The Project Gutenberg EBook of Chronica de el-rei D. Affonso V (Vol. III), by 
Rui de Pina

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Title: Chronica de el-rei D. Affonso V (Vol. III)

Author: Rui de Pina

Release Date: February 4, 2008 [EBook #24508]

Language: Portuguese

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Rita Farinha (Fev. 2008)




BIBLIOTHECA

DE

CLASSICOS PORTUGUEZES



PROPRIETARIO E FUNDADOR

MELLO D'AZEVEDO







Bibliotheca de Classicos Portuguezes


Proprietario e fundador―Mello d'Azevedo



CHRONICA

DE

EL-REI D. AFFONSO V

POR

Ruy de Pina

VOL. III






ESCRIPTORIO
147―Rua dos Retrozeiros―147
LISBOA

1902





CAPITULO CXLI


De como se fez em Alcacere a coiraça para defensão e segurança da villa, e como D. Duarte, capitão, se houvera de perder


El-rei entendeu logo no fazimento da coiraça d'Alcacere, por cuja mingua quando tornou sobr'ella de Ceuta a não pôde soccorrer nem bastecer como quizera; porque era mais afastada do mar, do que cumpria para navios sem empedimento e contradição dos de fóra a poderem prover. E tanta ordem e diligencia se poz n'isso ácerca da pedra cantaria e cal, e madeira, e officiaes, e cousas a ella necessarias, e assi a gente de guarnição que tudo defendesse, que com tudo prestes e enviado a Alcacere, a dita coiraça se começou logo á segunda-feira de Ramos XXII dias de Março do anno de mil e quatrocentos cincoenta e nove. Na qual obra D. Duarte, de noite e de dia, para bom exemplo de todos assi servia e melhor que qualquer outro pobre serviçal que hi andasse.

[6] E em fim por fallecimento de cal; porque a obra se fundou maior e mais forte do que primeiro cuidaram, a dita coiraça não se acabou senão depois do S. João do dito anno, e foi ao tempo que D. Duarte era já bem certificado dos ajuntamentos e apurações e convocações que El Rei de Fez em suas terras e nas alheias fazia para vir outra vez sobr'elle como ficara.

E porque para execução do proposito dos mouros era grande impedimento a coiraça que se fazia de que eram já bem avisados, por deterem e impedirem a obra com dano e mortes dos officiaes que a lavravam, acordaram de enviar para isso secretamente certos alcaides, com mil e quinhentos de cavallo, e outra muita gente de pé, para que dessem n'elles e trabalhassem por desfazer a dita obra.

E com isto, porque D. Duarte com sua gente não leixava d'entrar e fazer grandes cavalgadas e estragos nas terras dos mouros, acertou-se que um dia desavisado do ardil dos alcaides, determinou entrar com a mais gente que nunca entrara. E estando á noite dois veladores praticando sobre o muro, aconteceu que por máo avisamento e pouco resguardo d'elles, com vozes altas um descobriu ao outro a entrada de D. Duarte, declarando logo por onde havia d'entrar, e os lugares a que havia d'ir, e tudo assi apontado como que estivera á determinação do caso. E acertou-se que um mouro almograve, que da lingoa dos christãos tinha bom conhecimento e era mui ousado, vindo-se de noite lançar ao pé da barreira por escuta, ouvio toda a pratica d'estes, com que apressadamente logo partio, e foi logo avisar umas aldeias, de que tomaram um mouro mais despachado, que indo com grande trigança dar aviso a Tanger, topou de recontro com os mesmos alcaides que vinham sobre a coiraça, aos quaes o messageiro contou [7] o caso sobre que ia, havendo que era remedio que lhes Deus a tal tempo enviava, e elles mui alegres com tal nova lhe prometeram grandes honras e acrescentamentos; porque lhes pareceu que leixariam entrar D. Duarte, e sem alguma fadiga o atalhariam e tomariam como quizessem, e assi sem os trabalhos, mortes e despezas que se lhe aparelhavam, não sómente impediriam a coiraça, mas cobrariam a villa em que não podia ficar gente que a defendesse.

E vieram-se os alcaides ao logar d'Anexanuz onde estava um christão captivo, natural da Villa de Lagos, a que chamavam o Talheiro, o qual tinha muita amizade e pratica com um mouro, cujo nome era Azmede, que já fôra em Tavila captivo, e sabendo bem o Talheiro o ardil e determinação dos alcaides, pela qual a perdição de D. Duarte e da villa d'Alcacere com toda a gente se não podia escusar, doendo-se d'isso como bom christão e leal portuguez, tanto aperfiou com Azmede e tantas esperanças lhe pôs na bondade e verdade dos christãos para sua honra e proveito, que o houve de commover que de todo o que era concertado logo aquella noite fosse como foi avisar D. Duarte. O qual estando para partir e vendo tal aviso e sendo certificado por Antão Vaz, alfaqueque, que o mouro era homem de credito e amigo dos christãos, pôs os giolhos em terra, e as mãos alevantadas ao ceo deu muitas graças a Deus, e ao mouro deu logo e prometteu e fez ao diante muito bem.

E ao outro dia mandou desaperceber os fidalgos e toda a gente que para a entrada estavam já todos prestes, que por isso ficaram tristes e muito mais descontentes de D. Duarte, e mostrando não ser menos irados contra o mouro, assacando-lhe que por evitar o dano que a seus parentes estava aparelhado, [8] mais que por fazer bem a D. Duarte, se movera a tal aviso, e uns o ameaçavam com a forca, e outros com o lume para o queimarem, mas o mouro confiado no que certo sabia, tudo soffria rindo, dizendo que cedo lhe dariam o contrario.

E sendo o capitão por elle avisado dos lugares em que as cilladas haviam de jazer, mandou logo pela manhã descubrir a primeira, estando com toda a outra gente a recado e percebido; os mouros como viram os descobridores entenderam a verdade, e que tal descobrimento procedera d'algum aviso que os christãos d'elles houveram, e que por isso não sairam da villa, nem ousaram entrar em sua terra como tinham ordenado, e sairam logo d'elles quatrocentos de cavallo em cavallos armados e arreios, gente especial e mui concertada. Sahiu D. Duarte com até cento e vinte de cavallo a lhes resistir, em especial a recolher os descobridores que tinha enviados que vinham mui perseguidos, e n'isto se travou de uma parte e da outra mui crua peleja, em que D. Duarte tanto apertou com os mouros que os fez fugir, em que morreram alguns d'elles, todos homens entr'elles de boa estima, e ao seguimento d'estes sahiu a outra cillada maior em socorro dos primeiros que maliciosamente mostravam ir fogindo por tirarem os christãos fóra, e fizeram todos uma volta sobre os christãos, que por não poderem resistir a tamanha força lhe deram as costas, e no encalço que foi curto, mataram dois e feriram muitos.

E quiz Deus que na primeira esporada que D. Duarte n'elles deu lhe quebraram as cabeçadas do cavallo, e em lh'as corregerem se deteve e mandou deter a gente sua algum espaço, que deu causa que o encalço da volta que os mouros sobre os christãos fizeram fosse assi curta, que quasi os acharam á sombra dos muros [9] a que com sua segurança se acolheram; porque d'outra maneira segundo os mouros vinham azedos, e com tanta sua avantagem, fôra sem duvida para os christãos grande perigo.

E n'este dia se lançou um moço christão com os mouros, a que descobrio o aviso d'Azmede que deu causa a se elle vir de todo para Alcacere, onde sendo mouro deu aviamento a muita guerra e damno de sua propria terra, e este se chamou depois Mafamede de Alcacere, a que El-Rei D. Affonso e depois El-Rei D. João seu filho por seus serviços fizeram muita mercê.


CAPITULO CXLII


De como a villa d'Alcacere foi de segunda vez cercada por El-Rei de Fez, e do que se passou n'este segundo cerco até que se alevantou


Era D. Duarte de muitas partes avisado como El-Rei de Fez se aparelhava grandemente para no começo do mez de Julho vir sobre a villa, e sendo logo sobr'isso certificado que era já em Tangere, começou de concertar e perceber suas cousas como para taes hospedes convinha.

E a uma segunda feira, dois dias de Julho do dito anno de mil e quatrocentos e cincoenta e nove, apareceu El-Rei de Fez sobre a villa com infindo poder de gente, e nações mui desvairadas, e com carriagens d'alimarias espantosas, que cobriam toda a terra.

E nos dias passados tinha D. Duarte enviado pedir a El-Rei que lhe mandasse trazer sua mulher D. Isabel de Castro, e seus filhos que eram em Portugal, e como quer que segundo os recados que tinha havia [10] muito tempo que esperava por ella, acertou-se que em El-Rei de Fez e os outros Marins e senhores começando de cercar Alcacere, a náo em que ella vinha surgiu sobre o porto. E como D. Duarte houve d'ella conhecimento, determinou com gente e fustas e bateis que para isso pôs em mui segura ordenança, de a recolher, e elle a cavallo com outros, andaram na praia resistindo aos mouros, até que muitos fidalgos a pé segura e honradamente a meteram pelas portas da coiraça.

E certo não foi sem causa acertar ella tal dia em que chegasse; porque segundo era de nobre sangue e de muitas bondades e virtudes, bem merecia que em sua chegada a recebessem tamanhos reis e senhores dos mouros como alli eram.

Desceu-se D. Duarte e levou sua mulher á egreja, onde em vigilia e por devoção dormio aquella noite, e ao outro dia a meteu em um cubello do castello, de que podia vêr os combates e afrontas da villa.

E com a ida de D. Isabel a Alcacere foi a gente toda mui leda, e receberam muito esforço e ousadia, assi pelo repairo que os feridos e doentes em suas curas d'ella recebiam, como pelo favor de suas donzellas com que os fidalgos fronteiros se favoreciam e folgavam melhor de pelejar; porque ella tinha em sua casa gentis mulheres filhas d'homens honrados, que guardada em todo sua honra e honestidade, sabiam bem fallar e tratar os homens como mereciam.

D. Duarte como aquelle a que em seus feitos não fallecia grande devoção e esforço, depois de se encommendar a Deos com muitas lagrimas e palavras de bom christão e singular capitão de sua fé, fallou logo com muita prudencia e segurança a todolos fidalgos e pessoas principaes da villa, repartindo-lhe logo com muita alegria e despejo as estancias e guardas [11] que cada um havia de ter, e avisando-os em todo como para a necessidade presente cumpria, em que prometia honra e victoria.

El-Rei de Fez e seu Marim e alcaides ordenaram seus combates á villa em torno, providos de muitas e grossas artelharias, e d'espingardeiros e besteiros sem conto, e d'escalas e mantas, e todo em grande cumprimento; porque em tanto cargo e estima tomou o cobrar d'aquella villa d'este segundo cerco, como todo o reino de cuja privação foi dos mouros ameaçado, se d'esta vez a não tomasse. E d'alguns combates que os mouros deram á villa e á coiraça juntamente, elles foram dos christãos com tanto seu estrago e damno escramentados, que d'hi em diante já refusavam e não se queriam chegar como sohiam. Dizendo a El Rei pela continua e grande mortindade dos seus que os não mandasse assi chegar ao combate; porque elle bem poderia fazer com seu grande poder, quando quizesse, outra villa dez vezes maior que aquella, mas que fazer elle e renovar outros tantos vassallos mouros quantos alli perdia não podia, cá era officio que sómente pertencia a Deus. E com isto punham todos seu esforço e esperança nas bombardas, que de dia e de noite nunca cessavam de lançar pedras.

Era El-Rei de Portugal em Lisboa ao tempo que d'este cerco foi avisado, para que com grande trigança mandou fazer prestes navios com gente, mantimentos e armas, em que foram muitos fidalgos e pessoas principaes do reino, alguns d'elles por especial percebimento, e os mais de suas livres e louvadas vontades, em que entravam pessoas de todas edades, cá os moços por ganhar e acrescentar honra, fugiam para este cerco, e dos velhos por conservação da ganhada algum não queria ficar.

No meio tempo do cerco chegaram ao arraial dos [12] mouros as suas bombardas grossas, que por seu peso e grandeza e pela aspereza da terra faziam suas jornadas vagarosas, e em sua chegada não fizeram os mouros menos festa e alegrias que na sua Pascoa que então celebraram. Foram logo com grande presteza e alegria assentadas, e dos tiros primeiros que fizeram começaram nos muros e cubellos de fazer com sua furia tanto dano, que a muitos de dentro com receio de maior mal já se mudavam as côres; porque alguns cubellos foram em breve arrasados com os muros, que em todalas partes tremiam, e faziam conta que se elles sendo derribados não os defendessem, que a peleja de pessoas com pessoas tanto seria perigosa, quanto a gente e poder dos mouros era desegual. Mas D. Duarte, cujo coração, esforço e segurança, d'estes medos e d'outros maiores andava sempre priviligiado, a tudo soccorria e repairava logo com tão engenhosos remedios, que aos mouros enfraqueciam os corações, havendo que tão prestes e diligente repairo eram obras de Deus mais que dos homens. Especialmente porque claramente viam que a diligencia, trabalho e resistencia dos christãos lhes parecia sobre forças humanas. Pelas quaes cousas, e assi porque os mantimentos falleciam já aos mouros, houve no arraial dos mouros grande rumor de alevantarem o cerco, de que D. Duarte por mouros que na villa se lançavam foi certificado.

E D. Duarte e esses senhores e fidalgos que com elle eram, não fartos de muita honra e louvor que tinham ganhado, escreveram ao Marim apresentando-lhe com palavras assaz cortezes quão covardamente elle e seu Rei se tinham havido n'aquelle cerco, do qual não se deviam assi partir com tanto seu abatimento e deshonra, pedindo-lhe que avergonhados disto tornassem renovar os combates, para que ficavam [13] alimpando as armas, que no sangue dos seus tinham já todas sujas.

El-Rei e o Marim mostrando ser d'esta carta mui anojados, responderam a D. Duarte com palavras de grande descortesia e muita villeza, reportando-se ao mal do palanque de Tangere, e que já fizeram ao Infante tio do seu Rei cavar e alimpar os cavallos, e que assi faria a elles, a quem D. Duarte largamente replicou, reprendendo como devia suas villezas e cobardia.

E finalmente El-Rei de Fez com todo seu arraial se alevantou de sobre a villa, dia de S. Bertholameu, XXIV dias d'Agosto de mil quatrocentos e cincoenta e nove.

Durou este segundo cerco d'Alcacere outros LIII dias como o primeiro. Foram lançadas na villa duas mil e quatrocentas e cincoenta e seis pedras grossas, foram mortos dos christãos até XXV, e dos mouros muitos, de que se não houve o numero certo. O que todo notificou logo D. Duarte a El-Rei, estando em Santarem, que por o caso deu a Deus muitas graças, e a elle muitos agardecimentos e louvores, e D. Duarte mandou logo para o reino a gente que não era em Alcacere necessaria.


CAPITULO CXLIII


Como D. Duarte foi feito conde de Vianna, e El-Rei quisera outra vez passar em Africa para que se percebeu



No mez d'Abril do anno seguinte de mil e quatrocentos e sessenta, por prazer e consentimento d'El-Rei leixou D. Duarte por capitão d'Alcacere Affonso Tellez, seu sobrinho, e se veiu a Lisboa onde achou El-Rei, que d'elle e de toda [14] sua côrte foi grandemente e com muita honra recebido, e d'ali se foi El-Rei a Santarem, onde com solemne arenga de seus serviços e merecimentos, e com devida cerimonia o fez conde de Vianna de Caminha.

N'este anno no mez d'Agosto falleceu de febre em Thomar D. Affonso, marquez de Valença, filho maior do duque de Bragança, sem casar, de que ficou um filho natural, D. Affonso, que depois foi bispo d'Evora. E n'este tempo pelas praticas que El-Rei sempre tinha com o conde de Vianna sobre a guerra d'Africa, a que El-Rei sobre todalas cousas do mundo naturalmente era mais inclinado, desejando de a proseguir determinou passar a Ceuta com dois mil cavallos e gente de pé a elles conveniente, para d'alli como capitão, mais que como Rei fazer guerra aos mouros.

E tendo sobr'isso conselho foi de todolos principaes muito em contrairo aconselhado, em especial do Infante D. Fernando seu irmão, e do senhor D. Pedro, que sobre isso lhe enviaram conselhos para o caso mui excellentes, a que El-Rei não quiz dar credito, guiado já de seu apetito, inclinando-se á só opinião do marquez de Villa Viçosa, que sendo em tudo mui prudente, n'isto pareceu que desacordava. E tendo para isso feita muita custa, com fundamento de todavia passar, desistio da ida por causa de uma grande e perigosa doença de febre em que cahiu e esteve á morte.

E n'este anno de mil quatrocentas e sessenta, lastimado o reino todo das grandes e apetitosas despezas que El-Rei fazia, de que sua fazenda e as de seus vassallos sem causa necessaria se destruiam, em umas côrtes que em Lisboa sobr'isso se fizeram, lhe pediram que as temperasse e quizesse ter mão mais firme nas cousas da corôa; com que sostevesse seu estado como seus antecessores faziam, e não as dar com tanta [15] soltura e sem necessidade como dava, que se contentasse arrecadar dos vassalos os antigos e velhos direitos, e não agravar seu povo com novos pedidos e imposições. E para o melhor poder fazer, lhe outorgaram cento e cincoenta mil dobras d'ouro, com que desempenhasse e pagasse as rendas da corôa, que por tenças e por casamentos, ou por outras dividas e obrigações tivesse dadas, com juramento que fez de nunca as mais dar, mas isto nem sómente aquelle anno em que se prometeu se manteve; porque na passagem em Africa que logo fez se desordenou tudo, e com muita mais soltura por mal da corôa real.


CAPITULO CXLIV


De como falleceu o Infante D. Anrique, e de seus feitos, bondades, e virtudes



E no mez de Novembro d'este anno falleceu em Sagres o Infante D. Anrique com sinaes e cumprimento de fiel christão, em edade de cincoenta e sete annos, cujo corpo foi logo soterrado na egreja da villa de Lagos.

E de hi no anno que vinha de mil e quatrocentos e sessenta e um, foram seus ossos levados ao mosteiro da Batalha por o Infante D. Fernando, que tinha adotado por filho, que foi por elles e os trouxe com grande honra e muita cerimonia ao dito mosteiro, onde El-Rei acompanhado de toda a nobre gente de Portugal e muitos prelados sahiu aos receber com solemne procissão, e lhe fizeram honradas exequias.

O Infante D. Anrique foi em tudo Principe tão perfeito, que não é razão que alguma de suas muitas e [16] louvadas virtudes se especifiquem; porque seria mingoar nas outras todas, que d'elle como de uma fonte clara e perenal todas nasceram. Porém a que pareceu que em seus dias sobre todas abraçou, foi inteira obediencia e firme lealdade a El-Rei, e em seu coração houve sempre fervente amor e continua devoção para Deus, e uma singular humanidade e nobreza para os homens, e um vivo esforço nunca vencido com que em sua vida como magnanimo Principe e esforçado cavalleiro sempre emprehendeu arduas e mui excellentes empresas, especialmente contra inimigos da fé, por seu marivilhoso engenho e muita prudencia e grandeza de coração, e com innumeraveis gastos de suas rendas e fazenda, não receando infindos trabalhos, mortes, e perigos de seus criados e servidores, que muitas vezes via morrer e padecer, depois da tomada e descercos de Ceuta em que foi, mandou primeiramente navegar e descobrir pelo mar Occeano, onde se acharam logo e povoraram as ricas e fertiles ilhas da Madeira, que foram as primeiras que no mar Occeano estes reinos tiveram, e assi d'hi em diante outras muitas de que elles e a christandade toda muito bem e proveito recebem.

E assi o dito Infante como aconselhado e esforçado, já por divina inspiração movido a isso, com respeitos de magnanimo Principe e mui catolico christão, e como mui leal vassallo dos Reis e da corôa de Portugal, desejoso do acrescentamento, gloria, e louvor d'elles, suspirando pela santa, honrada e proveitosa conquista de Guiné, mandou logo pedir e suplicar ao Papa Martinho quinto, na Egreja de Roma presidente, que em nome de Deus cujo poder tinha, concedesse e fizesse á dita corôa e herdeiros d'ella para sempre, como com acordo e approvação do Sagrado Collegio dos Cardeaes fez e concedeu solemne e perpetua doação, [17] e lhe deu o senhorio proprio de todo o que na costa do dito mar Occeano, nos mares a ella ajacentes dos marcos e cabos de Nam e do Bojador contra o meio dia e oriente por elles e por seus sobcessores, e por suas gentes pelos tempos em diante se achasse e descobrisse até os Indios inclusivamente. A qual doação e concessão do dito Papa Martinho depois o Papa Eugenio, e o Papa Nicoláo, e o Papa Sixto á suplicação d'El-Rei D. Affonso, e d'El-Rei D. João seu filho confirmaram e aprovaram com sua graça e poder, com muitas graças e benções e liberdades aos Reis de Portugal presentes e futuros que a proseguissem, e com grandes excumunhões, graves censuras e maldições a todolos christãos que em qualquer maneira, sem prazer e consentimento dos ditos Reis de Portugal contra ellas fossem, como nas Bulas Apostollicas que se d'isso concederam mais perfeita e cumpridamente se contém, as quaes sendo um divino favor e verdadeiro e ligitimo titulo para se a dita navegação, descobrimento e conquista navegar e proseguir o dito Infante logo primeiramente com o santo e virtuoso principio de tão aventurado fim a emprendeu e proseguiu.

E com espantosos principios e meios de que era prasmado e nunca foi vencido em sua vida, mandou adiante descobrir e tratar até a Serra Liôa com muito proveito do reino. E depois de sua morte em tempo d'El-Rei D. Affonso o quinto seu sobrinho, além do descobrimento do Infante se descobriu a mina do ouro, em que agora é a cidade de S. Jorge, que El-Rei D. João o segundo mandou novamente edificar, e assi se descobriu mais por El-Rei D. Affonso até o Cabo de Santa Caterina, e depois de seu fallecimento, como El-Rei D. João o segundo seu filho o sobcedeu, d'alli mandou por annos descobrir até dobrarem o [18] Cabo de Boa Esperança, e seus descobridores chegaram até o Rio do Infante, e d'alli sendo seu proposito não cessar até descobrir a India, por sua doença e morte, que se logo seguiu, cessou seu descobrimento.

E como depois o sobcedeu e reinou após elle El-Rei D. Manuel o primeiro, nosso Senhor, como Principe que em tudo quiz herdar a benção, reaes costumes e claras façanhas de Reis e Principes tão gloriosos seus antecessores, por seu mandado e com seus capitães, navios e gentes por este caminho se desccobriram, trataram e navegaram, com grandes perigos e muitas difficuldades, e innumeraveis despezas outras novas ilhas e terras, e sobre tudo a Arabia e a Persia, e a India com todalas especiarias, pedrarias, minas, riquezas, e thesouros orientaes que hoje possue e tem com muita segurança e prosperidade, fazendo-se pacifico Senhor de muitos Reis e senhores que sua paz e senhorio compraram com ricos e cotedianos tributos, como em sua chronica fará menção, de que a elle e á real corôa d'estes seus reinos de Portugal e aos herdeiros d'ella, e a seus vassalos e naturaes se acrescentou, e com a graça de Deus cada vez acrescentará mais bem, maior honra, gloria, e louvor, e ricos, honestos e mui grandes proveitos, com os quaes pois seu principal fim e intento é servir a Deus e divulgar e exalçar sua santa Fé sempre, por isso seu grande poder será muito mais poderoso, e não sómente a elles este bem e proveito será reservado, mas ainda de suas mãos e por seu meio a christandade toda será participante, com que a fé de nosso senhor será por isso mais conhecida, louvada, e exalçada, e as seitas, idolatrias e forças dos imigos d'ella de todo minguadas e mui quebrantadas, e esta esperança não está de todo em a esperarmos; porque com prosperos e desejados effeitos tem ácerca d'isto muitas vezes [19] respondido, como em seus proprios tempos e lugares melhor se dirá, que sempre se atribuiram á honra, memoria, louvor e merecimentos d'este virtuoso Principe e Infante D. Anrique, como a causa e primeiro inventor de tanto bem.

Foi mais o Infante nas roupas de seu corpo mui honesto e muito mais nas palavras de sua bocca, e por maior sua perfeição foi em sua vida sempre casto, e segundo o que se creu, virgem o comeu a terra, que dá piedosa esperança de salvação de sua alma.


CAPITULO CXLV


De como falleceu o duque de Bragança, e sobcedeu sua casa e herança o marquez de Villa Viçosa, e como D. Fernando seu filho passou em Africa, e de vinda foi feito conde de Guimarães



E no anno de mil e quatrocentos e sessenta e um falleceu D. Affonso, duque de Bragança, cuja casa e titulo e herança sobcedeu D. Fernando, marquez de Villa Viçosa, seu filho segundo; porque o marquez de Valença seu filho maior era já sem filhos legitimos fallecido como já disse.

E entre os filhos que este segundo duque tinha, o maior era D. Fernando, que por acrescentar em sua honra, tendo para a dita passagem dos cavallos feita muita despeza, pediu a El-Rei licença para se ir a Alcacere como foi no mez d'Abril do dito anno, com duzentos de cavallo e mil homens de pé, em que entraram muitos fidalgos e outra nobre gente da côrte. E d'Alcacere em companhia de D. Affonso de Vasconcellos, que depois foi conde de Penella, e do conde [20] D. Duarte, a que o duque seu padre e elle tinham grande affeição, entraram muitas vezes em terra de mouros, e foram correr até ás portas da cidade de Tangere, onde se fizeram honrosos feitos d'armas, e de que trouxeram grande numero de captivos e mui grandes cavalgadas. E fizeram outras cousas, em que D. Fernando ganhou bom nome e muita honra, com a qual se tornou a estes reinos logo no mez de Junho seguinte. E El-Rei por seus serviços e merecimentos o fez primeiro conde de Guimarães, porque depois quando casou com a duqueza D. Isabel filha do Infante D. Fernando, por honra de tão honrado casamento foi em vida de seu padre feito e intitulado duque da mesma Villa de Guimarães.


CAPITULO CXLVI


De como falleceu a Infante D. Caterina, sendo já concertada para casar



N'este anno era tratado e concordado casamento entre a Infante D. Caterina, irmã d'El Rei, com D. Carlos, Principe de Navarra e d'Aragão; e porque o dito Principe falleceu, foi a dita Infante levada ao mosteiro de Santa Clara de Lisboa, e sendo concertado depois casamento entre ella e El-Rei D. Duarte de Inglaterra, ella adoeceu de febre, e com nome de mui honesta e virtuosa Princeza falleceu no mesmo mosteiro, e foi seu corpo trazido ao mosteiro de Santo Eloi de Lisboa, onde na capella da mão direita jaz mui honradamente sepultada.


[21]

CAPITULO CXLVII


De como foi a ida d'El-Rei em Africa com os dois mil de cavallo, e do escallamento de Tangere



E no anno seguinte de mil e quatrocentos e sessenta e dois, se principiou e ordenou a ida d'El-Rei em Africa, sobre o escalamento de Tangere, que foi n'esta maneira.

Havia n'este tempo em casa d'El-Rei Diogo de Bairros e João Falcão, homens mancebos e fidalgos, que desejosos d'acrescentar em suas honras pediram a El-Rei licença, e lh'a deu, para irem ao soldo que El-Rei de Fez então apregoara em seu reino contra outros mouros seus imigos e reveis, os quaes para melhor seu aviamento se passaram a Andaluzia pedir cartas ao duque de Medina Sidonia, com que o dito Rei de Fez tinha paz e mostrança de singular amizade.

E o duque com respeito de serviço d'El-Rei não vendo para isso sua carta se escusou, pelo qual conveiu a estes pedir a El-Rei que por sua carta lh'o encommendasse, e em tanto porque o conde de Viana acertou d'entrar de Alcacere em terra de mouros, foram estes com elle na entrada, onde por caso Diogo de Bairros topou um João d'Escalona, de Tarifa, que já em Tangere foram ambos captivos e em poder de um senhor. E praticando entre si sobre um cano que era nos muros da cidade aberto e sahia para fóra, se por elle haveria disposição de entrar n'ella gente: acharam que em alguma maneira seria possivel, e com isto tornando-se estes a casa do duque acharam cartas d'El-Rei, porque lhes revogou a licença e mandou que logo se tornassem á sua côrte, o que cumpriram, e acharam El-Rei em Cintra, onde a voltas da conta [22] que lhe deram de sua jornada, tocaram na pratica do cano para se entrar Tangere, que no coração d'El-Rei fez logo muita impressão. E com isso os tornou a mandar providos de mercê e de cartas para o conde de Viana, e asi para João d'Escalona, e para outro Sancho Fernandez, de Tarifa, seu tio, que tinha um bregantim e era bom piloto, que para o caso cumpria e se não podia escusar.

Passaram todos em Alcacere, e recontaram ao conde o proposito do cano de Tangere com que iam, o qual anichillou de todo sua fantesia, e concordaram que se não podia fazer, e acordado Diogo de Bairros d'outra parte do muro por onde a cidade melhor se podia escalar e mais a salvamento, depois de sobr'isso praticarem, foram por aviamento do conde com boa dessimulação vêr o dito logar, e com quanto a cidade se velava, porém todos tres por uma escada de corda subiram ao muro, por onde andaram, e sem algum alvoroço nem sentimento colheram hervas d'elle, com que se tornaram a Alcacere, e de hi a Portugal, e com elles João d'Escalona, onde depois de a El Rei dizerem todo o que acharam e experimentaram, ficou muito contente, e sobr'isso praticou logo com o Infante D. Fernando seu irmão. E concordaram que para este caso haver secretamente bom effeito, que o Infante com desejo de honra e outros respeitos e obrigações que mostrasse ter para passar em Africa, pedisse a El-Rei para isso licença, porque com esta mostrança este feito se poderia melhor e mais encobertamente fazer, e assi se cumprio.

E porém a tenção propria e verdadeira d'El-Rei, em caso que logo a não revelasse, foi ser tambem na passagem que outro si logo foi divulgada. Em cujos percebimentos e apurações se seguiram tantos estrondos e alvoroços que os mouros, e principalmente os de [23] Tangere, como do dano de tal passagem mais receosos foram de todo, e para todo logo avisados e percebidos, o que El-Rei por o conde de Viana logo soube, pedindo-lhe que para cousa tão feita como esta de Tangere em seus começos parecia, com semelhantes estrondos a não desfizesse nem danasse, para que abastaria não tanta gente como a de que se percebia, que pouca e pouca podia dessimuladamente vir a Alcacere, e d'alli o feito se faria com segurança e salvamento.

E a este siso não obedeceu o apetito d'El Rei, para que ajudou o conde de Villa Real, que a este tempo estava na côrte, e com o conde de Viana não era em muito accordo; porque envejoso da gloria e honra que se a outrem aparelhava, por ter n'ella parte como por seu nobre e esforçado coração sempre desejou, por seus meios e modos que por si e seus parentes buscou, teve maneira que El-Rei o mettesse n'este feito, em que lhe diziam não ser razão que por dito de dois homens elle com seu reino se aventurasse, e que ante de o cometer convinha que tal pessoa como era o conde de Villa Real com elles em pessoa fizesse juntamente a mesma experiencia. E que El-Rei para ser desenganado era bem que estreitamente lh'o encommendasse, especialmente que elle era tal que buscaria em Tangere outros logares por onde a cidade melhor e mais seguramente se cobrasse. Anichilando como suspeito o conselho do conde de Viana, atribuindo-lh'o a cautelosas manhas com que á custa alheia queria sempre ganhar honra e acrescentamento para si. E em fim, o conde de Villa Real foi d'El-Rei para isso rogado, e elle acceitou a ida com encarecimentos de receber morte e captiveiro por seu serviço, pedindo-lhe que, se lembrasse em tal caso d'elle e de seus filhos. A, que El-Rei logo d'ante mão satisfez concedendo-lhe [24] liberalmente á custa dos bens de sua corôa, mui grandes e duvidosos requerimentos que com elle trazia.

O conde de Villa Real partiu de Lisboa no anno de mil e quatrocentos e sessenta e tres, com elle Diogo de Bairros e João d'Escalona, e no caminho se ajuntou com elles João Falcão, e chegaram a Lagos onde a condessa sua mulher estava parida de D. Fernando seu filho primeiro, e d'alli a levou a Ceuta, e d'hi com achaque de buscar gente com que poderosamente entrasse em terra de mouros passou em Tarifa, d'onde por mar foi vêr o lugar do escalamento, a que não sahiu do mar, nem foi n'elle por causa da muita tardança que fizeram os que primeiro sahiram. A que se juntaram mais Lourenço de Caceres, adail, e Pedro Affonso, os quaes acharam o lugar bem desposto e sem alguma mudança, e com isso se foi o conde mui alegre a Gibaltar, que o anno passado fôra aos mouros filhada, d'onde logo avisou El-Rei da boa desposição do feito, para o qual ficou alli precebendo manhosamente a mais gente que pôde para a passar a Ceuta, como passou, em que foram cento e cincoenta de cavallo e quatrocentos de pé, com fundamento entre El-Rei e o conde já concertado, que no dia que El-Rei por mar houvesse de ser no escallamento de Tangere, a que havia de ir da banda de Castela, de um lugar que se diz Bollonha, esse mesmo dia entrasse o conde por terra e fosse sobre a cidade para soccorrer e ajudar os que n'ella subissem e entrassem, e assi impedir qualquer soccorro que aos mouros da cidade de fóra viesse. E porém na partida d'El-Rei e do Infante se pôs tanta dillação além do tempo que tinham assignado, que o conde sem descobrir o caso não pôde reter mais a gente estrangeira que sustinha, e a despediu.


[25]

CAPITULO CXLVIII


Da grande e danosa tormenta que El-Rei e o Infante passaram no mar



El-rei e o Infante cuja passagem de todo era descoberta e divulgada, sendo prestes partiram de Lisboa segunda feira sete dias de Novembro do dito anno de mil e quatrocentos sessenta e tres, com vento algum tanto contrairo para sua viagem, e á quarta chegaram a Lagos, e ahi recolheu El-Rei o conde d'Odemira e o almirante, donde contra conselho de todolos pilotos e mareantes, partiu com assaz fortuna de tempo, o qual carregou tanto sobre a frota, que El-Rei para salvar sua pessoa foi aconselhado que se acolhesse ao porto de Silves, o que erradamente não quiz fazer; antes mandou guiar a prôa direita de seu navio, porque sem torcer nem se deter seguisse sua viagem, e sobre a noite a tormenta se dobrou tanto, que os navios todos correram grande risco de se perder, e os mais por segurarem suas vidas alijaram com grande perda muita parte de suas fazendas, salvo El-Rei, que não consentiu que do seu navio se alijasse com medo cousa alguma. Perdeu-se n'esta tormenta o navio de D. Affonso de Vasconcellos, cuja fazenda e muitos nobres homens se alagou, e as pessoas por milagre se salvaram, e assi sossobrou de todo o mar uma caravella, em que se perdeu grande fazenda de muitos.

E mais morreram Lourenço de Guimarães, e João Vogado, escrivães da fazenda d'El-Rei, e Gonçallo Cardoso, escrivão da camara, e um rei d'armas Portugal, com outros muitos e bons homens e muita fazenda, e n'esta tormenta andou El-Rei com o Infante [26] seu irmão até o sabado, que só sem alguma outra companhia entraram no estreito, e havendo o conde D. Duarte conhecimento d'El-Rei pela bandeira real e capitoa que o seu navio trazia, foi-lhe fallar no mar, e com elle Pero d'Alcaçova que a elle fôra enviado com o aviso e ardil de sua vinda, e depois de se El-Rei lamentar pelo desaviamento de seu proposito, que era não poder desembarcar da parte de Castella, e o conde o confortar mais que reprender pelo erro que fizera, El-Rei e o Infante se partiram para Ceuta, onde poucos e poucos recolheram ao domingo seus navios, e cada um com grande perda e muito destroço, e assi o duque e seus filhos com outros muitos fidalgos, que escapando da tormenta milagrosamente sahiram todos em terra em camisas e descalços, e assi foram em romaria a Santa Maria d'Africa, com que provocaram todos a grande devoção.


CAPITULO CXLIX


De como foi o primeiro cometimento do escalamento de Tangere



E depois d'El-Rei declarar sua tenção de tornar a Tangere, por cuja fim alli viera, se partio para Alcacere d'onde enviou logo doze navios de remo com gente escolhida para irem escalar a cidade, cujo capitão foi Luiz Mendes de Vasconcellos, homem fidalgo, e nas cousas do mar bem entendido, com fundamento de El-Rei com seu poder os socorrer á hora do escalamento por terra, e porém o conde D. Duarte contradisse muito o cometimento por mar, pelas incertidões e perigos que tem, mas não foi crido, e Luiz [27] Mendes todavia partio bem avisado do que á sahida do mar e á entrada da cidade havia de fazer.

El-Rei e o Infante e o senhor D. Pedro seu primo, e o duque e condes e toda a outra gente partiram por terra, e uma hora ante manhã chegaram acerca de Tangere, e os que foram nos navios á hora do desembarcar acharam o mar tão bravo, que não ousaram por aquella vez sahir em terra, e ao recolher dos navios havendo os mouros da cidade vista d'elles pelo aviso que já sobre si tinham, fizeram almenaras na cidade, e mandaram poer fogo ás bombardas que pelo muro tinham. E porque aquelle era o signal que se havia de fazer quando a cidade se entrasse, foi El-Rei e todos os que com elle eram mui alegres, e assi abalaram logo rijamente e não sem devida ordenança, mas não tardou muito que foram em conhecimento da verdade, que todo seu prazer converteu em tristeza, e toda esperança do feito em desesperação, e com tudo El Rei com a cara mui segura como seu real coração era sempre nos perigos, foi com sua gente á vista da cidade, que esteve olhando um pouco, e em se recolhendo disse contra muitos, não me leixastes crêr ao conde D. Duarte, por ventura se o fizera esta vinda se empregara melhor, e então se tornou logo a Alcacere, e d'ahi para Ceuta, e com elle o Infante seu irmão.


CAPITULO CL


De como o Infante D. Fernando sem El-Rei entrou d'Alcacere e correu a terra aos mouros



E porque veiu nova que o conde de Vianna e o conde de Guimarães queriam fazer d'Alcacere uma entrada em terra de mouros, quiz o Infante ser n'ella, e pediu licença a El-Rei, que para [28] isso e para repartir e affrouxar o apousentamento em Ceuta lh'a deu, e a El-Rei foi commettido que fosse em pessoa, mas elle por algumas justas causas que apontou o não houve por bem, e estimou por mais sua honra e serviço, antes em seu nome ir um seu capitão tão poderoso, e tal pessoa como era o Infante.

E aos quatro dias do mez de Dezembro o Infante partiu d'Alcacere com todolos senhores da hoste, salvo o duque e o conde de Villa Real, que ficaram em Ceuta, e foi correr umas aldêas, que são na faldra da serra de Benaminir, terra muito fragosa e muito povorada, onde segundo fama vive a melhor gente de peleja d'aquella frontaria, de que mataram até duzentos mouros, e trouxeram captivos duzentas e vinte almas com muito gado e outro grande despojo, e se tornou a Alcacere, e dos christãos por máo resguardo morreram até quinze.

Quiz o Infante haver, e houve para si o quinto d'esta cavalgada, com muito aggravo do conde de Vianna, e não sem algum prasmo e geral reprensão do mesmo Infante, que por seu alto sangue e real condição, saindo d'Alcacere devia em caso que lhe pertencera fazer d'elle mercê ao dito conde, quanto mais que os quintos da villa de direito e por doação pertenciam ao dito conde, a quem El-Rei o compoz e satisfez depois com dinheiro de sua fazenda.


[29]

CAPITULO CLI


De como o Senhor D. Pedro, filho do Infante D. Pedro, se foi de Ceuta para Barcellona, e se intitulou Rei d'Aragão



E porque n'este tempo e da cidade de Ceuta se foi para Barcellona o Senhor D. Pedro, filho maior do Infante D. Pedro, que na mesma cidade acabou intitulado Rei d'Aragão, o fundamento e causa que para isso houve foi n'esta maneira.

Por morte d'El-Rei D. Affonso, Rei d'Aragão e de Napoles, não ficou filho algum legitimo que o herdasse, e sómente lhe ficou um filho bastardo, D. Fernando, que depois da morte d'El-Rei seu padre, por favores e grandes riquezas que lhe leixou, herdou e teve o reino de Napoles; era irmão d'El-Rei D. Affonso, D. João Rei de Navarra, que herdara este reino por razão da filha d'El-Rei D. Carlos com que casou, de que houve uma filha, que foi casada com El-Rei D. Anrique de Castella, de que não devidamente se quitou, quando casou com a Rainda D. Joanna de Portugal, como atraz fica, e houve tambem um filho que se chamou o Principe D. Carlos, e sendo ainda Rei da Navarra viuvou, e por haver liança para suas contendas, que em Castella e Aragão tinha, casou com uma filha do almirante de Castella, de que tendo já filhos sobcedeu por morte do dito Rei D. Affonso seu irmão os reinos d'Aragão e de Cicilia, e o Principe D. Carlos seu filho, dizem que por mau trato da madrasta, lhe pediu que lhe leixasse o reino de Navarra para o reger, pois a elle in solidum por contracto pertencia, e porque o pae não disistia d'elle andavam ambos em grandes desvairos, até que o [30] dito Principe falleceu, a tempo que seu casamento era concordado com a Infante D. Catarina de Portugal, como atraz fica, e de sua morte que foi julgada por artificial, se deu muita culpa e causa á Rainha sua madrasta, poendo-lhe que o mandara sem tempo matar, por tal que os reinos de seu marido livremente ficassem, como ficaram a D. Fernando filho d'ella, que depois foi Rei de Castella e d'Aragão, de que os povos foram mui tristes e anojados; porque D. Carlos era Principe de muitas virtudes, e lhes dava esperança de ser bom Rei, pelo qual a cidade de Barcellona, com todo o principado de Catelonha alevantaram a obdiencia a El-Rei D. João, e a deram a El-Rei de França, que os deffendeu um tempo, até que se concertou com El-Rei D. João, que pelo não guerrear lhe leixou o condado de Roselhão pacifico, em que entrou Perpinhão, e anojados d'isso os de Barcelona tomaram por Senhor El-Rei D. Anrique de Castella, que com perda d'Aragão tambem todos se concertaram.

E El-Rei D. Anrique mandou sair de Barcelona a gente d'armas, que em sua defesa tinha, e sobre esta concordia dos Reis foram as grandes e famosas vistas de Fonte Rabia, a que Lopo d'Almeida e o doutor João Fernandez da Silveira, que depois foi barão d'Alvito, foram em favor d'El-Rei D. Anrique enviados por El-Rei D. Affonso.

E porém os regedores de Barcellona buscando já por caminhos desesperados alguma esperança de sua salvação, trataram secretamente com o dito Senhor D. Pedro, que como só e principal herdeiro que era da casa d'Urgel, e assi a quem pertenciam de direito os reinos d'Aragão quizesse intitular-se d'elles, e assi receber logo em seu senhorio e poder o principado de Catelonha com a cidade de Barcellona com cujo poder [31] e forças, se o coração e saber lhe não fallecesse, cobraria o mais que El Rei D. João tiranamente possuia. Sobre o qual D. Pedro, em segredo se aconselhou logo com seu confessor, que quanto a Deus e ao mundo lhe fallou e aconselhou o que devia. E assi fallou sobre o caso com alguns fidalgos e cavalleiros prudentes de que se fiava, de que foi aconselhado, pospostos muitos pejos que D. Pedro apontou, que não sómente devia desejar e d'aceitar cousa tamanha e tão honrada que assi livremente lh'offereciam, mas ainda que a devia trabalhar e requerer, e com ella antes morrer, que viver nos desfavores e desprezos e mingoas em que vivia. Com as quaes cousas movido o dito D. Pedro, determinou aceitar a dita empresa, e por seus assinados e sellos assi o certificou e segurou á dita cidade.

E este negocio sempre andou secreto até esta ida d'El-Rei a Ceuta, onde sobre concerto vieram armadas duas gallés de Barcellona, com mostrança que vinham a seu trafego d'armada.

D. Pedro fôra com o Infante na dita entrada que disse, e quando tornou a Ceuta achou hi as galés, de cujos patrões e regedores que n'ellas vinham, foi de sua tenção certificado, que era logo o levarem, e depois de D. Pedro pedir a El-Rei, que perante o Infante seu irmão, e o conde de Villa Real, e Paio Rodriguez, Contador Mór de Lisboa o quizesse ouvir, elle com palavras de muita obediencia e autoridade disse a El-Rei todo o movimento passado, e que a este fim eram vindas aquellas galés, pedindo-lhe para isso licença, allegando-lhe muitas razões porque o devia fazer, ao menos por fazer Rei um seu vassallo, que como sua feitura o havia sempre de servir e lhe obedecer.

E leixadas muitas alterações que sobre isso houveram, El-Rei por então não se pôde escusar, e lhe outorgou [32] a dita licença; e porque o conde de Villa Real tinha grande afeição pela muita honra mercê, que o Infante D. Pedro em regendo sempre lhe fizera, offereceu e deu logo ao dito Senhor D. Pedro, prata e bons corregimentos de casa, e depois lhe enviou cavallos e gente d'armas, o que outro algum do reino não fez. E porém começou El-Rei de dilatar a D. Pedro o tempo da dita licença, com fundamento de se querer ainda d'elle servir n'aquella vinda a que viera de gentes e armas mui bem corregido, de que D. Pedro tomava grande paixão, especialmente porque El-Rei aparelhava vêr-se com El-Rei D. Anrique, de que receava que sua ida em Aragão sendo revellada receberia total embargo, e com elle manifesta queda de tamanha honra como parecia que se lhe aparelhava.

E uma noite querendo D. Pedro fallar a El-Rei sobre sua partida, presumindo El-Rei a causa porque seria, se escusou de o ouvir remettendo-o para o outro dia; pelo qual D. Pedro logo aquella noite, porque os patrões já mais não queriam esperar, se metteu nas galés e se foi com elles, e a El-Rei leixou por escripto a causa porque assi se partira, e a leal tenção que levava para sempre o servir. Mas n'esta prosperidade D. Pedro durou pouco; porque em breve acabou com peçonha sua vida dentro em Barcelona, onde na Igreja maior jaz sepultado.


[33]

CAPITULO CLII


De como o escallamento de Tangere se commetteu a segunda vez pelo Infante D. Fernando sem consentimento d'El-Rei



Estando El-Rei em Ceuta, algumas vezes commetteu entrar e ir sobre Arzilla, com desejo e apparelhos de a tomar, e tantas contrariedades recebeu para isso dos grandes invernos que logo sobrevinham, que nunca seu desejo com seus commettimentos poderam vir a algum effeito, e da derradeira vez d'Alcacere se tornou El-Rei para Ceuta, havendo que o escallamento de Tangere era a elle desesperado; porque cria que aos mouros era já descoberto, assi por christãos que captivaram, como por mouros que fugiam, que todos lh'o diriam, em especial pela gente sua que viram quando a primeira vez sobre a cidade foi amanhecer.

E porém em se partindo disse ao Infante seu irmão que por conselho e accordo dos condes, que com elle eram, mandasse tentar a dita entrada ou outra alguma, porque a cidade bem se podesse filhar, e se tal fosse o avisasse; porque quando não viesse com toda sua gente e poder, ao menos como cavalleiro, e com poucos, folgaria ser no feito.

O Infante sobr'isto mandou algumas vezes tentar e experimentar o dito escalamento, que se achou e examinou estar ainda sem alguma innovação, e para se fazer como cumpria, pelo qual determinou fazer-lo por si sem El'Rei. Dizendo que do sentimento que algumas escutas dos mouros haveriam de sua vinda, poderiam os de Tangere receber tal aviso, com que o feito de todo se perdesse, e porém ante de sua partida, [34] tendo conselho com muitos e principaes homens que com elle estavam, Fernão Tellez lhe disse que era presente:

«Senhor, n'esta determinação que tomaes, e em que nos pedis conselho, ante de dizer meu voto, queria de vós saber primeiro duas cousas, a primeira se houvestes licença d'El-Rei para só fazerdes o feito, e a segunda se tendes para elle gente que vos abaste».

E o conde d'Odemira vendo que aquelles eram pontos sustanciaes e que em todo contradiziam á vontade e proposito do Infante, pelo lisonjar para a commissão de Mertola, e da Commenda Mór de Santiago, que lhe então requeria e houve, respondeu logo a Fernão Tellez com palavras assi irosas e asperas, em que o Infante consentio, que no exemplo d'este aprenderam os outros o que no caso diriam.

E porém o Infante, porque a pergunta de Fernão Tellez ácerca da gente lhe pareceu boa e necessaria, quiz saber de todos de que gente para o feito se perceberia. Em que houve muitas sentenças, e com alguma o commettimento do infante (por lhe não desprazerem) se desfazia, anichillando em todo a resistencia e fraqueza dos mouros, salvo com a do conde de Viana que disse:

«Senhor, eu não sei como estes senhores entendem isto que vos conselham, não querendo para acabar este feito, uns dizem vinte, e outros ao mais cento homens, pois eu Senhor não sou mais sandeu, e certifico-vos que me pesaria ser dos quinhentos que o commetessem para o bem acabar; porque quem bem consirar que por força ha-de lançar fóra de suas casas, e de tal cidade como é Tangere, a cerca de tres mil homens de peleja que n'ella vivem, e lhe haver de captivar suas mulheres e filhos, e roubar suas fazendas, em cujo amor se criaram e vivem, a razão lhe [35] ensinará a gente que lhe cumprirá para vencer tantas forças, quanto mais que esta gente não são alarves com cajados por armas, mas é bem armada, feroz e ousada, e já se não hão d'espantar das mortes das mulheres e filhos; porque já muitas vezes as viram e padeceram, por isso Senhor vêde bem primeiro o em que vos meteis».

Mas o Infante pelo ardente desejo que para isso tinha, pospostas todalas contradições, determinou de o fazer, de que alguns tiveram que o Infante por seu mui nobre e alto coração com que sempre suspirou por grandes e arduas empresas, não se contentava fazer nenhuma cousa, por boa e façanhosa que fosse, sendo debaixo de mando e capitania d'outrem, ainda que fôra um grande Imperador.

E porém Diogo de Bairros, e João Falcão tiveram maneira que logo El-Rei fosse em Ceuta, como foi por elles de todo avisado, e de noite como El-Rei houve o aviso, logo a grande pressa mandou diante o Chichorro com vinte ginetes, para que o Infante sobresevesse em sua partida até sua chegada, mas o Chichorro achou já o Infante partido, e El-Rei com grão trigança partiu logo apóz elles acerca de sol posto com oito de cavallo e muita gente de pé, que de cançada ficou em Alcacere. E assi apressou seu caminho que ante manhã chegou aos medoõs que são junto de Tangere.

E porque não topou com seu irmão, que fôra por outro caminho e ficava atrás, houve por sem duvida que elle era já dentro na cidade com o feito prosperamente acabado, pela qual maginação elle e todos davam muitas graças e louvores a Deus, e porém estando assi com os ouvidos álerta, esperando a grita e rumor da cidade, chegou a El-Rei o marechal, que o Infante mandara correr a cidade, por dessimular o [36] escallamento a que com tempo devido não podera chegar; porque como o Infante no caminho viu que a noite lhe fallecia para n'ella chegar á cidade, lançou-se a duas legoas em cillada, e por dissimulação mandou correr com fundamento de ao outro dia tornar commetter o feito. Mas El-Rei com mostranças mais de tristeza que d'alegria se tornou a Alcacere, mui cansado e todolos seus; porque sem descer nem repousar andaram as maiores, nem mais fragosas quinze legoas que podem assignar, e o Infante onde estava em cillada, como soube da vinda e descontentamento d'El-Rei, partiu logo, e foi-se tambem a Alcacere anojado do conde D. Duarte, de quem suspeitou que o aviso d'El-Rei procedera. Mas o Infante não pôde escapar a uma grave e aspera reprensão que El-Rei seu irmão lhe fez pela perigosa ousadia que sem sua licença e contra seu mandado commettera.


CAPITULO CLIII


De como o escallamento de Tangere se commetteu finalmente a terceira vez pelo Infante D. Fernando, e do desastrado sobcedimento que houve



Partiu-se El-Rei para Ceuta, com fundamento de se vêr com El-Rei de Castella, que era já em Gibaltar, e o Infante ficou em Alcacere, onde pelo conde D. Sancho foi incitado para com tudo não desistir do mesmo escallamento que havia de todo por acabado, e que então a empresa d'elle lhe vinha melhor e com mais sua honra, pois El-Rei ia já d'elle de todo desconfiado, e que tivesse maneira que o conde D. Duarte não fosse com elle; porque além de [37] não ser necessario, segundo elle sabia entoar suas cousas, cresse que todo o merecimento do feito quanto se bem fizesse havia de atribuir a si mesmo.

E a tenção de tal conselho bem parece que de inveja, ou d'alguma outra paixão ia propriamente guiada e mais que da verdade, segundo a qual o conde D. Duarte fôra para conselho e ajuda de tal feito mui necessario; porque pelo acabamento de seus grandes feitos era havido e confirmado por mui singular capitão.

Com este proposito o Infante se foi a Ceuta e para o escallamento, se se podesse fazer, pediu licença a El-Rei, que lh'a deu, dizendo-lhe que segundo a fortuna n'este caso se mostrara a elle tão contraira o havia de todo por perdido, e porém o leixava nas mãos de Deus e nas suas, e visse se por alguma maneira podia tomar o lugar; porque posto que lhe prouvesse muito acertar-se no feito; porém muito mais lhe pesaria perder-se, se sem elle se podesse cobrar, e com isto se tornou o Infante a Alcacere, sem o querer revelar em Ceuta, receando não se poder escusar do conde D. Duarte e d'outros senhores, que o haviam para isso de requerer. E depois de tornar e mandar firmar outras vezes a segurança do escallamento, aos XIX dias de Janeiro de mil e quatrocentos e sessenta e quatro partiu d'Alcacere, e mandou levar quatro escadas, de que deu cargo áquellas pessoas em que entendeu que havia saber e esforço para isso.

E na tristeza e pezo que todos levavam pelo caminho, logo para bem do feito pareceu desaventurado pronostico, especialmente que sendo sobre o cabeço, que dizem d'Almenar, pareceu no ceu á vista de todos um espantoso cometa, que lançava de si muitos raios de fogo em figura de dragão. Ali disse então Gomez Freire, nobre fidalgo e de grande coração: [38] «Oh! noite má, para quem t'aparelhas», que ficou em proverbio muito tempo acostumado.

E assi chegaram os primeiros com grande luar junto com a cidade, onde porque a lua de todo se pozesse, esperaram até tres horas ante manhã. E logo Diogo de Bairros, e João Falcão como principaes movedores do feito, pediram e requereram a alguns do conselho d'El-Rei e do Infante que hi eram, que juntamente fossem com elles como testemunhas vêr como estava; porque se por algum caso se perdesse ou desaviasse, elles ficassem por verdadeiros e livres da culpa, e João de Sousa a que seu resguardo pareceu bem acceitou sua companhia, antre os quaes foi dado aviso que as escadas não se pozessem, salvo depois que a guarda dos mouros descesse do castello para fundo.

E aqui é de saber que este lanço de muro porque o escallamento era ordenado, cerra no castello da parte do sertão em que ha cinco cubellos, em fim dos quaes seguindo para fundo está uma torre que se chamava de Gillahare.

E porque do castello havia sahida para o muro por uma ponte levadiça, acordaram os christãos, que por quanto os mouros do castello sentindo a gente no muro poderiam sahir pela ponte e impedir e damnificar os que subissem pelas escadas, que a gente assi como subisse no muro, assi se mettesse logo entre a dita ponte e as escadas, e uns resistissem aos mouros que do castello quizessem sahir, e outros corressem pelo muro a fundo para tomarem outra torre que está sobre um postigo, que se chama de Gurer, com que se cobravam duas cousas para o feito mui necessarias e seguras. A primeira para a gente poder de fóra entrar mui livremente sem perigo nem contradição dos mouros, e a segunda senhoreavam a [39] escada do muro para que a salvo podiam descer e entrar para a cidade.

E os dois principaes escalladores e guiadores, foram primeiramente no muro, e assi os outros que após elles haviam de seguir. E acertou-se que a rolda dos mouros havendo já d'elles algum sentimento estava lançada entre as ameas d'aquella parte, para differençar bem se eram os barbaros da serra, que ás vezes com suas cargas e bestas se lançavam ao pé do muro, ou por ventura christãos, e tanto espaço tomou para de sua duvida se certificar, que dos christãos houveram sessenta lugar para subir, que por pontos d'honra em taes tempos e casos mui prejudiciaes, não quizeram guardar o que entre elles fôra concordado. Pelo qual João Falcão vendo começos de tanto desmando, disse a João de Sousa que tomasse ou matasse um mouro guarda que tinha ante si. E João de Sousa como fidalgo acordado e de bom coração remetteu a elle, o qual da sombra da morte que comsigo viu, acabou ser desenganado de sua duvida e começou de se poer em defesa, e em João de Sousa correndo a lança nas mãos para lhe dar, o mouro em se retrahendo cahiu do muro contra a cidade dentro em um pomar, d'onde começou logo dar grandes brados, senificando com elles o damno dos christãos que se aparelhava, e os christãos como os ouviram sem mais outra consiração, crendo que outra sua grita ao menos para desmaio dos contrairos aproveitaria muito, logo a deram com altas vozes, e não sem grande estrondo de trombetas que já eram em cima, a que os mouros acordaram, e com muita trigança acudiram por saber a causa de tamanho rumor, principalmente os que guardavam a torre do muro porque os christãos haviam de passar. Os quaes assi como viram os nossos estar no muro, assi se tornaram [40] e pozeram á porta da torre, de que podiam bem defender aos christãos a passagem do muro para o não poderem descer para a cidade; porque com sós paos sem outras armas, aos que por elle passassem, segundo era estreito podiam levemente lançar d'elle abaixo, e assi o faziam, e os christãos não podendo já passar não leixavam por isso de subir; porque o Infante era já ao pé do muro, que a uns por amor, e a outros com temor constrangia para isso, e assi como subiam não podendo al fazer assi se mettiam por esses cubellos, e outros descendo para fundo não podendo passar ficavam amontoados, sem poderem aproveitar a si nem danar aos contrairos.

A cidade era já toda posta em armas e grande alvoroço, e como o alcaide que se chamava Abrahem Benaamet foi por si certificado que nas outras partes da cidade não havia outro commetimento nem affronta que muito receou, salvo n'aquella, mandou logo ali vir grande claridade de fogo, e com besteiros e espingardeiros, que em grande numero mandou metter no pomar que era defronte d'onde os christãos estavam, matavam e feriam muitos, e muitos em se revolvendo cahiam do muro entre elles, que claramente eram logo espedaçados, e com gente que se enadeu no castello, que sahiu pela ponte levadiça, tomaram as escadas postas no muro, ainda que não foi sem grande peleja que sobr'isso houve, e foi de maneira que do castello e de todalas partes, os mouros sem algum seu perigo faziam um piadoso estrago nos christãos, porque sendo as escallas tomadas não tinham algum remedio de salvação. O que todo bem visto por João de Sousa, disse ao Infante de cima do muro, que não mandasse subir mais gente; porque o feito com a gente subida eram de todo perdidos, e o Infante sobre esperança de tanta alegria, ouvindo recado [41] tão certo e tão triste, não menos anojado que esforçado arremetteu a uma escada de troços que mandara armar, e quizera por ella subir dizendo que o que fosse de tão bons criados e servidores como já dentro eram, seria d'elle até com elles morrer. Mas era hi o conde d'Odemira, e o commendador mór de Christus com outros, que com palavras prudentes e de bom esforço o detiveram, dizendo-lhe que aquella gente por boa e nobre que fosse, em caso que Portugal a perdesse, bem poderia cobrar outra tal e melhor; mas não a elle que era tal e tamanho Principe, que o reino teria d'elle para sempre muita mingua e grande necessidade, e que não desse causa que Tangere fosse tantas vezes sepultura de Infantes de Portugal, e com estas e outras razões de conforto a estas conformes a que o Infante obedeceu, vendo já o feito sem algum remedio, se tornou para Alcacere.

E dos christãos entre mortos e captivos ficaram trezentos, todos os mais homens escolhidos e especiaes, duzentos mortos e cento captivos, e dos mortos foram principaes, D. Gonçalo Coutinho, conde de Marialva, e D. Rodrigo seu filho bastardo, e Gomes Freire d'Andrade, e D. Jorge de Crasto, filho de D. Alvaro, que depois foi conde de Monsanto, e D. João de Eça, e João de Taide, e Pedro Coelho, e Rui Diaz Lobo, e Pero de Sousa seu irmão, Fernão de Macedo, e Pedro de Macedo seu irmão, e Alvaro de Sá, e Fernão Vaz Côrte Real, Rui Paes, e Pero Paes, filhos de Payo Rodriguez, Contador Môr, e assi outros muitos e bons cavalleiros e homens de nobre sangue e bom coração.

E dos captivos principaes, que aos cubellos se recolheram e preitejaram com os mouros, foi D. Fernando Coutinho, marechal, Fernão Tellez, Ruy Lopez Coutinho, João Falcão, e Diogo da Silva, que depois foi [42] conde de Portalegre, Garcia de Mello, D. Alvaro de Lima, filho do visconde D. Lionel de Lima; e outros muitos até o dito numero, em cujos grandes resgates além das mortes de tanta e tão nobre gente, o reino recebeu uma durosa magua e grandissima perda, a qual testemunhou bem com os grandes prantos e geraes lamentações que em todo elle por este caso se fizeram, e na gloria da victoria que os mouros tinham, praticando e examinando se entre os christãos mortos ou captivos seria hi o conde D. Duarte, respondeu um velho e entre elles de grande auctoridade: «não busqueis hi o conde D. Duarte; porque na grande desordenança dos christãos vi eu bem que não andava hi».


CAPITULO CLIV


Como El-Rei foi d'este triste caso avisado em Ceuta, o dia que tinha concertadas vistas em Gibaltar com El-Rei de Castella, a que todavia foi, e o fundamento das ditas vistas



Um Antão Vaz, alfaqueque, era n'este desastrado caso, e como viu o triste sobcedimento d'elle, logo a grande pressa o veiu notificar á condessa de Viana, que era em Alcacere, a qual logo com grande trigança por mar e por terra o fez saber a El-Rei, cujos avisos, por impedimentos que no caminho houveram, precedeu um outro, que o Infante em chegando a Alcacere logo lhe enviou por um seu escudeiro, que chegou a El-Rei ante manhã, na hora que estava de caminho para Gibaltar, onde por meio do conde de Ledesma tinha vistas concertadas com El-Rei D. Anrique de Castella que o já esperava.

[43] E El-Rei não quiz desfazer sua ida, e porém despachou o conde de Viana, que logo tornou ao Infante seu irmão ao confortar e desapassionar do caso passado, que o cumpriu com muita prudencia e despejo, e de que o Infante mostrou receber algum descanço e menos dôr.

El-Rei em partindo avisou o escudeiro, que até não ser no mar não dissese nada do caso, por não commover a choro e tristeza os senhores que em sua companhia tinha ordenados, que eram o conde de Guimarães, e D. João seu irmão, o conde de Monsanto, o conde da Atouguia, o Prior do Crato, e muitos outros do conselho, e gentis homens fidalgos de sua casa, com os quaes El-Rei passou a Gibaltar, onde El-Rei de Portugal e El-Rei de Castella tiveram suas praticas e concordias, cuja sustancia foi requerer El-Rei D. Anrique liança a El Rei D. Affonso, para contra os grandes de Castella, que com desleal alevantamento d'El-Rei D. Affonso o moço seu meio irmão lhe queriam desobedecer, e que para ter mais razão de o ajudar, queria que a Infante D. Isabel sua irmã casasse com El-Rei D. Affonso; e D. Joanna que então era havida por sua filha, e jurada por Princeza de Castella, casasse com D. João Principe de Portugal. E sobr'isto fizeram acordos promettidos e jurados nas mãos de D. Jorge, Bispo d'Evora, que depois foi Arcebispo de Lisboa e Cardeal. Os quaes principalmente pela grande inconstancia do dito Rei D. Anrique, e por impedimentos e contradições outras que se seguiram não houveram effeito.

E não sómente sobre estes casos os ditos Reis fizeram esta vez estas vistas; mas depois outras com muitas embaixadas, e porque d'ellas nunca resultou conclusão que entre elles se executasse nem cumprisse, não farei agora d'ellas nem depois muita menção.


[44]

CAPITULO CLV


De como El-Rei em pessoa correu o campo d'Arzilla



Tornou-se El-Rei a Ceuta, onde foi aconselhado que por quanto a boa fortuna n'esta jornada d'Africa então lhe não terçava á sua vontade, consirada isso mesmo a perda da gente com outros inconvenientes assaz efficazes, que sem mais fazer nem commetter outra cousa se devia de tornar ao reino, e dar a seus vassallos algum pão de paz e descanso. E porém El-Rei sem embargo de todo determinou correr primeiro o campo d'Arzila, e vê-la, com desejo de a tomar, o que logo pôs em obra; porque partiu logo para Alcacere, e de hi com o Infante passou a serra pelo porto d'Alfeixe, e em amanhecendo deram em umas aldeias, que com o aviso e mêdo da ida d'El-Rei eram já despovoradas, e porém correram legoa e meia por outras partes, e n'aquellas principalmente que o Infante D. Fernando barrejou mataram alguns mouros e captivaram muitos, e arrancaram muito gado e outro despojo, com que já de noite passaram o rio de Tagadarte, e junto com elle da banda d'Alcacere se alojaram aquella noite. Na qual sobrevieram tantas chuvas, e tão aspera tempestade com que a ribeira encheu de maneira, que se a não tiveram passada e ficando alem d'ella, se dispunham a mui certo perigo; porque a infinda gente dos mouros que logo cresceu deu d'isso ao diante claro testemunho.

E por esta causa não pôde El-Rei vêr Arzilla, de que recebeu então gram desprazer, e muito mais depois que soube que os mouros da villa indo elle sobre ella tinham determinado dar-lh'a, e virem ao caminho entregar-lhe as chaves, e tornou-se a Ceuta onde os [45] cavallos e a gente por mau trato, e por aspereza dos tempos lhe falleciam. E por isso logo começou de declarar sua vinda e despedir a gente; e porém El-Rei não era satifeito; porque em todo o tempo d'esta passagem se não vira em alguma travada peleja de mouros, como elle desejava.


CAPITULO CLVI


De como El-Rei D. Affonso foi correr a serra de Benafocú, e como foi em grande perigo, e como mataram os mouros o conde D. Duarte, e a Diogo da Silveira, escrivão da poridade



Estando El-Rei com este descontentamento, que de seu animo grande e esforçado procedia, vieram por caso a Ceuta quatro mouros, que o metteram em grande alvoroço de grande cavalgada e boa escaramuça, que lhe dariam na serra de Benacofú, onde havia a mais guerreira gente d'Africa. E El-Rei com um natural desejo que para isso tinha, e com outra sêde já de vingança, fallou com Lourenço de Caceres, adail, que foi vêr, e lhe disse o caminho que para aquelle podia levar.

Era em Ceuta o conde D. Duarte, e como quer que alli viera aforrado sem cavallos, armas, nem gente para sómente despachar com elles seus negocios, El-Rei mandou que fosse com elle, ao que obedeceu, e porém com carregume e tristeza de sua morte, que a alma lhe adivinhava, e logo publicamente o disse, que aquelle dia seria sua fim, especialmente porque um Frei Luiz, D. Abbade do Mosteiro da Cerzeda, homem estrangeiro, e de juizos d'astrologo mui certo lhe disse que havia de morrer sob alheia capitania.

[46] Partiu El-Rei com oitocentos de cavallo, e pouca gente de pé, e foi-se alojar junto com o castello d'Almunhacar, onde repousou o outro dia quasi todo, e o Infante D. Fernando seu irmão era já partido para Portugal, e porém com El-Rei eram capitães e pessoas principaes o duque de Bragança, o conde de Guimarães, e D. Affonso que depois foi conde de Faram, seus filhos, e o conde de Villa Real, D. Affonso de Vasconcellos, que foi depois conde de Penella, e o conde de Monsanto, e o conde de Vianna, e D. Anrique seu filho, e outros muitos fidalgos e cavalleiros e nobres homens com que partiu e entrou de noite na serra, que em todo para os de pé era mui aspera e fragosa, quanto mais para cavallos tão trabalhados, e como foi manhã repartiram-se as gentes em capitanias, e á ventura começaram de correr a terra, e os mouros que por almenaras eram já d'esta entrada avisados, uns embrenhavam suas mulheres e filhos nas mattas e serras que ali ha mui fortes e com grande espessura, e outros com muita braveza e esforço vinham travar escaramuças e pelejas, que por uns e por outros houve em muitas partes mui bem pelejadas, em que dos mouros entre mortos e feridos houve gram numero, e não sem muito dano dos christãos, de que muitos em offender mouros e defender e salvar christãos fizeram feitos mui assignados.

El-Rei andou pelo espigão da serra; porque a encavalgou por um de dois espinhaços que ella faz, e sahiu por outro, e foi ter a uma grande aldeia cabeceira das outras, onde comeu e repousou um pouco. E então mandou a Lopo d'Almeida e ao adail, que com a gente necessaria levassem a cavalgada ao pé da serra onde o esperassem, e d'ali abalou El Rei com mais vagar do que o tempo e a terra requeriam, e de um cabeço em que se pôs, mandou aos espingardeiros [47] e besteiros e gente de pé, que por mór despejo se fossem diante caminho de Tutuam, onde aquella noite havia de repousar, e depois de passado um grande espaço ainda com passos vagarosos seguiu sua viagem, e após elle sem muito alvoroço vinham alguns mouros de cavallo, e sobresendo El-Rei disse: «Parece-me que estes mouros na maneira em que vem mais quererão paz que peleja», com os quaes esteve á falla, querendo d'elles saber se queriam ser seus como os outros, a que os mouros pediram horas d'acordo e consulta com outros seus visinhos, que em grande somma eram postos em um cabeço que El-Rei já leixara; e porque a resposta tardava El-Rei abalou, e com seu estandarte diante sobiu com os de cavallo a um cerro alto e de pedras e barrocas mui fragoso; era na reguarda d'elle o conde de Villa Real e bem detraz, e o conde de Guimarães pediu a El-Rei que por quanto o conde seu cunhado ficava em grande perigo o mandasse com espingardeiros e besteiros soccorrer, para que já se não acharam, e El-Rei lhe mandou dizer que logo sem mais esperar se recolhesse a elle; mas o conde como era esforçado e singular capitão, e nas manhas dos mouros assaz avisado, mandou dizer a El-Rei que lhe despejasse o porto e se fosse embora; porque elle por seu serviço se recolheria com sua honra e com dano dos mouros.

E certamente como quer que o conde de Villa Real por sua bondade d'armas outras vezes mereceu e ganhou grande honra e muito louvor, n'este dia em especial o acrescentou muito mais; porque álém de se recolher como cumpria a um singular capitão, indo como ardido cavalleiro, os imigos nas voltas e esperadas que n'elles muitas vezes fez receberam muitas mortes e damnos.

Estando El-Rei n'aquelle teso, a sua gente cada vez [48] lhe mingoava mais, e a dos mouros crescia contra elle em maior avantagem, e em vozes altas e iradas disseram contra os christãos:

«Dizei a vosso Rei que não queremos com elle paz se não crua guerra, e que saiba por estas barbas e cabeças que tocamos, que hoje é o dia da nossa vingança»

E em se El-Rei decendo da serra carregaram os mouros logo sobr'elle, e das ilhargas feriam mui mal os cavallos, a que El-Rei com quatrocentos de cavallo que com elle seriam, fez com muita destreza tres voltas curtas, em que além d'outros feriu e matou per si um mouro com muito despejo e ardideza, e porque o perigo sobre El-Rei recrecia cada vez maior, alguma gente sua esquecida da lealdade e defendimento que lhe deviam, lembrando-se mais de sua propria salvação começavam de o desamparar, e náo aproveitavam brados nem vozes, por bem que se n'elles altamente afiasse a desleal vergonha com que em tal tempo leixavam seu Rei com sua bandeira.

E vendo-se já El-Rei mui afrontado, sendo estreitamente aconselhado que ao menos das serras se salvasse para o campo, chamou o conde D. Duarte e disse-lhe:

«Conde, ficai com estes mouros, porque lhe conheceis melhor as manhas, e acaudellai esta minha gente.»

E o conde lhe respondeu:

«Senhor, eu não quizera que em tal tempo me dereis este cuidado, especialmente porque não tenho aqui minha gente que me conhece, cá pois estes que são presentes e vossos, não obedecem a vosso mandado, menos cumprirão o meu, porém pois que o assi haveis por vosso serviço, hei por muito bem empregado a mi mesmo em qualquer trabalho e perigo que me acontecer, até morte.»

E o conde não era em suas palavras enganado, [49] por que como El-Rei moveu, assi o fizeram todos após elle, sem o conde poder aproveitar em nada, antes seu cavallo logo lhe foi morto, e elle ferido, sobre que acudiu o conde de Monsanto seu cunhado, trabalhando de o poer em outro cavallo, em que se acertaram os loros tão compridos, que o conde com a perna direita nunca pôde vingar a sella, antes com a espora feriu o cavallo nas ancas, que aos couces o lançou logo no chão.

O conde D. Duarte não vendo já esperança de sua vida, pediu ao conde de Monsanto que salvasse a sua e o leixasse. E porém os mouros carregaram sobre elle e leixaram alli seu corpo sem vida, e não sem primeiro sentirem muita vingança de sua morte, sendo já primeiro junto com elle morto um Nuno Martins de Villa-Lobos seu criado, que como bom recebeu aquella morte por lhe querer soccorrer com seu cavallo de que se deceu.

E El-Rei com assaz afronta se recolheu por uma lomba a fundo, onde seu estandarte nas mãos de Duarte d'Almeida, alferes, foi dos mouros muitas vezes abatido, e fôra tomado se o esforçado acordo do alferes e valentia de Ruy de Sousa o não salvaram.

Foram alli mortos Diogo da Silveira, escrivão da poridade, e Fernão de Sousa, alcaide de Guimarães, e Luis Mendes de Vasconcellos, e Pero Gonçalves, secretairo, e outros que acabaram como bons e leaes cavalleiros.

Deceu El-Rei ao pé do monte ainda dos mouros bem perseguido, e quizera fazer sobr'elles uma volta, para com elles em pelleja esprementar sua fortuna, mas por força de nobres homens que hi eram, vendo a disposição de tamanho perigo, o tiraram e passaram além de um rio, onde chegou a elle o conde [50] de Villa Real que sempre ficara de tras, que seu braço e acordo escusou muito dano a El-Rei, que em publico lhe disse: «Conde a fé ficou hoje toda em vós», e de hi contra vontade de muitos, El-Rei se foi aquella noite alojar a Tutuam, e ao outro dia partiu para Ceuta. E no caminho fez vir ante si D. Anrique de Menezes, filho do conde D. Duarte, e o confortou com louvores da honrada morte de seu pae, e com esperança de grande acrecentamento, que por seus serviços e merecimentos lhe faria como fez, porque alli o fez conde, e lhe deu todalas mercês que seu pae tinha. Verdade é que lhe tirou Vianna de Caminha, e lhe deu depois Vallença com o titulo de conde d'ella, e depois o de Loulé.


CAPITULO CLVII


De como El-Rei se veiu a Portugal e foi em romaria, a Guadalupe, e se viu com El-Rei D. Anrique e com a Rainha, sua mulher



Tanto que El-Rei despachou suas cousas em Ceuta, se partiu logo para o reino, e veiu desembarcar a Tavilla, e de hi foi ter a Evora a Pascoa d'este anno de mil e quatrocentos e sessenta e quatro. Passada a qual se foi a Elvas, e d'hi com alguns senhores e fidalgos escolhidos, secretamente se foi em romaria a Santa Maria de Guadalupe. E de hi para concerto já praticado se foi ao lugar da ponte do Arcebispo, onde se viu com El-Rei D. Anrique, e com a Rainha D. Joana sua irmã. E alli tiveram as mesmas praticas e acordos de Gibaltar sobre casamentos e lianças, que em fim não houveram effeito, [51] porque a Infante D. Isabel de Castella, contra vontade d'El-Rei D. Anrique, e por meio do Arcebispo de Tolledo casou logo com D. Fernando, Principe d'Aragão e de Cicilia, que depois reinaram pacificamente em Castella, e o Principe de Portugal casou com a Senhora D. Lianor sua prima com irmã, filha maior do Infante D. Fernando, que depois foi Rainha de Portugal.

N'este anno de mil e quatrocentos sessenta e quatro, no mez d'Agosto, falleceu o Papa Pio, e sobcedeu após elle o Papa Paulo segundo.


CAPITULO CLVIII


De como houve em Castella grande devisão, sobre que houve vistas na cidade da Guarda com a Rainha irmã d'El-Rei



E no anno seguinte de mil e quatrocentos e sessenta e cinco houve em Castella entre El-Rei D. Anrique e os senhores do reino grande differença; porque alguns por vicios e erros que lhe punham, lhe alevantaram a obediencia e a deram ao Infante D. Affonso, que em moço alevantaram por Rei, sobre a qual cousa a Rainha D. Joana de Castella para pedir ajuda e socorro contra os revés a El-Rei D. Anrique seu marido, e assi ainda sobre os ditos e lianças veiu á cidade da Guarda em Portugal. Onde El-Rei tambem veiu, e fez côrtes de todolos grandes e povos de seus reinos, e todos a ellas vieram salvo o Infante D. Fernando, que em vindo adoeceu na sua villa de Covilhã e não pôde estar n'ellas, nas quaes a Rainha em nome d'El-Rei e seu requereu [52] a dita ajuda, com fundamentos e causas que pareciam de honra, razão e proveito, mas em fim conhecida a condição variavel do dito Rei D. Anrique, e outras cousas mui perjudiciaes a taes lianças, foi El-Rei aconselhado que em tal discordia e empreza nem lianças se não antremettesse, da qual cousa com a mais honestidade que pôde se escusou. Como quer que nos primeiros movimentos sua tenção foi dar-lhe ajuda, para que antes d'estas côrtes fez alguns percebimentos. E segundo o muito desejo que para isso tinha, não fôra maravilha forçar as prudentes vozes e acordos de seu conselho, se o dito Rei D. Anrique fôra dos seus vassallos mais tempo desobedecido; mas falleceu logo o dito Rei D. Affonso seu irmão e competidor, por cuja morte todalas rebeliões e alvoroços cessaram em Castella; porque os cavaleiros desobedientes não tendo cabeça de seu alevantamento, volveram logo a obediencia d'El-Rei D. Anrique.


CAPITULO CLIX


De como se concertou casamento entre o Principe D. João com a Senhora D. Lianor filha do Infante D. Fernando



E as cousas que nos annos seguintes de mil e quatrocentos sessenta e seis, sessenta e sete e sessenta e oito, n'estes reinos de Portugal sobcederam, foi concerto que se fez do Principe D. João, filho d'El-Rei D. Affonso com a Senhora D. Lianor, filha maior do Infante D. Fernando; porque como quer que o dito Principe muitas vezes fôra d'El-Rei D. Anrique requerido para casar com a Senhora D. Joana sua filha, Princeza que então se dizia [53] de Castella, e El-Rei D. Affonso era a isso inclinado; porque no tempo d'este requerimento sobreveio o mau sobcedimento do escallamento de Tangere, de que o Infante D. Fernando ficou mui anojado e triste, e El-Rei D. Affonso seu irmão pelo confortar e alegrar como era razão, e tambem porque a dita Senhora D. Lianor sua filha por seu real sangue, muitas bondades, e gram perfeição era dina de um grande Imperador, prouve-lhe que o casamento do Principe seu filho se fizesse com ella. E que emquanto ambos cumprissem a idade necessaria para contraer perfeito matrimonio, se houvesse a despensação Apostolica como se houve do Papa Paulo. E porém ao tempo que a dita despensação veio, que foi no anno de mil e quatrocentos e setenta, o Infante D. Fernando era fallecido como se dirá.


CAPITULO CLX


De como o Infante D. Fernando passou por si em Africa, e tomou a cidade de Anafee



E no anno de sessenta e nove, o Infante D. Fernando como era de mui nobre coração, de que nunca sahia um louvado desejo d'acrecentar sua honra e estado, especialmente na guerra dos mouros, que lhe já vinha por legitima sobcessão, por licença e ajuda d'El-Rei seu irmão, com grande frota e muita e boa gente passou em Africa onde dizem as praias, e sem muita resistencia tomou a cidade d'Anafee, que é na costa do mar; porque os mouros vendo sobre si tamanha frota, com tanto poder a que não podiam resistir, por salvarem suas vidas desampararam a cidade, que foi logo entrada e roubada; e [54] porque era de grande cerca, cuja defensão seria mui difficil, quizera o Infante manter com fronteiros o castello, e finalmente depois de tudo bem consirado; porque na frota não ia gente e mantimentos que podessem leixar e soprir á deffensão da cidade, e bastecimento de tamanhas paredes, acordaram de em muitas partes a desportilhar e derribar, e tornar-se o Infante ao reino, e assi o fez.

O infante D. Fernando depois d'esta vinda d'Anafee adoeceu, e foi sua doença algum tanto perlongada, durando a qual afirmou de todo com El-Rei seu irmão o casamento do Principe com sua filha. E concertou outro da Senhora D. Isabel tambem sua filha ligitima com o conde de Guimarães, que por maior ennobrecimento d'este casamento, El-Rei o fez duque da mesma villa de Guimarães, sendo ainda vivo o duque de Bragança seu padre, por cuja morte sobcedeu o titulo de dois ducados.


CAPITULO CLXI


Do fallecimento do Infante D. Fernando, e dos filhos que d'elle ficaram



E no anno de mil e quatrocentos e setenta, a dezoito dias do mez de Setembro, o dito Infante D. Fernando falleceu, e deu sua alma a Deos em Setuvel, em idade de XXXVII annos, sendo El-Rei seu irmão e a Infante sua mulher presentes, por cuja morte fizeram claros sinaes de grande dôr e sentimento; foi seu corpo logo enterrado no mosteiro de S. Francisco da observancia, que é junto com a dita villa, e de hi foram depois seus ossos com muita honra, e grande solemnidade, treladados ao mosteiro da [55] Conceição de Beja, onde jazem em sua mui honrada sepultura, a qual a Senhora Infante D. Briatiz sua mulher como Princesa em toda mui virtuosa, juntamente com o dito mosteiro de novo fundou e edificou com grandes suas despesas, e perpetuamente o dotou de muitas rendas e singulares ornamentos.

Ficaram d'elle quatro filhos, e as duas filhas que já disse, e dos filhos o maior houve nome D. João, a que El-Rei fez duque de Vizeu e de Beja, e lhe deu a governança dos Mestrados de Christus e Santiago, com todo o mais que o Infante seu padre tinha, e logo em moço falleceu, a que em todo sobcedeu o filho segundo, que havia nome D. Diogo, salvo o Mestrado de Santiago, que por prazer e consentimento da dita Infante foi dado ao Principe, e este duque houve a fim que a Chronica d'El-Rei D. João faz menção, e o terceiro filho houve nome D. Duarte, que o Principe recolheu para si, e criando-o em sua casa com muita honra e grande amor como proprio filho, falleceu em moço, e o quarto houve nome D. Manuel, que por morte do duque D. Diogo o sobcedeu logo como se dirá. E depois por seus merecimentos e boa ventura, por fallecimento de ligitimo herdeiro que d'El-Rei D. João seu primo ficasse, subcedeo os reinos de Portugal, em que viva muitos annos para os fazer como faz em titulos e senhorios maiores, mais ricos e mais bem aventurados.

E tambem houve D. Simão, que em moço falleceu de sua doença natural.

E a XXII dias de Janeiro do anno de mil e quatrocentos setenta e um, em Setuvel, depois de vir a despensação de Roma, o Principe D. João recebeu por mulher por palavras de presente a Senhora Princesa D. Lianor, entrando o Principe em idade de XV annos. E por a morte do Infante ser ainda tão fresca, não se [56] fizeram em seu recebimento as festas e prazeres que em outro tempo fôra razão.


CAPITULO CLXII


De como tendo El-Rei determinado passar em Africa, convertia a armada contra os inglezes pela tomada, das náos de Portugal, e desistiu d'isso pela morte do conde Baroique, e se ordenou a ida sobre Arzilla



E n'este anno e assi no passado determinou El-Rei de passar em Africa, para que teve em pessoa, e assi mandou ter praticas e conselhos em Lisboa nas casas do conde de Monsanto.

E o primeiro desejo e movimento d'El-Rei foi ir sobre Tangere. Mas porque para cercar e combater tamanha cidade, por então não se achou no reino o soprimento que era necessario, desistiu El-Rei d'este proposito, e com fundamentos de bom conquistador, e com evidentes razões que lhe foram apontadas, de que se tambem ao diante não perdia a esperança do cobramento de Tangere, assentou ir sobre Arzilla, que logo por Vicente Simões, homem nas cousas do mar bem esperto e entendido, e por Pero d'Alcaçova seu escrivão da fazenda e de que muito fiava, mandou muitas vezes espiar e vêr, assim no que cumpria para o ancorar e desembarcar do mar como para o assento da terra. Em que com fingidos negocios com que os mouros tratavam, acabaram de ser certificados de todo o que para uma cousa e para a outra era necessario, de que perfeitamente avisaram El-Rei, que logo mandou fazer no reino e fóra d'elle os percebimentos de navios, armas e mantimentos para trinta mil homens, [57] com que determinou passar, e estando El-Rei já casi prestes, foi certificado que doze náos grossas de seus reinos vindo em canal de Frandes foram tomadas, e suas mercadorias roubadas por Facumbrix, cosairo, capitão e sobrinho do conde Baroique, que a este tempo governava o reino de Inglaterra.

E sobre os agravos e lamentações que os mercadores e povo d'estes reinos acerca de seus damnos e perdas fizeram a El-Rei, elle teve logo conselho com os principaes de sua côrte. E assi o enviou pedir aos grandes e senhores do seu reino, que lh'o enviaram por escripto. Dos quaes sustancialmente foi pela mór parte aconselhado, que a armada d'Africa que era voluntaria, e convertesse por muitas razões esta contra os inglezes, que era obrigatoria e necessaria. E que fosse grossa e de muito e boa gente, para que d'algum castigo d'estes nascesse receio aos outros muitos, que a seus vassallos não fizessem no mar os males e damnos que cada dia e sem emenda lhe faziam. Á qual parte El-Rei mais inclinado, ordenou armar grossamente, e dava por capitão d'armada D. João filho do duque, que depois foi Condestabre e marquez de Montemór-o-Novo, e com elle carracas e muitas náos grossas, e outros navios pequenos em grande numero.

E estando tudo já quasi prestes, veiu certidão a El-Rei estando em Lisboa, no mez de Junho, que o dito conde Baroique, e o Rei porque governava Inglaterra, eram em batalha mortos por El-Rei Duarte, que depois pacificamente reinou, pelo qual El-Rei foi logo movido cessar da dita armada, que para emenda e vingança do dito conde fazia, e a mudar no primeiro proposito de passar em Africa, sobre que primeiro se fundara. E que a entrega das náos e mercadorias de seus reinos remedeasse como remedeou, e procurou por embaixadas, que com pessoas d'autoridade [58] a Inglaterra e a Borgonha muitas vezes depois enviou. E assi mandou pelo reino suas cartas de percebimentos, com aviso que os condes e senhores sómente levassem cavallos.


CAPITULO CLXIII


De como El-Rei levou comsigo o Principe seu filho, e como embarcaram, e com que gente e frota



Determinou El-Rei a requerimento do Principe seu filho, e contra conselho dos mais principaes do reino de o levar n'esta passagem comsigo, e leixou por inteiro governador, e com nome de governador do reino o duque de Bragança, que escusando-se por sua velhice de tal cargo, se convidava para ir com elle á guerra dos mouros, porque seu coração e devoção não enfraquecia; porque a ella foi sampre mui inclinado. E porque El-Rei era sabedor que entre alguns grandes e pessoas principaes de seus reinos, que para sua passagem eram percebidos, havia odios e dissensões, e outros jaziam em publicas excommunhões, El-Rei com a só pena que pôs de os não levar comsigo se não se concordassem e asolvessem, elles por não ficarem se concordaram e satisfezeram e se reconciliaram.

Encommendou El-Rei o cargo da gente d'entre Doiro e Minho, e da frota do Porto ao duque de Guimarães, que se ajuntou com El-Rei em Lisboa no começo do mez d'Agosto do anno do nascimento de nosso Senhor Jesus Christo de mil e quatrocentos setenta e um, em que El-Rei houvera de partir, e por ventos que não terçavam de viagem, suspendeu sua partida [59] até dia da Asumção de Nossa Senhora, que é aos quinze dias do dito mez, em que depois de elle e o Principe entrarem no mar com mui solemne procissão, e com maravilhoso e grande triumpho, sobreveiu vento prospero e desejado, com que partiu de Restello e chegou a Lagos, onde o já esperavam os navios e gente do Algarve. E assi o conde de Valença que viera d'Alcacere, com que sua real frota refez por todas numero de quatrocentas e setenta e sete vellas, e até trinta mil homens. E alli depois de ouvir missa, e para o caso uma devota pregação, e revellar a todos sua ida sobre Arzilla, foram elle e o Principe com uma devota procissão e grande estrondo de trombetas e manistreis altos e baixos, mettidos nos bateis, e de hi aos navios que logo fizeram vella, que com vento bonançoso chegaram d'Avante á dita villa d'Arzilla, onde sua frota ancorou aos XX dias do dito mez, já sobre tarde, os mouros da qual como de dia houveram vista d'ella; porque da passagem d'El-Rei tinham já muitos avisos, adivinhando com receio seu mal, se começaram de prover como para tal necessidade e afronta cumpria.


CAPITULO CLXIV


De como El-Rei tomou terra em Arzilla



E no outro dia em amanhecendo, depois d'El-Rei ter conselho sobre sua desembarcação e filhamento da terra, mandou apparelhar e armar os bateis e caravellas pequenas, e barcas de carreto para logo na melhor ordenança, e que mais fosse possivel tomarem terra. E como quer que o porto era mui [60] perigoso; porque o mar áquellas horas andava mui alevantado, e quebrava com muita braveza em um arrecife de pedra que tem, com entradas más de tomar, El-Rei todavia mandou com muito esforço e presteza remar e tomar a terra, onde elle por maior esforço de todos não quiz ser dos segundos, em que se perdeu uma galé com outras caravellas e bateis, em que no mar morreram até oito fidalgos, e da outra gente até duzentos, em que eram alguns bons cavalleiros e escudeiros.

E porém no primeiro bote sairam logo com El-Rei muita gente, toda bem armada, sem alguma contradição dos mouros em sua saida, e os outros que na frota ficavam, com quanto viam ante os olhos sua clara perdição, não receiavam por isso com uma perfiosa bondade d'entrar nos bateis e caravellas, como se em um rio manso entrassem, até que aos tres dias com a segurança e maior resguardo que foi possivel acabaram de sair em terra.

E no dia em que El-Rei sahio, logo pôs cerco á villa em torno de mar, cerrando e defensando seu arrayal com alta cava; porque o palanque que levava, pela braveza do mar não podera logo sahir.

E das muitas e grossas bombardas que El-Rei levava, que com a tormenta das náos se não podiam tirar, sairam sómente duas pequenas, que em duas partes da villa foram logo ensejadas. E começaram apressadamente de fazer seus tiros, e assi os espingardeiros e besteiros não cessavam de combater, e porém sem fundamento de ordenado combate; porque o geral e da maior affronta em que se punha toda a esperança da victoria, tinha El-Rei reservado para depois que todas suas artilherias fossem assentadas. E porém as bombardas desfizeram dois lanços do muro até o meio, onde os mouros logo acudiram e repairaram [61] com muito esforço e não sem algum dano dos christãos, de que tambem com espingardas e bestas os mouros eram mui danificados.


CAPITULO CLXV


De como a villa foi entrada, e o Principe foi armado cavalleiro, e morreram o conde de Marialva, e o conde de Monsanto e outros



E aos XXIV dias do dito mez, que era dia de S. Bertolameu, pela manhã, D. Alvaro de Castro, conde de Monsanto, a que a estancia e guarda do castello era encomendada, enviou dizer a El-Rei que estava em sua tenda, que o Alcaide da dita villa lhe queria ir falar sobre concerto, que era tal que o devia aceitar. E ante de El-Rei dar final resposta, tendo vontade de se concordar como aos mouros já escreveram e mandaram requerer, vieram logo vozes emtoados por todos que a villa se entrava. O que a vista propria d'El-Rei que a isso com muita trigança sahiu, fez mui certo e verdadeiro; porque como o rumor correu que a villa era entrada assi concorreu logo a gente do arraial aos muros, a que com muitas escadas e engenhos que para isso eram ordenados, sem alguma certa ordem de combate, logo com muita ardideza subiram e entraram á dita villa por todalas partes.

E os mouros vendo-se entrados e perseguidos dos christãos, pelejando bravamente uns se recolheram á misquita, e outros, os mais honrados ao castello. E com os da misquita ante de ser vencida, houve de uma parte e da outra mui crua e sangoenta peleja. Em que dos christãos entre outros morreu principal [62] e como ardido e valente cavalleiro, D. João Coutinho, conde de Marialva, que com seu braço acompanhou primeiro seu corpo d'outros corpos vazios d'almas imigas, e não sem grande tristeza que El-Rei e o Principe e toda a côrte por sua morte tomaram, e não sem causa; porque era mancebo, e senhor de grande e honrada casa, e em que se vivera pareciam já virtuosos sinaes d'haver n'elle para o reino um singular homem para armas e conselho.

E acabada a peleja da misquita, logo a gente recorreu ao castello, que de todalas partes era mui forte e defensavel, cujo combate por esforço d'El-Rei e do Principe, que eram presentes, foi com tanta força e ardideza cometido, que logo antes de algumas escadas serem postas, os christãos por lanças e páos com muita desenvoltura sobiam ás torres e muros, de que os debaixo com uma louvada inveja de tanta honra, esquecidos de todo perigo cometiam seus corpos com armas pesadas a mui fracas toucas de linho, porque os allavam e subiam acima, onde nos muros e torres que dos christãos se entravam, e depois no patim do castello houve tão mortal peleja, como parecia claro nos muitos mortos e feridos que em todas partes jaziam.

Alli no castello álém d'outros nobres christãos que com ferro morreram, foi morto D. Alvaro de Castro, conde de Monsanto, camareiro-mór d'El-Rei, que sua morte muito sentio; porque certo elle no campo e na côrte, na paz e na guerra era por seu siso, discrissão e esforço, homem mui principal. E em fim assi foram os mouros da villa e do castello cometidos, que todos ficaram mortos e captivos sem alguma excepção, cujo numero segundo comum orçamento seriam dos mortos até dois mil, e dos captivos até cinco mil. E foi achado e tomado na villa mui grande [63] e rico despojo, que foi estimado a oitenta mil dobras d'ouro. Do qual todo El-Rei fez aos tomadores escala franca, sem reservar para si quinto, nem outro direito algum.

Acharam-se dentro cincoenta captivos christãos, a que a santa victoria deu livre redenção. E El-Rei e o Principe, assi no entrar da villa, como no soccorrer e prover das muitas pelejas e afronta dos combates, não sómente por seu conselho e exforço usaram de oficios, que pareciam e eram de aprovados capitães; mas ainda por seus braços cometeram e acabaram feitos como ardidos e valentes cavalleiros, sem algum resguardo nem tento do que a suas pessoas e dinidades reaes se deviam, e certamente era grande gloria vêr aquelle dia na mão do Principe em idade de XVI annos sua espada de bravos golpes torcida, e de sangue de infieis em todo banhada, em cuja vista a mór parte da alegria era d'El-Rei seu padre, que n'aquella victoria e perigo o tomou por parceiro, vendo que em ajuda tão necessaria, e perigo tão conhecido não podera no mundo escolher melhor companheiro do que gerara por filho.

E porém como El-Rei sentiu que o feito com desejado vencimento era de todo acabado, foi logo á misquita dos mouros, onde sobre o corpo do conde de Marialva achou já uma cruz, a qual por começo do serviço e sacrificio, que a Deus n'ella ao diante se havia de fazer, logo beijou e adorou, e depois de fazer oração, logo junto com o corpo morto do dito conde, armou per si o Principe seu filho por cavaleiro, com palavras de grandes louvores, e muitas bondades e merecimentos do mesmo conde. E sendo ambos d'armas victoriosas vestidos, El-Rei no cabo de auto tão devoto e tão glorioso, disse ao Principe, e não sem algumas lagrimas:

[64] ―«Filho, Deus vos faça tão bom cavaleiro como este que aqui jaz.»

E porque o conde D. João não tinha filhos, e por sua tão honrada casa, por fallecimento de legitima sobcessão não ficar distinta ou minguada, El-Rei em galardão de sua morte, e por sua vida e memoria para sempre viva, fez conde de Marialva D. Francisco Coutinho seu irmão, que este titulo e mercê aos Reis de Portugal e seus reinos sempre bem servio e mereceo. E assi fez conde de Monsanto a D. João de Castro, filho do dito conde D. Alvaro. E edificou a dita misquita em casa de oração da avocação de Nossa Senhora, Santa Maria da Asumção; porque n'aquelle dia partio de Lisboa para tomar a villa, e em tal dia partio El-Rei D. João seu avô, quando tomou a cidade de Ceuta, e em tal venceu a batalha real, e em tal dia falleceu, e em tal dia nasceu.


CAPITULO CLXVI


De como Mollexeque vinha socorrer Arzila, e fez pazes com El-Rei D. Affonso



E n'esta villa foram tomadas e captivas duas mulheres e um filho de Mollexeque, Senhor d'Arzila, gran senhor entre os mouros, que depois foi Rei de Fez; e porém a este tempo que El-Rei chegou sobre Arzila, elle era em Fez guerreando um Marim, que governava o Rei do dito reino, por cuja morte ficou Rei. E sendo d'isso certificado, partiu logo a gram pressa assaz poderoso, para soccorrer a villa se fosse possivel, e em Alcacer Quibir foi certificado da expunação e entrada da villa, e estrago e [65] captiveiro de suas mulheres e filhos, e de todolos mouros d'ella, d'onde enviou a El-Rei sua embaixada, cuja conclusão foi: Depois de ambos partirem aquellas terras, segundo os antigos termos de suas cidades e villas d'Africa, requeriam desejar com elle paz ou tregoa, que com seu temor e grande necessidade lhe pedio, e para isso lhe desse segurança para em pessoa lhe vir fazer reverencia, e com elle se concertar, do que a El-Rei muito prouve, e sobre firmes seguranças que lhe enviou, o dito Mollexeque veio com trezentos de cavallo a tiro de bombarda da dita villa.

E porém elle com receios de cautellas e suspeitas de mouros, com quanto El-Rei por dobrar na segurança lhe tornou a enviar sua direita monopla d'armas, não quiz a suas vistas chegar. E d'ali porém se concertaram, em que por contrato escripto tomaram concordia, sobre os termos e logares que a um e a outro ficariam, de que arrecadassem suas pareas e tributos. E assentaram tregoa por vinte annos que El-Rei lhe deu, a qual sómente nas terras chãs se entendesse; porque sem quebramento d'ella a cada um ficava livre faculdade para do outro poder tomar e conquistar seus logares cercados; e d'ali se tornou Mollexeque.

E El-Rei como quer que d'outros senhores e grandes homens fosse para a capitania e governança da dita villa requerido, fez capitão d'ella juntamente com Alcacere, que já aos mouros tinha tomado, a D. Anrique de Meneses, conde de Valença, a quem publicamente disse muitas virtudes e merecimentos para isso, que faziam todos por muita sua honra e louvor.


[66]

CAPITULO CLXVII


De como El-Rei foi certificado que os mouros de Tangere tinham leixado a cidade, e do que sobr'isso logo proveu, e de como se foi a ella, e de hi para o reino



El-rei em provendo as cousas da villa que cumpriam, com fundamento de se volver para o reino, foi por dois mouros a gram pressa certificado que os moradores da cidade de Tangere esquecidos da grande fortaleza d'ella e de si mesmos, principalmente temendo que a mortindade e estrago de Arzilla, de que por uma velha segundo se disse, foram avisados, não viesse tambem sobre elles, a tinham desamparada de todo. A qual leixaram vazia de suas pessoas e fazendas, e cheia de muito fogo, que as casas e reliquias d'ella sem proveito dos christãos se destruissem e queimassem.

E após a primeira nova d'esta tamanha e não crida gloria, vieram logo outros que sem duvida o confirmaram, pelo qual El-Rei com muita gente de pé, e com os de cavallo que foi possivel, enviou logo á dita cidade D. João, filho do duque, que depois foi marquez de Montemór, aos XXVIII dias d'Agosto, dia de Santo Agostinho, que segundo se affirma foi já bispo d'ella. E ao outro dia o dito D. João sem alguma contradição entrou na cidade, em que achou certas bombardas grossas, e muita outra artilharia e polvora, a que os mouros por desacordo e cegueira, ou por causa de mais seu damno não poseram o fogo, e o punham andando ás palhas e cousas pequenas das casas. Da qual cousa logo avisou El-Rei, que alegre de [67] tão bem aventurado sobcedimento, sem muito trespasso com o Principe, e com a nobre gente de sua côrte, logo se foi á dita cidade, em que entrou já sem o ardente desejo de sua destruição e vingança, em que sempre vivia.

Foi-se logo á Mesquita que já era feita egreja, onde deu muitas graças e louvores a Deos, e envestio de Bispo da cidade o prior de S. Vicente de Fóra de Lisboa, que sendo da regra e Ordem de Santo Agostinho, por promoção e auctoridade apostolica era já d'antes intitulado Bispo d'ella, na qual esteve El-Rei XVII dias não se fartando de a vêr, dentro dos quaes proveo as cousas que para boa governança d'ella cumpriam. E fez e leixou por capitão e governador d'ella a Ruy de Mello seu Guarda Mór, que depois foi conde d'Olivença, pessoa no reino tão principal que o tal carrego, e outro de mais honra e mór perigo e peso, por muitas causas e razões mui bem merecia.

E assi ennovou e accrescentou El-Rei o titulo que tinha, e se intitulou nova e primeiramente por esta maneira: D. Affonso por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, d'aquem e d'além mar em Africa. E depois de fazer muitas terras chãs dos mouros suas subjeitas e tributarias, e notificar ao Papa e a todolos Reis e Principes christãos esta sua excellente victoria, partiu-se com o Principe para Portugal aos XVII dias do mez de Setembro, e logo ao outro dia seguinte foi no porto da cidade de Silves. De maneira que El-Rei em XXXIII dias contados do dia que partiu de Lisboa até este, começou e acabou prosperamente estes tamanhos feitos, de que Deus foi muito servido, e seu estado e nome por todo o mundo mui accrescentado e louvado.

E os christãos d'Andaluzia não receberam por isso menos prazer que segurança, de que com festas para [68] o mundo, e devotas procissões para Deos deram claros signaes.

E de Silves se foi logo El-Rei e o Principe por mar á cidade de Lisboa, onde foram com grande triunfo, e muitas festas e alegrias recebidos, o que todo tambem por todo o reino com a notificação e certeza da victoria por muitos dias se continuou.


CAPITULO CLXVIII


De como a Infante D. Joana filha d'El-Rei foi metida no mosteiro de Odivellas, e de hi ao mosteiro d' Aveiro, e de outras cousas que El-Rei fez



A Infante D. Joanna filha d'El-Rei estava a este tempo em Lisboa, com tão grande casa de donas e donzellas e officiaes como se fôra Rainha; e porque fazia sem necessidade grandes despezas, e assi por se evitarem alguns escandalos e perjuizos que em sua casa por não ser casada se podiam seguir, El-Rei por conselho que sobr'isso teve, logo no mez d'Outubro d'este anno a apartou, e em habito secular e com poucos servidores a poz no mosteiro d'Odivellas em poder da Senhora D. Filipa sua tia, em edade de XVIII annos. D'onde foi depois mudada para o mosteiro de Jesus de Aveiro. Onde sem casar com nome de honesta e mui virtuosa, acabou depois sua vida em idade de trinta e seis annos.

E n'este anno falleceu o Papa Paulo, e sobcedeu em Roma a cadeira de S. Pedro o Papa Sixto quarto, a que El-Rei mandou com sua obediencia Lopo d'Almeida.


[69]

CAPITULO CLXIX


Foi feito primeiro conde de Penella D. Affonso de Vasconcellos



N'este anno em chegando El-Rei d'armada, fez em Lisboa novamente conde de Penella D. Affonso de Vasconcellos seu sobrinho, o qual por sua nobre linhagem e singulares serviços e grandes merecimentos, aquella e outra maior dinidade, tinha já a El-Rei e ao reino bem merecida.


CAPITULO CLXX


Tomou o Principe D. João sua casa



E no anno seguinte de mil e quatrocentos e setenta e dois, tomou o Principe D. João sua mulher e casa na villa de Beja, onde era a Senhora Infante D. Briatiz, e d'alli se veio á cidade d'Evora.


CAPITULO CLXXI


De como houve embaixadas e vistas entre El-Rei de Castella e de Portugal, e sobre que



No qual anno, e assi no passado entre os Reis de Castella e de Portugal houve de uma parte e da outra muitas embaixadas, ainda sobre lianças e mudança de casamento d'El-Rei D. Affonso com a Princeza D. Joanna sua sobrinha; porque como [70] El-Rei D. Anrique de Castella soube que o Principe D. João de Portugal era casado com a Princesa D. Lianor, e não podia já casar com a Princesa sua filha, e viu que a Infante D. Isabel sua irmã fôra contra seu prazer e auctoridade casada com El-Rei de Cecilia filho d'El-Rei D. João d'Aragão, mandou fazer d'isso autos solenes, em que com quanto pôde, por sua desobediencia a desherdou da herança de Castella. E procurou de casar a dita Princesa D. Joana sua filha com El-Rei D. Affonso, sobre o qual como disse, se passaram mui continuas embaixadas, e por meio de D. João Pacheco, Mestre de Santiago, se concertaram vistas, em que os Reis acompanhados de mui nobre gente se viram entre Elvas e Badalhoce. Ás quaes vieram outrosi embaixadores do dito D. Fernando Rei de Cecilia, e da Rainha D. Isabel sua mulher, para com evidentes causas impedir o effeito do dito casamento. E finalmente no caso e negocio intrevieram tantas duvidas, e com esperança de tantos males e divisões de reino a reino, que El-Rei de Portugal tendo sobr'isso muitas vezes conselho, nunca em vida d'El-Rei D. Anrique se acharam taes meios, com que parecesse razão elle aceitar e concordar o dito casamento. E tudo principalmente causava, ser a Rainha de Cecilia intitulada por Princesa de Castella, de que tinha a mór parte dos grandes e Senhores d'ella, em que o mal da guerra era tão certo como o bem da victoria duvidoso. E porém depois da morte d'El-Rei D. Anrique, El-Rei D. Affonso consentio no dito casamento, e entrou em Castella intitulado Rei d'ella, como ao diante se dirá.


[71]

CAPITULO CLXXII


De como os ossos do Infante D. Fernando foram a estes reinos trazidos de Fez



N'este anno sendo ainda em Fez os ossos do Infante D. Fernando, que lá falleceu em um santo captiveiro como atrás fica, como quer que a El-Rei D. Affonso por resgate e redenção das mulheres e filho de Mollexeque, que foram captivas em Arzilla lhe fosse prometida uma grande somma d'ouro, elle como Rei bom e piedoso denegou sempre todo outro partido e interesse, salvo que por ellas lhe dessem os ossos do dito Infante, que a este tempo eram em poder de Molley Belfagege.

E leixando muitas embaixadas e recados que sobre este concerto de uma parte e da outra se passaram. Finalmente o dito Molley Belfagege enviou a El-Rei a propria ossada do dito Infante, bem reconhecida por tal por Molley Belfaca seu filho moço, e por Diogo de Bairros Adail Mór, que a elle por este caso fôra algumas vezes embaixador. Os quaes por mar chegaram com ella a Restello, e do navio foi tirada e trazida com grande manificencia á cidade de Lisboa, e entrou pela porta de Santa Catherina, onde com solemne procissão foi recebida, e alli pelo priol de S. Domingos Mestre Affonso se fez um sermão para o caso mui conveniente e devoto, em que houve palavras de tanta piedade e compaixão, que commoveram as gentes a muitas lagrimas como se foram Endoenças.

E d'alli foram os ossos postos no mosteiro do Salvador, e de hi levados ao mosteiro da Batalha, e postos com devidas exequias em sua ordenada sepultura, [72] na capella d'El-Rei D. João seu padre, onde segundo alguma clara evidencia, Deos por merecimentos do dito Infante, e em signal de sua bemaventurança fez alguns milagres. E certamente com a restituição da ossada d'este bemaventurado Infante, por justas causas e mui claras razões recebeu todo o reino prazer e alegria sem conto, e El-Rei dos seus naturaes e estranhos não menos honra, gloria e louvor que das prosperas expunações de Arzila e Tangere.


CAPITULO CLXXIII


Do fundamento que El-Rei D. Affonso teve para entrar em Castella por morte d' El-Rei D. Anrique



E no fim do anno de mil e quatrocentos setenta e quatro, El-Rei D. Anrique de Castella falleceu na villa de Madrid; foi seu corpo levado ao mosteiro de Santa Maria de Guadalupe, onde na capella maior á mão direita jaz em sua real sepultura como parece, e da outra parte jaz a Rainha D. Maria sua madre.

Fez El-Rei D. Anrique seu solemne e acordado testamento, em que declarou a Princeza D. Joana por sua filha, e por Rainha herdeira dos reinos de Castella. E a El-Rei D. Affonso por governador d'elles, pedindo lhe finalmente que aceitasse a dita governança, e casasse com ella, o qual testamento foi logo trazido a El-Rei D. Affonso, que estava em Extremoz, no mez de Dezembro do dito anno de mil e quatrocentos e setenta e quatro, sobre o qual El-Rei logo teve grande e geral conselho, para que foram [73] alli juntos com El-Rei e com o Principe todolos grandes e principaes do reino.

E o Principe desejando que El-Rei seu padre com esperança de acrecentar seus reinos de Portugal, aceitasse, e não se escusasse do casamento e empresa de Castela, tinha suas fallas e maneiras com esses principaes, a que revellava seu desejo, com que os commovia para que conselhassem El-Rei seu padre e o esforçassem para isso. Porque depois de sua morte, muitas vezes o Principe D. João seu filho sendo Rei, com aquella onestidade e reverença que devia, acusava a negligencia ou não bom conselho d'El-Rei seu padre; porque não censentira e aceitara os primeiros cometimentos dos casamentos de Castella, El-Rei D. Affonso com a Infante D. Isabel, e elle com a Princesa D. Joana, com que de uma maneira ou d'outra foram d'Espanha pacificos Reis e Senhores.

E porém o conselho do Arcebispo de Lisboa, que depois foi Cardeal, e do duque marquez de Villa Viçosa por causas muitas que allegaram, foi que El-Rei em tempos de tanta devisão, e com tamanho pendor contrairo como tinha, não devia entrar em Castella nem aceitar a empresa d'ella, e leixala aos naturaes que a quizessem favorecer e soster. Pelo qual ante de se tomar final assento, acordou El-Rei de enviar primeiro como enviou a Castella Lopo d'Albuquerque, Camareiro-Mór, que depois foi conde de Penamacor, a saber quantos e quaes eram os cavalleiros da valia da Rainha D. Joana, e concertar-se com elles, e tomar d'elles certidão d'obediencia para em sua segurança, se parecesse razão, El-Rei entrar em Castella. E o dito Lopo d'Albuquerque, foi principalmente aderençado a D. Affonso Carrilho, Arcebispo de Toledo, e ao marquez de Vilhena, e ao duque do Infantado, que então era marquez de Santilhana, [74] e ao duque e duquesa d'Arevallo, e a outros muitos de sua parentella e valia. Os quaes a este tempo eram todos declarados por a dita Rainha D. Joana, de que trouxe a El-Rei autenticas certidões, e promessas de casando com ella o servirem e obedecerem como a proprio Rei de Castella.


CAPITULO CLXXIV


Como El-Rei determinou todavia entrar em Castella, e dos requerimentos que logo enviou a El-Rei D. Fernando e á Rainha D. Isabel



E com esta certidão com que o dito Lopo d'Albuquerque chegou a Évora, no Janeiro de mil e quatrocentos setenta e cinco, determinou El-Rei, pospostos outros muitos inconvenientes que com tudo se apontaram e se offereceram, todavia aceitar como aceitou a empreza, e sem escusa entrar em Castella, pelo qual mandou logo perceber os grandes e senhores, prelados, fidalgos, e cavalleiros, e gente outra de seus reinos, para na entrada do Maio logo seguinte serem em Arronches, por onde acordou d'entrar.

E d'alli El-Rei por conselho que para isso teve, ante d'outro proseguimento enviou Ruy de Sousa a El-Rei D. Fernando, e á Rainha D. Isabel, que em Valhadolid estavam em festas e justas reaes, notificando-lhe como por ser casado com a Rainha D. Joana filha legitima d'El-Rei D. Anrique, os reinos de Castella lhe pertenciam, requerendo-os e amoestando-os com as razões e protestações que n'isso cabiam, que se fossem dos ditos reinos e lh'os leixassem [75] livres. A que os ditos Rei e Rainha, com outras razões que pareciam ser conformes a justiça e honestidade, responderam e outrosi requereram que elle não entrasse nos ditos reinos, que sómente a elles diziam que pertenciam. E em fim a determinação do feito ficou entre os Reis não a boas razões, nem justificação de Leis que apontassem, mas sómente a disposição e força das armas como se fez, e ao diante se dirá.


CAPITULO CLXXV


De como El-Rei se foi a Arronches, por onde acordou d'entrar em Castella



El-Rei se foi na entrada do mez de Maio a Arronches, e com elle o Principe seu filho, a que deu as provisões que cumpriam para inteira governança e regimento do reino de Portugal em que ficava, e assi outras declarações secretas como por via de testamento, em que quiz e declarou que todalas graças e doações, que durando esta empresa e necessidade de Castella a quaesquer pessoas fizesse, que passassem de dez mil réis de renda, não sendo aprovadas, consentidas, e assinadas juntamente pelo dito Principe seu filho, fossem de nenhum valor, como cousas por constrangimento e sem vontade outorgadas.


[76]

CAPITULO CLXXVI


De como a este tempo naceu o Principe D. Affonso neto d'El-Rei



Estando El-Rei já prestes para d'Arronches mover com todo seu arraial, veio a elle e ao Principe certidão, que a Princesa D. Lianor pario o Infante D. Affonso em Lisboa, a XVIII dias de Maio de mil e quatrocentos setenta e cinco. Com que todo o Reino mostrou geralmente muita gloria e alegria. E por seu nacimento declarou logo El-Rei, sendo caso que o Principe D. João seu filho em sua vida fallecesse, a tempo que elle mesmo Rei tivesse outro filho lidimo da Rainha D. Joana sua esposa com que havia de casar, que ao dito Infante D. Affonso sempre pertencesse e viesse a sobcesão dos reinos de Portugal, e que para isso fosse logo jurado e obedecido, como depois o foi com a devida cerimonia e solemnidade, de que para uma cousa e para a outra se outorgaram e fizeram provisões e escripturas autenticas.


CAPITULO CLXXVII


Da gente com que El-Rei entrou em Castella, e em que ordenança ia



E com a gente que a El-Rei veiu e com elle se ajuntou em Arronches, e com a do duque de Guimarães e do conde de Marialva, e de Ruy Pereira e d'outros fidalgos, que atalhando pela comarca da Beira se foram ajuntar com El-Rei já em [77] Castella, se fez de gente numero certo, ao todo de cinco mil e seiscentos de cavallo, e quatorze mil homens de pé, todos bem armados e encavalgados, e providos d'artilharias, armas e tendas, e de todo o mais que para guerra pertencia, e tudo em gram perfeição. E com os que eram em Arronches partiu, e foi ter o primeiro arraial em campo á fortaleza da Codiceira já em Castella, e de hi a Pedra Boa, d'onde o Principe se despedio d'El-Rei seu padre, e se veiu a Portugal; porque até alli sempre foi despachando o que lhe cumpria.

E a ordenança da hoste e batalhas d'El-Rei iam n'esta maneira: diante ia logo Diogo de Bairros, Adail Mór com certos ginetes por descobridores. E após elle o marechal D. Fernando Coutinho, com guias e outra gente ordenada, por apousentador e assentador do arraial. E logo Vasco Martins de Sousa Chichorro, capitão dos ginetes d'El-Rei em sua batalha. A quem logo seguia o conde de Penamacôr, capitão da avanguarda d'El-Rei, após o qual seguia logo a carreagem.

E a batalha real com suas reaes bandeiras tendidas iam no meio, na qual El-Rei o mais do tempo ia. E porém ás vezes com certos ginetes andava provendo de batalha em batalha, trazendo sempre de trás de si nas mãos de um page um guião de sua divisa, que foi um rodizio de moinho com gotas d'agoa derrador espargidas, que tomara pela Rainha D. Isabel sua mulher. E na reguarda ia o duque por Condestabre; porque em caso que D. João seu irmão tivesse o nome e servisse o officio nas villas e causas judiciaes, porém sempre no campo a priminencia do officio ficou ao duque.

E além d'estas batalhas eram outras ordenadas ás allas da batalha d'El-Rei, em que iam de cada parte, [78] D. Affonso conde de Faram, e D. Anrique de Menezes conde de Loulé, e D. Affonso de Vasconcellos conde de Penella, e o conde de Monsanto, e outros.


CAPITULO CLXXVIII


De como El-Rei chegou a Prazença, onde publicamente foi jurado por Rei, e esposado com a Rainha D. Joana, e d'outras cousas



E n'esta ordenança sem algum recontro nem rebate contrairo chegou El-Rei á cidade de Prazença, onde o já esperava a Rainha D. Joana. E com ella o duque e duqueza d'Arevallo, que eram senhores da dita cidade, e com elles o marquez de Vilhena e o conde d'Oronha, e outros muitos senhores, e pousou El-Rei com a Rainha dentro na fortaleza, onde por alguns dias houve grandes festas e prazeres, nos quaes se consultou a maneira do recebimento d'El-Rei com a Rainha, e seu alevantamento por Rei, o que se fez em um alto e mui rico cadafalso posto na praça da cidade, em que El-Rei e a Rainha ambos juntamente estiveram.

E alli depois de feita publicamente a solemnidade dos esposoiros, como em tal caso cumpria, logo com cerimonias de trombetas e reis d'armas em altas vozes foram pelos senhores que eram presentes, e com outros muitos com suas procurações, alevantados e jurados por Reis de Castella, e por taes lhes beijaram as mãos, e se tomaram d'isso publicos estromentos. E d'alli em diante se intitulou El-Rei D. Affonso, Rei de Castella e de Lião e de Portugal, etc., e chamou á Rainha esposa, com a qual então nem depois [79] nunca consumou o matrimonio, por defeito de despensação que não tinha nem nunca houve. E por galardão do trabalho que Lopo d'Albuquerque tomara no concerto d'esta entrada e casamento, El-Rei o fez alli conde de Penamacôr.

E de Prazença fez El-Rei tornar D. João Galvão, Bispo de Coimbra, com sua gente por fronteiro da comarca da Beira, e Pero d'Albuquerque por capitão do Sabugal e Alfaiates.


CAPITULO CLXXIX


De como El-Rei D. Affonso e a Rainha se foram á cidade de Touro, e como El-Rei D. Fernando veiu sobre elle com todo seu poder



E feita consulta do mais que se faria, moveu El-Rei logo com a Rainha em arraial caminho d'Arevalo, em que foram sempre de noite e de dia com grandes resguardos de segurança, especialmente atravessando por terra d'Alva, onde com muita gente d'armas era o duque, que por obrigação de sangue que entre si tinham, sempre seguio a parte de El Rei D. Fernando.

Em Arevalo estiveram poucos dias, d'onde El-Rei se foi á cidade de Touro, por concerto que tinha de lha dar como deu João d'Ulhoa, dentro da qual El-Rei com toda sua gente se alojou. E em chegando se pôs cerco, e deram fortes combates ao castello da cidade que achara contrairo, em que a mulher de Rodrigo d'Ulhoa estava por El-Rei D. Fernando e a Rainha D. Isabel, que como Reis esforçados, e por darem de si bom exemplo aos que em tantas differenças [80] bem os servissem, cometeram de vir socorrer e descercar o dito castello, e chegaram a meia legoa de Touro, de gentes e artilharias muito mais poderosos que El-Rei D. Affonso.

E assentaram seu arrayal ao longo do Doiro acima da cidade. Mas o cerco do dito castello estava em todo tão percebido e com estancias tão armado e afortalezado, que El-Rei D. Fernando por escusar no cometimento uma perda certa por victoria tão duvidosa, não quiz cometer o combate. E depois d'estar alli alguns dias, em que do conde de Marialva D. Francisco Coutinho, e de Diogo Fernandes d'Almeida, e do conde de Faram, e d'outros fidalgos e cavalleiros, El-Rei D. Fernando recebeo muitas vezes em sua gente e carriagens muito dano e perda, com rebates que estes de dia e de noite, como nobres e esforçados cavalleiros lhe davam, assi logo do arraial como depois ao alevantar d'elle, El-Rei D. Fernando como triste e anojado alevantou seu arraial e se foi a Valhadolid, com pouca esperança de conseguir o efeito de sua empresa; porque a gente por desfallecimento de dinheiro, que já não tinham, se partia d'elle, e do descerco de Touro, que não acabara nem cometera, deu causa que nos corações dos castelhanos enfraquentou muito seu partido.

E a opinião, ou mais certa verdadeira sentença dos sesudos e bons guerreiros, foi que se El-Rei D. Affonso se soubera approveitar da bonança n'este tempo, e sobre este desfavor e quebra d'El-Rei D. Fernando o perseguira, e por cerco ou batalha o apertara, que de necessidade d'esta vez o lançara fóra de Castella, onde sem resistencia na maior parte ficara Rei pacifico.

A mulher de Rodrigo d'Ulhoa vendo-se já desesperada de socorro, soffrendo primeiro muitos combates [81] e minas, e resistindo sempre como boa e virtuosa dona, com segurança de sua pessoa e fazenda fez partido, com que entregou o castello a El-Rei, que o deu logo ao dito João d'Ulhoa seu irmão d'elle.


CAPITULO CLXXX


De como El-Rei D. Affonso se foi a Çamora, e de hi querendo ir descercar o castello de Burgos tomou Baltanas, e prendeo o conde de Benavente



E n'este tempo João de Porras, cavalleiro principal de Çamora, andava em trato de fazer vir a dita cidade a serviço e obediencia d'El-Rei D. Affonso; porque o Marechal que tinha a fortaleza por El-Rei D. Fernando, elle tambem o commovia, porque era seu genro.

E El-Rei D. Affonso fez João de Porras vedor de sua casa, por prazer e consentimento de Pero de Sousa, que o dito officio tinha. E como El-Rei foi do trato de Çamora seguro e certificado, se foi logo a ella com a Rainha, onde foram em tudo com muitas cerimonias e grandes triunfos recebidos e obedecidos. E alli era já o Arcebispo de Toledo com El-Rei D. Affonso. E porque tinha o castello de Burgos um cavalleiro chamado Sarmento, em que era estreitamente cercado por El-Rei D. Fernando, cujo contrairo estava, determinou El-Rei D. Affonso de o ir descercar e prover. Pelo qual partio logo assaz poderoso de Çamora, onde leixou a Rainha, e por sua guarda Lopo d'Almeida, e por sua aia a Camareira Mór, D. Briatiz da Silva sua mulher.

Foi-se El-Rei a Arevallo, onde por calmas e muitas [82] fruitas, e pós, e outro máo trato que alli houve lhe morreu muita gente, porque esteve alli muitos dias recebendo avisos dos de Burgos, e consultando se cometeria, ou como cometeria o dito descerco; porque para tudo havia muitas razões e mais duvidas. E finalmente acordou descercal-o, para que partio e foi a Pena Fiel, que era do conde d'Oronha, onde tambem por receios e dificuldades, que recreciam maiores, sobreseve alguns dias, nos quaes foi avisado que o conde de Benavente sabendo de sua ida a Burgos, se viera com quatrocentas lanças á Villa de Baltanas, oito legoas de Pena Fiel, para d'alli lhe dar rebates, e com dano dos d'El-Rei D. Affonso fazer de sua honra, pelo qual El-Rei determinou de secretamente o ir cercar e tomar por força, e para maior dessimulação d'isso, temendo de ser o conde de Benavente avisado, mandou diante e de dia por outro caminho desviado o conde de Penamacôr com a gente de sua guarda, e em sua companhia Ruy Pereira da Feira, e D. Diogo de Crasto.

E como foi de noite partio El-Rei por o caminho direito de Baltanas, e porém na mesma noite vieram-se ajuntar não longe da villa a que iam, d'onde o conde de Penamacôr se adiantou com seus ordenados, e em querendo amanhecer se pôs em corrida, e chegou com pouca gente sobre a dita villa, além da qual por se o conde não sair, se pôs logo em batalha, a que o conde de Benavente com quanto na villa tinha mais gente, crendo que era cillada não quiz sair, e se pôs em ordenança de defesa, avisando do caso outra sua gente que era acerca, por dois de ligeiros cavallos, que enviou para logo lhe socorressem.

E porém se o conde de Benavente ante da chegada d'El-Rei que tardou muito, dera no conde de Penamacôr, claro é que o desbaratara, e tivera d'elle certa [83] victoria; porque tinha mais gente e mais folgada, e assi os cavallos e muitos espingardeiros e artilharias. Mas El-Rei sendo duas horas de sol chegou com muita gente, e assi com escadas e artilharias sobre a villa, e depois de comerem, mandou fazer signal de combate, que de todalas partes se deu á villa mui rijo e mui afrontado, em que a gente toda era a pé, salvo El-Rei que de uma parte para a outra andava a cavalo. E leixou de fóra a cavallo D. Troillos, filho do Arcebispo de Toledo com gente d'armas, e ginetes para segurar rebates e torvações do campo.

O conde de Benavente como era gram senhor e esforçado cavalleiro, tinha comsigo muita e boa gente d'armas, e assi espingardeiros e outra muita artilharia, com que fez muito dano aos d'El-Rei, e entre os mortos que de sua parte alli foram, foi o principal D. Alvaro Coutinho, filho maior do Marichal, que entre as ameias subindo por uma escada foi morto. E porém a villa foi com tanto aperto combatida e entrada, que o conde de Benavente por segurar a vida, constrangidamente a veio em pessoa pedir a El-Rei de cima do muro, e El-Rei per si mesmo em viva voz lh'a outorgou, com que se deceo e deu á prisão. E a villa foi logo entrada e roubada toda, de que se houve muito e rico despojo.

Dormio El-Rei alli aquella noite, e ao outro dia alegre e contente se tornou a Pena Fiel, e trouxe preso o dito conde, cuja guarda encomendou ao conde de Penela, que o teve emquanto n Dormio El-Rei alli aquella noite, e ao outro dia alegre e contente se tornou a Pena Fiel, e trouxe preso o dito conde, cuja guarda encomendou ao conde de Penela, que o teve emquanto não foi delivrado.


[84]

CAPITULO CLXXXI


De como El-Rei tomou Cantalapedra, e se tornou a Çamora



Tornou El-Rei a ter conselho sobre o socorro do castelo de Burgos, e como quer que para isso pelo bom sobcedimento de Baltanas tinha bom tempo e disposição, foi dos portuguezes aconselhado que o não fizesse, e tornou-se a Arevallo já no fim de Setembro. E d'alli por trato que já achou concertado enviou o conde de Penamacor, e Ruy de Mello, e outros fidalgos e cavalleiros a escalar e tomar como tomaram de noite a villa de Cantalapedra sem algum perigo nem resistencia. E El-Rei sobreveio logo com toda a outra gente, para se se pozera em defesa a combater e tomar por força como a de Baltanas.

Houve-se El-Rei nobre e piadosamente ácerca das pessoas e fazendas dos lavradores da villa. E leixou hi logo por capitão o dito Ruy de Mello, e tornou-se a Arevalo, e depois quando por hi tornou caminho de Çamora, onde veio invernar, leixou por capitão Bandarra, irmão do Bispo de Coimbra.


CAPITULO CLXXXII


Do cuidado que o Principe D. João tinha em governar e defender Portugal, e como



Sobre o Principe que tornou a Portugal carregaram muitos cuidados; porque não sómente sobre seu justo juizo pendeo a governança do reino nas cousas da justiça, mas ainda muito mais sobre [85] seu coração e esforço a defesa d'elle, nas afrontas da guerra. A qual pela ausencia d'El-Rei D. Affonso seu pai, que levou comsigo a frol da gente e armas do reino, crecia e se acendia muito nos estremos d'elle com roubos, mortes, fogo e sangue, e com entradas de gentes contrairas, a que o Principe de noite e de dia, e em armas sempre vestido socorria e resistia com muita viveza e trabalho, não como Principe moço e novel, mas como ardido e velho cavalleiro, que nos trabalhos e afrontas por longos tempos fôra esprementado, e tanto era mais de louvar, quanto os imigos sendo mais, e elle em todo com menos possibilidade para os contrariar, não sómente muitas vezes defendeo em pessoa os reinos porque esperava, mas ainda os estranhos offendia e guerreava continuamente por muitas maneiras.

E n'este mesmo anno com quanto pareceu que El-Rei D. Affonso levou do reino tanto dinheiro, que por muito tempo lhe podera soprir, porém as despesas de soldos e outras necessidades sobrevieram em tanto crecimento, que a El-Rei conveio socorrer-se aos dinheiros dos Orfãos de seus reinos, e a outros muitos emprestidos particulares, e por seus officiaes foram logo tirados e levados a Castella. A cuja paga O dito Principe depois que reinou, por descargo d'a E n'este mesmo anno com quanto pareceu que El-Rei D. Affonso levou do reino tanto dinheiro, que por muito tempo lhe podera soprir, porém as despesas de soldos e outras necessidades sobrevieram em tanto crecimento, que a El-Rei conveio socorrer-se aos dinheiros dos Orfãos de seus reinos, e a outros muitos emprestidos particulares, e por seus officiaes foram logo tirados e levados a Castella. A cuja paga O dito Principe depois que reinou, por descargo d'alma de seu pai, como bom e piadoso filho satisfez quanto pôde com muito cuidado e amor.


[86]

CAPITULO CLXXXIII


De como o principe cercou a villa d'Ougela, e a tomou, e da morte de João da Silva



N'este mesmo anno no mez de Junho estando o Principe em Extremoz, Galindo, cavalleiro castelhano, e na extremadura de Castella bem aparentado, tomou salteada e por máo recado dos visinhos d'ella, a villa d'Ougela junto com Campo Maior, sobre que o Principe com a mais gente de pé e cavallo que foi possivel, e com algumas artilharias logo acudiu, e a cercou, em cujo cerco era do Principe capitão principal João da Silva seu Camareiro Mór, nobre fidalgo, e de mui conhecido e esprementado esforço.

E finalmente foi a villa assi afrontada, que aos contrairos que a tinham conveio com risco de suas pessoas partirem-se d'ella e livremente a leixarem. E em vindo o dito Galindo já sobre este concerto, com assaz de gente para recolher os seus que saissem do cerco, sahio a elle o dito João da Silva, e vindo cada um d'elles diante da sua gente de noite, pessoa por pessoa, por acertamento se toparam junto com a dita villa, e d'encontros tão mortaes se encontraram, que d'elles sós, falsadas as armas d'ambos, ambos morreram sem outro dano algum se receber de cada uma das ditas partes, e certo para um reino e para o outro a morte de taes dois homens, por sua nobreza e valentia foi muito sentida e triste, mas para suas honras e memorias assaz honrada e mui E finalmente foi a villa assi afrontada, que aos contrairos que a tinham conveio com risco de suas pessoas partirem-se d'ella e livremente a leixarem. E em vindo o dito Galindo já sobre este concerto, com assaz de gente para recolher os seus que saissem do cerco, sahio a elle o dito João da Silva, e vindo cada um d'elles diante da sua gente de noite, pessoa por pessoa, por acertamento se toparam junto com a dita villa, e d'encontros tão mortaes se encontraram, que d'elles sós, falsadas as armas d'ambos, ambos morreram sem outro dano algum se receber de cada uma das ditas partes, e certo para um reino e para o outro a morte de taes dois homens, por sua nobreza e valentia foi muito sentida e triste, mas para suas honras e memorias assaz honrada e muito de louvar.


[87]

CAPITULO CLXXXIV


De como o Principe indo vêr-se com El-Rei D. Affonso seu padre, foi por elle avisado da traição da ponte de Çamora, e se tornou de Miranda do Doiro



El-Rei D. Affonso como disse veio invernar a Çamora, d'onde muitos portuguezes, e os mais sem vontade d'El-Rei se vieram a este reino, o qual desejoso de vêr o Principe seu filho, e ter com elle conselho sobre cousas que em tantas necessidades a seu estado e honra cumpriam, lhe escreveu, que logo o fosse vêr a Çamora, o que o Principe depois de prover as frontarias e cousas do reino com muita diligencia e obediencia logo cumprio. E sendo já em Miranda do Doiro aforrado, para d'ali com gentes d'El-Rei entrar seguramente, foi de mandado d'El-Rei avisado por o Chicorro, capitão dos ginetes que passou o Douro a nado, que se volvesse por causa da traição da ponte de Çamora, que foi brevemente n'esta maneira.


CAPITULO CLXXXV


De como foi a dita traição, e da maneira que El-Rei D. Affonso sobre isto teve



A dita ponte tem duas torres, uma na entrada da cidade, de que era alcaide um Pedro de Mazaregos, e outra da outra parte, que tinha um chamado Valdes, seu cunhado, dos quaes El-Rei fôra já avisado que se segurasse, porque contra seu [88] serviço tratavam com El-Rei D. Fernando. O que El-Rei crendo que eram suspeitas falsas que d'elles lhe davam, não o quiz remedear.

E no dia em que El-Rei havia de Çamora mandar a gente pelo Principe, foi certificado pelo doutor Pareja, corregador da cidade, já de noite, como gente grossa d'El-Rei D. Fernando sobre concerto da ponte era partida de Vilhalpando contra Çamora. E o trato era sabendo da vinda do Principe, que o leixassem com toda a gente meter e entrar na ponte, e que se levantassem contra elles, e cerrassem ambas as torres, e os matassem ou prendessem, e pela duvida que El-Rei D. Affonso contra os da ponte tinha já concebida, conveio sem mais esperar poer-se logo a cavallo. E sendo com elle o Arcebispo de Toledo e outros alguns, chegaram á ponte da parte da cidade, e mandou a Pedro de Mazaregos que logo abrissem a torre e lhe viesse fallar, o qual se escusou d'isso com taes palavras e mostranças, por que El-Rei e os que com elle iam, claramente conheceram ser traição. E como cousa já danada, logo assi de noite como iam sem mais outro acordado proposito, tentaram de por força tomar a ponte, mas pela forte resistencia e defesa que dentro houve, não poderam.

El-Rei e todolos outros mui tristes se volveram á cidade, que com repique do sino grande, e com dobradas vozes de «traição, traição», foi logo metida em temeroso alvoroço d'armas, e certamente consiradas bem as circumstancias de muitas cousas que n'aquella noite concorreram, ella geralmente a todos e em cada parte foi de grande temor e espanto; porque a todos era notorio haver traição, e mui poucos sabiam em que pessoas e de que maneira seria. E com este medo tão claro e segurança tão escura, assi trabalhavam de se salvar os castelhanos dos portuguezes, [89] como os portuguezes dos castelhanos, sem haver de uns para os outros nenhuma certa fiança, até que foi manhã, que a todos fez certos da clara verdade.


CAPITULO CLXXXVI


De como El-Rei combateu a ponte, e do que se seguiu, e como El-Rei D. Affonso leixou Çamora, e se foi a Touro



E no dia seguinte depois de amanhecer El-Rei se pôs em armas, e todolos senhores principaes e fidalgos com elle para combate da ponte, e posto que com toda ardideza e perigo, com espingardas e tiros outros, e bestas e lenha, pez e fogo, á parte da dita ponte contra a cidade o deram mui aturadamente e sem algum medo, em fim o damno todo ficou com os d'El-Rei, a que com espingardas e tiros que de dentro furiosamente jogavam, lhe feriram muitos senhores principaes e fidalgos, e mataram alguns, de que os principaes feridos d'espingardas foram, o conde de Villa Real, e D. João de Lima, que depois foi bisconde, e D. Rodrigo de Castro filho do conde de Monsanto, e foi morto João Alvarez Pereira, page d'El-Rei, e outros, pelo qual vendo El-Rei a perda tão manifesta, e a esperança da victoria tão desesperada, afastou sua gente do combate, e se recolheu á cidade. Onde dos castelhanos que seguiam seu partido foi principalmente aconselhado que algumas pessoas suspeitas que n'ella houvesse mandasse sem armas lançar fóra, e elle pois bem podia, a mantivesse e a defendesse, e por alguma maneira não se saisse, e que o damno e perigo da ponte poderia [90] levemente remedear, mandando logo fazer entre ella e a cidade um muro mais forte que a porta da mesma ponte, com que os da cidade se fariam mais fortes contra a ponte, que os da ponte contra ella, e mais que tinha a fortaleza certa e segura a seu serviço, que para sua segurança era um fundamento mui principal.

E finalmente a torvação foi em todos tamanha, que este tão são e seguro conselho nunca o quizeram entender, e se o entenderam não o quizeram obrar, porque El-Rei desconfiando já dos castelhanos e acostando-se ao conselho dos portuguezes, foi d'elles aconselhado que com a Rainha se saisse, e não se fiasse já dos de Çamora, que havendo vista d'El-Rei D. Fernando se sobre ella viesse, se volveriam contra elle, de que seria mui difficil elle e todolos seus escaparem, pelo qual se partio El-Rei e a Rainha caminho de Touro, onde estava João d'Ulhoa, que os recolheo com tamanha fé e lealdade, como era a desconfiança que muitos levavam de elle contra El-Rei e a Rainha fazer e usar do contrairo.


CAPITULO CLXXXVII


Dos percebimentos que o Principe fez em Portugal para ir socorrer a El-Rei D. Affonso seu padre, e como entrou em Castella



E tornando ás cousas do reino de Portugal, o Principe da traição cometida contra El-Rei seu padre foi muito anojado, e desejando de o ajudar e socorrer não sómente como bom e piedoso filho, mas como amigo poderoso e verdadeiro que era, [91] volveu-se logo á cidade da Guarda, onde teve conselho em que se determinou dar-se socorro a seu padre de gentes e dinheiro do reino, quanto fosse possivel, e que o Principe fosse socorre-lo em pessoa. Em cumprimento do qual fizeram logo para gente apurações e percebimentos geraes, e para o dinheiro além do que se pôde haver das rendas do reino, se tomou por certa recadação toda a prata das egrejas e mosteiros, salvo a sagrada, callezes, custodias e relicairos, e assi por imprestidos de pessoas particulares se houve alguma somma de dinheiro. E não sem grandes dôres e gemidos do povo que o muito sentiam.

Cometeo o Principe e deu por autoridade d'El-Rei o inteiro regimento e governança do reino á Princesa D. Lianor sua mulher. E com ella ordenou e leixou pessoas d'autoridade e letras e bom conselho, com que nas cousas do reino se aconselhasse, e proveo as fronteiras de capitães, alcaides, e gentes como cumpria. E depois de feito isto, e ter sua gente prestes, partiu da Guarda no mez de Janeiro de mil e quatrocentos setenta e seis. E foi a Castello Rodrigo, e de hi entrou em Castella por villa de S. Fellizes, que por estar contra serviço d'El-Rei seu padre a combateo, e tomou por força, e foi toda roubada, e a leixou então por si, em que foram alguns mortos e muitos feridos, e de S. Fellizes foi junto com Ledesma, que com quanto era contraira deu ao arraial dinheiro, mantimento e provisões em abastança. E d'alli no fim do mez de Janeiro em tanto concerto levou sempre o Principe sua gente, que no caminho nunca recebeo rota nem recontro, até que chegou á cidade de Touro, onde El-Rei seu padre, depois de sair de Çamora, seguio e tratou em sua propria pessoa as cousas da guerra muitas vezes, mais como cavalleiro [92] fronteiro, que como tamanho Rei, e tão poderoso como era.


CAPITULO CLXXXVIII


De como El-Rei D. Fernando e a Rainha D. Isabel se apoderaram de Çamora, e poseram cerco ao castello



El-Rei D. Fernando com a Rainha sua mulher vieram-se logo a Çamora, a que El-Rei D. Affonso com desejo de batalha foi dar vista duas vezes, sem haver entre elles peleja. E El-Rei D. Fernando tambem veio dar outra vista sem rota alguma entre elles, uma legoa de Touro. E depois vieram seus corredores a Touro, a que o conde de Penamacôr sahio, e lhes seguiu o encalço até junto com Çamora, d'onde sahio outra gente de refresco, que prenderam e feriram o dito conde, e assi prenderam e feriram outros fidalgos portuguezes. E porém El-Rei D. Fernando pôs logo cerco e estancias mui fortes ao castello da cidade, que era seu contrairo. E a determinação d'El-Rei D. Affonso era combater e romper as ditas estancias, e soccorrer á fortaleza. E o proposito d'El-Rei D. Fernando, a que tudo logo se revellava, era de lh'o resistir com todas forças e poder, e a um Rei e ao outro não era escondido que n'este só ponto de Çamora estava a esperança de todo o feito d'ambos; porque o que d'esta contenda ficasse com melhoria, essa d'hi em diante teria sempre nos debates de Castella, pois cada um de proposito ajuntava para isso todo seu poder e valia, e assi foi e se seguio como se dirá.


[93]

CAPITULO CLXXXIX


De como El-Rei D. Affonso e o Principe cercaram Çamora da parte da ponte



E o Principe em sua chegada a Touro foi d'El-Rei seu padre, e de toda a sua côrte altamente e com muito prazer e alegria recebido; porque n'elle estava toda sua e só esperança. E logo sem delação acordaram e quizeram poer em obra dar nas estancias, e ir descercar o castello de Çamora, mas porque da fortaleza e repairo das ditas estancias foram assim certificados que sem perda de toda sua gente ou a mór parte d'ella se não podiam combater, e em fim que o castello se não descercaria, El-Rei acordou por melhor ir poer cerco á ponte da outra banda do rio, onde sem algum seu risco o podiam ter, com affronta e necessidade d'El-Rei D. Fernando e dos da cidade.

E assim supitamente se cumprio; porque depois de leixar o duque e o conde de Villa Real em Touro em guarda da Rainha e da cidade, partiu El-Rei com sua gente, e foi assentar seu arraial nas hortas de junto com a dita ponte. E El-Rei e o Principe se alojaram no moesteiro de S. Francisco, e a ponte com baluartes e cavas foi de todas partes cercada, e assi continuamente combatida com pouco dano dos que eram dentro. E os do castello que eram por El-Rei D. Affonso, tambem á sua vista assi estavam, sem algum poder sair, nem d'elle receber falla, ajuda nem soccorro.

Em durando este cerco, em uma ilha que se faz no Doiro, foram da parte de Castella juntos por concerto de paz, o duque d'Alva, e o almirante, e da parte [94] de Portugal o sr. D. Alvaro, e Ruy de Sousa, e o licenceado de Cidá Rodrigo, para todos praticarem e consultarem, se entre os Reis se poderia tomar algum meio de paz e concordia, e em fim depois de muitos debates e praticas, cada um teve em tamanho preço seu partido, que se não pôde achar meio que parecesse bom para todos ficarem concordes.


CAPITULO CXC


De como se ordenou a batalha dos Reis entre Touro e Çamora



E passados alguns dias vendo El-Rei D. Affonso o pouco que no cerco aproveitava, e o muito trabalho e dano que sua gente recebia, especialmente não se podendo prover a grande mingoa de mantimentos, que dava causa sua gente mingoar, e a dos contrairos acresentar-se cada vez mais, a uma sexta feira primeira de Março de mil quatrocentos e setenta e seis annos, mui cedo pela manhã, El-Rei de Portugal alevantou secretamente e de supeto seu arraial para a cidade de Touro, e porque sabia que El-Rei D. Fernando havia de sahir como sahia após elle, teve-se n'isso para segurança de tudo mui bom recado.

E porém a gente contraira assi como sahiu pela porta da ponte fóra, assi sobreseve e não seguio El-Rei D. Affonso, e fez corpo até juntamente ser toda recolhida fóra da ponte, receando que em outra maneira indo afiada, fazendo El-Rei D. Affonso volta sobr'ella se despunham a grande perigo e destroço, o que deu causa ser El-Rei D. Affonso com sua gente [95] já mui alongado, quando seus contrairos começaram de mover contra elle, o qual sendo a duas leguas de Çamora, adiantou-se pelo fio a reter sua gente, que a Touro se recolhia com tenção secreta de aquella noite dar de salto em seiscentas lanças d'El-Rei D. Fernando, que sob a capitania do duque de Villa Fremosa, seu irmão bastardo, estavam em Fonte Sabugo, mas o Principe que por sua vontade e sem necessario constrangimento quiz esperar e dar a El-Rei D. Fernando a batalha, avisou logo d'isso a El-Rei seu padre, que não descontente d'isso chegou já ao campo junto com Touro, onde a batalha se deu, e foi a tempo que as batalhas d'El-Rei D. Fernando passavam já um porto de uma pequena serra que hi a cerca estava, onde o conde de Loulé em voltas que fez foi ferido, e se foi a Touro.

E El-Rei D. Affonso mui contente e alegre de não negar a batalha, para que por um trombeta e arauto d'El-Rei D. Fernando era já desafiado, com quanto tinham muito menos gente, porém elle e o Principe seu filho fizeram rostro para lh'a dar com sua gente, de que muita era a Touro já recolhida, e outra muita mais ficara na dita cidade com a Rainha e com o duque e conde de Villa Real como se disse.

E sendo já o tempo mui curto para El Rei e o Principe concertarem e repartirem sua gente em batalhas, como para tão chegada necessidade cumpria, vendo as d'El-Rei D. Fernando já mui acerca e chegar-se com muita pressa, fizeram logo de toda a gente não mais de duas batalhas.

A primeira e de maior numero foi a d'El-Rei D. Affonso, que com sua bandeira real se pôs acerca do rio ao encontro da batalha em que era a bandeira real, mas não a pessoa d'El-Rei D. Fernando, o qual por se segurar como prudente dos revezes da fortuna [96] em taes tempos, depois de leixar sua batalha em ordenança, e encomendada sua bandeira a bons cavalleiros e capitães, tornou-se atraz onde na reçaga ao tempo do encontrar esteve em uma batalha pequena.

E a segunda batalha de menos gente, e porém cortezã e mui limpa foi a do Principe, que com sua bandeira se pôs affastado á mão esquerda d'El-Rei seu padre, um grande pedaço ao encontro de duas grandes batalhas que contra a sua vinham ordenadas, e porque o Principe foi aconselhado que tambem mandasse repartir a sua em outras duas batalhas, mandou logo apartar de si contra o pé da serra com gente da sua guarda, Fernão Martins Mascarenhas, seu capitão dos ginetes, com o qual porque em sua batalha não havia tanta gente como se requeria, o Principe encomendou a Gonçallo Vaz de Castello-Branco e a Ruy de Sousa, que com sua gente que era muita e mui boa se ajuntassem, como logo ajuntaram com Fernão Martins, e após elles porque cria que havia entr'elles algum desconcerto e competencia sobre a capitania da gente, enviou logo a D. Pedro de Menezes, que depois foi conde de Cantanhede, com que se refez uma boa batalha.


[97]

CAPITULO CXCI


De como romperam as batalhas, e as do Principe venceram as d'El-Rei D. Fernando, e a d'El-Rei D. Fernando venceu a d'El-Rei D. Affonso, que se recolheu a Crasto Nunho, e do mais que se seguiu até fim da batalha



E postas e ordenadas com espantosa vista as azes de uma parte e da outra para encontrar, sendo já casi sol posto, El-Rei mandou dizer ao Principe que com sua benção rompesse logo, o qual por lhe obedecer e cumprir o que tanto desejava, depois de em ambas as batalhas se fazer pelas trombetas sinal de batalha, elle e assi seus capitães com singular destreza e maravilhoso esforço, deram assi rijamente nas batalhas contrairas, que nem podendo ellas soffrer nem resistir tanta força, logo uma após outra foram desbaratadas e postas em fugida.

E para aquella hora ante da peleja deu o Principe á sua gente por apellido S. Jorge e S. Christovão, S. Jorge por padroeiro de Portugal, e S. Christovão por devoção de Jorge Corrêa, commendador do Pinheiro, que na mesma hora lh'o lembrou; era alferes do Principe que levava sua bandeira Lourenço de Faria, homem fidalgo, que n'este dia e em todolos outros por sua obediencia e esforço o fez como bom cavalleiro, e o Principe por tal o reconheceu sempre.

E assi como as batalhas do Principe no desbarato fizeram a estas d'El-Rei D. Fernando, assi a batalha grande d'El-Rei D. Fernando fez na d'El-Rei D. Affonso, que sem alguma força nem resistencia a [98] rompeu logo, e destroçou com damno e mortes de muitos, e não foi sem causa ser assi, porque na batalha do Principe era a frol dos fidalgos e nobre gente de Portugal, que falleceram n'esta d'El-Rei D. Affonso, e mais na batalha d'El-Rei D. Fernando vinha muita e mui grossa gente d'armas encubertados, além dos ginetes, e mais lançaram diante de si uma gram soma d'espingardeiros, que ao romper fizeram com seus tiros fronteiros duvidar e enfiar os cavallos e a gente da batalha d'El-Rei D. Affonso. Na qual sendo elle com sua bandeira dos dianteiros, acharam-se com elle ao tempo do encontrar mui poucos, entre os quaes eram D. Gomez de Miranda, Prior de S. Marco em Castella, e Bispo que depois foi de Lamego em Portugal. E por tanto vendo-se em alguma maneira da victoria desesperado, conveio-lhe volver e procurar por sua salvação, parecendo-lhe que pois a sua batalha onde a mais força estava fôra desbaratada, que a do Principe seu filho em que havia menos gente e de que não havia vista nem recado, tambem seria perdida. Pelo qual havendo já suas cousas por chegadas ao derradeiro estremo de desaventura, vendo já diante entre si e a ponte de Touro muita gente contraira, crendo que sem ser morto ou preso se não podia já á dita ponte recolher, foi aconselhado por Pedralvares de Souto-Maior, conde de Caminha, e por João de Porras, e por outros poucos que o sempre acompanharam, que por aquella noite se acolhesse á fortaleza de Crasto Nunho, que estava por elle, e assi o fez.

O Principe aquelle dia e hora não menos avisado que bem afortunado capitão, como se viu com sua gente em segura e perfeita victoria, por se lhe não seguir do longo encalço algum perigoso revés, logo a mais que pôde recolheu para a sua bandeira. E porém [99] alguns seus e pessoas principaes esquentados e favorecidos do prospero vencimento que seguiam, por não terem no seguimento o resguardo que deviam, no cabo do encalço tornaram a ser mortos e presos, porque os castelhanos das batalhas destroçados que fugiam, refizeram-se com uma batalha de El-Rei D. Fernando, que acerca de uma legoa na reçaga estava, com que achando-se muito mais fizeram sobre os portuguezes volta, os quaes sendo já atalhados e cingidos da outra batalha grande, que desbaratara a El-Rei D. Affonso, não se poderam salvar.

E porém o Principe depois do desbarato que fez, alli onde acabou de recolher sua gente, esteve no campo em um corpo çarrado sem nunca mover atrás sua bandeira, a que muitos da batalha vencida d'El-Rei D. Affonso por seu bem e salvação se recolheram, com os quaes, e com outros que fóra do tempo necessario sobrevieram de Touro, refez uma grossa batalha, com que aquella noite ficou pacifico senhor do campo. No qual algum dos Reis, cuja era a querela e esperança de vencer, não aturou nem esteve; porque como disse tambem El-Rei D. Fernando não foi em pessoa propria na sua batalha, que venceu a El-Rei D. Affonso, mas como era pratico guerreiro, por vêr como as cousas de tamanha ventura sobcediam, apartou-se fóra em uma batalha, e quando logo vio vencidas e desbaratadas suas tamanhas e primeiras batalhas, pelas batalhas do Principe que eram menos em gente, crendo que assi o seriam as outras suas pelas d'El-Rei D. Affonso, foi aconselhado que se recolhesse como recolheo, e se foi a Çamora. Pelo qual sua gente achando-se no campo sem Rei, nem certo capitão que a regesse, com temor da batalha do Principe que viam refeita, não sendo bem certificados do destroço d'El-Rei D. Affonso, se refizeram [100] tambem junto com ella em uma outra batalha de que uns e outros não se viam tanto como ouviam; porque a este tempo a noite era já casi çarrada, e todo o mal que de uma parte e da outra se fazia era sómente de gritas e tocar de trombetas e atabales que nunca cessavam.

Alli D. Vasco Coutinho, que depois foi conde de Borba, prendeu D. Anrique, conde d'Alva de Liste, que vinha de contra Touro reconhecer a batalha do Principe, não sabendo pela noite cuja era.

E alli um escudeiro que se dizia Gonçallo Pires, criado de Gonçalo Vaz Pinto, trouxe ao Principe a bandeira real d'El-Rei D. Affonso, que por força e como homem de bom coração a tomou a um Souto-Mayor, castelhano, que a levava, e o prendeu sobre sua menagem, a qual não foi aquelle dia tomada das mãos de Duarte d'Almeida, alferes pequeno, até que lh'as primeiro não deceparam com outras infindas feridas, que no rosto e em todo o corpo houve, de que escapou. E a tanto mal se estende o máo sobcedimento das cousas, que este alferes, a que tanta honra e riqueza após isto se devia, viveu depois aleijado e pobre, e não com galardão dino de tal serviço. Nem ao escudeiro da bandeira carregou muito a balança de sua satisfação; porque com a venturosa fidalguia e armas honradas, que por isso lhe deram, houve sómente cinco mil reis de tença, com que lhe foi forçado tomar a fouce e a enxada, por mais seguras e proveitosas armas do sustentamento de sua vida, com que sem mais bem nem favor, e com muita pobreza viveu e acabou.

E estando assi no campo juntas estas batalhas e ambas contrairas, a dos castelhanos por estar sem Rei e duvidosos de sua ventura, e por terem o recolhimento de Çamora mui longe, começaram entre si [101] de ferver e se afiar mostrando claros sinaes de destroço se foram cometidos. E porém tomaram por conselho retraer-se e acolherem-se, sem cometer batalha nem peleja se lh'a não desse, e assi o fizeram, e sem algum recado e com muito desmando se acolheram a Çamora. Pelo qual achando-se o Principe só no campo, e sem receber em sua pessoa nem sua gente rota nem destroço, antes o tinha feito nos contrairos, houve-se por herdeiro e senhor da propria victoria.

E porque os Reis esperavam para mais claro conseguimento, sua determinação foi sobreser no campo, e não se partir d'elle tres dias. Mas o Arcebispo de Toledo que no mesmo campo era com elle, publicamente lhe disse que depois dos imigos partidos bem cumpria por os tres dias estar no campo tres horas continuas, a razão de hora por dia, por comparação que trouxe da Resurreição de nosso Senhor, que foi depois da morte tres dias não todos inteiros, mas porque tomou de tres dias tomando a parte por todo. E com este conselho que o Principe tomou do Arcebispo, como de pessoa tão principal, e no semelhante auto e cerimonias tão pratico e sabedor, depois d'estar no campo as tres horas e mais, sem parecer n'elle gente contraira, elle com repoiso e regrada ordenança abalou contra Touro. E ao entrar da ponte houve muita pressa; porque até sua chegada a entrada se çarrou a todos, e por sua ordenança entraram na cidade todos mui tristes e desconfortados, uns pelos filhos, parentes e amigos que não viam, nem sabiam se na batalha foram mortos ou feridos e presos, e todos pela dorosa privação d'El-Rei D. Affonso, que ali não viam, nem por então saberem d'elle novas.

O Principe pela incertidão de seu padre, crendo [102] pois alli não parecia, que seria morto ou preso, foi sobre todos mais triste e anojado, e posto aquella noite em grande pensamento, e não menos o foi El-Rei onde estava, duvidando da vida e salvação do filho, de que a mór parte da desaventura não falleceu á Rainha que estava no castello, até o outro dia que o pae foi certificado da saude e prospera victoria do filho, e o filho da salvação e saude do pae acolhido em Crasto Nunho. Na qual fortaleza indo El-Rei tão só e desacorrido, o alcaide d'ella Pero de Mendanha, por nação fidalgo castelhano, e no amor e lealdade bom e verdadeiro português, o recolheu e lhe obedeceo com muita lealdade e firmeza, e em caso tão triste e tão averso para El-Rei, elle e sua mulher o agasalharam honradamente e confortaram com muito despejo, dando-lhe em suas fortunas por emxemplos d'outros mui grandes esperanças, até o outro dia, que com muita gente que o Principe mandou de Touro El-Rei tornou a elle seguramente.


CAPITULO CXCII


De como o Principe se tornou a Portugal, e do que El-Rei D. Affonso fez por então em Castella



Onde sobre conselhos que ácerca d'estes feitos El-Rei e o Principe tiveram, foi acordado que o Arcebispo de Toledo se fosse como foi a Tallavera e a suas terras, e com elle por sua segurança D. Garcia, Bispo d'Evora, o que foi cousa mui dificil e de assás perigos, pelas muitas terras de contrairos porque com tão pouca gente haviam de passar.

E como o Arcebispo ficou em salvo, o Bispo [103] d'Evora com grande risco se veio a Portugal á frontaria de riba de Odiana, que lhe foi encomendada. E assi acordou que o Principe se tornasse a Portugal, o qual como era Principe bom e piedoso, depois de prover e remedear com mercês e visitações aos que de sua batalha foram presos e feridos, partio na semana maior de Touro, e veio dormir a Crasto Novo, fortaleza que estava por El-Rei seu padre, e ao outro dia passou a gente o rio em uma barca, e os cavallos e bestas a nado, por um porto que se diz Rico Váo, e de hi foi ter a Pascoa a Miranda do Doiro, e com elle o conde de Penella D. Affonso de Vasconcellos, e assi pouca gente; porque os mais grandes e senhores com todolos mais ficaram em Touro com El-Rei.

E ficando El-Rei D. Affonso em Touro, El-Rei D. Fernando veio logo cercar mui poderosamente Cantalapedra, dentro da qual muitos fidalgos e cavalleiros da côrte d'El-Rei D. Affonso, como desejosos de honra se lançaram.

Foi o cerco em todo bem apertado, em que era por capitão Bandarra, e depois á partida d'El-Rei D. Affonso para Portugal deixou Alonso Perez de Biveiro, casado com D. Mecia de Menezes, portugueza, e de Touro durando o cerco, foi El-Rei em pessoa lançar uma grossa cilada aos cercadores, e soltou corredores que foram dar no arraial, que apoz elles se soltou com tanto desmando, que se o duque de Bragança com outros ante tempo se não descobriram cairam os contrairos na cillada, e se fizera uma cousa muita assinada e de muita honra e serviço para El-Rei.

E n'este tempo sendo El-Rei D. Affonso certificado de um dia que a Rainha D. Izabel, de Madrigal onde estava se havia de ir a Medina, sahio de Touro aforrado com sós mil lanças sem carriagens, e foi secretamente dormir a Crasto Nunho, e de hi ao outro dia por encubertas [104] que levou, se foi escondido lançar junto do caminho por onde a Rainha havia de passar, cuja gente sahindo já fóra de Madrigal á vista das batalhas d'El-Rei, essa que era fóra com pressa se tornou a recolher á villa, e outra alguma de dentro não sahio mais, por onde pareceu claro, que fôra aviso secreto que a Rainha d'alguma pessoa do arrayal d'El-Rei D. Affonso recebera, e com isto desaviado se tornou El-Rei a Touro, não esperando já nenhum bom effeito de sua empresa.


CAPITULO CXCIII


De como se ordenou a ida d'El-Rei em França, e se veio a Portugal com a Rainha D. Joana



E n'este tempo porque El-Rei sentia já bem que seu poder nem ajuda dos grandes de Castella, não lhe davam para sua demanda tão firme esperança como cumpria, forçado de um vivo desejo de sua honra, enviou por seus messegeiros requerer ajuda a El-Rei de França, que com El Rei D. Fernando como só Rei d'Aragão então não estava d'accordo, e tinha por meio de D. Alvaro d'Atayde feitas suas lianças com El-Rei D. Affonso, como só e verdadeiro Rei de Castella. E a certidão d'isto trouxe o dito D. Alvaro a El-Rei, estando em Touro. Pelo qual vencido principalmente de seu apetite, sem muita certidão do poder tão estranho e tão duvidoso como era o de França, desconfiado em todo do seu, determinou vir-se a Portugal e de hi passar logo em França, crendo que o remedio e ajuda para seu recurso, que tanto desejava, com sua ida e em sua pessoa se faria [105] mais facil, e ainda se lhe daria maior. E que os inconvenientes que por ventura El-Rei de França pela guerra do duque de Brogonha poderia para isso ter, elle na confiança de seu mui chegado sangue os temperaria, com paz e assesego que entre ambos procuraria.

E como El Rei o determinou, assi o cumprio, e deixou nas outras fortalezas gente e capitães de recado, e em Touro gente de guarnição, e com ella por capitão o conde de Marialva D. Francisco Coutinho; porque a este tempo João d'Ulhoa a quem pertencia era fallecido, e os filhos que d'elle ficaram eram muito moços para tal encargo, a El-Rei casou o conde com D. Maria d'Ulhoa sua filha, a que deu em casamento a villa de Castel-Rodrigo, por morte de Vasco Fernandes de Gouveia que a tinha; porque sem filho barão ligitimo tambem falleceu em Castella estando em Touro.

E depois d'El-Rei prover as cousas de Castella como melhor pôde, se partiu com a Rainha na entrada do mez de Junho, e seguramente veio a Miranda do Doiro onde teve a festa do Corpo de Deus, na qual com a cerimonia devida fez primeiro conde d'Abrantes Lopo d'Almeida, que era Vedor da Fazenda, e lh'o tinha bem merecido. E de Miranda se foi a Rainha á cidade da Guarda, e com ella o conde de Villa Real, que era fronteiro mór d'aquella comarca, e o Bispo de Vizeu D. João d'Abreu. E da Guarda se foi a Coimbra, onde o Principe se veio com ella ajuntar, e a acompanhou até á villa d'Abrantes, onde depois esteve muito tempo, como ao diante se dirá.

E El Rei se foi de Miranda á cidade do Porto, onde com elle se ajuntou logo o Principe seu filho, e a Senhora Infante D. Beatriz com todolos grandes e senhores principaes do reino. E d'alli foi enviado Pero [106] de Sousa notificar a El-Rei de França a ida d'El-Rei D. Affonso, que de todo hi foi determinada. E sendo já concordado que por mór brevidade da viagem fosse pelo mar do Ponente e saisse em Bretanha, mudou-se o acordo para o mar de Levante; porque pelo outro mar Occeano poderia d'El-Rei D. Fernando receber maior contradição, por rasão da frota de Galliza e Biscaya, com que seria mais poderoso.


CAPITULO CLXIV


De como El-Rei partio de Lisboa para França, e da maneira em que foi até se vêr com El-Rei de França



E com esta determinação se partiram, e ajuntaram todos a Lisboa, onde XVI navios para a embarcação d'El-Rei foram logo prestes, dos quaes se aparelhou uma urca para sua pessoa, em que embarcou no mez de Agosto com dois mil e dozentos homens, em que iam quatrocentas e oitenta pessoas a que em terra eram ordenadas encavalgaduras, álem d'outra gente de pé, e com vento de viagem arribou em Lagos, onde Cullam, famoso cossairo francês certificado já das amizades e lianças d'estes reinos com França, andando poderoso no mar, veio alli fazer reverença a El-Rei, que o recebeu com grande honra e mui graciosamente, e além do assinado serviço que o dito Cullam lhe tinha já feito, em ser em sua ajuda no descerco de Ceuta, quando então dos castelhanos e dos mouros, fôra juntamente cercada como se dirá, ainda ficou de [107] concerto andar d'armada em seu favor contra Castella, para que se ajuntou com Pedro de Tayde, fidalgo português, que com a náo grande que se dizia a Lopiana, e com outros navios, de mandado d'El-Rei andaram tambem d'armada. Os quaes todos logo de hi a poucos dias sendo El-Rei D. Affonso em França, ao Cabo de S. Vicente aferraram quatro carracas de Genoa, e sendo já por força entradas, em uma se acendeo fogo em um barril de polvora, em que deu um tiro de fogo, de que todas as náos e carracas que eram encadeadas arderam, com mortes e perda de muita gente, em que o dito Pedro de Tayde tambem morreu.

E de Lagos passou El-Rei logo a Ceuta, que poucos dias havia que sendo n'ella capitão Ruy Mendes Ribeiro, como nobre fidalgo e d'esforçado coração a livrara de duas grandes afrontas e perigos em que foi posta; porque juntamente foi cercado e combatido de castelhanos pela Almina, e dos mouros pela Aljazira, e de todos com sua honra e grande louvor o dito Ruy Mendes se livrou, com quanto o dito Ruy Mendez do cerco dos castelhanos era muito mais afrontado, sendo dos mouros comettido que com segurança sua para que lhe dariam seguras arrefens, lhes désse entrada por dentro de Ceuta para darem nos ditos castelhanos e os matarem e captivarem, e elle seria livre do cerco, elle dito Ruy Mendes, como esforçado cavalleiro e bom christão, por não minguar em sua fé e esforço o não consentio. O que El-Rei em pessoa lh'o agradeceo e estimou como era razão.

E de Ceuta partio El-Rei, e sendo no mar através de Colybre, que era de França, com proposito d'aportar em Marselha ou aguas mortas; porque o vento não terçou bem sahio todavia e desembarcou em Colybre, d'onde despedio os navios em que fôra de Portugal, [108] e ali estava um capitão d'El-Rei de França, de que El-Rei foi logo bem recebido, e depois provido de bestas e cousas que cumpriam para ir, como foi por terra a Perpinham. Onde El-Rei foi com grande honra e estado recebido, e elle e todolos seus bem aposentados de graça, e por reverença e acatamento de sua pessoa real, o capitão e governadores da villa mandaram soltar e abrir os carceres a todolos presos que na cidade havia. E assi se fez depois nos outros lugares de França por que El-Rei passou.

De Perpinham enviou El-Rei D. Francisco d'Almeida a El-Rei de França notificar-lhe sua chegada, e assi de sua ida logo a elle, para que hi tambem se proveo para El-Rei e para os de sua companhia de bestas para encavalgaduras de suas pessoas, e carretas para fardagem, com que seguio seu caminho á côrte d'El-Rei de França por Narbona e Mompiler e Befers e Nimis, todas grandes cidades e villas de França em Languidoque.

E na cidade de Nimis deixou El-Rei a estrada romam, que vae a Avinhão, e tomou outra da ponte de Santisprito, caminho da cidade de Lião. Na qual por razão de corrução d'ares morbosos e pestenciaes de que estava perigosa não entrou, e passou com sua gente adiante. E ante que a ella chegasse, no caminho lhe veio fazer reverença o duque de Borbom, acompanhado de grandes homens. E assi foi festejado e agasalhado em gram perfeição em casa de Monseor de Sam Valher, que fôra casado com uma filha bastarda d'El-Rei de França.

E passando El-Rei D. Affonso por Lião, e chegado a um lugar que dizem Ruana, recebeo o primeiro recado d'El-Rei de França, fazendo-lhe saber que com sua boa ida era mui alegre. E assi chegou á nobre cidade de Burges em Berrí, que é na doce França, onde [109] repousou alguns dias, nos quaes de mandado d'El-Rei de França vieram a El-Rei D. Affonso para lhe fazer companhia um senhor e um Bispo de Una, com que para prazer foi vêr algumas cousas, em especial Moris Sagevia, fortaleza que o duque de Berrí fez no canto de duas ribeiras, a mais gentil que ha em toda França.

E ao outro dia foi á villa, que na historia antiga dizem se chamava Ageosa Guarda, onde agora está uma grande e devota Abadia de S. Bento, cujo Abade mostrou a El-Rei um mui rico e antigo livro da Historia de Lançarote e Tristão, por ventura mais verdadeira do que cá se magina.


CAPITULO CXCV


Da primeira vez que El-Rei D. Affonso se vio com El-Rei de França em Tors em Toraina



El-Rei de França era na cidade de Tors em Toraina, onde quiz que El-Rei D. Affonso o visse e fosse bem aposentado. E depois de ter certo seu aposentamento, El-Rei de França com uma fingida romaria, só se partio de seu aposentamento que é junto da cidade, e leixou n'ella toda sua côrte com o seu Minham Monseor d'Argentam, para elle com os Regedores da cidade fazerem como fizeram a El-Rei um mui solemne recebimento, entregando-lhe ás portas com palavras de grande veneração e muito acatamento as chaves d'ella.

E El-Rei de França passados cinco dias veiu-se ao dito seu aposentamento, que dizem Plesirdubues, e d'ali como de caminho determinou vir vêr El-Rei D. [110] Affonso á sua pousada. O qual sabendo já isto, com os senhores de seu conselho praticou a maneira de cortesia que em seu recebimento teria. E accordou-se em todas razões, e principalmente consirado o tempo e necessidade d'elle, que fosse a maior que guardado o seu estado se podesse fazer, e fosse a que lhe ensinasse a hora e tempo em que se vissem ; porque entre os Reis não se podia dar certa fórma de palavras nem cerimonias, que entre si dissessem e fizessem em semelhantes autos.

E avisado El Rei D. Affonso do dia em que El-Rei de França o quereria ir vêr, vistio-se em vestiduras onestas e reaes com proposito de a pé sahir e o tomar na rua, ou ao menos nas escadas dos paços, mas El-Rei de França de reavisado, pelo n'isso impedir mandou a El-Rei diante dois seus parentes grandes senhores e mui gentis homens, os quaes em El-Rei abalando para sair, cortezmente o detiveram, dizendo que repousasse; porque El-Rei seu Senhor não viria tão asinha, e sendo El-Rei avisado que El-Rei de França era já na rua, em cometendo para sair, tambem o detiveram. E finalmente em querendo El-Rei forçar seus detimentos, elles com muito acatamento lhe pediram, que d'onde estava em sua camara se não movesse; porque a elles não cumpria elle o fazer d'outra maneira.

E El-Rei porque entendeu que seria ordenança praticada, folgou de lhes comprazer, e porém como elles entenderam que El-Rei de França era entrado na salla, deram logar que El-Rei D. Affonso saisse, e ambos os reis se ajuntaram no meio da salla.

E El-Rei de França vinha com um só barrete na cabeça, tendo já d'ella tirado um chapeo e duas grandes carapuças, e trazia solto um saio curto de máo pano, e cinta uma espada d'armas muito comprida, [111] com a guarnição de ferro limada, e umas botas calçadas, e nos pés as esporas do mesmo jaez da espada, e ao pescoço uma beca de chamalote amarello, forrada de cordeiras brancas muito grosseiras, e suas calças brancas entretalhadas de muitas côres. E ambos os Reis com os barretes nas mãos se abraçaram inclinados os giolos mui baixos. E tendo El-Rei de França assi abraçado El-Rei, com os olhos no Ceo disse que dava muitas graças a Nossa Senhora e a Monseor Sam Martim, porque a um tão prove homem como elle era fizeram tanta mercê. Que a seu reino e casa o viesse vêr e visitar um tamanho Rei, que elle sempre desejara tanto de vêr e ter por irmão e amigo, e que porém elle não cresse que era vindo em reino estranho, mas no proprio seu; porque assi se faria n'elle todo seu prazer e serviço, como nos de Portugal.

E com isto acabado se recolheram á camara, á entrada da qual sobre quem se cobriria e entraria primeiro houve entre ambos grandes e louvados debates. E emfim El-Rei D. Affonso se deu por vencido, dizendo que havia por melhor ser-lhe bem mandado, que cortês.


CAPITULO CXCVI


Do que El-Rei de França e El-Rei D. Affonso entre si acordaram para execução de sua ida



E como entraram, depois de El-Rei de França perguntar a El-Rei por sua disposição, e tocar em muitas cousas de prazer, em conclusão disse, que por quanto as cousas da guerra sobre que [112] era seu principal motivo requeriam muita pressa e não padeciam dillação, que logo ambos com o conde de Penamacôr seu camareiro-mór se apartassem, como apartaram todos tres.

E entre as cousas sustanciaes em que falaram e em que tomaram conclusão, foi ser necessario El-Rei D. Affonso ir em pessoa ao duque de Brogonha pedir-lhe gente e ajuda contra Castella, e que em caso que pelas differenças em que então andava com o duque de Loreina lh'a não podesse dar, ao menos tomaria d'elle duque de Brogonha tal segurança para elle Rei de França, sem receio de sua guerra mais livre e poderosamente o poder ajudar. E para o fazerem todos em sua ajuda com menos cargo, a todos cumpria justo titulo, que era dispensação Apostollica para El-Rei D. Affonso poder casar com a Rainha D. Joana sua sobrinha, pois dos reinos que a ella pertenciam, como seu marido se intitulara. E que logo alli se apartassem quatro pessoas de cada parte, para em breve consultarem e praticarem sobre a gente, dinheiro e cousas que para sua empresa cumpriam, e porem tudo em boa ordem. E disse mais que por quanto havia por certo que os castelhanos ás vezes folgavam vender fortalezas, que elle sempre houvera por melhor e mais barato compra-las por dinheiro, que por guerra, e que o dinheiro e sua pessoa com toda a gente de seu reino, elle lh'a offerecia para isso e para todo o mais que a sua honra e estado cumprisse.

E depois d'El-Rei D. Affonso lh'o remercear tanto quando tamanha esperança para suas necessidades requeria, se sairam já de noite, e do meio da salla onde se primeiro viram já com tochas se despedio d'elle El-Rei de França. O qual enviou dizer depois a El-Rei D. Affonso, que para elle convidar alguma gentil dama, como era usança e cortezia do seu reino, [113] lhe pedia que quizesse d'elle tomar em tanto cincoenta mil escudos d'ouro. Mas El-Rei D. Affonso com palavras publicas de singular agardecimento, e com respeitos secretos que a seu estado real cumpriam se enviou por então escusar.

Aqui fez El-Rei de França conde d'Abranches D. Fernando d'Almada, filho do outro conde Alvaro Vaz d'Almada, que morreu na batalha com o Infante D. Pedro, como atraz fica.


CAPITULO CXCVII


De como foram a Roma embaixadores d'El-Rei de França e d'El-Rei D. Affonso requerer a despensação para poder casar com a Rainha D. Joana sua sobrinha



E para cumprimento das conclusões em que ficaram, ordenou-se logo embaixada ao Papa sobre o requerimento da despensação, em que d'El-Rei D. Affonso foram embaixadores o conde de Penamacôr, e o doutor João Teixeira, que depois foi Chanceller Mór, e Diogo de Saldanha, homem prudente e de grande autoridade, que seguiu a parte da Rainha D. Joana, e d'El-Rei de França foram o monseor de Sam Valher, e um grande letrado governador do parlamento de Granobra, cabeça do Delfinado.

E juntos estes embaixadores acompanhados de muita e nobre gente, fizeram seu caminho a Roma por terra, onde como pessoas que representavam tamanhos dois Reis como E juntos estes embaixadores acompanhados de muita e nobre gente, fizeram seu caminho a Roma por terra, onde como pessoas que representavam tamanhos dois Reis como era o de França e o de Castella e Portugal, foram logo com grande honra recebidos.

[114] E El-Rei D. Affonso aparelhou sua ida ao duque de Borgonha, que era em campo sobre a cidade de Namsy em baixa Allemanha, contra o duque de Lorreina com que tinha guerra. E ante de sua partida El-Rei de França lhe disse, que por a pouca seguridade que tinha do duque de Borgonha, por ser muito orgulhoso, duvidava que tomando a cidade de Namsy sobre que estava, e destruindo o duque de Lorreina, por seguir novidades quereria entrar por França, e que com receios d'isto pelos segurar tinha sua gente na frontaria, que daria causa elle lhe não poder dar tanta ajuda, como sem isso faria. Porém que se por seu meio d'El-Rei D. Affonso elles ambos ficassem verdadeiros amigos, e se liassem por casamentos dos filhos, como o duque por todalas razões devia querer, elle em sua ajuda poeria a corôa de França com todo seu poder, e que El-Rei D. Affonso devia requerer o duque que fosse com elle em pessoa; porque era bom capitão, e tinha muita gente e singular artilharia, e que sendo El-Rei D. Affonso d'estas amizades meio segurador, cada um d'elles teria receio de as per si quebrar, pelo não ter por contrairo, com as quaes muito cedo se faria pacifico Rei de Castella.


CAPITULO CXCVIII


De como El-Rei D. Affonso se foi vêr com o duque de Borgonha, e como logo se seguio a morte do dito duque



N'esta confiança que El-Rei D. Affonso tomou de tudo assi acabar, partiu no Novembro mui alegre, e com muita aspereza de neves e frios incomportaveis chegou a Camansam e Almansa, [115] lugares mais acerca do arraial do duque, d'onde El-Rei por terra regellada e toda cuberta de neve se foi vêr com o duque, e viram-se e abraçaram-se ambos a pé sobre o meio de um grande rio todo tão regellado, que por elle seguramente passavam bestas e carretas como por uma forte ponte, e d'alli se tornaram ao arrayal do duque, que hi perto estava, onde o duque sobre as cousas com que logo soube que El-Rei a elle ia, lhe disse que elle Rei de Portugal era entrado com um homem, em que não havia virtude nem verdade, dizendo-o por El-Rei de França, e que para o crêr não quizesse logo outra prova, se não que tendo enviado a elle que no mundo era tal e tão excellente Rei, e com requerimentos e mostranças de tanta paz, amor, e liança, logo após elle mandara muita gente d'armas em ajuda do duque de Lorreina seu inimigo e para contra elle. Porém que elle tinha ao mesmo Rei de França em tão pouca estima, que com um só page, que mostrou, ousaria dar-lhe batalha e esperar victoria. Mas pois que elle Rei D. Affonso por assi lhe cumprir queria sua concordia, que por lhe comprazer era d'ella contente, e lhe prometia leal e verdadeiramente, não sómente de estar em toda paz e amizade que se entre elles podesse, mas que elle faria cumprir a El-Rei de França todo o que em sua demanda lhe tinha prometido e prometesse.

E com esta conclusão finalmente se partiram, para nesta sustancia do lugar a que tornavam concordarem e firmarem suas capitullações.

E d'hi a poucos dias praticando El-Rei D. Affonso como isto se bem faria, veio sobre o cerco do duque de Borgonha, e contra elle a mesma gente d'armas d'El-Rei de França com outra muita do duque de Lorreina. E o duque com quanto tinha muito menos gente e era de fome e de frios mui trabalhada, não [116] aguardou ser em seu arrayal combatido, mas sahio fóra a esperal-os, e no campo lhes deu a batalha, em que foi desbaratado e vencido com mortes e grande perda de sua gente, e querendo salvar-se por uma ponte já um pedaço da peleja, achou contrairos que a guardavam. Dos quaes pelejando sem ser então conhecido, a um domingo, bespora dos Reis Magos do anno de mil e quatrocentos e setenta e sete, foi morto, e depois se conheceo no campo por os sinaes de seu corpo que um seu fisico d'elle deu, e tambem por uma cellada rica que um seu page trazia, junto da qual pareceu que jazia, como jazia o corpo do dito duque. Cuja morte que logo a El-Rei D. Affonso foi notificada, pôs a elle e a todolos portugueses em publico nojo e muita tristeza, com que deu suspeita aos franceses de o haverem por contrairo, e esteve em condição para d'elles receber por isso mais dano e perigo, que bom trato nem serviço.

E na morte e perda do duque de Borgonha acabou El-Rei D. Affonso de verdadeira e sustancialmente perder toda esperança de seu desejo e proposito; porque em sua vida do duque estava toda a obrigação para El-Rei de França ajudar a El-Rei. E em sua morte foi o contrairo; porque como por ella El-Rei de França se vio livre e desocupado dos receios que do duque tinha, logo sem medo nem vergonha do que tinha prometido, desamparou o negocio de Castella, e entendeo do seu proprio, que foi haver e cobrar muitas terras da alta Borgonha e Picardia, que o duque lhe tinha tomadas, e por seu fallecimento ficaram sem resistencia. E porém El-Rei de França mandou logo recado a El-Rei D. Affonso, pedindo-lhe com palavras de grande esperança, que em tanto se fosse, como logo foi, aposentar-se em Paris, onde esteve até o Maio, que El-Rei de França andou [117] sempre em sua guerra, fazendo e acabando o que lhe cumpria.


CAPITULO CXCIX


Da resposta que os embaixadores houveram em Roma ácerca da despensação que requereram



Os embaixadores dos Reis que eram em Roma, com muita instancia e efficacia requereram ao Papa Sixto quarto a despensação sobre que principalmente foram enviados, em que por parte de El-Rei D. Fernando de Napoles, por ser casado com uma irmã d'El-Rei D. Fernando de Castella, e por outros senhores que favoreciam sua parcialidade, por causas de eminentes e oferecidos danos que alegaram, houve para a despensação se não conceder grande e total contrariedade. Porque o Papa por ventura aconselhado n'isso catholicamente, consirando como El-Rei D. Fernando com a Rainha D. Izabel sua mulher eram pacificos Reis de Castella, e El-Rei D. Affonso era n'elles em forças e poder mui desigual, houve por grande mal e perjuizo da christandade conceder a dita despensação, em caso que parecesse razão por ser direito conceder-se, por não dar com ella causa e titulo de uns e outros se guerrearem com mortes de christãos, e guerras continuas que se não escusavam, o que o Papa devia evitar especialmente; que ajuda d'El-Rei de França para El-Rei D. Affonso sempre em Roma se houve por mui duvidosa.

E estando n'estas duvidas e debates chegou a Roma nova da morte do duque de Borgonha, com que o Papa fazendo por ella o poder d'El-Rei de França [118] mui mais livre e despejado para sem contradição se quizesse poder dar uma grande ajuda, houve o direito e justiça d'El-Rei D. Affonso para a sobcessão de Castella por de mór efficacia, com fundamento do qual o Papa tomou um meio, que mais verdadeiramente foi clara denegação, o qual foi, que por quanto pelas razões alegadas, a El-Rei D. Affonso por si, sem França, a dita despensação não se devia conceder, e que com a inteira ajuda d'El-Rei de França era razão que se desse, que por tanto a elle mesmo Rei de França se devia de dar tomando-a elle com seu cargo.


CAPITULO CC


Da conclusão que El-Rei D. Affonso tomou com El-Rei de França, quando com elle se vio a segunda vez



Com esta resposta se vieram os embaixadores, que acharam El-Rei D. Affonso já em Paris. D'onde enviou logo o conde de Penamacôr a El-Rei de França, que era na cidade de Raz dar-lhe conta da embaixada. O qual volveo logo, com determinação que os Reis ambos no mesmo Raz logo se vissem, para onde El-Rei D. Affonso logo partio, e El-Rei de França a cavallo e vestido casi na maneira da primeira vista o veio receber, e foi com elle a seu aposentamento, que foi em uma mui grande e honrada Abadia de Conegos Regrantes, em que El-Rei e toda sua gente se alojou.

Alli esteve El-Rei D. Affonso alguns dias, esperando a cautelosa e inutil determinação, ou mais certo desesperação d'El-Rei de França, que lh'a deu com [119] certos apontamentos, que para discretos era clara escusa do que se pedia, com que El-Rei D. Affonso se despedio para Portugal. E tão mal despachado como a desaventura do tempo ordenou; porque assi como vivendo o duque de Borgonha, El-Rei de França por ganhar sua paz, ajudara de necessidade a El-Rei D. Affonso, assi por sua morte achando muita da sua terra desocupada para a poder cobrar, não curou d'isso, nem foi muito de culpar El-Rei de França por maiores promessas que fizera; porque para dar gente e dinheiro a Rei estranho, com que para isso ganhasse reino de empresa tão duvidosa, e leixar perder e não cobrar sua propria terra, o direito e rasão que o a isso obrigasse seria escuro e máo d'achar.


CAPITULO CCI


Como o Principe cercou a villa d'Alegrete e a tomou, e d'outras cousas que no reino se seguiram andando El-Rei D. Affonso em França



E tornando ás cousas do reino de Portugal, tanto que El-Rei D. Affonso partiu de Lisboa para França, o Principe D. João seu filho na entrada de Janeiro se foi logo entre Tejo e Odiana, d'onde mandou continuar a guerra contra Castella, em que se faziam grandes e danosas entradas. E porque a villa d'Alegrete estando o Principe em Touro foi manhosamente tomada por D. Affonso de Monroy, Mestre que se disse d'Alcantara, que a esse tempo seguia o partido d'El-Rei D. Fernando, o Principe em que havia reaes bondades e virtudes, e o esforço do coração não falecia, no mez de Fevereiro de mil quatrocentos [120] setenta e sete, lhe pôs tal cerco e a mandou combater assi rijamente, que por partido se rendeo, e lhe foi entregue com muita sua honra e louvor, e porém não sem dano e mortes dos cercadores e cercados.

E durando o dito cerco d'Alegrete foi tambem posto estreito cerco em Castella a Touro, e a Crasto Nunho, e a Cantallapedra, que ainda estavam por El-Rei D. Affonso. E o Principe determinando de lhes soccorrer, fez muita gente prestes que mandou com o almirante Lopo Vaz d'Azevedo, e com Fernão Martins Mascarenhas capitão dos ginetes, e da villa de Pinhel onde chegaram, se tornaram por serem certificados que o soccorro com que iam, pela muita maior força dos cercos postos, se não podia por elles dar sem seu manifesto perigo. E em fim os capitães cercados, Pero de Mendanha, Alcaide de Crasto Nunho e Affonso Peres de Biveiro, capitão de Cantallapedra como nobres fidalgos e leaes servidores, por partidos que lhe fizessem nunca se deram, nem leixaram de ter as fortallezas até que lhe foi mandado por El-Rei D. Affonso, andando em França, visto como os não podia soccorrer que o fizessem, pelo qual a salvamento de suas honras e pessoas entregaram as fortalezas. E com as bandeiras reaes de Portugal tendidas, por Castella se vieram a estes reinos; porque assim tomaram por partido.

E n'este anno de mil e quatrocentos e setenta e sete, houve o Principe de Pedro Pantoja, cavalleiro castelhano, as fortalezas de Zagalla e Pedra Bôa, que são do Mestrado d'Alcantara, junto com Albuquerque, em que pôs seus alcaides e capitães, e por ellas lhe deu em Portugal a villa de Santiago de Cacem, que é do Mestrado de Santiago. As quaes fortalezas com outras rendas n'este reino, depois deu o Principe [121] ao dito D. Affonso de Monroy, porque seguisse e servisse a El-Rei D. Affonso seu padre, como na guerra sempre serviu bem e fielmente até ás pazes. Outro si porque no anno em que El-Rei D. Affonso entrou em Castella a fortaleza de Noudal que é Mestrado d'Avis, por engano e astucia de guerra se tomou, e a este tempo era em poder de Martim de Sepulveda, fidalgo castelhano, o Principe por concerto o trouxe a seu serviço com promesssas que lhe fez. As quaes depois com elle cumpriu, a contentamento do dito Martim de Sepulveda segundo era obrigado. E sendo El-Rei D. Affonso em França, o Principe fez côrtes geraes em Mantemór-o-Novo, onde para estas necessidades da guerra lhe foi pelo reino outorgado dinheiro, para que lançaram pedidos.


CAPITULO CCII


De como El-Rei D. Affonso desapareceu em França, e o Principe seu filho por seu mandado se alevantou por Rei em Portugal


E volvendo a El-Rei D. Affonso que era em França, despedido elle de Ras como atraz fica, se foi com sua gente a Ruão, onde esperando pelo aviamento que se dava á sua embarcação, repousou muita parte do verão, e d'alli se foi pelo rio abaixo até a Aynafrol, que é porto de mar, onde a frota e cousas da armada para sua vinda se aparelhavam, e alli esteve o mez de Setembro, no qual tempo sentindo elle que a esperança para as cousas de Castella não lhe respondiam conforme a seu proposito, e que não fôra por fallecimento de seu esforço, cuidado [122] e diligencia, pois em Portugal e Castela, e em Roma, em França e Borgonha, tinha procurado todo o que para sua empresa pareceo conveniente e necessario, e todo lhe falecera, vendo já cerrados todolos outros caminhos de que esperasse conseguir desejado effeito, crendo que tantas contrariedades não podiam ser sem vontade de Deus, determinou entresi como desconfiado já de remedio leixar este mundo e seus debates, e sem ser conhecido ir-se a Jerusalem, onde propôs servir a Deus, e para o cometer e fazer sem dos seus ser sentido, custumou por alguns dias ir só em romaria ante manhã junto com Aynafrol, e assi tambem retraido escrevia de sua mão algumas cousas, que logo metia em um cofre de que trazia a chave, dando a entender que por se haver de meter no mar em tempo de inverno fazia ou reformava seu testamento.

E em fim um dia ante manhã, vinte e quatro dias de Setembro de mil e quatrocentos e setenta e sete, El-Rei cavalgou como sohia, e levou comsigo a cavallo Soeiro Vaz e Pedro Pessoa, ambos seus moços da camara, e a elle aceptos, e dois moços d'esporas. E mandou a Estevão Martins seu capellão, que o fosse aguardar á estrada de hi meia jornada, onde logo com elle se ajuntou. E d'hi fez tornar a Aynafrol um dos moços d'esporas a que deu a chave do cofre que leixava, com mandado que o abrissem, como abriram, em que leixava uma carta para El-Rei de França com remoques dissimulados reportados á sua desaventura, em que tambem lhe dava conta do fundamento que tivera para sua partida, que era servir a Deus; porque assi lhe fizera voto de o fazer depois da morte da Rainha sua mulher, sendo o Principe seu filho em idade para reger seus reinos como era, pedindo-lhe amparo, favor, e ajuda para os seus [123] que em seus reinos ficavam. E outra carta para o Principe seu filho, em que lhe dava uma triste conta da sua viagem, encomendando-lhe e mandando-lhe por sua benção que logo se alevantasse e intitulasse por Rei. E outra d'esta sustancia para todolos do reino, que como a proprio e verdadeiro Rei obedecessem ao Principe. E outra para os seus que alli leixara, que estivessem á obediencia e ordenança do conde de Farão, com que todos foram tão tristes, e fizeram tão dorosos prantos como a razão ensina, que em terras tão estranhas e em tanto desamparo, e a Rei tão amado devia ser.

E as cartas escriptas e ordenadas para Portugal, enviou logo ao Principe Antão de Faria, seu camareiro, que a esse tempo hi se acertou, e era lá ido com visitação e outras cousas entre o pae e o filho secretas, e por este apressado aviamento que ás cartas se deu, o Principe solenisou logo seu alevantamento em Santarem no alpendere de S. Francisco, a dez dias de Novembro de mil e quatrocentos e setenta e sete. O que não foi sem muitas lagrimas e grande tristeza sua e de quantos hi eram.

E ante que o moço d'esporas d'El-Rei chegasse com a chave, já os portugueses vendo sua desacostumada tardança eram por ella em desesperado pensamento. Nem o foi menos o monseur de Lebret, que com El-Rei para melhor ser aviado e servido sempre andava, acusando com irosas e graves reprensões a negligencia dos portugueses, por leixarem ir El-Rei assi só e de noite em terras alheias, nem elle se escusava de muita magoa por não dar d'elle melhor conta.

E porém por todolos caminhos e por toda a terra com gente de pé e de cavallo fez e mandou com muita trigança infindos avisos, dando voz que El-Rei de Portugal [124] que lhe fôra encomendado era fugido contra prazer e serviço d'El-Rei de França. Pelo qual todolos franceses ouvida esta fama, leixadas todas suas cousas seguiram ávante pelos caminhos de Roma, em que não podiam errar; porque de uma parte corria o rio de Ruão, que não podia passar, e da outra era o mar. Os quaes troteiros tanto que d'El-Rei acharam nova, logo de uns em outros correram e seguiram com tão apressurada diligencia, que a dois dias foram em continente com elle, que de noite estava já aposentado em uma villagem, e jazia já, onde na pousada e camara entrou com elle um gentil homem francês, e porque os portugueses negaram El-Rei, conveio a elle por ser fóra da duvida acorda-lo e reconhece-lo; porque El-Rei por dissimulação d'aquelle apartamento, por não ser por caminhos em alguma differença conhecido, não comia nem dormia apartado, mas com todos familiarmente, e tanto que El-Rei foi conhecido, o francês com muito acatamento lhe pedio perdão pelo espertar, dando a culpa aos seus pelo encubrirem, e lhe não dizerem a verdade. E leixando-o na cama se sahio, e da parte d'El-Rei de França fez logo ajuntar todo o lugar, por que mui sem rumor em toda a noite foi guardado e velado, d'onde ainda que quizera já não podera sahir. E logo n'aquella noite a gram pressa este gentil homem fez messegeiros, uns a El-Rei de França, que por acertamento não era de hi longe, e outros a Aynafrol aos portugueses e a Monseor de Lebret, detendo El-Rei na mesma casa em que o achára, e fazendo-o mui bem servir.

O conde de Penamacôr com tanta sua magoa, como foi a culpa d'este caso por ser a isso mais obrigado por ser seu camareiro mór, era já em caminho em busca d'El-Rei, com determinação de nunca sem elle tornar a Portugal, e pelo aviso que houve de ser já achado, [125] foi logo com elle, e porque o achou forte para sua tornada, avisou logo e enviou chamar o conde de Farão, e D. Alvaro seu irmão e outros senhores aceptos, que logo não com menos pressa que alegria o foram vêr, e d'elles e de uma carta consolatoria que hi veio d'El-Rei de França, se leixou vencer para tornar e desistir de seu proposito.


CAPITULO CCIII


De como El-Rei D. Affonso embarcou em França e se veio a Portugal, e se vio com o Principe seu filho



E para embarcar, por algum pejo que teve dos que o conheciam, não tornou a Aynafrol, mas por outro caminho em que por seu desporto todos os principaes juntamente comiam e folgavam, vieram a uma angra do mar que dizem a Oga, onde para a pessoa d'El-Rei estava já prestes uma carraca que mandara fretar a Antona, e alli vieram logo de Aynafrol as outras naus de França, para todos embarcarem como embarcaram, e fizeram logo vella, e em poucos dias foram ancorar através d'Antona á ilha d'Oyque, onde El-Rei houve rebate de novas de oitenta urcas d'allemães que vinham contra franceses. E porém por ventos contrairos não poderam as urcas entrar, e a El-Rei conveio sair da ilha não pela banda do Norte por onde entraram, mas pelas agulhas que dizem logar mui perigoso.

E d'alli no mez d'Outubro fez vella, e com um pouco de temporal que sobreveio uns navios em que vinham cavallos não poderam aguardar a conserva, [126] e vieram-se diante a Portugal, por que o Principe da vinda d'El-Rei seu padre foi logo avisado, sendo havia muito pouco alevantado já por Rei, como atrás disse.

Arribou El-Rei em Cascaes, onde logo foi certificado que o Principe seu filho era já obedecido e intitulado por Rei, e foi surgir a Oeiras, e ao outro dia sahio em terra, e no mesmo dia veio hi logo o Principe seu filho, que em o vendo com lagrimas de tanto prazer e alegria, como foram de paixão e tristeza as de Santarem, quando em sua vida e por sua obediencia se alevantou por Rei. E com muita reverença com os giolhos em terra lhe beijou as mãos, ás quaes com palavras de Principe tão excellente, e filho tão bom e tão obediente como elle era, logo renunciou e depôs o titulo de Rei, de que por cumprir seu mandado e por haver sua benção mais que por cobiça de reinar se intitulara.

Com este despejo e bondade do Principe ficou El-Rei e todolos de sua companhia muito descarregados e alegres, e El-Rei logo com razões e causas muito de louvor quizera obrigar o Principe para não desistir do nome de Rei e do hereditario cetro que já tinha, mas elle com outras de não menos honestidade que merecimento, sempre se escusou, e como quer que depois El-Rei lhe movesse e rogasse que todavia se chamasse e fosse Rei de Portugal, e que elle se contentaria ser Rei dos Algarves com a parte d'Africa, onde na guerra dos mouros folgaria servir a Deos e n'ella acabar, o Principe pelo amor e grande acatamento que lhe tinha nunca o quiz aceitar, e sempre o contrariou, de maneira que El-Rei D. Affonso não leixou o nome inteiro de seus reinos, nem o Principe em sua vida acrecentou o seu.

E d'alli d'Oeiras se veio El-Rei a Lisboa, e para o [127] vêr vieram logo a Princesa D. Lianor, e o duque e duquesa de Bragança, e assi todolos senhores do reino, onde estiveram depois de Janeiro de mil e quatrocentos e setenta e sete. E de Lisboa se foi El Rei a Montemor-o-Novo, onde esteve o verão, e no fim d'elle se foi a Evora durando ainda a guerra de Castella, que se continuava e fazia com muitas entradas e grandes cavalgadas.

E n'este tempo depois da vinda d'El-Rei D. Affonso de França elle enviou seus recados e messegeiros a Castella, para outra vez tornar entrar n'ella, e casar publica e perfeitamente com a Rainha D. Joana, para que já tinha boa disposição, com que muitos grandes de Castella se tornavam a offerecer. Mas o Principe por causas justas que o a isso moveram, amoestado e castigado dos enganos e pouca firmeza que n'elles se achou da primeira entrada, o estorvou da segunda, e assi do casamento que nunca consentio que por isso se fizesse.


CAPITULO CCIV


De como Lopo Vaz Torrão se alevantou com a villa de Moura por El-Rei de Castella, e do que se seguio



N'este anno de mil e quatrocentos e setenta e oito, Lopo Vaz de Castel-Branco, que por alcunha se dizia o Torrão, sendo alcaide mór da villa de Moura, sem causa alguma e por induzimentos alheios que cegaram e forçaram sua propria lealdade, se alevantou com a dita villa e fortaleza por El-Rei de Castella, e contra El-Rei D. Affonso que o criara, [128] e chamou-se conde d'ella. Mas logo arrependido d'isso, assi por sua propria inclinação como por ser amoestado de seus parentes, homens principaes e mui leaes que no reino havia, tornou a alevantar-se por Portugal, e desestio do titulo que individamente e por Rei e Senhor não proprio tomara, e chamou-se como d'antes se chamava, mas o Principe que d'este seu alevantamento primeiro foi muito sentido, não se segurando nem fiando já d'elle para o segundo se, o fizesse, e assi por elle não estar chão a seu serviço, teve o Principe maneira como João Palha e Mem Palha irmãos, e Diogo Gil, e Ruy Gil os Magros, d'Evora, tambem irmãos, e outros seus parentes manhosamente como fugidos e temorizados de justiça se acolhessem, como acolheram ao Castello de Moura com o dito Lopo Vaz, dos quaes em uma saida que fez a folgar, fiando-se d'elles o mataram no campo, a que o Principe em pessoa logo accodiu e toda a côrte após elle, e segurou a villa e a fortaleza, e a entregou á Infante D. Briatiz como titor que era do duque D. Diogo seu filho.


CAPITULO CCV


De como se seguiu a batalha de Merida, em que o Bispo d'Evora, capitão mór, foi vencido



A condessa de Medellym em Castella, D. Briatiz Pacheca, irmã do marquez de Vilhena, com suas fortalezas e outras alheias que tinha, esteve sempre a serviço d'El-Rei D. Affonso, e na entrada do anno de mil e quatrocentos e setenta e nove, sendo certa que o Mestre de Santiago de Castella D. Affonso [129] de Cardenas, e outros capitães d'El-Rei D. Fernando se dispunham para vir cercar suas fortalezas, enviou pedir ajuda e soccorro a El-Rei D. Affonso, que determinou dar-lh'o por seus capitães com quanto podesse, e para isso mandou por capitão mór D. Garcia de Menezes, Bispo d'Evora, e com elle por capitães D. João de Menezes seu irmão, e Diogo Lopes de Souza, e Affonso Telles, e outros que fizeram setecentos de cavallo, sem alguns de pé de peleja.

E sendo o Bispo entrado em Castella; porque o dito Mestre de Santiago era já de sua ida bem avisado, sabendo a pouca gente que levava, determinou com sua gente que era muita mais e mais folgada, recebe-lo com batalha no caminho junto com Merida; porque com o dito Mestre eram outros capitães d'El-Rei e da Rainha de Castella, com mil e tresentos de cavallo, e tres mil homens de pé para peleja, e podendo o Bispo escusar a peleja, e sendo razão que a escusara, porém porque era de nobre sangue e de esforçado coração, filho, neto, e irmão de singulares capitães herdeiros já de louvadas victorias, houve por abatimento retraer-se sem peleja. E determinou dar-lhe como deu a batalha, em que pela desegual comparação de uma gente á outra, com quanto por ambas as partes foi bem e mui ardidamente pelejada, finalmente o Bispo foi vencido, ferido, derribado e preso, e com elle a maior parte de sua nobre gente foram feridos e alguns presos.

E o Bispo posto já em poder de um escudeiro que o tinha preso, com esperança de grande galardão que lhe prometeo, e depois deu, se concertou com elle que o salvasse, e levasse como levou a Merida, onde e assi em Medellym a que alguma gente que do destroço fugindo se acolheo, se tornou a reformar, e sem esperar já soccorro se manteve muito tempo cercado, soffrendo [130] grandes perigos dos contrairos, mas muito maiores de grandes doenças em que cahiam, fazendo sempre em armas coisas assinadas de sua honra e louvor. E assi com nome d'esforçado se manteve todo o verão, até o concerto das pazes que se logo fez, que foi n'esta maneira.


CAPITULO CCVI


De como se ordenaram e trataram as pazes entre Portugal e Castella, e por quaes pessoas, e com que condições e cousas sustancialmente



N'este tempo depois do destroço do Bispo e ante d'elle havia já n'este reino de gente, armas, e cavallos, e principalmente de dinheiro, que é o sustancial nervo da guerra, manifestas necessidades, e estas mesmas com outros maiores receios tambem não falleciam em Castella. Porque como os grandes e senhores principaes d'aquelle reino, por sua natural condição sempre sejam amigos de novidades e divisões, com quanto publicamente desserviam El-Rei D. Affonso; porém por fazerem seus partidos mais esforçados, nunca leixavam de trazer com elle praticas e cometimentos secretos, para outra vez o retornarem com a Rainha D. Joana a Castella. O que não ficava por saber a El-Rei D. Fernando, e á Rainha D. Isabel sua mulher, que com toda sua prosperidade eram por isso postos em terror e cuidado. Pelo qual por occultos meios de pessoas virtuosas e de santa tenção, que entre os Reis e o reino cometeram as pazes, houve de uma parte e da outra taes intelligencias, e para isso tão chegadas a conclusão, que a Rainha D. Isabel por concerto se veio á villa d'Alcantara [131] em Castella, onde a Infante D. Briatiz de Portugal sua tia, por prazer d'El-Rei D. Affonso e do Principe D. João, se foi vêr com ella, e alli ambas tomaram assento de as pazes todavia se fazerem e concordarem n'este reino de Portugal; porque assi se houve por mais favor e mór honra d'El-Rei e de seus reinos, aos quaes a Infante com esta determinada conclusão se tornou, para execução da qual o Principe a que o negocio e cargo dos tratos e assentos das ditas pazes, por prazer d'El-Rei seu padre foi em todo cometido, por concerto já praticado se foi á villa das Alcaçovas d'entre Tejo e Odiana, onde veio por só embaixador e procurador d'El-Rei e da Rainha de Castella o doutor Rodrigo Maldonado, que vulgarmente se dizia de Tallaveira, que juntamente com D. João da Silveira, barão d'Alvito, que foi só procurador d'El-Rei e do Principe de Portugal, praticaram e concordaram as capitulações das pazes, que foram perpetuas sem alguma limitação de tempo, em que sustancialmente se tomaram estas conclusões principaes, que se concordaram e capitularam na dita villa das Alcaçovas, a quatro dias de Setembro de mil e quatrocentos e setenta e nove.

Primeiramente que El-Rei D. Affonso leixasse o titulo dos reinos de Castella e Lião. E assi mesmo El-Rei D. Fernando e a Rainha D. Isabel leixasse o titulo de Portugal, de que sem algum fundamento de direito em seu ditado se intitulavam. E a Rainha D. Joana leixasse todolos titulos de Castella e de Lião e de Portugal, de que se intitulava, e de hi em diante não se chamasse Rