olhos do
paiz.
Serve isto para explicar até certo ponto o
mal dissimulado antagonismo de certos elementos
da nossa colonia contra o advento da
forma republicana no Brazil, e o errado ponto
de vista sob o qual foi por elles interpetrada
a nossa attitude em face da revolta de uma
parte da esquadra brazileira, revolta que, a principio
dissimulada sob uma tenue camada de
verniz democratico, se tornou depois, com a
adhesão de Saldanha da Gama, francamente
restauradora de instituições condemnadas e
proscriptas.
A grande maioria dos nossos compatriotas,
[18]
sympathica á causa dos revoltosos, procedeu,
quanto a nós, com inteira boa fé. Homens
simples, por via de regra estranhos ás veredas,
tortuosas da politica portugueza, ausentes no
Brazil desde uma epoca em que Portugal apparentemente
gravitava na orbita regular das
nações de vida equilibrada, honesta e
prospera;―mal
podendo distrahir da sua vida de esforço
e de trabalho o tempo necessario para
inquirir dos recentes acontecimentos, analysal-os,
critical-os e d'elles formar um juizo
seguro, esses portuguezes, aliás movidos pelo
mais nobre e respeitavel dos sentimentos, vivem
n'uma patria psychologica, n'uma patria
ideal, a que corresponde uma realidade objectiva
terrivelmente desoladora!
A par d'esta boa gente, sincera, leal, bem
intencionada, ha por certo alguns especuladores,
actuando, quer por interesses proprios de
baixa esphera, quer por instrucções de mandantes
vinculados á cevadeira monarchica portugueza.
Mas esses são bem conhecidos e a
sua punição deixar-nos-hia indifferentes,
senão
jubilosos.
É necessario porém, é mesmo
indispensavel,
que os interesses geraes do paiz, que
[19]
os interesses dos nossos compatriotas residentes
no Brazil, não venham a soffrer da inepcia,
da insania ou dos intuitos inconfessaveis
de alguns especuladores professos; é mister
que a nossa colonia, tão honrada e tão
trabalhadora,
esclarecida pelos que tomaram a seu
cargo cooperar na creação de um novo Portugal,
digno de grandiosas e quasi esquecidas
tradicções, crie no seio da grande republica
um forte nucleo democratico, a um tempo solidario
no movimento progressivo da poderosa
Federação sul-americana e auxiliar
importantissimo
do movimento democratico
portuguez.
É no desempenho d'este nobre papel,
d'esta missão verdadeiramente util, que a colonia
portugueza no Brazil póde prestar á
sua patria o melhor dos serviços.
A normalidade da vida portugueza não
póde hoje prescindir da cooperação e
auxilio
da Republica dos Estados-Unidos do Brazil.
É n'esse paiz que está porventura o futuro
da nacionalidade portugueza, se um dia
[20]
esta, accordando emfim para a consciencia e
posse dos seus destinos, e fazendo um supremo
appello ás energias que ainda lhe restam,
se resolver a iniciar uma nova existencia
de trabalho e de probidade, readquirindo
um nome que perdeu e rehabilitando uma
firma que lhe deshonraram.
Nem a Inglaterra, nem a França, nem a
Hespanha, nem a Allemanha, para as quaes a
phantasia, a inepcia ou o interesse dynastico
se tem voltado, nas occasiões afflictivas, como
protectoras ou cointeressadas, representam
um elemento solido e efficaz de auxilio e
cooperação.
Ruinosas umas, restrictas outras a interesses
limitados, subordinadas quasi todas a
considerações que por completo lhe alteram
a possivel utilidade e expansão, e ainda a melhor
dependente de um futuro remoto postoque
fatal, essas allianças, convenios, tractados
ou accordos, não representam por fórma
alguma elementos vinculados ao regular
funccionamento do nosso organismo politico,
social e economico, forças componentes
d'esta resultante a que se chama a vida autonoma
da nação portugueza. São ephemeras,
[21]
heterogeneas e repugnantes ou pairam ainda
nos dominios da aspiração doutrinaria,
remotamente
exequivel.
Já assim não succede com o Brazil, cuja
solidariedade comnosco se impõe pela identidade
de raça, de lingua, de costumes, de
tradicções,
continuada desde o periodo da colonisação e
affirmando-se a cada momento,
ainda nas phases de maior antagonismo entre
o elemento nacional e o migratorio portuguez.
Tradicções que mais não podem
apagar-se, semente que mais não pode perder-se,
como nas antigas colonias hespanholas
se não extinguiu nem extinguirá nunca
o fundo castelhano. Factor que a emigração
constante a cada momento renova e mantem
vivo e brilhante, nas relações da ordem civil
e commercial, na arte, na industria, na sciencia,
pela communhão intellectual permanente
entre portuguezes e brasileiros, pela cultura
acurada d'essa lingua commum, tão bella e
tão sonora.
«Ao lado da America germano-saxonia,
com o seu genio practico e utilitario, ficará a
America do sul aos povos que descobriram
ambas e todo o resto do mundo desconhecido.
[22]
Nem a falla nobre do castelhano, nem a
grave lingua portuguesa se perderão, como
accaso viria a succeder se o imperio peninsular
não tivesse sahido da Europa.»
[1]
Sómente essa communhão, essa ampla
fraternidade, que se impõe a todos os espiritos
verdadeiramente interessados na prosperidade
da patria portugueza, tem sido, principalmente
desde o 15 de novembro, sacrificada
a mesquinhas considerações de interesse
dynastico, ao empenho, hoje criminoso,
de manter em Portugal uma instituição condemnada
em nome da civilisação e em nome
da dignidade e do credito portuguez, horrivelmente
compromettidos pelos que á sombra
d'essa bandeira prostituida se locupletaram
fartamente.
Desde o 15 de novembro que os governos
e a imprensa monarchica portugueza
hostilisam surdamente a actual ordem de
cousas no Brazil, causando com esse procedimento,
que é a mais detestavel das politicas,
prejuizos incalculaveis ao nosso paiz.
[23]
A comprovação d'estas
asserções é extremamente
facil. Só poderá pôl-as em duvida
quem nem sequer se dê ao incommodo de
lêr a imprensa diaria.
Ora o governo brazileiro sabe isto. Ora
os homens publicos do Brazil tem d'esta campanha
o mais perfeito conhecimento, além
dos episodios de caracter gravissimo que nós
só imperfeitamente podemos explanar e que,
entre outras consequencias vergonhosas para
nós e em extremo prejudiciaes, deram logar á
retirada de um ministro portuguez no Brazil.
Mas o governo brazileiro, mas os homens
publicos do Brazil, sabem tambem que
com elles está de alma e coração o
partido
republicano portuguez, que esse partido tem
a seu lado a parte nobre, honrada e sã dos
nossos compatriotas, e que a republica é hoje
entre nós uma verdadeira aspiração
nacional.
N'uma palavra:―na grande Federação sul-americana
não se ignora que, em Portugal, os
amigos do Brazil, os seus cooperadores dedicados
e desinteressados, são os membros da
grande familia republicana, os unicos que
vêem com o enthusiasmo sincero de irmãos
em crenças o assombroso progresso d'essa
[24]
terra hospitaleira que para os portuguezes foi
sempre uma segunda patria.
Como se explica essa guerra intransigente
movida contra as novas instituições brazileiras
pela monarchia portugueza, guerra manifestada
na imprensa officiosa por uma fórma
inequivoca, que por vezes assumiu um caracter
em extremo imbecil e inepto, e cuja
insania não trepidou perante a propria
intervenção
dos agentes officiaes?
Facilmente.
Para as instituições que implacavelmente
nos exploram e arruinam, um dos maiores
senão o maior pesadelo é a existencia de um
Brazil republicano, cuja influencia contribue
em grande parte na obra demolidora que ha
muito encetamos contra essa monarchia, que
nos levou á miseria, deshonrando-nos ainda
por cima.
O 15 de novembro foi um golpe fatal
para a grey monarchica. Trouxe ás ideias democraticas
um enorme prestigio, innumeras
e valiosissimas adhesões, estreitou o affecto
que já prendia os republicanos d'aquem e
d'além Atlantico, creou sympathias, solidariedade,
auxilio e protecção.
[25]
Essa influencia benefica foi-se accentuando
rapidamente, á medida que crescia tambem
nos serventuarios da realeza a surda hostilidade
contra a nova republica.
Vê-se que a monarchia comprehendera o
perigo. Somente, n'esta como em identicas
questões, poz completamente de parte os
mais sagrados interesses nacionaes para apenas
se preoccupar com o egoismo do que
ella, a misera, suppunha ser o interesse da
propria conservação! Foi o que a perdeu!
Comprehendendo o perigo, não soube conjural-o
pela tactica, pela habilidade, pela finura.
Tambem, não admira! De ha muito
que as instituições deixaram de ser appoiadas
pelos estadistas para só o serem pelos
aventureiros!
Desde esse momento o seu caminho estava
nitidamente traçado, e começou então
essa
campanha tenaz de intriga, de injuria, de insidia,
de calumnia, em que a par das maiores
falsidades se debitavam as maiores torpezas;―essa
campanha levada a cabo pela sanha
partidaria e pelo ouro de especuladores compromettidos;―esse
libello soez, cuja villania
só é egualada pela inepcia e que não
trepidava
[26]
em publicar como oriundos do Rio, Buenos-Ayres,
Londres e Paris, telegrammas forjados
nas proprias redacções.
Um exemplo bastará.
No dia 13 de março, quando já era perfeitamente
conhecida em Portugal a rendição
de Saldanha da Gama, o
Correio da
Manhã, celebre
pelos telegrammas varios sobre a revolta,
recebidos dos
seus correspondentes
de Paris,
Londres, Rio, Buenos-Ayres e não sabemos
tambem se de Pekin e Massuah, publicava o
seguinte:
«Correu ante-hontem em Lisboa o boato de
que o governo recebera um telegramma em que
se lhe noticiava que o almirante Saldanha da
Gama havia deposto as armas e procurado abrigo
a bordo da corveta Mindello.
Achamos tão extraordinario aquelle boato,
em vista das ultimas noticias recebidas, que não
o quizemos reproduzir, e ante-hontem mesmo,
telegraphamos ao nosso correspondente em Buenos-Ayres,
pedindo-lhe esclarecimentos sobre os
boatos terroristas espalhados em Lisboa.
A resposta, que só hoje nos foi annunciada,
publicamol-a adeante em telegramma».
[27]
Eis o telegramma:
«Buenos-Ayres, 13, 12 h. e 20 m. da
t. (Ao
Correio da
Manhã)―Não se
acredita aqui rendição
Saldanha. Bombardeamento recomeçará
ámanhã. Conta-se
com victoria insurrectos».
Ora uma causa que tem d'estes
defensores
é evidentemente uma causa perdida!
Nem todos porem encaram estas e identicas
prosas com o soberano despreso com que
nós, que lhe conheciamos a proveniencia, as
recebiamos.
Assim, a attitude dos elementos portuguezes
que mais ou menos ostensivamente se
associaram á tentativa restauradora, creou entre
o nosso paiz e os homens publicos do
Brazil profundos antagonismos que poderão
não explodir com extrema violencia, mercê
de circumstancias que não vem para aqui ponderar,
mas que existem, mas que são uma
realidade a que cumpre attender, e que só poderão
sanar-se integralmente no dia em que
Portugal, fazendo justiça imparcial mas severa
e plena, banir do seu solo depauperado
uma monarchia odiosa e odiada e a turba
[28]
multa dos vampiros e sanguesugas, que sob a
sua egide protectora, prosperam, tripudiando
sobre o pouco que ainda resta das velhas fontes
de riqueza.
Se queremos estreitar com o Brazil os laços
que os principios e os interesses aconselham
e dos quaes
absolutamente carecemos,
façamos
a
Republica Portugueza, tornemo-nos
um povo livre, honrado e digno como é o
Brazil, emancipemo-nos de tutelas odiosas e
arruinadoras e chamemos a contas a ignobil
camaradilha que com incrivel impudor nos
roubou a bolsa prostituindo-nos a dignidade.
Eis a obra patriotica. O resto são devaneios,
chimeras, insufficiencia mental ou reincidencia
no erro e no crime.
Ignoram os nossos compatriotas residentes
no Brazil os extremos de ruina a que as
administrações da monarchia arrastaram esta
Patria querida, esta Patria que elles invocam
a cada momento nas suas cartas, nas suas
orações e até nos seus sonhos.
Se soubessem a verdade, se conhecessem
[29]
a extensão do attentado e a profunda ignominia
dos criminosos, talvez que o seu criterio
se modificasse, convertendo-se em odio
feroz, em raiva indomita, contra os auctores
de tamanhas torpezas e contra a instituição
que lhes garante a impunidade.
Vamos, porem, no cumprimento da nossa
missão de propaganda sincera e honrada,
dar-lhes uma ideia, ainda que leve, dos factos
que em appoio dos principios justificam e amplamente
legitimam a existencia do partido
republicano portuguez.
Não recorreremos para tal fim aos nossos
publicistas, aos nossos homens publicos, á
imprensa partidaria. Poderiam as nossas palavras
ser arguidas de
chauvinismo jacobino
e
não faltaria quem, sob essa côr, pretendesse
desvirtuar-lhe a importancia.
A grande maioria dos nossos compatriotas
residentes na republica dos Estados-Unidos
do Brazil dedica-se ao commercio. É o
commercio, é o trafego mercantil, a sua maior
fonte de lucro e de riqueza.
Pois bem, para comprovar as nossas affirmações,
é ao commercio que recorreremos
tambem, á exposição das suas queixas,
ás suas
[30]
proprias palavras. É o honrado corpo commercial
de Lisboa, appoiado pelos seus collegas
de todo o paiz, quem vae responder-nos.
Não poderiamos ter escolhido origem mais
insuspeita! O commercio, como collectividade,
não tem côr politica, não milita sob
bandeiras
partidarias. Completamente independente
e alem d'isso de caracter por via de regra conservador,
as suas declarações não podem deixar
de ser tidas e havidas
na maior consideração.
A doutrina que vamos expôr contem-se
em duas representações da
Associação Commercial
de Lisboa, dirigidas, a primeira á Camara
dos dignos Pares do Reino, em julho
do anno findo e a segunda ao gabinete portuguez,
em janeiro do corrente anno, tendo
respectivamente por titulos:
A) Representação da
Associação Commercial
de Lisboa á Camara dos dignos Pares
do Reino.
B) Ao paiz―Os impostos portuguezes e as
suas applicações.
[31]
N'esses documentos, impressos e largamente
distribuidos, analysa-se a traços rapidos
mas seguros a lastimosa situação a que
chegamos.
Qual ella seja vamos vêl-a.
Tem a palavra os commerciantes portuguezes.
A
―É preciso
dinheiro,―grita-se em toda a
parte; pede-o o illustre ministro da fazenda, que
pretende equilibrar o orçamento do estado, e,
n'este afanoso empenho, tributa-se com a mesma
irreflexão com que se tem esbanjado milhares de
contos de réis.
Pois muito bem, como membros d'uma collectividade,
e das que mais paga para o thesouro,
e como cidadãos portuguezes, assiste-nos tambem
a nós agora o direito―e duplo direito―de dizer
bem alto a todo o paiz onde é que ha de ir
procurar-se esse dinheiro, sem aggravar as classes
trabalhadoras, augmentando a miseria e a fome
publicas.
Terá de ser talvez um pouco longa esta
exposição,
mas a quem quer que a leia, que o faça
a espaços, como se a pequenos goles bebesse um
copo de agua enregelada; mas que a leia em todo
o caso, para que lhe não reste no futuro―e
futuro
que se nos antolha proximo―o direito de
dizer que ninguem o advertiu.
[32]
De ante-mão prevenimos
tambem que no que
vae lêr-se não ha calculos que malsinem as nossas
palavras, nem politicas subjectivas d'um partidarismo
anniquilador, que ensombrem a nossa
conducta; olhamos n'este momento por cima de
todos os partidos e de todas as politicas para os
horisontes da patria.
Ha duas grandes divisões na população
do
paiz:―d'um lado estão os que pagam, do outro
os que recebem, com a aggravante de serem
aquelles em muito maior numero do que estes.
De ha muito que as fontes de receita publica
se reduzem ao imposto, emprestimo e pautas das
alfandegas, sem que até hoje ninguem tenha pensado
em criar outras.
A agricultura, a decantada agricultura d'este
paiz soi disant agricola,
jaz no mais desolador
abatimento, por falta de braços; e no
balanço geral
da Europa, Portugal apresenta na sua producção
uma media annual de cinco decalitros por
habitante. Isto segundo calculos realisados em
1890, calculos mais ou menos provaveis, visto
que da parte do grande productor ha sempre
uma certa reluctancia em fornecer dados para a
estatistica, por motivos faceis de comprehender,
se nos lembrarmos de que ha uma entidade official
que se chama―escrivão de
fazenda.
[33]
Em nome d'uma falsa
protecção, e desprezando
o § 23 do artigo 145 da Carta Constitucional,
que bem claramente estabelece garantias ao trabalho
nacional, transforma-se o Estado arbitrariamente,
por decreto dictatorial, em monopolisador
de farinhas, as fabricas matriculadas monopolisadoras
de trigos estrangeiros, e obriga-se o consumidor
a comprar o trigo nacional pelas tabelas
officiaes.
O commercio torna-se dia a dia mais
difficil.
Ao descredito que no estrangeiro ganhou Portugal,
graças á irreflectida
administração que tem
tido nos ultimos annos, junta-se a miseria nacional
e os córtes de 30 por cento nas
inscripções,
o que veio a cercear os interesses de muitos particulares,
de muitos estabelecimentos, de orfãs e
viuvas, os quaes todos por lei foram obrigados a
converter em titulos de divida publica os seus
haveres.
Durante o ultimo anno, cerca de quatrocentos
estabelecimentos fecharam, por não
realisarem
transacções que lhes dessem para viver, quanto
mais para pagarem as pesadissimas contribuições
que já oneram o commercio.
Na propria rua Garrett (Chiado), rua do
Oiro,
e outros verdadeiros centros do mais importante
commercio, apparecem hoje estabelecimentos com
escriptos, que ninguem arrenda, quando ainda
ha pouco tempo, só pelo trespasse da chave d'essas
lojas se davam contos de réis!
[34]
O proprio commercio de
vinhos―principal
fonte da nossa receita e principal genero da nossa
exportação―está a definhar-se, pelas
doenças
dos vinhedos.
Gados não os temos com abundancia, por falta
de pastagens. Importamos do estrangeiro em
média annual 34:000 cabeças de gado vaccum.
Como se não nos bastassem todas estas desgraças,
ainda as ultimas tempestades vieram reduzir
á fome numerosas familias.
A industria nacional, mal começa a viver,
é
carregada de tributos, porque entre nós só se
procura
o que mais ha de ser tributado, e a industria
morre, semelhantemente á árvore
que o inexperto
lavrador começa de tronchar, ainda antes
de ella dar fructo: de fórma que, á
proporção que
a contribuição industrial vae subindo, a materia
collectavel vae desapparecendo. Provam-no as
ultimas estatisticas. E todavia os nossos financeiros,
os nossos homens publicos, nem sequer reparam
n'este gravissimo prejuizo; preoccupa-os
demais a ancia de lançar tributos sem curarem
das desastrosas consequencias d'esses tributos.
[35]
Para maior descalabro do
nosso meio, a
emigração
torna-se assombrosa; avoluma de instante
para instante: assim a classe média desapparece,
porque não tem no paiz onde exercer a sua
actividade, os capitaes emigram tambem, porque
não ha ramo algum de commercio e de
industria
que não seja em Portugal fortemente e
vexatoriamente
tributado, de modo que á
emigração
dos braços accresce a emigração de
capitaes, e
com estes os grandes capitalistas e proprietarios,
que vão fugindo para o estrangeiro.
Os suicidios―outro symptoma de miseria e
fome―augmentam cada vez mais, confirmando
assim o estado de minacissima ruina d'este desgraçado
paiz.
E tudo isto é a consequencia forçada da
orientação
funesta que temos levado.
Mas o que é mais pungente, é que não
se
muda de orientação. Agora mesmo, obrigados a
fazer humilhantes accordos com os nossos credores,
ainda continuamos vivendo com a mesma
administração dos tempos em que o dinheiro andava
por ahi basto.
Onde appareceu até hoje um só plano de
administração
publica tendente a criar fontes de
receita?
Ás difficuldades do thesouro, ás angustias da
nossa miseria, acode-se sempre com o imposto.
Mas o imposto é impossivel subir mais. Nem o
commercio nem a industria podem satisfazer as
contribuições que lhes são
lançadas. Demais veremos
dentro de breve tempo algumas das fabricas,
que possuimos, fecharem-se, por não poderem
realisar lucros só para contribuições.
[36]
E cada fabrica que se fechar, vejam
bem, representa
centenares de pessoas, que virão para a
rua pedir aos governos que lhes dêem de comer.
Teremos então a
revolução da fome, com todos
os excessos que lhe andam sempre inherentes.
Isto não póde ser.
Portugal precisa de criar elementos de vida,
precisa de arrancar das condições do seu meio e
das aptidões do seu povo a sua propria riqueza,
mas riqueza que não póde ser
esbanjada em alargamento
dos quadros burocraticos, para empregar
mais 200 ou 300 afilhados; em desdobramento
dos corpos de exercito, para promoções rapidas
de officiaes; em remodelações de secretarias,
para se criarem maior numero de directores geraes;
em ampliações de cursos superiores, empiricos
e não uteis, pomposos e não positivos, que
vomitam annualmente para a circulação d'este
meio pobrissimo centenas de diplomados em
qualquer cousa, mas que são outros tantos braços
inuteis debaixo do ponto de vista da producção.
É para isto que devem dirigir-se as vistas de
qualquer estadista, que tenha a energia pombalina,
para arcar de frente com todos estes cancros
da sociedade.
[37]
Portugal, nos seus sete seculos de
existencia
como nacionalidade, nunca soube infelizmente
aproveitar os elementos de vitalidade que as circumstancias
lhe proporcionaram. Pouco depois
de constituida a nação e de affirmada, na
revolução
popular que acclamou D. João I, a consciencia da sua
força e da sua autonomia, veio a conquista
e a exploração do Oriente dar-lhe riquezas
bastantes para enervar o povo pelo luxo e pela
submissão á côrte. E se é
facto que n'essa epoca
Lisboa se tornou o emporio commercial do mundo,
tambem é certo que da essencia de trabalho
e que da cohorte de escravos, de que se compunha
em parte a população fanatica e ignorante,
resultou o grande abalo que feriu de morte o
paiz, na aventura phantasiosa de D. Sebastião.
Mais tarde, quando o Oriente já não dava bastante
para os loucos desperdicios, tivemos o Brazil,
e quando o Brazil se emancipou, era ainda a
America do Sul que nos accudia nas nossas angustias.
A corrente de riqueza emanava d'aquelle
paiz pujantissimo para Portugal, inapto para o
trabalho pelo fanatismo, em que o deixara a preponderancia
jesuitica, e pela subserviencia passiva,
em que o lançara a inquisição.
Aonde não chegavam as riquezas vindas do
Brazil, era supprido pelos successivos emprestimos,
que se realisavam sempre com o falso
pretexto dos melhoramentos, em nome das exigencias
da civilisação, melhor se diria pelas
necessidades da politica.
Foi em nome d'este principio que se contrahiram
fabulosos emprestimos, a mór parte dos
quaes voltavam para os paizes d'onde tinham vindo,
porque os engenheiros incumbidos d'esses
grandes melhoramentos eram estrangeiros.
[38]
As nossas escolas superiores teem sido
prodigas
apenas em bachareis em direito, e todo o
nosso ensino dá como resultado uma grande desegualdade
entre a instrucção primaria e media, e
a instrucção superior.
Os melhoramentos publicos custaram-nos por
tanto milhares de contos mais do que devem ter
custado n'outro paiz, onde a
instrucção seja essencialmente
pratica e positiva, e onde se gaste
menos com o pessoal technico e dirigente, para
se dispender em trabalhadores. E se não,
vejam
em qualquer orçamento, se dois terços da verba,
destinada, a um determinado melhoramento, não
é sempre consumida por engenheiros directores,
sub-directores, inspectores e sub-inspectores, fiscaes
e sub-fiscaes, olheiros e sub-olheiros, uma
horda emfim de pessoal, para o qual se torna até
necessario inventar
classificação.
Por um susto constante, justificado por essas
luctas nacionaes, que baptisaram entre nós a liberdade,
as exigencias sempre crescentes do militarismo,
e sempre satisfeitas, graças ao medo dos
pronunciamentos, foram depauperando o thesouro,
a ponto que só o ministerio da guerra nos
absorve hoje o melhor de mais de cinco mil contos
de réis, sem incluir n'esta verba as despezas
da municipal e policia, guardas fiscaes e policia
fiscal. De modo que ainda que possuíssemos o
exercito tal como o dão as estatisticas,
nós gastamos
só com a força militar mais do que a Dinamarca,
do que a Bulgaria, a Rumania, a Servia,
a Suecia, a Noruega, a Grecia, tanto como
a Suissa, tendo esta o triplo do nosso exercito,
sem fazer despeza com policia e municipaes, sendo
Portugal o paiz que se apresenta com um exercito
mais inferior.
[39]
Não somos nós
quem o diz, mas um ministro
de estado honorario......... o sr. Marianno de
Carvalho, que ainda ha pouco tempo
publicou
no Diario Popular um artigo, que
perfilhou publicamente
na sessão do dia 20, na camara dos
senhores deputados, e no qual dizia que, em caso
d'uma necessidade de mobilisação, nós
só poderemos
apresentar em armas vinte mil homens,
posto que o effectivo do nosso exercito em paz
deva ser de vinte e oito mil homens.
«Mas á falta de soldados, de armas e
equipamentos―continúa
o mesmo estadista―o exercito
compõe-se―além do ministro da guerra, do chefe
do gabinete e do director geral da administração
militar,―de 8 generaes commandantes das respectivas
divisões, assistidos dos seus estados maiores;
4 commandantes militares nos Açores e Madeira;
1 general chefe de estado maior; 1 general
commandante em chefe de engenheria; 1 general
commandante em chefe de artilheria; 1 general
inspector em chefe de cavallaria; 1 general inspector
em chefe de infanteria; 1 general inspector
da escola do exercito, que conta 150
alumnos;
1 general de divisão commandando os 50
pensionistas do asylo dos invalidos; 2 marechaes
de campo; 11 generaes de divisão; 24 generaes
de brigada; 49 officiaes de estado maior; 145 officiaes de engenharia
para 550 soldados; 213 officiaes
de artilheria para 2:895 soldados; 253 officiaes
de cavallaria para 3:390 soldados; 1:136
officiaes de infanteria para 13:392, e emfim 61
officiaes das praças fortes, a maior parte das quaes
está a desmantellar-se.
[40]
«Tudo isto sem contar medicos
nem capellães.
Quanto aos musicos, tambores, clarins, cornetas,
o seu numero attinge a cifra de 2:263; de sorte
que para um total de cerca de 18:000 homens, divididos
em 52 regimentos, contamos em summa
1 general para 514 soldados; 1 official para 9 soldados,
e 1 musico ou clarim para 8 soldados.»
Como isto dá vontade de rir e chorar ao mesmo
tempo...
Mas que importa? Ao menos possuimos um
exercito só de officiaes, musicos e tambores.
Estão
satisfeitas as exigencias d'alguns, e é quanto
nos basta.
Para que nos serve esse simulacro de exercito
que ahi temos, onde é certo, contamos muito distinctos
e dignos officiaes, mas cuja soldadesca se
compõe de inuteis e inhabeis homens, que, bem
applicados, poderiam dar optimos trabalhadores,
industriaes, mechanicos e operarios, emfim braços
productores, forças vivas para o paiz?
[41]
É ainda o mesmo estadista
que responde a
esta interrogação. O exercito
serve apenas para
luxuosas paradas e acompanhamentos de procissões, policia de
feira e
operações da urna
eleitoral. (Marianno de Carvalho,
idem,
ibidem).
E para sermos francos, visto que n'este momento
seria um crime encobrir todo o mal, a
opinião
publica, talvez mal orientada, é-nos grato
crêl-o, chega até a affirmar que
o exercito vive,
satisfazendo-se-lhe as suas exigencias, para
sustentaculo das instituições, para esteio e
amparo
do throno. Não o cremos.
Toda a instituição que viver pela
força, ha de
cahir pela força, porque as
instituições hão de ser
sempre a expressão consciente da vontade da
nação;
teem de viver da communhão de interesses
e da identificação com o paiz a que presidem.
Mais, e mais revoltante ainda:―a opinião
corrente é de que o exercito não custa ao
thesouro
publico a verba de 5:100 contos de réis, que accusa
o orçamento.
Franca e imparcialmente, será isto administrar
um paiz?
Administrar um paiz não é inscrever verbas
colossaes no orçamento geral do Estado, para
manutenção da força que não
existe, e ainda quando
exista, não gasta o que querem que ella gaste.
Administrar um pais não é
falsear o povo
administrado, distrahindo verbas que a opinião
publica aponta destinadas a interesses secundarios.
[42]
O exercito que temos, mesmo completo,
poderia
custar―dizem-no todos os que entendem do
assumpto―o maximo tres mil contos de réis.
Em que se empregam, pois, os
restantes?
É sem se darem inteiras explicações
á opinião
publica por estas e outras responsabilidades
tremendas, que impendem sobre o nossos
administradores; é sem se lavarem d'estas vergonhosas
accusações... que se tem o impudor de vir pedir
aos unicos que podem contribuir para o desenvolvimento
organico da nacionalidade, que paguem mais!
Quando no seculo passado, em 1776,
Turgot
pretendia que, para salvar a França d'uma crise
muito similar á nossa, esta tivesse uma
representação
nacional de todas as classes, desde a communa
até ao Estado; quando luctava pela egualdade
e unidade do imposto e pela diminuição das
despezas; quando pedia liberdade absoluta nos
cambios e no trabalho, e a facilidade de
communicações,
os aulicos, os grandes senhores, envoltos
nos festins da côrte, ultimos reflexos dos
tempos de Luiz XIV, nem sequer o ouviam.
Mais tarde veiu Necker, que não é
senão um
Turgot em miniatura; depois de Necker, Calonne
e Lomenie seguiram o mesmo caminho, até
que se chegou a 1789, e um adepto do reformador
de 1776, Mirabeau, poz em pratica, com a energia
do seu genio, as transformações reclamadas
por todos. Depois não se fez uma reforma,
estoirou uma
revolução, e as
idéas então chimericas
de Turgot triumpharam!
[43]
B
A nossa vida administrativa tem corrido sempre
desordenada, e os nossos orçamentos feitos
de molde a ser a despeza superior á receita, não
obstante esta augmentar annualmente em perfeita
progressão geometrica.
Assim, em 1821, quando o paiz acordava sobresaltado
pela aurora da revolução de 1820, o
orçamento do Estado accusava uma receita de
7.677:139$368 reis e uma despeza de 8.519:100$000
reis, dando já um deficit
de 841:960$632 reis. O
deficit continua a crescer,
oscillando annualmente,
por essas epocas, entre dois mil e quatro mil contos.
Em 1841, vinte annos depois, as nossas receitas
elevam-se já a 10.332:626$618 reis, isto é, mais
2.655:487$250 reis, e a despeza a 11.775:181$182
reis, isto é, mais do que em 1821 a somma de
3.256:081$182 reis. Vê-se por tanto que se a receita
augmentou, tambem cresceu a despeza, e
longe de se equipararem a receita e a despeza, esta
continúa sempre sendo superior áquella.
É o velho
systema de administração que tanto nos tem
prejudicado: gastar, gastar muito, sem attender á
extensão das nossas forças.
[44]
Uma rapida analyse pelos
orçamentos nos
demonstrará
quanto é verdadeira tão pungente afirmativa.
Vimos que em 1841-42 o orçamento accusava
já uma grande subida, simultanea na receita, na
despeza e no deficit. Pois em 1862,
a pouco trecho
depois do movimento da regeneração e da
conversão da nossa divida, o orçamento estadea o
mesmo systema de desequilibrio:―14.328:760$273
reis de receita e 15.304:524$225 reis de despeza.
Subindo assim receita, despeza e
deficit, por
que havemos, pois, de nos surprehender com as
difficuldades que assediam, ha tres annos, a nossa
vida collectiva? São a consequencia mais
natural
e mais directa dos erros longamente accumulados
em successivos desbaratos.
E não vá julgar-se que nos insurgimos contra
o augmento que teem tido as receitas do Estado.
Insurgimo-nos contra a administração que tem
incidido sobre essas receitas.
Como provam os administradores d'este paiz
que se gaste com o exercito a quantia de réis
5.123:656$201, quando em 1874-1875 a despeza
com o exercito subia apenas a 3.406:380$630 réis?
Que razões haverá hoje para este augmento de
despeza? Acaso temos nós em 1893 melhor
exercito,
e estão mais fortificadas as nossas praças e
mais guarnecidos os nossos fortes, para que
assim se explique este excesso de mais de 1:500
contos de reis?
[45]
O que não póde
ser, é continuarmos a
vida
que havemos levado ha setenta annos, com
deficits
constantes.
O seguinte quadro que copiamos do livro do
Barão de S. Clemente―Estatisticas e
biographias
parlamentares portuguezas―prova incontestavelmente
tudo o que deixamos dito.
Annos |
Receita |
Despeza |
Saldo |
Deficit |
1860 |
11.866:871$879 |
13.232:060$133 |
|
1.365.188$254 |
1861 |
11.922:580$116 |
14.022:375$923 |
|
2.099.795$807 |
1862 |
12.731:770$544 |
14.338:668$801 |
|
1.606.898$257 |
1863 |
14.328:760$273 |
15.304.524$225 |
|
975.763$952 |
1864 |
14.866:736$923 |
16.829:333$235 |
|
1.962.596$312 |
1865 |
16.500:377$685 |
17.147:964$812 |
|
647.587$127 |
1866 |
17.226:219$094 |
17.867:553$139 |
|
641.334$045 |
1867 |
15.880:635$189 |
19.375:792$376 |
|
3.495.157$187 |
1868 |
16.757:625$754 |
22.427.625$754 |
|
5.670.000$000 |
1869 |
16.107:698$500 |
23.156:269$146 |
|
7.048.570$646 |
1870 |
15.357:216$000 |
19.875:024$915 |
|
4.517.808$912 |
1871 |
17.960:666$325 |
22.193:984$247 |
|
4.233.317$925 |
1872 |
18.273:394$325 |
22.194:727$630 |
|
3.921.333$305 |
1873 |
19.753:900$261 |
22.430:399$267 |
|
2.676.499$006 |
1874 |
22.350:764$287 |
22.608:777$045 |
|
258.012$758 |
1875 |
21.995:970$000 |
21.925:312$110 |
70.657$590 |
|
1876 |
23.152:432$000 |
22.693:253$595 |
459.178$405 |
|
1877 |
24.059:981$000 |
23.317:506$405 |
742.474$595 |
|
1878 |
25.262:124$000 |
26.418:047$362 |
|
1.155.923$362 |
1879 |
25.358:276$000 |
28.162:084$586 |
|
2.803.808$586 |
1880 |
26.329:842$000 |
29.413:160$305 |
|
3.083.318$305 |
1881 |
26.211:568$000 |
29.636:518$531 |
|
3.424.850$531 |
1882 |
28.567:212$000 |
30.360:857$061 |
|
1.793.645$061 |
1883 |
28.529:838$000 |
30.837:374$960 |
|
2.307.536$960 |
1884 |
31.226:590$000 |
31.485:881$162 |
|
259.291$162 |
1885 |
31.195:037$000 |
31.967:164$351 |
|
772.127$351 |
1886 |
31.378:490$000 |
33.265:651$968 |
|
1.887.161$968 |
1887 |
32.271:150$000 |
34.018:729$028 |
|
1.747.579$028 |
Temos, porém, o seguimento
do mesmo systema
de administração nos annos subsequentes
até 1890:
[46]
Annos |
Receita |
Despeza |
Saldo |
Deficit |
1888 |
38.104:359$084 |
38.798:984$380 |
|
686:625$296 |
1889 |
37.312:346$385 |
39.165:380$387 |
|
1.353:016$052 |
1890 |
39.284:695$778 |
42.780:655$496 |
|
2.545:859$718 |
Basta. O que se tem passado depois de
1890,
isto é, depois que os effeitos das crises financeira
e economica se fizeram sentir assustadoramente,
é ainda mais desanimador.
Tal systema de administração, que traz em
perpetuo desequilibrio os orçamentos, não pode
produzir outros effeitos, que não sejam os que estamos
soffrendo, quasi sem esperança de encontrar
sahida d'este labyrintho.
E não encontraremos, emquanto os orçamentos
do Estado se apresentarem, como ainda vemos
o de 1893-1894, com deficits mais ou
menos consideraveis,
e tendo, além d'isto, de se desviar
49,9% das receitas, isto é, 21.838:340$000, só
para pagamentos de juros e amortisações. Assim
é evidente e incontestavel que a vida economica
do paiz ha de ser difficil, acanhada, impossivel.
No balanço geral da Europa, na cotação
dos
povos, Portugal é a segunda
nação em encargos,
e occupa o segundo logar na taxa dos impostos.
Assim temos que
[47]
A França paga por
habitante |
12$726
réis |
Portugal paga por
habitante |
9$581
réis |
Hespanha paga por
habitante |
8$660
réis |
Itália paga por
habitante |
8$460
réis |
Hollanda paga por habitante |
8$300
réis |
Belgica paga por habitante |
4$900 réis |
Dinamarca paga por habitante |
4$536 réis |
Suecia e Noruega pagam por habitante |
3$300 réis |
Suissa paga por habitante |
1$800
réis |
Como se vê n'este quadro,
só a França
apresenta
maior quota de impostos; e a França tem,
para justificar esta taxa exaggerada, as causas que
todos conhecem. Desde a revolução encyclopedista,
que caracterisa o seculo XVIII, e se affirma
nas revoluções americana e franceza,
até á guerra
franco-prussiana, a França só se tem debilitado,
perdendo forças, atrophiando os seus elementos
de riqueza. O terceiro logar é occupado pela Hespanha;
mas a Hespanha, atravessa, ha mais de
sessenta annos, um longo periodo de sangrentas
luctas intestinas; a Hespanha sustenta, a troco de
extraordinarios sacrificios, principios de liberdade,
que lhe teem custado largas sommas de dinheiro
e copiosos caudaes de sangue.
Prosigamos.
Se somos o segundo paiz na quota proporcional
de impostos, tambem somos o primeiro nos
encargos da divida publica. Nem a França,
com
todos os seus desastres, nem a Italia com a demorada
elaboração da sua unidade, com as despezas
que a unificação lhe impoz, nem com a
manutenção do seu grande exercito, para poder
entrar no numero das potencias europêas,
nenhum
paiz nos excede, como se póde ver:
[48]
Portugal paga para a divida publica |
49,9 |
França paga para a divida publica |
42,9 |
Hespanha paga para a divida publica |
32,7 |
Belgica paga para a divida publica |
30,5 |
Hollanda paga para a divida publica |
30,5 |
Italia paga para a divida publica |
30,3 |
Dinamarca paga para a divida publica |
22,4 |
Suecia paga para a divida publica |
12,5 |
Suissa paga para a divida publica |
0,4 |
Não temos a
pretenção de fazer um
inquerito
á nossa vida administrativa; mas queremos, n'um
rapido bosquejo, demonstrar, com a logica dos
factos e com a evidencia dos algarismos, quanto
teem sido mal applicados os dinheiros publicos.
Occupando os primeiros logares nos encargos
de dividas e na taxa proporcional de impostos,
pertence-nos infelizmente o ultimo em qualquer
ramo de actividade humana ou em qualquer symptoma
de civilisação.
Isto é duro e aspero, mas é verdadeiro.
Não se julgue uma affirmativa gratuita o que
aqui deixamos dito. Somos o ultimo paiz, de entre
os que acima citamos, em movimento commercial,
como tambem somos o ultimo nas despezas da
instrucção
popular.
[49]
Temos a prova em que o Estado durante o
periodo de dez annos, que decorre de 1880 a
1890, gastou, pelo ministerio do
reino, com a instrucção
primaria a somma de 733:464$000, emquanto
que com os dois corpos da guarda municipal,
Lisboa e Porto, o mesmo ministerio do reino
dispendeu 2.447:484$000 ou mais 1.714:020$000
réis. É obvio que n'esta verba
não entram as
sommas gastas pelos municipios e juntas districtaes;
mas não podiam entrar, porque essas verbas
são dispendidas á parte, e teem tambem imposto
especial, não entrando portanto no orçamento
geral do Estado.
A consequencia d'isto vemol-a na estatistica
da nossa instrucção. Esta accusa que, tendo o
paiz uma população de 4.550:699 almas, d'onde se
devem descontar 634:480 ficando portanto uma
população adulta de 3.916:219,
nós apresentamos
a extraordinaria percentagem de 79,5% de
analphabetos.
Tal é o estado da instrucção popular,
o
que a ninguem deve surprehender, se se considerar
que, tendo nós 3:961 freguezias, existem
1:402 sem escola.
Continuemos.
Póde acaso prosperar e desenvolver-se um
paiz, cuja população tende a desapparecer por
diversas e multiplas causas?
[50]
E não se julgue que dizemos
que a
população
tende a desapparecer, sem a consciencia da verdade
que affirmamos. Em Portugal, póde affoutamente
dizer-se, de todas as causas apresentadas
pelo grande escriptor inglez Townsend, que retardam
a propagação da especie, e por consequencia
dão uma baixa consideravel na
população, ha
uma, maxima entre todas, que contribue para
este phenomeno―é a corrente, avolumada quotidianamente,
da nossa emigração.
Se a isto accrescentarmos a alimentação
insufficiente,
as doenças que, por falta de condições
hygienicas, victimam centenares de pessoas nos
principaes centros do paiz; o pessimo das nossas
habitações; a ausencia de commercio para
desenvolvimento
de algumas industrias que possuimos,
e de mercados para o excesso d'esses productos;
a sahida de capitaes, originada por uma detestavel
organisação administrativa, que nos absorve
improductivamente uma parte das nossas receitas;
assim teremos, em synthese, compendiadas
as origens da ruina e decadencia do
paiz.
Ora, n'estas circumstancias, quando se estadeam
tão claras as causas efficientes da nossa
ruína, que esperanças, embora debilissimas,
poderemos
ter de melhoria de condições, se
vemos
que não ha em todo o plano administrativo uma
só reforma séria, verdadeira, grave, que possa
oppôr barreiras ás consequencias tremendas que
se avisinham na agonía de uma nação
exhausta
e faminta.
[51]
A verdadeira e principal reforma
consistiria,
como já dissemos, em entrar pelo orçamento,
cortar
sem deferencias e sem hesitações as verbas
superfluas, as despezas injustificaveis e inuteis,
que elle apresenta, cobrar, com todo o rigor, os
impostos actuaes, estudar uma organisação
tributaria para o imposto predial em todo o paiz―porque
é esse um dos que pode e deve produzir
mais,―procurar libertar-nos por todas as fórmas
e á custa de todos os sacrificios dos enormes encargos
que nos impõe a nossa divida, e assim teriamos
redimido os passados erros.
É mister que o orçamento soffra profunda
amputação
nas verbas que, não só não teem
utilidade
alguma, mas nem sequer se justificam pelas chamadas
exigencias da civilisação.
Em 1884 o funccionalismo levava-nos a bonita
cifra de 14.453:294$381 réis, e em 1891 eleva-se
essa cifra a 20.352:768$526 réis. No mesmo
periodo
encontramos que as despezas extraordinarias
sobem de 4.174:804$426 a 8.611:796$840 reis,
isto é, apresentam um augmento de 105%, ou
o
melhor de 4.436:992$414 réis.
E estará aqui tudo quanto a burocracia custa
ao thesouro publico?
Não, porque a par d'este funccionalismo que
no orçamento figura como trabalhando, temos
não menor quantidade, de pessoal inactivo, que ao
paiz custa a importante quantia de 3.242:162$092
reis, como se póde ver pelo orçamento de 1893 a
1894. Emfim, as classes inactivas trazem-nos o
encargo annual de 712 réis por habitante, isto
n'um paiz, que não tem sabido desenvolver nem
aproveitar os seus recursos economicos.
[52]
Mas poder-nos-hão objectar,
os que por acaso
nos julguem de menos boa fé―e os melhoramentos
materiaes que hoje possuimos?
Lá vamos, e com tanta mais imparcialidade,
quanto é certo que, em primeiro logar, confessamos
que, no principio d'este seculo, o nosso paiz
pelo seu estado de atrazo, era olhado com sobrecenho
e desdem pelos demais da Europa.
Sabemos todos que, terminadas as revoluções
que na nossa historia se protrahem de 1820 a
1851, começou a agitar-se o paiz na febre de melhoramentos
materiaes. Pois bem, esses melhoramentos,
desde 1852 até nós, isto é, n'um prazo
de 42 annos, custaram-nos a somma de réis
191.000:000$000. Porém, como emittimos
inscripções
no valor de 526.694:000$000 réis nos mesmos
42 annos, inscripções que, ao preço
médio
de 50% representam a cifra de 263.347:000$000
réis, temos portanto um excesso de 77.347:000$000
réis sobre a verba de 191 mil contos, em que nos
importaram os melhoramentos materiaes.
Mas, segundo a opinião d'um eminente escriptor
(Oliveira Martins, Portugal
Contemporaneo,
pag. 462 do vol. 2.º), até 1880 os melhoramentos
materiaes custaram-nos 58 mil contos. Restam-nos
ainda 12 annos. Calculando, portanto em 2
mil contos de média annual, consumidos em melhoramentos,
teriamos, n'estes 12 annos, 24 mil
contos, e nos 42 annos 82 mil contos. Ora d'esta
verba para a dos 191 mil contos, accusada pelo
relatorio do ex-ministro da fazenda, ha uma differença
de 109 mil contos, que se poderiam dizer
applicados em melhoramentos moraes, se nós não
vissemos já rapidamente esboçadas as verbas que
n'esses melhoramentos, e mormente em instrucção,
consumiu o ensino publico.
[53]
Paiz algum da Europa,
illuminado e esclarecido
pela luz da civilisação, dispende tão
pouco
com a instrucção popular como Portugal. Em
compensação, porém, só em
despezas quasi na totalidade
improductivas, das quaes o paiz pouco
tem a esperar, gastamos (numeros redondos) a
bagatella de 34:900 contos de réis, isto segundo
o orçamento do 1893 a 1894.
Ora as nossas receitas chegam, como se sabe,
a pouco mais de 43:000 contos de réis, dos quaes
deduzida a verba acima descripta, resta um saldo
de cerca de 9:000 contos de réis, isto é, quasi
um
quinto das nossas receitas.
O que temos, pois, para applicar ás despezas
productivas, isto é ao desenvolvimento do nosso
commercio e da nossa industria, á prosperidade
do nosso dominio colonial e da nossa agricultura?
A verdade é esta: um decimo das nossas
receitas,
se tanto, é quanto se applica ao desenvolvimento
das fontes productoras da
nação.
A pag. 466 do 2.º vol. do Portugal
Contemporaneo
diz o seu illustre auctor―«Podia n'este
periodo (1852 a 1880) ter occorrido uma guerra
que absorvesse mais (emprestimos), mas não houve.
Só uma terça parte do augmento da divida
é
justificavel; os dois terços restantes proveem do
systema de amortisar os defficits
successivos por
meio de emprestimos, sujeitando o thesouro á
progressão do juro.»
[54]
«Pouco mais de 1⁄4
apenas das despezas totaes
póde ter, entre nós, um destino progressivamente
proficuo;
e o peso exorbitante dos encargos
da divida impede que se dotem convenientemente
os serviços publicos com metade
proximamente
do orçamento das despezas, como succede em
quasi todas as pequenas nações analogas de
Portugal.»
«É
mister concluir, pois, que
somos o mais pobre
dos povos da Europa.»
A auctoridade incontestavel do illustre historiador
sr. Oliveira Martins, ex-ministro da fazenda, é
bastante, e desobriga-nos de qualquer comentario.
Continuemos a nossa revista pelo orçamento.
Em 1874 a 1875 o ministerio dos negocios
extrangeiros custava ao thesouro 248:248$798 rs.;
no anno economico de 1893-1894 esta verba eleva-se
á somma de 390:209$700 réis.
Poderá o nosso paiz, nas deploraveis
condições
economicas em que se encontra, sustentar
embaixadores permanentes? E para quê esse
luxuoso
corpo diplomatico, se para qualquer questão
teem de enviar embaixadores extraordinarios, como os srs. Barjona de
Freitas á
Inglaterra,
Antonio de Serpa á Allemanha, Mattoso
dos Santos ao Brazil?
[55]
O que, porém, não se comprehende, é
que em
peregrinação pelos corredores de S. Bento, e
atravéz d'uma candidatura, alcançada por
influencias
de qualquer ordem, se obtenha um logar de
funccionario publico, simplesmente para receber
o ordenado, mas sem uma só vez apparecer a
desempenhar as funcções do seu emprego, sob
pretexto de pertencer a commissões que teem
trabalhos no interregno parlamentar. Isto é que
não é correcto nem compativel com as
forças do
thesouro.
Ora exemplos taes superabundam por esse
paiz. Quantos lentes de escolas superiores, e outros
funccionarios de elevada esphera, se jubilam,
sem nunca terem desempenhado o cargo em que,
passado um certo praso de tempo, se aposentam?
D'aqui a excessiva somma que nos custam as
classes inactivas:―mais de tres mil contos, como
já vimos.
E são, em toda a plenitude do vocabulo, verdadeiramente
inactivos os homens que constituem
essas classes, ou pelo menos incapazes d'um
certo esforço, impossibilitados d'uma quota parte
de trabalho?
Um exemplo responderá por nós.
Um venerando lente de mathematica completou
o tempo que a lei requer, e jubilou-se com o respectivo ordenado; mas
em seguida veio occupar,
muito dignamente, o logar de director geral das
alfandegas.
[56]
No desempenho d'este cargo occorreu um
concurso de verificadores, que por circumstancias
e peripecias se tornou verdadeiramente
ruidoso.
O facto levou o respeitavel conselheiro a
aposentar-se no logar de director geral das alfandegas.
Entretanto s. ex.a, não obstante
estar duas vezes
aposentado, podia ainda prestar ao paiz os
seus valiosos serviços. Foi eleito par do
reino, e
logo membro do conselho superior de instrucção
publica, logar que então era remunerado.
A providencia dos tristes lembrou a um dos
nossos conspicuos reformadores o crear um ministerio
de instrucção publica, e eis logo o mesmo
funccionario, que já era lente aposentado,
director geral das alfandegas, aposentado, membro
da junta consultiva de instrucção publica,
não sabemos se tambem já aposentado, eil-o logo,
diziamos, feito director geral d'uma das
repartições
do novo ministerio. Como, porém, este foi
supprimido, s. ex.a, o illustre conselheiro a
que
nos estamos referindo, foi collocado fóra do quadro,
como director geral addido.
Aqui está um exemplo bem frisante do que são
entre nós
os inactivos.
Receberá o venerando conselheiro em questão,
remunerações por todos estes logares, em
que successivamente se tem impossibilitado?
[57]
Com franqueza, esta
interrogação, se
só consultarmos
a moralidade, deve ter uma resposta
negativa; mas a moralidade, infelizmente, em coisas
d'esta ordem, de ha muito que velou a face,
para não a verem ruborisar a miudo.
N'um paiz onde o arbitrio
impera para tudo,
é evidente que tambem o arbitrio e a desordem
teem de reinar em tudo.
Um outro assumpto reclama instantemente
as
attenções dos nossos homens
publicos:―referimo-nos
ás colonias.
As colonias, que deveriam ser um centro
de
actividade para o nosso commercio e para a
nossa industria, offerecem tristemente nos orçamentos
da metropole um saldo negativo. Assim
os orçamentos de 1893-94 das provincias ultramarinas
accusam os seguintes
deficits:―Guiné,
121:486$350 réis; Angola, 47:278$575 réis; Estado
da India, 132:620$593 réis; Moçambique,
164:920$430 réis. Se a estas verbas accrescentarmos
os subsidios e garantias de juros ás companhias
de caminhos de ferro, que se elevam a
1.052:500$000 réis, teremos tambem, em resumo,
quanto, muito por alto, dispende o thesouro publico
com as colonias.
[58]
Isto é tanto mais pungente,
quanto é certo
que, á altura em que se encontra a
civilisação,
os demais paizes, teem estudado com rigorosa
observação o problema colonial, e dos seus
estudos
colhem immediatos resultados, ao passo
que Portugal, resvalando da craveira das potencias
coloniaes, tem decahido a olhos vistos.
É tristissimo o futuro que nos aguarda, se
para este importante assumpto não quizerem os
governos volver tambem os seus olhares. Sem
navios, nem marinha mercante, quando pelas circumstancias
geographicas e climatericas Portugal
deve ser uma nação maritima, nem sequer temos
cotação entre as marinhas mercantes das
nações
do mundo.
As circumstancias excepcionaes em que nos
encontramos, circumstancias provenientes já da
condição do
meio, já da fatalidade da
nossa raça,
impõem-nos o dever de mantermos o nosso prestigio
colonial, dever imperioso, visto possuirmos
excellentes e bravos officiaes de marinha.
Como correspondem, porém, os
governos ás
dedicações extraordinarias que a patria ainda
inspira n'essas almas valentes e revibrantes, n'esses
corações alevantados?
Sabem-no, como nós, os leitores; conhecem-no
quantos olharem para o estado da nossa marinha.
Contamos um quadro de armada composto
de:―2 vice-almirantes, 11 contra-almirantes, 28
capitães de mar e guerra, 23 capitães de fragata,
64 capitães-tenentes, 80 primeiros tenentes e 76
segundos tenentes.
[59]
Total―294 officiaes.
Ora, segundo a respectiva tabella, para as exigencias
do serviço de embarque, só se carece de
144 officiaes.
Portanto, temos collocado em differentes commissões
150 officiaes; isto é, contamos fóra do
serviço
um pessoal distinctissimo, que honra o paiz
e que poderia ser muito mais util á patria na armada
do que nas commissões. Logo o nosso pessoal
é superior ao que realmente nos pedem as
exigencias da marinha.
E emquanto nós luctamos com a falta de navios,
de couraçados, etc., etc., a Hollanda, cujo
dominio e poderio colonial augmentaram á custa
das colonias portuguezas, graças á
revolução de
1640, tem uma armada composta de 24 couraçados
de differentes modelos, 26 cruzadores, 32 canhoneiras,
38 torpedeiros, 1 transporte de torpedeiros.
Total, 140 navios. Tal era a armada
hollandeza em principios de 1892.
Compare-se isto com a nossa marinha:―1
couraçado, 6 corvetas, 10 canhoneiras, 5 torpedeiros,
etc., emfim, uns 40 vapores, além de 14 navios
de véla, e em que estado de
conservação!...
Para um paiz maritimo e colonial não se póde
realmente exigir mais!...
Mas poderiamos ainda ter a consolação de
supprir esta falta com a marinha mercante, se
não vissemos que, como atraz dissémos, nem temos
cotação entre as marinhas mercantes das
nações do mundo.
[60]
A Suecia só por si, e
independente da Noruega,
conta 1:029 navios de véla na sua marinha
mercante, com a lotação, em peso, de 299:000
toneladas,
e 491 navios a vapor, com a lotação, em
peso, de 163:000 toneladas; a Hollanda, cuja importancia
geographica não é, decerto, superior á
nossa, e cuja densidade demographica não é maior
do que a de Portugal, tem uma marinha mercante
de 390 barcos de véla e 149 navios a vapor, com
a lotação, em peso, de 799:000 toneladas.
Como poderá, pois, Portugal fazer concorrencia
aos paizes estrangeiros, que assim se apresentam
em condições de entreter um commercio
activo com os povos de regiões, onde os progressos
ainda não tenham desenvolvido a vida industrial?
Quando em julho de 1893, esta
associação
affirmou,
na representação dirigida á camara dos
pares, que Portugal atravessava n'este momento
uma crise muito similar á da França, em 1776, ao
alvorecer das reformas de Turgot, espiritos mais
apprehensivos chegaram a suppôr que esta collectividade
appellava para a revolução.
O pensamento era, e bem o via quem imparcialmente
quizesse olhar para esse trabalho, que
ou Portugal se lança n'um caminho de reformas
serias e profundas pelo que respeita á sua
organisação
financeira, ou a bancarrota official e franca―porque
disfarçada a temos nós―apparece
de improviso com todo o seu cortejo de horrores.
[61]
Não póde haver
maior desegualdade de impostos
do que existe em Portugal.
Emquanto o imposto predial de todo o reino
produz 2.884:000$000, o imposto de consumo só
em Lisboa dá 2.122:500$000. Mas mais do que o
imposto predial em toda a nação, produzem os
impostos de tabaco e sello.
Exemplifiquemos:
Imposto do
sello |
1.434:000$000 |
Imposto de importação de
tabacos |
4.350:000$000 |
Como se vê, pois, o imposto predial em todo
o paiz apenas rende mais do que os direitos de
consumo, só em Lisboa, a quantia de 761:500$000
réis.
É único. Francamente, em que
outro paiz da
Europa acontecerá que os direitos de consumo
só d'uma das suas cidades produza quasi tanto
como o imposto predial de toda a
nação?
Mas mais extraordinario se nos afigura que o
imposto de importação de tabacos produza mais
que todo o imposto predial a importantissima verba
de 1.466:000$000 réis!
Se na voragem em que vamos
quasi absorvidos,
ainda podem restar alentos para uma
reacção energica e seria, que a
nação não a delongue,
aliás corremos risco de accordar muito
tarde.»
[62]
Á vista do exposto, quando
outros motivos
mais graves e poderosos não existissem,
pareceria occioso insistir na absoluta legitimidade
e na necessidade imperiosa de um
partido republicano em Portugal, em nome
da salvação publica.
Mas a larga transcripção que fizemos e
que por si só absolveria trinta
revoluções,
está, penoso é dizel-o, muito aquem da verdade.
Não se encontram alli, traçadas com sangue
e lagrimas, as paginas vergonhosas e ultrajantes
da nossa politica de subserviencia e
aviltamento perante o estrangeiro. Não são
alli descriptas essas negociações sem
simile
nos annaes da diplomacia europeia e em que
pouco a pouco temos ido cedendo, sem combate
e quasi sem protesto, os restos do patrimonio
ultramarino e do prestigio moral que
os nossos maiores nos legaram. Não se apontam
n'essa exposição, circumscripta aos limites
de um documento d'aquella ordem, destinado
á leitura rapida e á synthese compendiadora
dos innumeros episodios da villeza
constitucional, os nomes d'esses
parvenus sem
pudor que, mercê da sua illimitada audacia,
da ausencia absoluta de senso moral e da
impunidade que as instituições lhe garantem,
se abateram como um bando de abutres sobre
os restos ainda palpitantes de uma nacionalidade
outr'ora gloriosa e opulenta, cevando
sobre essa pobre agonisante os appetites vorazes
e estadeiando em publico, impudicos e
sorridentes, o fructo das suas ignobeis proezas!
[63]
A Associação
Commercial de Lisboa omittiu
esses pormenores degradantes. Ao honrado
commercio portuguez repugnou esse
inquerito ao pantano constitucional. Pensou
e pensou bem que era inutil insistir sobre
taes miserias, quando os seus documentos vivos
transitam pelas ruas das cidades, á luz
do dia, fazendo descrer o publico da existencia
e utilidade das Penitenciarias.
Analysem os nossos queridos compatriotas
residentes no Brazil a vida das instituições
desde o ultimatum britannico.
Distraiham alguns
momentos do seu labutar para os dedicarem
a este inquerito e creiam que não perderão
o tempo e que, ao concluirem o seu
exame, ficarão tão convencidos como
nós da
necessidade imperiosa de pôr termo a um estado de cousas
fundamentalmente immoral,
ruinoso e iniquo.
[64]
E não se diga que a marcha
do partido
republicano em Portugal se tem effectuado
precipitada e tumultuariamente. Pelo contrario.
Se exceptuarmos o movimento de 31 de janeiro
que poz uma nota de protesto viril
no meio d'esta apathia que enerva e mata, a
evolução republicana tem caminhado lentamente,
progredindo á custa dos erros repetidos,
dos attentados inqualificaveis e da absoluta
impotencia dos nossos adversarios.
Tem sido a propria monarchia que, impellida
mau grado seu, pelos vicios incuraveis
da sua constituição organica, se tem ido
dissolvendo
rapidamente, pela desaggregação
dos elementos que a compõem.
O partido republicano, hoje, quasi se limita
a archivar na sua imprensa esse estendal de
torpezas, para mais tarde o articular no
seu libello final.
[65]
Não pode a monarchia
escudar-se, para
cohonestar os seus erros, em grandes cataclysmos
imprevistos, nas agitações revolucionarias,
na perturbação determinada por
factores hostis à sua inteira liberdade de
acção.
As instituições portuguezas são, sob
esse
ponto de vista, o mais completo specimen da
inteira irresponsabilidade.
O paiz disfructa ha cincoenta annos uma
paz octaviana. Os clamores da opinião publica
são desattendidos sem protesto. As liberdades
publicas vão sendo rasgadas sem
conflicto. As questões internacionaes, resolvidas
vergonhosamente para nós, nem sequer
determinam motins e apenas, de quando em
quando, fazem cahir um ministerio. Homens
publicamente apontados como auctores de
peculato e concussão continuam a usufruir
as melhores graças da cornucopia realenga e
a exercer os primeiros cargos da administração
e da politica. Em resumo, a monarchia
tem tido até hoje carta branca para nos tratar
como paiz conquistado, sem peias nem restricções.
Que culpa temos nós, se depois de tudo
isto esse regimen condemnado nos deixa sem
pelle, sem credito e quasi sem esperanças de
futuro?
[66]
Depois―e é esta a mais
imperiosa e fulminante
das considerações―é a propria
instituição que combatemos a que se encarrega de
nos indicar o verdadeiro caminho a seguir.
De facto, a monarchia de ha muito que
moralmente abdicou.
Essa abdicação vem do tratado de 20 de
agosto, pateado no Parlamento.
Desde essa epoca que Portugal não é uma
nação monarchica:―é um
campo de experiencias.
O partido progressista, depois do
ultimatum,
confessou-se impotente e desacreditado
e não voltou ao poder.
O partido regenerador, confessou-se desacreditado
e impotente e teve a mesma sorte.
Como todos sabem, eram e são estes os
dois grandes aggrupamentos constitucionaes.
A monarchia recorreu então aos gabinetes
pittorescamente classificados pelo publico de
«ministerios
nephelibatas», fazendo successivas
experiencias que só tem servido para desacreditar
novos homens desacreditando o paiz.
Por ultimo, chegamos á deploravel
situação
actual, que a muitos se affigura insoluvel,
tendo imminente uma declaração official de
fallencia e a fiscalisação dos credores
extrangeiros.
[67]
Ora isto não se occulta nem
se defende
em nome do patriotismo. Combate-se e combate-se
até á barricada.
Felizmente que no partido republicano
portuguez ha muita gente disposta a jogar a
vida pelo seu paiz sem inquirir do
preço do
sacrificio.
Não são esses os que desacreditam o Brazil!
O partido republicano portuguez,
tão calumniado
pelos nossos adversarios, mas sempre
tão superior ás calumnias pela sua conducta
altamente digna e patriotica, é hoje o unico
partido nacional, o unico sob cuja bandeira
tem vindo acolher-se os homens de bem, os
homens de principios e de convicções e os
desilludidos que ainda possuiam o brio e o
amor patrio sufficientes para renegarem, a
tempo, a perigosa solidariedade com os delapidadores
da honra e do credito do seu paiz.
É longa a serie dos serviços absolutamente
desinteressados que á sua
terra tem prestado
os membros da democracia portugueza, até hoje,
felizmente, ao abrigo das vergonhosas
accusações que impendem sobre as figuras
sinistras
da monarchia portugueza.
[68]
Pode bem affirmar-se que comnosco
estão
hoje em Portugal os elementos sãos da sociedade
portugueza. O nosso pessoal, recrutado
no professorado das escolas, no commercio,
na industria, na propriedade, no capital,
em todas as classes sociaes, em todos os ramos
da actividade nacional, é hoje respeitado
e justamente temido pelos nossos adversarios,
constituindo, com o appoio do povo,
uma força poderosa e uma esperança de
rehabilitação
para a nossa querida patria.
O simples parallelo entre os vultos em
evidencia no partido republicano e o pessoal
monarchico basta para estabelecer entre nós
e os inimigos da patria uma differença radical
e palpavel. Como vivem e de que vivem elles?
Como vivemos e de que vivemos nós?
Interrogação bem simples mas que basta para
orientar o verdadeiro portuguez no caminho
que lhe cumpre seguir.
[69]
Os homens do partido republicano, ou
vivem do trabalho honrado, tenaz e persistente,
não raro cortado de difficuldades e angustias
de toda a ordem, ou dos lucros do capital ou da propriedade adquiridos
por esses
processos honestos e laboriosos. A sua existencia,
divide-se entre a satisfação das suas
obrigações pessoaes e o cumprimento dos
seus deveres civicos. Usam de um nome impolluto
e gosam de universal consideração.
Quaes os recursos da quasi totalidade dos
nossos adversarios? Por nós respondem o
orçamento e as folhas de vencimentos. Vivem
do Estado, encrustados aos redditos publicos
como o mexilhão ao rochedo, escravos
da mais ultrajante das dependencias, serventuarios
de uma instituição que lhes alquila as
consciencias e lhes coarcta por completo a liberdade
das convicções e a independencia de
conducta. Uma perfeita escravatura branca,
sem a attenuante da violencia e as sympathias
que á humanidade sempre despertou a causa
dos negros.
A politica é para os primeiros um onus,
para os segundos uma industria. Para uns,
uma sciencia, para outros um jogo da bolsa.
Para os republicanos, um meio de resurgimento
patrio, para os monarchicos uma profissão.
E tanto assim que, não obstante os reiterados
esforços da democracia portugueza e até de
alguns monarchicos bem intencionados, ainda
até hoje não conseguiu vingar em Portugal
uma lei de incompatibilidades.
[70]
O partido republicano portuguez, no
cumprimento
da nobre missão que se impoz, tem
levado ao excesso o seu profundo sentimento
de dedicação e respeito pela honra e prosperidade
da Patria. Nas questões internacionaes
nunca elle trahiu uma prudente reserva ou
deixou de prestar aos governos do paiz o necessario
appoio, sempre que este procedimento
não era incompativel com o direito e a rasão.
Tambem jamais negou o seu placet aos
actos dos adversarios que d'elle se tornassem
credores. Sómente, raras vezes teve o ensejo
de assim se determinar, porque raras vezes
do ignobil gachis constitucional
afflora uma
individualidade que se recommende ou um
acto de administração que se imponha.
Iniciando dentro da sua propria constituição
a obra moralisadora que espera mais
tarde effectuar no governo do Estado, a democracia
portugueza tem banido implacavelmente
do seu gremio os especuladores que,
de longe em longe, pretendem deshonral-a,
aviltando-a em accordos indecorosos, em
transacções inconfessaveis ou em procedimentos
contrarios ao espirito e á natureza da
ideia que apostolamos, adquirindo dia a dia
sobre a opinião, por esta perfeita coherencia
dos actos com os principios, uma auctoridade
legitima e incontestavel, postoque apparentemente
contestada pelos nossos implacaveis inimigos.
[71]
No seu programma de politica e
administração,
o partido republicano não professa
nem os radicalismos doutrinarios da metaphysica
revolucionaria nem tampouco esse
opportunismo empirico dos estadistas de expedientes,
educados na trica indecorosa das
instituições cuja missão historica
terminou.
Educados nos principios da moderna escola
positiva, tendo sobre o governo e administração
do Estado um criterio rigorosamente
scientifico, os homens da Republica impõem-se
ao respeito e á consideração publicas,
a um
tempo pelo seu valor moral e pela verdade
objectiva das doutrinas que de ha muito vem
advogando na cathedra, no Parlamento, na
imprensa, nas aggremiações democraticas e
nos comicios.
[72]
Á sua influencia sobre o
espirito publico,
exercida pelos processos da propaganda a
mais leal e a mais honesta, veio juntar-se,
desde os decretos liberticidas da dictadura de
90 e em especial desde o movimento de 31
de janeiro, a tradicção do soffrimento nobremente
supportado, sem tibiezas nem desfallecimentos.
Grave tem sido a crise que ha quatro annos
a democracia atravessa, convertida
em alvo de todas as perseguições e de
todas as violencias, mas d'essa provação ella
sahiu mais nobre, mais honrada e mais triumphante
do que nunca.
Nem os julgamentos, nem o carcere, nem
o exilio, nem os infortunios de toda a ordem,
conseguiram nas nossas fileiras desfallecimentos
ou deserções. E, no entanto, quem sabe se
as circumstancias de muitos dos perseguidos
não seriam de molde a absolvel-os
da macula de uma abdicação!
Não succedeu porém assim. Nem as promessas
capciosas, nem a violencia, nem a fome,
poderam cousa alguma sobre os energicos
temperamentos dos nossos companheiros
de lucta. Este facto, que constitue um exemplo
e uma esperança, é bastante para attrahir
á nossa causa uma illimitada sympathia.
[73]
O partido republicano é
portanto, como dissemos,
o unico partido patriotico, o unico
partido honrado, o unico partido com bandeira,
ideias, principios, orientação e plano
rigorosamente
scientificos, orientado pelas necessidades
moraes e materiaes da sociedade
portugueza. N'uma palavra, é o unico partido
nacional.
E porque o é, e porque constitue hoje, em
face da cabala monarchica, uma legião formidavel,
dia a dia accrescida por numerosas
adhesões, e porque a auctoridade dos seus homens,
a seriedade do seu programma e a justiça
da sua causa se impõe irresistivelmente,
tem a soffrer n'este momento, que a monarchia
considera decisivo, uma guerra feroz e
sem quartel dos interesses vinculados ao existente
que contra ella colligam os ultimos elementos
de defesa.
D'esses elementos, um dos mais importes,
até sob o ponto de vista dos recursos
materiaes (segundo se lhes affigurou ao dementado
criterio) era o sebastianismo luso-brazileiro
que elles, na sua ignorancia dos
acontecimentos e da indole da grande nacionalidade sul-americana,
julgaram possuidor
de todas as condições de exito.
[74]
Enganaram-se. Foram vencidos. E tamanha
foi a derrota que devem ter perdido todas
as velleidades de recomeçar.
Se tivessem triumphado, as violencias
contra a democracia portugueza redobrariam
de intensidade. Fortes do appoio do Brazil,
os monarchicos portuguezes não reconheceriam
limites á sua criminosa insania.
Por isso sempre consideramos a lucta civil
brazileira que parece ter terminado como
uma questão gravissima para o partido republicano
portuguez.
De principio, apesar de affastados do
theatro
dos acontecimentos, se nos affigurou que
aos acontecimentos de 6 de setembro não
eram estranhos os manejos dos especuladores
monarchistas e, sendo assim, logo suspeitamos
que a elles se alliassem as figuras desacreditadas
da politica monarchica portugueza.
N'esta como em circumstancias identicas
continuavamos a depositar a mais absoluta
confiança na reconhecida inepcia da firma
Bragança-Orleans.
[75]
De resto, a apparente
submissão dos velhos
partidarios do imperio, apoz o 15 de novembro,
nunca nos illudiu e sempre nos quiz
parecer que esse doce quietismo só servira para
tranquillisar os defensores sinceros e convictos
das ideias republicanas, dando aos elementos
hostis á nova ordem de cousas o
tempo necessario para, restabelecidos do primeiro
movimento de surpreza, se prepararem
para a resistencia.
«A situação politica do
Brazil resente-se de
vicios de origem que só agora vão emergindo
á
luz da critica e da verdade historicas.
Aquelle 15 de novembro, tão apregoado em
dithyrambos varios, como cheio de paz, de harmonia
e de fraternidade, havia de, mais tarde e
por força de uma logica indiscutivel, produzir o
que produziu. Não se modificam sem violencia,
não se transformam sem abalo,
condições de existencia
vinculadas ao tempo e aos interesses creados.
Estes defendem-se quanto e emquanto podem
e, ou o antagonismo se traduza na lucta franca
e aberta á mão armada ou se enkyste no escuro
dos conciliabulos ou nos recessos da conspirata,
o facto positivo e real é que existe e só
vencidos
nos ultimos entrincheiramentos os conspiradores
succumbem.
[76]
Em 15 de novembro a propaganda
republicana
estava feita, mas o Imperio tinha ainda as solidas
raizes das clientellas constituidas, dos interesses
creados á sua sombra e a circumstancia,
bastante ponderavel, do velho Imperador disfructar
pessoalmente uma certa estima. Ora,
transformar
radicalmente este estado de coisas pelo processo
pachorrento e ordeiro do 15 de novembro,
é impossivel!
É o que está
succedendo no Brazil e o que
por certo continuará a succeder, até que novo
estado de equilibrio produzido pela concorrencia
de novas forças se consolide por fórma a
não
poder ser facilmente alterado».
[2]
«A lucta que desde 6 de setembro tem por
theatro o territorio da Republica irmã era necessaria,
era mesmo indispensavel á consolidação
das novas instituições.
Sempre o previmos, e n'A Voz Publica
manifestamos
mais que uma vez as nossas ideias n'esse
sentido. Parecia-nos demasiado pacifica a
transformação
de 15 de novembro e logo auguramos
á covardia adhesista dos primeiros momentos largas
tropellias em épocas mais desafogadas e mais
livres.
[77]
Por muito que uma fórma
politica esteja condemnada
pela opinião, por muito odioso que um
determinado regimen se tenha tornado pelos seus
actos, pela sua vetustez em face das conquistas
do direito moderno, ha sempre uma larga cohorte
de apaniguados que não se resignam facilmente
á sua queda:―é a legião de interesses
vinculados
ao antigo estado de cousas cujo centro de
gravidade as revoluções perturbam e deslocam.
Sem principios, sem convicções, sem
crenças,
sem outro ideial que não seja a cevadeira, essa
gente, muito covarde para reagir com risco, mas
muito gananciosa para se deixar vencer sem protesto,
constitue durante largo periodo um dos
mais terriveis obstaculos á
consolidação da nova
ordem trazida pelas grandes convulsões transformadoras
e fecundas.
O exterminio d'estes factores regressivos é
mais difficil do que a muitos se se affigura, porque
os seus processos de reacção conseguem
dissimular-se
habilmente a todas as pesquizas, até o
momento de ferir-se o grande golpe, o golpe decisivo.
[78]
Obram pela surpreza, pelo descredito,
pela
calumnia e pela diffamação; opéram
pelo systema
das resistencias passivas, das insinuações
surdas,
das meias palavras, cheias de fel e de veneno.
Empregados publicos, entravam o expediente dos
negocios e revelam os segredos profissionaes,
atraiçoando a confiança dos seus
superiores;―militares,
manteem nas casernas o espirito de indisciplina
e fornecem ao inimigo informações
preciosas; banqueiros, inundam a Europa com
noticias falsas, levando o descredito a toda a
parte, aterrando o capital e a propriedade, assustando
o crédor e difficultando as operações.
N'este trabalho de toupeira, tenaz e persistente,
por via de regra insuccedido afinal, é incalculavel
o numero de victimas causadas pelo egoismo
deshumano e sordido d'estes caracteres sem
senso moral e sem outro movel que não seja a
satisfação de inconfessaveis appetites.
Uma multidão de illudidos paga com a vida
ou com os haveres os sordidos calculos d'essa
gente sem pudor, que não raro consegue subtrahir-se
ao justo castigo de suas proezas, abandonando
os seus apaniguados e auxiliares nas horas
de infortunio e provação.
Entretanto, como a acção dos generaes
é impossivel
sem soldados, basta que estes sejam dominados
para que aquella cesse e se annulle.
É o que se está passando no Brazil. A Republica
soffre n'este momento a colligação de todos
os odios, preconceitos e interesses do velho regimen
que, embora apparentemente conciliados
com as novas instituições, contra ellas
põem em
acção desde o 15 de novembro, um trabalho
de sapa, cujas manifestações agressivas vieram
agora exteriorisar-se.
[79]
Mas por isso mesmo que o sebastianismo
põe
n'este momento em pratica todos os seus recursos;
mas por isso mesmo que elle sente que a
sua sorte se joga, n'esta suprema cartada;―por
isso tambem mais decisiva e fecunda será a victoria
da Democracia, definitivamente soberana em
toda a America.
É difficil a prova porque actualmente passa a
Republica irmã, mas é salutar e necessaria.
Preciso
se tornava purificar o ambiente democratico
dos velhos miasmas imperialistas e esta missão,
depuradora e hygienica, não se leva a cabo sem
lucta, sangue e sacrificios de toda a ordem».
[3]
Comtudo, desde o principio e durante
todo o periodo revolucionario, a nossa confiança
no resultado da lucta manteve-se inabalavel,
em parte por virtude de um certo
conhecimento dos homens e das cousas do
Brazil, em parte pela analyse das origens da
lucta, em parte talvez arrastados por esta crença
sincera do propagandista democratico no
bom exito da sua causa e na victoria final do
Direito.
[80]
«O simples bom senso e um
conhecimento,
embora imperfeito, do caracter, dos costumes e da
indole do povo brazileiro e das Republicas limitrophes,
bastariam para levar os especuladores
impenitentes ao convencimento da absoluta impossibilidade
na realisação do sonho imperialista,
lenda que é de hontem e que, no entanto, parece
diluida já nas brumas de um passado longiquo.
«Novos interesses, nova
orientação,
novos processos
de lucta, mais livres e mais apaixonados,
remodelação completa de velhos e carunchosos
organismos, tudo isto contribue para um desequilibrio
momentaneo, que mais tarde se traduz
em eras de exuberante fecundidade e em largos
periodos de paz octaviana.
Mas, collocando a questão no
campo verdadeiramente
pratico, é evidente que as mesmas
causas que desde 15 de novembro contribuiram
para protelar as resistencias, são precisamente as
que hoje tornam irrisoria qualquer tentativa de
restauração imperialista, conclusão
ainda avigorada
pela natureza constitucional da nova Republica.
Assim, hoje a Republica no Brazil, decorridos
tres annos desde a sua proclamação, teve tempo
de a si vincular solidos interesses, novos, ardentes,
vigorosos, cheios de vida e de seiva, que só poderiam
ser combatidos efficazmente por interesses
contrarios, egualmente importantes, alliados a
dedicações
serias pelo passado, hypothese que não
se realisa como a todos é patente.
[81]
A constituição
federal da Republica Brazileira é tambem um estorvo decisivo
a uma
restauração
imperialista. Além dos interesses privados
a que nos referimos, ha ainda os interesses peculiares
aos diversos Estados que com a liberdade
de governar-se e administrar-se adquiriram o amor
da liberdade e o espirito de independencia, sentimentos
difficeis de apagar-se, quando uma vez se
lhe experimentaram os beneficios.
Em terceiro logar, o sebastianismo, representante
de uma ideia morta, nem sequer tem a attenuar-lhe
a impotencia uma d'estas figuras onde
se crystallisam ideias e aspirações extinctas, um
principe novo, decorativamente bello, um heroe
de romance d'estes que fazem palpitar o coração
das mulheres e vibrar o enthusiasmo as multidões,
civica e intellectualmente atrazadas.
Todas estas razões, posta já de parte a
anormalidade
de existencia de uma monarchia em
plena democracia americana, seriam bastantes
para levar o desanimo ao mais intransigente sebastianista,
se acaso a intransigencia absoluta
fosse alguma vez susceptivel de reflexão.
O maior infortunio que hoje poderia succeder
ao Brazil seria a restauração imperialista. No
estado
em que esse paiz de encontra, o resultado
era facil de prever:―ou uma tentativa ephemera,
ridicula pela sua pequena duração, ou o
desmembramento
do Brazil nos Estados que o constituem.
Por isso pódem aventar-se sobre o Brazil as
mais disparatadas hypotheses, porque, na falta de
informações positivas, a liberdade de phantasia
é
de lei. Todas absolutamente, menos a do regresso
ao regimen monarchico, porque essa cahe
pelo ridiculo».
[4]
[82]
«Só á força de violencias e
de crueldades
seria possivel,
momentaneamente,
pelo terror, implantar
no Rio um novo imperio de comedia,
entre burlesco e sinistro, mixto de Offenbach e
de Cartouche, destinado em curto praso á ignominia
da expulsão».
[5]
«Avisinha-se a hora em que, segundo todas
as probabilidades, triumphará a causa da legalidade
e da ordem, restabelecendo o imperio da
Constituição,
violada pelos que a dizem offendida,
postergada pelos que a dizem trahida.
Hora abençoada será essa para aquelles que
muito amam o Brazil e a integridade das bôas,
sãs doutrinas democraticas. Hora abençoada,
repetimos,
porque se os cidadãos brazileiros anceiam
pela paz da grande Republica, tambem nós,
republicanos portuguezes, a desejamos, em nome
da patria, em nome da nossa causa».
[6]
[83]
«É porque
ponderando serenamente os
acontecimentos,
sem as paixões da especulação que
desvirtuam a justeza de vistas indispensavel ao
articulista politico, viu desde logo que, a dar-se
uma restauração monarchica, ella teria uma
existencia
ephemera, deixando da sua passagem apenas
a memoria de uma convulsão politica e o
sangue de algum novo Maximiliano, immolado ao
avido sebastianismo de desalmados especuladores».
[7]
«De muito longe, d'este
cantinho da Europa,
não podemos deixar de sentir por esse honrado
velho o (
marechal) a maior das
sympathias, experimentando
ao mesmo tempo uma profunda alegria
por ver que, a despeito das intrigas, das villezas,
das calumnias e das abjecções e villanias
postas em pratica pelos sectarios da corrupção
imperialista, é o Direito quem afinal triumpha, é
a boa causa que vence afinal, a peito descoberto,
sem fintas, nem emboscadas, nem traições, os seus
incorrigiveis e impenitentes adversarios!»
[8]
[84]
«E o caso não
é para menos, porque a
série
dos fracassos tornou-se interminavel, assumindo
mesmo, não raro, um tom burlesco que não
é precisamente o que mais quadra a realezas e palacianismos,
nem com maior brilho e lustre exorna
as monarchias. Custodio batido e doente, Saldanha
em circumstancias criticas, principe do Grão
Pará diluindo as saudades no sport velocipedico,
os Estados do Norte tranquillos, a população
adherindo em massa ao governo legal. Realmente,
a perspectiva não é lisongeira, e os
Braganças,
ao que parece, terão de limitar a sua esphera
de influencia, emquanto Deus for servido, ao
abençoado torrão lusitano, á beira mar
plantado».
[9]
A revolta foi recebida em Portugal, com a
maior alegria, pela imprensa monarchica.
Ab
initio, as folhas da grey appoiaram decididamente
o movimento, como se das suas
origens, da sua legitimidade e até dos seus
recursos e trabalhos preparatorios tivessem
o mais perfeito conhecimento, o qual, logicamente
e em face das informações contradictorias
que do Brazil nos chegavam, só
podia explicar-se por uma
entente
previa com
alguns dos elementos interessados no
movimento
Custodista.
[85]
Havia mesmo certas razões para suppol-o.
Um mez, approximadamente, antes da revolta
da esquadra, um amigo nosso e dedicado correligionario,
prevenira-nos de que alguma cousa
grave ia passar-se, e fundamentava as suas
apprehensões em meias palavras ouvidas a um
conhecido sebastianista, que já de ante-mão ia
saboreando a victoria.
A imprensa republicana manteve, no começo,
uma prudente reserva, limitando-se a
inserir, quasi sem commentarios, as noticias
e informações que iam chegando, por via postal
ou telegraphica. Mais tarde, porem, logo
que a situação se definiu um pouco, collocou-se
abertamente ao lado do governo do marechal.
Nós, áparte talvez uma antiga sympathia
pelas cousas do Brazil, que nos levava a dedicar-lhes
particular attenção, possuiamos os
mesmos elementos de informação dos nossos
collegas, mas d'esses, logo um bastou para determinar-nos:―a
attitude da imprensa monarchica.
Se esta, dada a sua indole e os seus precedentes,
defendia
á outrance a
causa dos revoltosos,
é porque evidentemente a questão, no
[86]
fundo, era um simples jogo monarchista, dissimulado
sob especiosos pretextos. A nós,
portanto, cumpria-nos desde logo perfilhar a
doutrina opposta, ao lado da qual, por certo,
combatiam a moralidade e o direito.
Ainda uma outra circumstancia vinha em
nosso auxilio. O partido republicano historico
brazileiro appoiava quasi na integra o governo
legal, e com este estavam tambem o Congresso
e o Senado. Como, portanto, classificar
de
dictador o marechal
Vice-Presidente e o seu
governo, sem perigo de manifesto absurdo?...
Porque, desde o principio, nós collocamos
o problema sob o ponto de vista da
legitimidade,
sem inquirirmos das probabilidades da
victoria de um ou outro dos contendores e
abstrahindo por completo de quasquer
sympathias
pessoaes, que de resto eram nullas e
porventura se inclinavam para Custodio de
Mello desde o 23 de novembro.
«N'este como em outros assumptos relativos
ao Brazil, o nosso criterio foi sempre orientado
pela analyse serena e desapaixonada dos factos.
E esse analyse e a ponderação fria dos
soi disant
motivos logicos da revolta, levou-nos immediatamente
a perfilhar a attitude do governo legal que
desde então sustentamos, ainda mesmo quando
por via telegraphica nos chegavam as noticias as
mais lisongeiras para a causa do almirante Custodio
de Mello.
[87]
Durante muito tempo fomos sosinhos
n'este
proposito. Pouco nos importava!
Não obedecia a nossa orientação
á victoria
presumivel de A ou B, mas apenas ao que julgavamos
ser a boa doutrina na especie discutida.
Por isso nunca sequer hesitamos em continuar a
sustental-a.
Os acontecimentos que ao depois se foram
desenrolando, vieram dar-nos rasão, e hoje já
alguns
collegas nos acompanham, posto que muito
timida e reservadamente.
Essa revolta que toca o seu termo, ao que julgamos,
ainda ha de um dia ser julgada bem severamente
por muitos dos que hoje se lhe affirmam
sympathicos, attenta a phantastica causal que o
seu chefe adduz para legitimal-a.
[88]
Revolta contra um acto legalissimo
garantido
pela Constituição! Revolta em pleno exercicio do
Congresso e do Senado! Revolta a dois dias de
eleições geraes! Revolta que, mirando ao
estabelecimento
da legalidade civil, começa
pela nomeação
de um
provisorio militar! Revolta
que,
baseada no progresso e na felicidade do povo
brazileiro, se consubstancia no bombardeamento
de uma cidade aberta, na paralysação do seu
comercio,
da sua tranquilidade, no imminente risco
de vida para os seus habitantes. Revolta que se
affirma pela indisciplina, pela deshumanidade, pelos
horrores de uma violencia que nada legitima,
que nada justifica! Revolta que não duvida lançar
mão de todos os elementos, ainda mesmo dos mais
suspeitos á causa da Republica! E ainda ha quem
a defenda! E ainda ha quem não duvide perfilhar
todas as grosseiras mentirolas e todas as inepcias
grotescas de um sebastianismo tão comico quanto
prejudicial aos interesses portuguezes!».
[10]
«Ao lerem o nosso ultimo
artigo, referente
ao successos do Brazil, alguns sebastianistas incorrigiveis
observaram-nos que a victoria do marechal
Floriano Peixoto, que reputamos certa e
com bons fundamentos, era ainda duvidosa e que
se lhes affigurava um grave erro que nós fossemos
apregoando triumphos, antes do
tempo.
Como estas palavras «antes do
tempo» equivalem,
por si sós, á manifestação
de todo um
criterio, convem mais uma vez esclarecer a nossa
attitude em face do conflicto entre o vice-presidente
e o contra almirante revoltado.
Á orientação seguida n'este jornal
é completamente
estranha a personalidade de qualquer
dos contendores empenhados na lucta civil brazileira.
[89]
Tão bem conhecemos ou antes
desconhecemos
o marechal Floriano Peixoto como o contra-almirante Custodio
José de Mello. Nenhuma
consideração
de ordem pessoal nos move, portanto,
a favor ou contra qualquer d'elles.
Na nossa qualidade de portuguezes e de jornalistas
republicanos, assiste-nos, porém, o direito
de discutir e apreciar os successos que se vão
desenrolando na Republica irmã, medindo a legitimidade
de qualquer das partes contendoras pela
fórma porque os seus actos se subordinam aos
principios e ás normas de uma sã e bem orientada
comprehensão democratica.
Trata-se, portanto, para nós da
legitimidade
das preterições adduzidas por qualquer das parte
e nunca das maiores ou menores probabilidades
de victoria de uma ou outra, ponto que, se nos
não é inteirámente indifferente porque
todos anceiam
porque triumphem o direito e a justiça, em
nada influe na directriz do nosso criterio.
Não recebemos, nem do governo portuguez
nem do sebastianismo orleanista e indigena, subsidio
algum para insultar a Republica e o marechal;
e egualmente nos são absolutamente estranhos
os favores do vice-presidente.
A nossa attitude é, pois, imparcialissima e as
victorias ou derrotas de qualquer dos partidos
não pódem modifical-a, porque acima dos acasos
da fortuna e da guerra estão os
principios,
unica abstracção pela qual combatemos e nos
sacrificamos.
[90]
Uma batalha mais ou menos afortunada,
um
bombardeamento mais ou menos feliz não alteram
a legitimidade ou illegitimidade de uma causa.
Não raro la force prime le
droit; e, no entanto,
nem por esse facto os triumphadores ficam ao
abrigo da inexoravel imparcialidade da historia.
Por isso, o dever do critico, do pensador, cujo
modo de ser intellectual não obedece a mesquinhas
e indecorosas suggestões de ordem visceral;
por isso, o dever do jornalista que faz da imprensa
um orgão educativo e do seu mister um
sacerdocio, é investigar, não as probabilidades
da victoria dos movimentos que estuda e discute,
mas a sua rasão de ser, a sua
legitimidade, á face
das considerações de ordem superior, pelas quaes
se orienta e dirige o progresso social e a marcha
do espirito humano, no caminho da felicidade moral
e material dos povos.
De contrario, o jornalismo converte-se em inconfessavel
e perniciosa especulação e o jornalista
transforma-se em sicario, mercenariamente alquilado
pelo primeiro especulador que appareça a
preencher-lhe o vasio da bolsa e a voracidade
do appetite.
Foi este escolho, que desprestegia moralmente
quem sobre elle naufraga, o que sempre procuramos
evitar, fugindo á discussão apaixonada
das personalidades, vendo principios e não homens,
desvinculando uns dos outros e guiando-nos
pelos primeiros, afim de que a nossa tarefa
jornalistica não resultasse esteril, antes se convertesse em
elemento de educação civica do povo e
em factor do seu caminhar progressivo.
[91]
É esta por certo a causa
efficiente da
confirmação
de todas as nossas previsões e das provas
de estima e de amisade que temos recebido de
illustres brazileiros e de verdadeiros portuguezes.
É esta tambem a explicação da nossa
coherencia
e tenacidade na defeza do governo do marechal,
do governo constituido, do governo legal,
ainda quando circulavam sobre o exito da lucta,
as noticias mais pessimistas e aterradoras contra
o vice presidente Peixoto.
Quando na bahia do Rio, a 6 de setembro,
uma parte da esquadra brazileira se revoltava ás
ordens do contra almirante Custodio de Mello,
surprehendeu-nos a fórma porque portuguezes e
brazileiros, na sua grande maioria, commentavam
entre nós o facto.
Discutia-se e comparava-se a energia dos
combatentes e o seu passado guerreiro, computavam-se
as forças, mediam-se as sympathias e as
relações de familia de um e outro, discreteava-se
sobre o artilhamento dos fortes, as defezas da
bahia ou o systhema e alcance dos canhões do
Aquidaban; mas, com raras
excepções, poucos
procuravam inquirir dos fundamentos, das causas
proximas ou remotas da rebellião, em uma palavra,
da sua legitimidade.
[92]
Bastante surpresos sobre esta maneira
um
tanto impirica de encarar os acontecimentos, mas
pouco resolvidos a constituir-nos em phonographos
debitadores de uma opinião desnorteada, a
nossa attitude ficou desde logo assente. Seriamos
pelo partido que tivesse por si a legalidade
republicana e o respeito das normas constitucionaes,
abstrahindo, por completo, na formação do
nosso criterio, dos individuos, fossem quaes fossem
as sympathias pessoaes que para elles podessem
inclinar-nos.
D'ahi a linha de conducta que em seguida
iniciamos e que sempre temos mantido, a despeito
das iras sebastianistas e do errado criterio de alguns
espiritos sinceros.
Adoptado elle, os successos ou os revezes do
marechal, causando-nos, é claro, alegria ou tristeza
desde que o viamos representando a causa
da legalidade que perfilharamos, em nada modificaram
o nosso criterio.
Quantos artigos escrevemos, sustentando o
governo da vice presidencia, tendo á vista os telegrammas
da Havas dando a sua causa como
perdida! Quantas vezes a nossa opinião, favoravel
ao marechal, defrontou com os
Hossanas de
quasi toda a imprensa portugueza em favor do
contra-almirante Custodio José de Mello!...
[93]
Que nos importava, se defendiamos
principios
e não homens, se obedeciamos á rasão
em vez
de escutarmos os protestos do estomago; se á
colligação bolsista, orientada pelo egoismo feroz
da judiaria especuladora, tinhamos a oppôr a altiva
tranquillidade de uma consciencia satisfeita?!...».
[11]
Alguem pretendeu vêr n'esta doutrina
a
condemnação das
revoluções dentro do regimen
republicano.
É manifesto o absurdo. Entretanto, seja-nos
licito estabelecer o nosso criterio sobre o
assumpto, para que não volte a debitar-se um
tal contrasenso.
O
direito de
insurreição é um
direito incontestavel,
admittido por todos os grandes publicistas
e até consignado em diplomas que tiveram força
legal.
O reconhecimento d'esse direito não é de
hoje. É mesmo mais antigo do que a muitos
se affigura.
Um capitulo da obra notabilissima de Lavelaye
«
Le gouvernement dans la
democratie» faz
sobre o assumpto um estudo curiosissimo e
de grande interesse, principalmente sob o ponto
de vista documental.
As cidades gregas erigiam estatuas aos revoltosos
[94]
e aos regicidas, que os desembaraçavam
dos seus tyrannos, taes como Harmodius e
Aristogiton. O mais profundo pensador entre
os Padres da Egreja, Origenes, louva aquelle
que conspira para derribar a
tyrannia.
Os soberanos medievaes juravam respeitar
as liberdades do seu povo e este reservava-se
o direito de lhes recusar fidelidade, se acaso
faltassem ao seu juramento.
Em Hespanha, Santo Isidoro, formula esta
doutrina com singular nitidez:
Unde apud veteres
tale erat proverbium: «Rex eris si recte facias,
si non facias, non eris».
O direito de insurreição é formalmente
reconhecido pelo art. 31 da
Bulla
aurea de
1231, firmado por André II e por todos os reis
da Hungria até Leopoldo II em 1869 e tambem
pelo art. 659 da
Joyeuse
Entrée do Brabante.
A resistencia legal é admittida nos privilegios
que juravam observar os reis da Bohemia,
os reis da Polonia, e nos
fueros do
paiz
Basco.
O Parlamento Escocez, dirigindo-se ao
Papa, diz a proposito de Roberto Bruce: «A
divina Providencia, as leis e os costumes do
[95]
paiz que defenderemos até á morte e a escolha
do povo fizeram d'elle o nosso rei. Se alguma
vez trahir os seus deveres, tratal-o-hemos
como inimigo e como destruidor dos
seus e dos nossos direitos, elegendo um outro
em seu logar. Pouco nos importam a
gloria e a riqueza, mas muito essa liberdade a
que um homem, digno d'este nome, só deve
renunciar com a vida».
A revolução franceza, na
constituição de
1791, collocava o direito de
resistência á oppressão
no numero dos direitos naturaes e
imprescriptiveis do homem, definindo-o na
constituição de 1793: «A resistencia
á oppressão,
é a consequencia dos outros direitos
do homem; quando o governo viola os direitos
do povo, a insurreição é para este o
mais sagrado dos direitos».
[12]
O mais illustre dos theologos da Edade-Media,
S. Thomaz de Aquino, consigna que:
«Um rei traidor ao seu dever perde o direito
á obediencia. Depol-o não é fazer acto
de
rebellião, porque elle proprio é um rebelde a
[96]
quem a nação pode legitimamente tirar a
corôa.».
Marsilio de Padua, em plena Edade-Media,
sustenta que os povos só estão ligados pelas
leis que fizeram. Quando os
ligueurs
em França
pegaram em armas, primeiro contra Henrique
III e depois contra Henrique IV, invocaram
o direito dos vassalos a depôr o soberano indigno
de usar a corôa. Esta mesma these foi
sustentada em Inglaterra, com mais energia
ainda, pelos revolucionarios que levaram Carlos
I ao cadafalso e, mais tarde, para justificar
a revolução de 1686 que derribou Jacques II.
Em resumo, e sem citar Guizot, Macaulay,
Dupont-White e outros... «os livros publicados
sobre este assumpto formam uma bibliotheca
inteira, e encontram-se na bibliographia
de todos os paizes que tiveram de defender a
sua liberdade contra as usurpações de um monarcha
ou de um dictador».
Somente, «
para que um appello às
armas
contra um governo estabelecido seja legitimo, requerem-se,
em primeiro logar, culpas graves, numerosas
e persistentes, impossiveis de remediar pelos
meios legaes;―em segundo logar, que o movimento
insurreccional arraste a massa do povo e seja, por
[97]
assim dizer, a explosão de um sentimento
nacional».
[13]
Seria esta a hypothese dos snrs. Custodio
de Mello e Saldanha da Gama?...
Evidentemente não era!
Todas as duvidas e equivocos desappareceram
porem, completamente, com a publicação
d'esse documento notabilissimo, conhecido
pelo nome de
Manifesto do dr. Martins
Junior,
chefe da democracia Pernambucana, e dirigido
ao povo e ao partido republicano d'esse Estado,
celebre nos fastos da liberdade brazileira.
Só tarde chegou a Portugal esse trabalho,
em que a um tempo se affirmam superiores
qualidades de intelligencia, solido criterio
scientifico e um ardente patriotismo. Mas
Só tarde chegou a Portugal esse trabalho,
em que a um tempo se affirmam superiores
qualidades de intelligencia, solido criterio
scientifico e um ardente patriotismo. Mas a
sua apparição entre nós, contribuiu
efficazmente
para orientar o espirito publico nos
verdadeiros principios, dando-lhe uma visão
clara e nitida das origens e fundamentos da
lucta civil brazileira.
[98]
Em harmonia com esse documento e com
o resultado do proprio estudo que fizemos
dos acontecimentos, vamos pois referir-nos
ao movimento Custodio-Saldanha, ainda que
a traços largos, como convem á indole especial
d'este trabalho.
Servem de base a essa exposição os dois
manifestos do chefe dos revoltosos, o contra-almirante
Custodio José de Mello.
«Quando uma manifestação revolucionaria
não
é, como a grande Crise franceza, um movimento expontaneo,
automatico, inconsciente, sahido das entranhas populares,
por effeito de causas sociaes e politicas
amontoadas no correr dos tempos, a critica d'essa
manifestação só póde e deve
ser feita pelas declarações
ou proclamações d'aquelles que a provocaram e
iniciaram.».
[14]
Quaes eram, segundo os alludidos documentos,
as causas determinantes e os intuitos
do movimento de 6 de setembro?
Vejamos.
a) O Vice-Presidente Floriano
Peixoto
pretendia fazer-se eleger, inconstitucionalmente,
[99]
Presidente effectivo, nas eleições de
março,
do anno corrente, como o provava o facto de
ter o mesmo marechal opposto o
veto
a uma
lei do Congresso, que nas incompatibilidades
estabelecidas para a eleição abrangia o seu
caso.
b) A
continuação da lucta civil no Estado
do Rio Grande do Sul, com o appoio dado
ao dr. Julio de Castilhos pelo Governo Federal.
Isto quanto ás causas. Quanto aos intuitos
ou fins da revolta, eram os seguintes:
c) Pacificar o Rio Grande do Sul.
d) Estabelecer o respeito e
restabelecer o
dominio da Constituição violada.
e) Afastar do Governo do paiz o
elemento
militar.
Cumpre-nos portanto a nós, á face do exposto,
averiguar
1.º Da verdade d'estas arguições.
2.º Na hypothese affirmativa, se a essas
accusações era possivel remediar pelas vias
legaes.
3.º Se a causa insurrecta arrastou a massa
popular, correspondendo á explosão de um
sentimento nacional.
[100]
a)
O Vice-Presidente Floriano Peixoto pretendia
fazer-se eleger, inconstitucionalmente, presidente effectivo
nas eleições de março do anno
corrente, como
o provava o facto de ter o mesmo marechal opposto
o «veto» a uma lei do Congresso, que nas
incompatibilidades
estabelecidas para a eleição abrangia
o seu caso.
Facil é demonstrar a nullidade d'este argumento.
A Constituição Federal dos Estados-Unidos
do Brazil, estabelece no art. 37 § 1.º o
«veto»
suspensivo como um dos direitos presidenciaes.
No caso do presidente usar d'esse direito,
negando-se a sanccionar um diploma emanado
do Poder Legislativo, a este volta novamente
a Lei não sanccionada, para sobre ella
recahir segunda votação, que sendo inferior a
dois terços dos votantes, implica a solidariedade
do Poder Legislativo com o
veto
presidencial.
Ora a lei sobre a eleição presidencial seguiu
rigorosamente os tramites prescriptos
[101]
na Constituição. Foi votada pelo poder
legislativo,
seguindo-se, por parte do presidente,
a opposição do
veto, com o qual o mesmo
Poder legislativo se conformou, nos termos
do § 3.º do cit. art. 37.
O marechal Floriano Peixoto não violou
a Constituição. Usou pura e simplesmente de
uma faculdade que por esta lhe é garantida,
visto que toda a lei que reconhece um direito
legitima os meios indispensaveis para o seu
exercicio e ainda porque contra os abusos
d'esse direito lá está o Poder legislativo, unico
responsavel.
Sob o ponto de vista da legalidade, portanto,
o marechal Floriano Peixoto manteve-se
rigorosamente dentro da Constituição e
não exorbitou dos poderes que pela mesma
lhe são conferidos.
De resto, o direito do
veto e o seu
uso estão
nas tradicções da democracia americana.
Segundo a Constituição dos Estados-Unidos
da America do Norte, que n'esta parte serviu
de modello á dos Estados-Unidos do Brazil,
o Presidente, quando recusa sanccionar um
projecto de lei votado pelo Congresso, reenvia-o,
dentro em dez dias, á Camara que d'elle
[102]
tomára a iniciativa, com uma mensagem
explicativa dos motivos que o levaram a assim proceder. O projecto de
lei é novamente
submettido ás deliberações do
Congresso. Se
obtem nas duas camaras os dois terços dos
suffragios, torna-se executorio sem a assignatura
presidencial. O contrario succede na hypothese
inversa.
O uso do
veto tem-se generalisado
ultimamente,
com benefica influencia sobre o trabalho
util das sessões legislativas. Até á
presidencia
de Cleveland (1885-1889) apenas 132
projectos de lei foram reenviados ao Congresso.
Cleveland, só á sua parte, oppoz o
veto
a 332 diplomas legislativos.
Nas constituições democraticas, o uso d'este
direito tem contribuido para estabelecer
uma justa e salutar equiponderação entre o
poder legislativo e o chefe do executivo, que
assim mutuamente se auxiliam, esclarecem e
completam.
E explica-se mais facilmente o uso d'este
direito em um presidente de republica do que
em um rei absoluto ou constitucional «por
isso que o presidente, eleito da nação, disfructa
[103]
uma auctoridade popular que falta á soberania
hereditaria».
[15]
Quanto a fundamentar a opposição do
veto por parte do marechal em
simples
boatos
ou presumpções de dictadura,
eis o que nem sequer
merece as honras de um commentario,
aliás iriamos duvidar
ab
initio da seriedade de
todos os motivos allegados pelo contra-almirante
Custodio para cohonestar a sua causa.
Nunca a frivolidade em questões d'esta ordem
mereceu em paiz algum os foros de argumento,
interveio como circumstancia ponderavel
em assumptos de tão complexa gravidade.
«Fundar um movimento revolucionario sobre
uma simples presumpção, sobre a mera
possibilidade
ou mesmo probabilidade futura de uma violação
constitucional,
é crear a extravagante theoria de que os
governos, e portanto a paz dos povos, devem apenas
depender da inepcia de uns, da maldade de outros e
da leviandade do maior numero.».
[16]
A primeira rasão, portanto, cahiria pelo ridiculo
se não cahisse pela base.
[104]
Vejamos a segunda.
b)
A continuação da lucta civil no
Estado do Rio
Grande do Sul, com o appoio prestado ao dr. Julio
de Castilhos pelo Governo Federal.
Este fundamento eguala o antecedente em
valor logico.
A Constituição Federal estatue expressamente
no § 3.º do art. 6.º que «para
restabelecer
a ordem e a tranquilidade nos Estados,
á requisição dos respectivos governos,
pode o
Governo Federal intervir em negocios peculiares
aos mesmos Estados.»
Alteradas a
ordem e a
tranquillidade no Estado
do Rio Grande do Sul, pela invasão armada
dos federalistas combatendo á sombra
de uma bandeira que o pacto federativo não
reconhece, o dr. Julio de Castilhos, governador
do Estado, sollicitou o auxilio do Governo
Federal, que por este lhe foi concedido, nos
citados termos do art. 6 e § 3.º da
Constituição.
Deixou portanto o marechal Vice-Presidente
de cumprir na especie os seus deveres
[105]
constitucionaes? Violou porventura a lettra e
o espirito da Constituição? Exorbitou accaso
dos
poderes e
faculdades que esta lhe confere?
O simples bom senso manda optar pela
negativa.
E ainda mesmo admittindo que o marechal
Vice-Presidente não devesse ter usado na
hypothese em discussão da
faculdade que o cit.
art. 6 e § 3.º lhe concede, o facto, quando
muito, poderia constituir um
erro
politico, mas
nunca uma violação do pacto constitucional.
O contrario implicaria a annullação pura e
simples das disposições citadas.
As circumstancias, porem, encarregaram-se
de provar á evidencia que o marechal Vice-Presidente
nem sequer pode ser arguido de
ter praticado um erro politico. A sequencia
dos acontecimentos veio revelar, ainda aos
mais ingenuos, a verdade sobre o movimento
revolucionario Rio Grandense e os intuitos
inconfessaveis que a elle presidiam, desmascarando
as tentativas reaccionarias que se acobertavam
sob a divisa «
republica
parlamentar»
e outras não menos equivocas e perturbadoras
da ordem e do progresso da poderosa
federação sul americana.
[106]
Á vista do exposto, portanto, não pode
deixar de concluir-se pela absoluta inanidade
das causas invocadas como justificativas da
revolta de 6 de setembro.
Resta occupar-nos dos
intuitos ou
fins do
movimento insurreccional.
c)
Pacificar o Rio Grande do Sul.
Este fundamento é conjunctamente invocado
por ambos os partidos em lucta no Rio
Grande do Sul; pelo dr. Julio de Castilhos,
governador eleito e, pelos federalistas, manobrados
pelo dr. Silveira Martins.
Somente, os primeiros combatem em nome
da lei e da Constituição Federal, em nome
d'esse documento livremente acceite pelos Estados
da Federação e em que se consubstanciam
as liberdades, os direitos, os deveres e
as garantias conquistadas em 15 de novembro.
Os segundos luctam em nome de uma
bandeira mal definida, sustentando principios
que a Constituição não reconhece,
não auctorisa
e não sancciona.
Ao lado do dr. Julio de Castilhos, velho
[107]
republicano, republicano historico, vinculado
á larga obra de propaganda anterior ao 15 de
novembro, está toda a democracia Rio Grandense,
que a seu lado militou na campanha
contra o imperio, estão os homens que collaboraram
nas paginas d'essa obra convicta,
sincera e patriotica, que hoje encontra no pacto
federal a sua mais pura e genuina expressão.
Ao lado dos federalistas estão, força
é dizel-o,
com a sua impenitencia e com o seu
ouro, os antigos partidarios do Imperio, os
elementos reaccionarios que nunca se resignaram
a acceitar a nova ordem de cousas ou
que só apparentemente o fizeram, para com
maior facilidade e segurança urdirem os seus
planos criminosos. Está esse antigo estadista
da monarchia, o dr. Silveira Martins, cujo
odio ás instituições implantadas em 15
de
novembro só é
egualado
pela sua illimitada ambição. Está,
emfim, toda essa plebe de aventureiros, vivendo do morticinio e do
roubo, tão facil de recrutar n'esse paiz, entre a vasa
migratoria europea e a das visinhas
republicas hispano-americanas. Tudo isto,
heterogeneo, tumultuario, desconnexo, sem
principios, sem ideiaes e sem bandeira, porque
[108]
essa da
«
republica
parlamentar», sobre não
legitimar
um movimento revolucionario, em
pleno e normal funccionamento dos orgãos
do pacto federativo brazileiro, é apenas um
pretexto sob o qual se occultam as mais positivas
e mais verdadeiras tentativas da restauração
imperialista.
N'estas condições, o restabelecimento da
paz, invocado pelos fauctores da sedição de 6
de novembro, mais se affigura demasiada confiança
na credulidade alheia do que a expressão
sincera dos intuitos dos revoltosos.
De facto, é evidente que uma possivel victoria
dos revoltosos, devida á retirada das
tropas da Federação, a circumstancias imprevistas
e accidentaes e ao principio de que não
raro
la force prime le droit,
só serviria para
aggravar ainda mais os odios e os antagonismos
entre os grupos que se degladiam,
contribuindo para o prolongamento das hostilidades.
O partido republicano historico, que
tem do seu lado o appoio dos principios, a
defesa da Constituição, o espirito geral da
grande Republica e o progresso crescente das
ideias democraticas que acaba sempre por
triumphar, não se resignaria a depôr as armas
[109]
em face d'esse inimigo de intenções mais
que duvidosas e a lucta protelar-se-hia até á
revanche decisiva.
«Dada a victoria da revolta, terá logar a
pacificação
do Rio Grande... naturalmente pela retirada
das tropas federaes que guarnecem o Estado e subsequentemente
pela deposição do dr. Julio de Castilhos,
que cahirá com os seus correligionarios em poder dos
federalistas, desapparecendo inteiramente da scena politica
quasi todo o partido republicano historico da
terra de Bento Gonçalves. Aquelle mesmo partido
que fez a propaganda e que iniciou alli a
organisação
republicana em finais de 89 será substituido pelos amigos
do dr. Silveira Martins, isto é, pelo partido que
incensava a monarchia e que hoje prega a republica
parlamentar.
Virá então a paz?... A paz de Varsovia, sim,
até o momento em que os republicanos puros, obrigados
a emigrar, invadam por sua vez a terra natal para
repetir-se o espectaculo de hoje.
Como poderá o governo que nasceu da revolta
impedir tudo isso e conciliar isso tudo com a
pacificação
que promette?
Não sei, e por este motivo não creio na
pacificação
do Rio Grande apoz a victoria do movimento
custodista.»
[17]
Força é pois confessar, que os pretensos
argumentos dos partidarios da revolta são de
[110]
uma vacuidade deploravel, quando não assumam
as proporções de uma verdadeira
blague.
Prosigamos comtudo n'esta ligeira analyse
visto que o assumpto se não acha ainda esgotado.
No dizer dos apaniguados da revolta de
6 de setembro, pretendiam elles, além do já
exposto.
d)
Estabelecer o respeito e restabelecer o dominio
da Constituição violada.
A inanidade d'esta rasão impõe-se aos espiritos
menos perspicazes.
Em primeiro logar, demonstrado ficou já
sufficientemente que a violação da Lei Organica
da Republica dos Estados-Unidos do Brazil
só existe na mente dos revoltosos. O governo
do marechal não infringiu as
disposições
constitucionaes e quando muito, poderia ser
arguido de menos cautella ou tactica politica
no uso das
faculdades que a Lei
citada lhe
confere.
Mas quando isto não fosse sufficiente, os
actos dos revoltosos, em seguida ás
declarações
[111]
do seu chefe, confirmariam á
saciedade
quanto temos affirmado.
Já a revolta em si, em plena normalidade
constitucional, com o congresso e o Senado
funccionando regularmente e em vesperas de
eleições geraes, denuncia nos revoltosos o
mais formal despreso por essa Constituição,
cujo
respeito e
dominio fingiam querer zelar.
O que se segue, porem, excede toda a
espectativa.
Assim, os revoltosos começam por esquecer
a ordem legal da successão presidencial,
creando no Desterro um
Governo
Provisorio
que por completo annulla essa successão;―continuam,
lançando pela voz de Silveira Martins
o pregão revisionista, no sentido de substituir
á republica presidencial a republica parlamentar,
e concluem, annunciando á nação a
consulta plebiscitaria, afim d'esta se pronunciar
sobre a forma de governo que entende dever
preferir.
Este respeito pela
integridade da
Constituição
faz-nos lembrar aquelle guarda-chuva
usado que ficaria como novo substituindo-o
radicalmente, desde o cabo até á seda!
[112]
Resta-nos fallar do ultimo dos fins consignados
no programma dos revoltosos.
e)
Affastar do governo do paiz o elemento
militar.
Não somos dos que mais sympathisam
com a intervenção do militarismo no governo
e administração dos Estados, visto que a natureza
especial das funcções que elle é
chamado
a exercer, seria absolutamente desvirtuada
e prejudicada com essa intervenção.
Não somos tambem apologistas do homem-machina,
vinculado pela mais absurda
das disciplinas á defesa incondicional de todas
as iniquidades.
O nosso criterio assenta em um justo
meio termo que concilie, ponderando-os, o espirito
de ordem com o espirito de progresso,
nacionalisando a força publica e impedindo-a
de contrariar pela violencia as aspirações dos
povos, quando tornadas inequivocas pela sua
generalidade e insistencia.
O ideal dos governos será pois aquelle
em que, ao lado do elemento civil exercendo
a funcção directora e administradora com o
[113]
mais absoluto respeito pela vontade nacional,
livremente manifestada, subsistir uma força
armada, ennobrecida pelo mais puro e desinteressado
patriotismo e defensora fiel da integridade
constitucional.
Ha, porem, momentos na vida das nações
em que, por força das circumstancias, o exercito
é chamado a intervir mais intimamente
na vida publica interna, assumindo por vezes
a propria funcção directora, não raro
até dictatorialmente.
Essa intervenção, emergente da propria
natureza das cousas e parte integrante da
phenomenalidade revolucionaria das grandes
transformações na ordem politica, deu-se em
15 de novembro, como aliás em todos os
momentos historicos similares.
Sem contar em que hoje, por via de regra,
é á força armada que pertence a
iniciativa
dos golpes revolucionarios decisivos, iniciativa
que, evidentemente, só fructifica e se consolida
quando representa o ultimo termo de
uma larga, demorada e laboriosa evolução
nos espiritos,―só o exercito, com a enorme
força que lhe resulta da disciplina, da unidade,
da rapidez nas resoluções e do temor que
[114]
inspiram os seus meios de defeza, consegue
impôr á
multidão dos interesses vinculados ás
instituições proscriptas, ao espirito
reaccionario
dos velhos regimens e aos aventureiros
de toda a especie, que a desordem faz vir á
suppuração, esse receio salutar, que permitte
á nova ordem de cousas a indispensavel liberdade
de acção, para expandir-se e crear
raizes.
O poder civil, com a sua educação avessa
ás resistências porfiadas, ás luctas
violentas,
aos perigos do combate sangrento, muitas
vezes necessario, succumbiria facilmente n'essas
crises afflictivas, perdendo a serenidade
n'um meio tão differente do gabinete de estudo
e até das horas mais tempestuosas da
tribuna politica.
E tanto isto é verdade, tanto este facto
se impõe a todos os espiritos em circumstancias
identicas, que o primeiro acto do contra-almirante
Custodio de Mello, foi a creação de
um Governo Provisorio
militar,
presidido
pelo capitão de fragata Lorena, confirmando
mais uma vez o principio de que as declarações
dos homens nada podem contra a fatalidade
das cousas.
[115]
No caso da victoria dos revoltosos, os perigos
do militarismo antes augmentariam do
que diminuiriam de intensidade, aggravando
mais e mais essas mal comprehendidas divergencias
entre o exercito e a armada, que os
especuladores professos procuram converter
em instrumento dos seus criminosos designios.
Os meios de obviar aos inconvenientes
do militarismo, são outros e muito outros, e
esse espectro dos traficantes facilmente desapparecerá
com a consolidação do regimen
republicano e o exercicio normal e regular
dos poderes constitucionaes.
Somente, essa obra é incompativel com
as convulsões das luctas civis e só em plena
paz pode levar-se a bom termo.
«A predominancia do elemento militar na alta
administração do paiz, tem sido, a partir de 15
de novembro,
um facto constante e patente. Naturalissimo
aliás pelas circumstancias que rodearam a
proclamação
da Republica, elle tende porem a diminuir e a desapparecer,
desde que pela primeira eleição directa e
popular de um Presidente, o paiz entre n'um largo
periodo normal e pacifico de vida politico-administrativa―sobrepujadas
as primeiras difficuldades da adaptação
do novo regimen.
[116]
Assim, o mais mais curial e seguro de
realisar
a transferencia do Poder ao elemento civil seria, e é
ainda, encaminhar paciente, sensata e calmamente o
paiz até os ultimos dias do actual periodo presidencial,
pedindo aos proprios militares de terra e mar
um bocado da abnegação que tanto os exorna e
dignifica
na sua profissão, com o fim de dar á patria,
que é de todos, um futuro fecundo e extreme de
commoções.
Para isso a tranquilidade interna seria condição
essencial.»
[18]
Eis, nas suas linhas geraes, o nosso modo
de ver sobre as pretensas causas e os suppostos
intuitos dos fautores do movimento de
6 de setembro.
A questão foi por nós encarada á face
dos
elementos de critica existentes á data do pronunciamento.
Quizemos assim provar, que,
desde o seu inicio, á sedição
Custodista faltavam
por completo as garantias de legitimidade.
Hoje, porém, os acontecimentos encarregaram-se
de confirmar amplamente todas as
nossas previsões, desmascarando as
intenções
secretas dos revoltosos e fazendo plena justiça
[117]
ao inquebrantavel civismo do marechal
Vice-Presidente.
Assim, a accusação de dictador com que
pretendiam macular os ultimos dias do glorioso
soldado do Paraguay e que nós provámos
ser absurda, cahe miseravelmente em
presença das ultimas eleições, em que
Prudente
de Moraes e Victorino Pereira, dois
membros da classe civil, triumpham, sem a
menor pressão ou hostilidade da Vice-Presidencia.
Assim, as tentativas de restauração
imperialista affirmam-se inequivocamente no
manifesto Saldanha, documento que, a par da
maior vacuidade mental revela uma ausencia
absoluta de tino politico.
Dissemos atraz que, em presença dos fundamentos
allegados pelos promotores da revolta
para cohonestar a sua causa, nos cumpria
inquirir:
1.º Da verdade d'essas arguições.
2.º No caso affirmativo, se a esses motivos
de protesto era possivel obviar pelas vias
legaes.
3.º Se a causa insurrecta arrastou a massa
popular correspondendo á explosão de um
sentimento nacional.
[118]
Ao primeiro ponto respondemos já, estando
portanto prejudicado o segundo e restando
occupar-nos do terceiro.
Como acolheu a nação o movimento
Custodista?
Nos primeiros momentos, a nota predominante
foi a surpreza, e comprehende-se que
assim fosse.
A opinião publica não estava preparada
para esse golpe sem precedentes justificativos,
em pleno dominio do Congresso e do Senado,
quando tudo fazia acreditar na normalidade
da vida constitucional.
Naturalmente alheio aos debates relativos
ao
veto opposto pelo Vice-Presidente
e ás
razões de ordem moral e legal que lhe aconselharam
o uso da faculdade estatuida na Constituição,
o grande publico, falsamente orientado
pelos especuladores de toda a ordem e
sem os necessarios elementos de critica para
inquirir da verdade, occulta sob as suppostas
razões e enganosas promessas do chefe da revolta,
deixou-se a principio seduzir pela oratoria
do
libertador.
Essa surpreza, porém, foi de curta
duração.
[119]
De facto, Custodio de Mello, que a principio
contava com deserções que se não deram
e elementos que o não acompanharam, e
que, além d'isso, força é dizel-o,
não soube
aproveitar na primeira hora os recursos de
que dispunha;―Custodio de Mello, cujos
motivos de protesto eram de ordem meramente
particular, muito embora talvez o não
fossem os de muitos ingenuos e illudidos
que o seguiram;―Custodio de Mello, viu-se
obrigado a acceitar todos os factores de
cooperação
que se lhe offereceram, ainda os
mais repugnantes e heterogeneos, preferindo
vencer
quand même a dar ao
seu paiz um nobre
exemplo de abnegação e patriotismo.
D'aqui resultou que o movimento de 6
de setembro deixou de se impôr ao publico
como uma affirmação de respeito pela integridade
da Constituição e da Lei, para affirmar-se
apenas como um tumultuar de inconfessaveis
ambições.
Desde, portanto, que a causa perdeu o
caracter
nacional para assumir o
caracter
pessoal,
estava
moralmente perdida, muito
embora
os acasos da guerra podessem ás vezes fazel-a
triumphar
material e
momentaneamente.
[120]
Em democracia, o appoio dos principios
é já uma meia victoria e as
pretenções que
n'elles se não fundamentam quasi sempre resultam
estereis.
O publico começou a não comprehender
como a um tempo podessem conciliar-se as
declarações custodistas de
respeito pela integridade
da Constituição―1.º com a
attitude francamente
revisionista do snr. Silveira Martins,
prégando a
Republica
parlamentar,―2.º com o
manifesto do snr. Saldanha da Gama, condemnando
o 15 de novembro e appellando
para
um plebiscito em que a
nação se manifestasse
sobre a forma de Governo que lhe cumpria adoptar!
Por outro lado, o publico via com pasmo que
ao lado do
dictador Floriano Peixoto
se encontrava
todo o partido republicano historico;―que
o
tyranno tinha ainda a appoial-o o
Congresso e o Senado, unicos representantes
legaes da
Federação,―e finalmente que (notavel
coincidencia) os elementos que, aqui e
além, se insurreccionavam contra o governo
legal, eram constituidos por velhos partidarios
do Imperio,
adhesistas da ultima
hora, mas de
convicções democraticas mais do que suspeitas!
[121]
Ainda a altitude da dynastia proscripta e
da opinião europeia contribuiam para aggravar
a desconfiança que, em relação aos
intuitos
da revolta, lavrava nos espiritos. Os Bragança-Orleans
não occultavam os seus bons
desejos de que a victoria pertencesse ao snr.
Custodio de Mello,
integerrimo defensor da
Constituição, e a imprensa
monarchica europeia,
da qual especialisaremos a portugueza, desde
o 6 de setembro que dispendia a sua melhor
rhetorica em verberar a
tyrannia de
Floriano
Peixoto, erguendo ás nuvens as preclaras virtudes
do contra-Almirante
libertador, uma
especie
de snr. D. Pedro IV
fin de
siècle.
D'aqui resultou o enorme
desprestigio
que
immediatamente recahiu sobre essa revolta
de intuitos hybridos, desprestigio seguido de
manifesta repulsão, apoz a practica de inuteis
e monstruosas crueldades por parte dos revoltosos,
e que veio a converter-se, com as declarações
de Saldanha da Gama, n'esse bello
movimento de reacção patriotica, em que se
consubstanciam todas as aspirações da alma
de um povo que ao respeito das suas liberdades
e á defeza das suas conquistas na esphera
[122]
do Direito não duvida sacrificar todas as
considerações
de ordem egoista.
Quanto a nós, a revolta de 6 de setembro
trouxe, a par dos inconvenientes de ordem
material de que o Brazil, com os recursos de
que dispõe, facilmente se restabelecerá, algumas
vantagens de primeira importancia. Sem
ella, a estabilidade da republica seria ainda por
muito tempo perturbada pela surda hostilidade
«dos que pela Republica foram feridos nos
seus privilegios e dos que por tanto não
amam a Republica»
[19].
Sem ella, a nação
não
teria affirmado, pela forma eloquente e incontrovertivel
porque acaba de fazel-o, a sua identificação
com o 15 de novembro e as suas
aspirações consignadas na Lei Organica dos
Estados Unidos do Brazil, livremente discutida,
votada e acceite.
Á victoria decisiva da democracia no Brazil,
eram indispensaveis as provações dos ultimos
mezes. Á tradicção gloriosa de
«Filippe
dos Santos, esquartejado em Minas em
1720; de Tiradentes, subindo ao cadafalso
em 1789; de Domingos Martins, Abreu Lima
[123]
e Domingos Theotonio, soffrendo as perseguições
ou o martyrio em 1817; de Paes de
Andrade, Frei Caneca, Bezerra Cavalcanti, e
Ratcliff em 24; de Cabeço Badaró, em 31;
de Bento Gonçalves e David Canavarro de 35
a 45; de Rafael Tobias, Gabriel dos Santos,
Padre Feijó e José Feliciano em 42; de Nunes
Machado e Pedro Ivo em 48
[20]»
era necessario
juntar as victimas d'estes sete mezes de
lucta, os guardas-nacionaes, os soldados da
Republica, a juventude heroica das escolas,
para que a arvore da liberdade, regada com
esse sangue generoso, não perdesse essa
fructificação
maravilhosa que desde seculos constitue
a mais bella aspiração da Humanidade.
Como dissemos, a imprensa monarchica
portugueza, interpetre salariada do que aos
bandos constitucionaes se affigurou representar
o
interesse dynastico, desempenhou
na lucta
civil brasileira um papel indecoroso, de uma
parcialidade revoltante, pondo ao serviço das
[124]
tentativas de restauração imperialista todo o
seu apoio e usando de todos os processos de
combate, ainda os mais condemnaveis á face
de uma moral rudimentar.
Sobre a revolta de 6 de setembro e contra
o marechal Vice-Presidente e os seus partidarios,
debitaram-se as maiores torpezas e as
mais refalsadas calumnias, recorrendo-se á
mentira, á injuria, á insidia e até
á publicação
de telegrammas apocryphos para lançar o descredito
sobre as novas instituições brazileiras.
«Ao Portugal monarchico coube, n'esta campanha
torpissima contra a Republica brazileira,
um logar proeminente e distincto.
Homens que deviam ter a nitida consciencia
dos seus crimes politicos e da sua corrupção
consciente
e provada, permittiam-se o desaforo de
dar sentenças e formular censuras aos seus irmãos
de alem-mar. Quando o aviso se esterilisava,
ou o caco do apostolo não escorria novos conselhos,
começava a troça e a chalaça, isso,
que,
de ordinario, é o trapo de que se acuberta a impotencia
moral, para não documentar, callada, a
sua imbecilidade. Quem, por annos successivos,
fizera sempre do Brazil uma fonte de recursos,
explorando a saudade e a tendencia aristocratica
dos que por lá se lançam á lucta da
vida, apparecia-nos, agora, a tracejar projectos de
regeneração,
de fomento, de politica imperialista, como
se a um paiz, como o nosso, sem pão, sem honra
e sem liberdade, seja permittido outra attitude
a não ser a de attentar na sua propria baixeza.
[125]
Claro está, que todos os
governos, assim como
todas as emprezas de chantage, suas alliadas, appoiavam
estas arremettidas. De cá ia o conselho
e a tactica para a restauração do imperio,
emquanto
os que assim obravam iam testemunhando,
com os seus actos, a insolvencia do systema
que se propunham defender. N'esta campanha
porfiada tudo pegou em armas. Tudo! Desde o
elemento official, mais declarado, até á
iniciativa
partidaria, mais humilde; desde o velhaco até o
imbecil, tudo, dentro dos arraiaes monarchicos,
conspirou. Por toda a parte, na imprensa e no
desenho, na conversa e no negocio, por toda a
parte a obra sebastianista se nos impunha descaradamente.
Jornaes, agencias telegraphicas, tudo
quanto podia forjar burlas que durassem horas,
ou mentiras plausiveis que vivessem minutos, tudo
trazia á feira o seu sacco e a sua prosa, o seu
odio ou o documento vivo do seu ajuste. Que
podridão!»
[21]
Esta attitude, appoiada por alguns elementos
[126]
da nossa colonia no Brazil, creou-nos em
face dos homens publicos da grande democracia
sul-americana uma situação falsissima
e que só póde modificar-se pela perfeita
descriminação
das responsabilidades.
É indispensavel que todos nós, verdadeiros
portuguezes, nos resolvamos a collaborar
na obra commum do resurgimento nacional.
Um dos primeiros, senão o primeiro acto
d'essa nobre aspiração é o
estreitamento das
nossas relações com os Estados-Unidos do
Brazil, a cuja vida economica nos achamos
hoje vinculados por força das circumstancias.
Somente, essa cordeal
entente e as
enormissimas
vantagens que d'ella podem derivar,
são incompativeis com a existencia em
Portugal de uma monarchia que nos conduziu á
ruina e nos concitou a legitima animadversão
da democracia brazileira.
Estes são os factos, expostos em toda a
sua nudez, e contra factos não ha argumentos.
A Republica dos Estados-Unidos do Brazil
não esquece facilmente que, desde o dia
15 de novembro, só tem encontrado ao seu
lado em Portugal os homens do partido republicano,
[127]
os seus jornaes, os seus oradores
e os seus publicistas, ao passo que da monarchia
e dos seus serventuarios recebeu apenas
inequivocas demonstrações de hostilidade.
As considerações que aqui deixamos expostas
não são apenas o resultado de uma
deducção logica das premissas estabelecidas
pela observação dos acontecimentos. Representam
mais alguma cousa.
Com alguns vultos importantes da democracia
brazileira temos tido ensejo de travar
conhecimento. Todos elles confirmam as
nossas previsões.
Assim, e para não citar outras especies;―um
tratado de commercio entre Portugal e
os Estados-Unidos do Brazil, tratado cujas
vantagens seriam para nós incalculaveis, é
inexequivel na hora presente. Não reuniria
no Congresso duas duzias de votos!
Ora isto é grave e tão grave que esperamos
que os nossos compatriotas residentes
no Brazil comecem a preoccupar-se um pouco
mais com a verdadeira situação da nossa patria
e um pouco menos com esse absurdo
fetichismo monarchista, que bem pouco se
compadece com os pruridos de civilisação
[128]
que nos pretendemos arrogar e com as miserias,
as vergonhas e as ruinas que essa monarchia
nos trouxe.
É indispensavel tambem que do povo brazileiro
façamos uma ideia um pouco mais
justa do que a entrevista pelo prisma jocoso
de certos publicistas, que do Brazil só conhecem
a goyabada, os macacos e as araras.
O povo brazileiro é um dos povos mais
intelligentes do mundo, assimilando com notavel
facilidade e dominado como nenhum
outro pelo amor do progresso e pela paixão
da sciencia.
Em todas as espheras do conhecimento e
da actividade mental, o Brazil conta hoje elementos
de primeira ordem, que só desconhece
quem não sabe, não lê ou não
procura ler.
Em todos os ramos da luminosa serie de
Comte, não é difficil encontrar numerosos e
distinctissimos cultores, n'esse paiz que é já
hoje o assombro da Europa e que, no entanto,
por assim dizer, se encontra ainda no periodo
colonisador.
Dos elementos d'essa colonisação, nenhum
mais adaptavel do que o portuguez, nenhum
que melhor liga possa formar com o nativista,
[129]
contribuindo assim para a prosperidade e
grandeza das duas nações:―o Portugal e o
Brazil.
Mas para isso é necessario que nós,
nós
todos os que ainda não abdicamos da esperança
em um Portugal livre e honrado, reunamos
os nossos exforços, a nossa actividade,
os nossos recursos, fazendo-os convergir para
um fim unico,―a liquidação de um regimen
de miserias e ignominias e o advento de uma
Republica forte e moralisadora, onde a soberania
nacional não represente apenas uma
ficção e uma burla.
E perfilhando as palavras de um grande
jornalista e de um grande patriota, affirmemos
mais uma vez a nossa profunda alegria
em face da victoria da legalidade republicana
no Brazil.
Essas palavras que vão ler-se, representam
n'este momento decisivo para os destinos da
grande Republica, o consenso unanime do
partido republicano portuguez.
Eil-as:
[130]
«A
consolidação do regimen republicano
no
Brazil, ao tempo, precisamente, em que, entre nós,
os governos da monarchia, liquidam, n'um descalabro
affrontoso, toda a economia, toda a dignidade,
toda a honra nacional, é o successo de
mais extraordinario alcance, que a Historia póde
apresentar-nos n'este momento.
Porque não se trata, sómente, da
estratificação
de um dado systema politico, após luctas
temerosissimas, e de toda a ordem, que mal se
comprehendem para se poderem avaliar. Menos
reveste, tambem, a fórma exclusiva de uma conquista
de paz e tranquillidade, alcançada sobre
os desmandos criminosos da traição e do abuso
do poder. É mais:―é a victoria de um ideal
largo, immenso, que através de duas mil leguas,
nos alcança e consola; é o desmentido
potentissimo,
ineluctavel, contra a covardia assallariada,
que, de ventre cheio e barbas untadas, nos vinha
dizendo, a cada instante, que onde não houver
um sceptro nem uma corôa não haverá nem
paz,
nem socego, nem quietação nos espiritos.
[131]
E nós―nós, sobre
tudo, que nem por
ambição
nem por calculo nos lançamos na corrente
limpida e mansa dos que se divorciaram, ha muito,
do existente―nós, a quem não póde
dar-se o
nome de imprudentes, por isso que a edade falla
pela voz da sua razão; nós que nem de sonhadores,
nem de totalmente atrasados no conhecimento
da historia politica dos povos modernos
podémos, com verdade, receber
apôdos;―nós,
assim e tão barbaramente profligados pelos molossos
e pelos fraldiqueiros da monarchia, tinhamos
que receber o enxovalho, appellando para um
futuro, que, dia a dia, nos ia fugindo sempre. Aos
ignorantes, aos simples, aos de pouca fé era perigosa
a arma dos nossos contrarios. O argumento
d'estes reduzia-se a esta sentença:―«ahi teem
o que dá a Republica; vejam o sangue que ella
vae custando ao Brazil». E os maragatos, de saco
e penna, entumeciam-se com a demonstração. O
imperio era, para elles, um negocio, além de uma
tranquillidade. E deshonrando a razão humana, e
vituperando os homens e os systemas, iam cavando
torpissima e ridicula lenda, que punha
tons de Marco-Aurelio na figura pittoresca, e
menos que banal, do pobre D. Pedro II.
[132]
Porque estes traficantes traziam sempre
na
mão este indigentissimo raciocinio:―O Brazil
estava conflagrado, porque a Republica, abrindo
os diques á ambição desmandada
d'aquelle grande
povo, estabelecera a anarchia. Em vão se lhes
demonstrava, que ao governo republicano, por
fórma alguma, se podia imputar a tremenda responsabilidade
do que estava succedendo na capital
federal. Que muito ao contrario d'aquillo que
a imprensa assallariada nos impunha, a anarchia
era, pura e unicamente, obra da rebellião monarchica.
Que o governo republicano, sobre representar
a honra e consenso nacional, representava,
egualmente, a legalidade e o predominio da
justiça. Que quem sahira da lei não era o povo,
nem tão pouco os que, com elle, se tinham coligado
para exterminar uma fórma de governo
inutil e absurda; mas tão sómente os que
recebendo
do estado as armas com que deviam e lhes
cumpria defender os interesses publicos, proclamados
como taes, pela consciencia nacional, as
tinham voltado contra a patria, trocando a farda
do soldado leal pela libré immunda do lacaio
servil».
«Agora, consolidada a
Republica nos vastos
dominios do Brazil, importa que os novos elementos
officiaes d'esse grande Estado não involvam
toda a nação portugueza no mesmo labeu, que
infama, hoje, muitos dos seus filhos. É natural a
represalia; naturalissima mesmo a desfórra, é
certo:
mas não é justo que todo um povo, que ainda
tem um grande destino a cumprir, soffra as funestas
consequencias dos seus maus governos, e
colha os espinhos, que especuladôres desalmados
lançaram a esmo, por calculo, por dinheiro e por
negocio, ao longo do seu caminho.
A victoria do Brazil é, pois, e para nós, um
aviso e uma esperança. Representa o regresso de
um povo á plena normalidade do seu viver, á
integridade da sua existencia politica, ao equilibrio
vivo das suas forças, á paz e ao prestigio de
que é digno. É um grande povo, que vem assentar
a sua futura prosperidade sobre os alicerces
gloriosos da sua fé. Que assegura, com a espada,
a victoria moral que já alcançou pelo espirito.
Que surge, em plena virilidade, para consolidar
toda a grandeza moral do seu feito. Que, emfim,
envergonhando-se, com rasão, de ser governado
por um homem, que era o instrumento vivo de
um preconceito, quer governar-se a si mesmo,
e por si mesmo, pelas leis que fizer e pelas liberdades
que adquirir.
[133]
E, ao passo que toda esta
epopêa se levanta,
como um grande sol, lá ao largo, muito ao largo,
é entristecedor attentar no abysmo de miserias a
que Portugal desceu.
Mas, ao menos, seja-nos grato desviar,
por
agora, os olhos d'este atoleiro, e saudar, pela sua
conquista, pela sua tenacidade, pela sua grandeza,
os nossos queridos irmãos de além do mar!
A sua obra, que será eterna, está, enfim,
concluida!
Emfim!»
[22]
Estamos chegados ao termo d'este trabalho
de critica e propaganda, em que procuramos
illucidar os nossos compatriotas residentes
no Brazil sobre a verdadeira situação da
[134]
Patria commum, as razões de existencia do
partido republicano portuguez e a missão
patriotica que aos nossos nacionaes cumpre
levar a cabo, para que entre Portugal e a Republica
irmã se estabeleçam as
relações da
mais ampla confraternidade.
Esta obra, se por alguma circumstancia se
recommenda, é pela sinceridade e desinteresse
que orientam as sua paginas. Escripta com
a precipitação do trabalho jornalistico, entre
as obrigações do advogado e as não
menos
imperiosas da propaganda, ella não póde revestir
nem as bellezas litterarias nem o fundo
scientifico dos exforços largamente meditados
e cuidadosamente revistos e corrigidos.
Mas é sincera, visa a um fim altamente
patriotico, e tanto basta para merecer a sympathia
dos que a lerem.
Muito de proposito, reservamos para o
fim algumas palavras sobre o Vice-Presidente
da Republica brazileira, o marechal Floriano
Peixoto.
Não o conhecemos e d'elle nada pretende
pessoalmente o republicano portuguez, auctor
d'este livro.
Se desde o principio lhe prestamos todo
[135]
o nosso concurso, no jornal cuja direcção
politica
então nos pertencia
[23],
é porque sempre
o julgamos a consubstanciação da legalidade
republicana, expressa na lei organica da
Federação
Brazileira.
Ha momentos na vida de um povo em
que as ideias encontram em certas energias
uma tão perfeita identificação, que ao
publicista
se torna impossivel differenciar esses
dois elementos, sem prejuizo da verdade historica.
Foi o que succedeu no Brazil, cujas instituições
[136]
teriam atravessado uma crise ainda
mais grave do que a actual, se accaso não tivessem
a excepcional energia, o provado civismo
e a inquebrantavel tenacidade d'esse
velho heroe do Paraguay a manter-lhes a integridade.
Na historia do Brazil, esse homem occupa
hoje um logar, que póde bem egualar, em respeito
e em veneração, a memoria querida de
Benjamim Constant.
Á honestidade d'este livro fica bem este
acto de Justiça!
FIM
ADDENDA
PROGRAMMA DO PARTIDO REPUBLICANO PORTUGUEZ
(elaborado
pelo dr. theophilo braga
e publicado em 11 de janeiro de 1891 pelo directorio eleito
em 6 do mesmo mez e anno
no 4.º congresso geral da democracia portugueza)
O PROGRAMMA DA DEMOCRACIA
O regimen politico das cartas constitucionaes,
fundado no amalgama irracional da soberania
do direito divino com a soberania da
nação, só podia nascer e sustentar-se
pelo sophisma
de uma transigencia temporaria entre
o
Absolutismo e a
Revolução. Foi
por esta transigencia
que se perverteu a obra gloriosa do
fim do seculo XVIII, e que o seculo XIX se exgotou
na instabilidade politica, sem ter ainda
resolvido praticamente o problema social. Os
povos fiaram-se n'esta obra dos ideologos;
porém, a pratica de mais de meio seculo descobriu
que esse accordo fôra falsificado pelo
absolutismo, que, encarregado de executar O
pacto, acobertou a dictadura monarchica com
[140]
o parlamentarismo e com os ministerios de
resistencia.
Este regimen das Cartas outorgadas, que
mal se admittiria como transição, empregou
todos os meios capciosos ou violentos, para
conservar-se como definitivo, taes como as
intervenções armadas do estrangeiro, conseguindo
embaraçar todos os progressos e debilitar
a nação pela ruina economica, pela
degradação
dos caracteres individuaes, até ao
ludibrio da sua autonomia. O absolutismo
implicito na Carta outorgada, está desmascarado,
e pelo abuso das dictaduras ministeriaes
as mais absurdas, é incompativel com a
nação; a revolução tem
constantemente disciplinado
as suas aspirações em opiniões
convictas, legitimas e scientificas, como as
synthetisa hoje a democracia moderna. Tal
é a razão de ser do Partido republicano em
Portugal, e da sua solidariedade internacional
com a democracia dos povos latinos.
Na espectativa de uma tremenda catastrophe
nacional (perda das colonias, consignação
dos rendimentos publicos a syndicatos
estrangeiros, e consequentemente incorporação
de Portugal como provincia da Hespanha),
[141]
importa que a nação tenha um partido seu,
que pugne pela sua dignidade e independencia,
tirando da civilisação moderna as bases
de uma nova reorganisação politica. Esta
convicção
tem sido o estimulo para a formação
espontanea do Partido republicano portuguez,
que se desenvolve na razão directa do desalento
publico e da propagação do moderno
saber, trazido na fecunda corrente europêa.
Para que esse partido use da força de que dispõe,
è preciso que tenha a clara intelligencia
da situação que a Nação
portugueza atravessa
n'este momento, e pela gravidade assustadora
da crise consiga o accordo das vontades.
―A situação desenha-se no simples
esboço
critico dos acontecimentos politicos e
dissolução dos partidos monarchicos.
―A unanimidade dos espiritos, essa conseguir-se-ha
pela veracidade scientifica e opportunidade
das doutrinas da Democracia,
ainda no caso restricto da sua applicação
á
reorganisação d'esta pequena nacionalidade.
A liberdade, realisada pelas Civilisações
historicas, consiste na independencia e coexistencia
harmonica do
Individuo e do
Estado.
[142]
Como synthese da Liberdade, o Estado realisa
a
isonomia, ou:
Egualdade perante a Lei (
Responsabilidade
dos individuos).
Egualdade na formação da Lei
(
Suffragio
universal).
Egualdade na execução da Lei
(
Delegação
temporaria revogavel).
Do pleno cumprimento d'estas funcções
garantidas pelo Estado, resulta a
Autonomia
individual, ou a Liberdade em todas as
manifestações
activas, especulativas e affectivas.
Todas as reformas devem ser simultaneas
a estes dous factores sociaes:
ORGANISAÇÃO DOS PODERES DO ESTADO
a)
DO PODER LEGISLATIVO
1.º
Federação de
Municipios―Legislando
em Assembleias provinciaes sobre todos os
actos concernentes á Segurança, Economia e
Instrucção provincial, dependendo nas
relações
mutuas da homologação da Assembleia
nacional.
2.º
Federação de
Provincias―Legislando
[143]
em Assembleia nacional, e sanccionando sob
o ponto de vista do interesse geral as
determinações
das Assembleias provinciaes, e velando
pela autonomia e integridade da Nação.
3.º
Constituinte
decennal―Destinada á revisão
periodica da Constituição politica, e a
reformar a Codificação geral.
b)
DO PODER EXECUTIVO
O Poder ministerial divide-se em tres
grandes ramos:
1.º
A Segurança publica,
comprehende:
Força armada de terra e mar.―Policia civil
e fiscal.―Justiça e Penalidade.―Garantias
individuaes.―Relações internacionaes.
2.º
A educação
publica, comprehende:
Instrucção elementar, scientifica e
technica.―Relações
cultuaes.―Bellas-Artes.―Salubridade.―Assistencia.―Recompensas
civicas.
3.º
Economia publica, comprehende:
Agricultura.―Industria, Commercio e
Navegação.―Concessões de
obras.―Correios
e Telegraphos.―Arrecadações de
impostos.―Estatistica
e Contabilidade geral.
[144]
c) DO PODER JUDICIAL
1.º Juizo de―Conciliação,
Preparação,
Arbitragem e Revisão.
2.º Juizo Civel―Singular, Collectivo e
Especial.
3.º Juizo Criminal, Policial e Administrativo.
FIXAÇÃO DAS GARANTIAS INDIVIDUAES
1.º
Liberdades
essenciaes,―instrumento das
garantias politicas e actos civis: (Allemanha,
seculo XVI). Liberdade de consciencia, e egualdade
civil e politica para todos os cultos.―Abolição
do juramento nos actos civis e politicos.―Registo
civil obrigatorio para os
nascimentos, casamentos e obitos.―Liberdade
de imprensa, de discussão e de ensino.―Ensino
elementar obrigatorio, secular e
gratuito.―Secularisação dos cemiterios e
creação
de um Phantheon nacional para as honras
civicas.―O professorado dividido em docente
e examinante.―Educação progressiva da mulher,
exercendo a capacidade politica em correlação
com as obrigações civis a que estiver
[145]
sujeita.―Abolição dos gráos e da
frequencia
obrigatoria nas disciplinas theoricas e superiores.―Harmonisar
e simplificar os Codigo
civil, criminal, administrativo, commercial
e de processo com o espirito philosophico e
resultados scientificos modernos.
2.º
Liberdades politicas, ou de
garantias: (Inglaterra,
seculo XVII).
Suffragio universal.―Representação das
minorias.―Autonomia municipal; descentralisação
e administração civil das provincias
ultramarinas.―Livre transito, inviolabilidade
de domicilio e abolição de prisão
preventiva,
excepto para o assassinio.―Liberdade
de associação, de reunião e de
representação
(excepto para a força armada sob fórma
collectiva).―Liberdade
de trabalho e de industria,
e abolição dos monopolios quando não
estejam subordinados á utilidade
publica.―Abolição
do corpo diplomatico, e conversão
do consular em uma magistratura para as relações
de direito internacional.―Autonomia
e integridade da nação
portugueza.―Extincção
dos poderes hereditarios e
privilegiados.―Substituição
dos titulos nobiliarchicos feudaes
por um systema de recompensas civicas.
―Organisação
[146]
militar exclusivamente
defensiva.―Poder
legislativo de eleição directa.―Poder
executivo, de delegação temporaria
do legislativo, e especialisando a acção
presidencial
para as relações geraes do Estado.―Lei
de incompatibilidades e effectividade da
responsabilidade ministerial.―Prohibição da
accumulação de funcções
publicas.―Taxação
do povo pelo povo.―Responsabilidade de
todos os funccionarios ou auctoridades.―Direito
de resistencia aos actos offensivos
das leis.―Abolição do recrutamento, e
serviço
militar obrigatorio.―Exercito reduzido
a Eschola e Quadro, e Milicia nacional segundo
as divisões provinciaes.
3.º
Liberdades civis, ou objecto da
acção
individual: (França seculo XVIII).
Extincção das ultimas fórmas
senhoriaes
da propriedade, no sentido de a tornar perfeita,
como fóros, laudemios, luctuosas, por uma
lei sobre remissão forçada.―Arroteamento
obrigatorio dos terrenos incultos ou a sua
expropriação
por utilidade publica.―Refórma
do regimen hypothecario, como fórma de credito
geral territorial.―Estabelecimento do
regimen de aprendisagem e regulamentação
[147]
do trabalho de menores.―Desenvolvimento
das associações cooperativas de consummo,
producção, edificação e
credito, pelo adiantamento
pelo Estado de um fundo inicial.―O
Estado não concorre com as industrias particulares,
e as suas officinas, quando não adjudicaveis
a emprezas particulares, serão escholas
de artes e officios.―Substituição do
systema penitenciario por colonias penaes
agricolas.―Tribunaes especiaes de medicina
legal.―Abolição das loterias e de quaesquer
jogos de azar, embora com fim
caritativo.―Abolição
completa de todas as contribuições
de serviços pessoaes ou dias de trabalho;―das
graças ou perdão de penalidade, mas salvo
o direito de reparação ao
innocente.―Revisão
das pautas, no intuito de facilitar a acquisição
de materias primas, e protecção ao
trabalho nacional.―Abolição de todos os direitos
de consumo cobrados pelo Estado.―Diminuição
gradual do imposto de consumo
nos generos de primeira
necessidade.―Regulamentação
do inquilinato.―Tribunaes
arbitraes de classe, para os conflictos
entre operarios e patrões; ampliação
da competencia
dos arbitros.―Reconhecimento e
[148]
auxilio ás camaras syndicaes, Bolsas de trabalho
e todos os meios de incorporação do proletariado
na sociedade moderna.―Reconhecimento
da divida publica, com o resgate da
externa, e regularisando a interna como meio
de capitalisação dos pequenos possuidores.
Alguns d'estes principios tem sido ensaiados
pelos partidos monarchicos, fragmentariamente
ou sophisticamente, como o registo
civil, a representação de minorias, a liberdade
de consciencia, etc. Mas dentro de um regimen,
em que a suprema magistratura se funda
no privilegio pessoal do nascimento, é inevitavel
a dissolução dos caracteres e a
viciação
de todas as instituições.
Compete á imprensa republicana e aos
conferentes democraticos desenvolver estes
topicos, que naturalmente constituiriam um
codigo doutrinario, e que apresentamos como
base de um programma destinado a dar convergencia
ás vontades para cooperarem na
reorganisação nacional.»
LIVRARIA CHADRON―M. LUGAN, SUCCESSOR
Alberto Pimentel
|
|
|
Leon Tolstoï |
|
O Porto na berlinda |
500 |
|
A sonata de Kreutzer |
400 |
Um contemporaneo do
infante D.
Henrique |
300 |
|
|
|
Em papel de linho |
500 |
|
Monteiro
Ramalho |
|
|
|
|
Dom Tarouco |
600 |
Alfredo
Campos |
|
|
|
|
O infante
navegador,
poemeto |
200 |
|
Teixeira
Bastos
|
|
Em papel de linho |
400 |
|
A crise |
700 |
|
|
|
Teophilo Braga e a sua
Obra |
700 |
Bruno |
|
|
|
|
Notas do exilio |
600 |
|
NO PRELO |
|
|
|
|
|
|
Escrich |
|
|
Didon (dominicano)
|
|
A calumnia, 5 vol. |
2$500 |
|
Jesus Christo, 2 vol. |
|
As mariposas da alma, 4
vol. |
2$000 |
|
|
|
|
|
|
Eça de
Queiroz
|
|
Fernandes
Costa |
|
|
|
|
O poema do ideal, 2
vol. |
1$200 |
|
As cidades e as
serras |
|
|
|
Correspondencia de Fradique Mendes |
Jayme
de
Magalhães Lima |
|
|
A illustre casa
de Ramires |
As doutrinas de
Tolstoï |
400 |
|
|
|
|
|
|
Theophilo Braga
|
|
João
Chagas |
|
|
A patria portuguesa, 2 vol. |
|
Diario de um
condemnado
politico |
500 |
|
Visão dos tempos, 3 vol.
|
|
|
|
|
|
|
Joaquim
de Araujo |
|
|
|
Sobre o tumulo de
Camillo |
200 |
|
Anthero de
Quental―Homenagem dos seus amigos.
|
Typ. da Empresa
Litteraria e Typographica, rua de D. Pedro, 184
Notas:
[1]
Oliveira
Martins―O
Brazil e as colonias portuguezas―3.ª
ed.―1888―pag. 170
in fine.
[2] Voz
Publica―n.º 1075
de 14 de outubro de 1893
(Do A.)
[3]
Voz
Publica n.º 1180
de 16 de fevereiro de 1894―(
Do A)
[4] Voz
Publica n.º 1075
de 14 de outubro de 1893 (
Do A.)
[5] Voz
Publica n.º 1115
de 2 de dezembro de 1893 (
Do A.)
[6] Voz
Publica n.º 1133
de 23 de dezembro de 1893 (
Do A.)
[7] Voz
Publica n.º 1135
de 26 de dezembro de 1893 (
Do A.)
[8] Voz
Publica n.º 1137
de 28 de dezembro de 1893 (
Do A.)
[9] Voz
Publica n.º 1151
de 13 de janeiro de 1894 (
Do A.)
[10] Voz
Publica n.º 1133
de 23 de dezembro de 1893. (
Do A.)
[11] Voz
Publica n.º 1144
de 5 de janeiro de 1894―(
Do A.)
[12] Emile
de Lavelaye―Le
gouvernement dans la democratie,
vol. I pag. 179 e seg.―Paris 1891.
[13] Emile
de
Lavelaye―ibid―pag. 176.
[14] Dr.
Martins Junior―Ao
povo e ao partido
republicano―Manifesto politico, pag. 9―Recife―Typ. da
Gazeta da Tarde―1893.
[15] E.
de Lavelaye―Le
gouvernement dans la democratie, vol.
I pag. 350 e seg.―Paris 1891.
[16] Dr.
Martins Junior, manifesto cit. pag. 3.
[17] Dr.
Martins Junior.
Manifesto cit. pag. 19 e 20.
[18] Dr.
Martins
Junior―Manifesto cit. pag.
s 23 e 24.
[19] Dr.
Martins
Junior―Manifesto cit. pag.
a 44.
[20] Silva
Jardim―Memorias e Viagens, pag.
a 223.
[21] Voz
Publica n.º 1206
de 18 de março de 1894 (
Artigo do
eminente jornalista José Caldas.)
[22] Voz
Publica n.º 1206
de 18 de março de 1894 (
Artigo do
eminente jornalista José Caldas)
[23] A
Voz Publica, jornal
republicano do Porto e orgão do
partido do norte.
Proprietarios:
Joaquim Bessa de Carvalho, cidadão
portuguez e Adolpho Cyrillo de Sousa Carneiro, cidadão dos
Estados-Unidos do Brazil.
Director
politico: Cunha e Costa.
Redactores:
Jayme Fylinto e Henrique Marques.
Chefe da
reportagem:
F. L. de Sousa.
Collaboradores
effectivos: José Caldas, o eminente
jornalista, Mello Freitas, escriptor muito considerado e Silva
Pinto, uma das individualidades mais originaes do jornalismo portuguez.
N'este jornal collaboraram o fallecido dr. José
Falcão, Rodrigues
de Freitas, dr. Theophilo Braga, Antonio Claro, P.
es
Oliveira e
Guerreiro, Paes Pinto (abbade de S. Nicolau), Alves de
Moraes, etc., etc.
A Voz Publica
é successora de
A
Republica, suprimida
em 31 de janeiro, por occasião da revolta, e que a principio
foi dirigida por João Chagas, auxiliado por José
Pereira de Sampaio
(Bruno), Eduardo de Sousa, Rocha Peixoto e outros. Para
A Voz
Publica tem escripto algumas cartas
interessantissimas sobre o Brazil,
o nosso querido amigo e leal correligionario Carrilho Videira,
hoje residente na Capital Federal.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos: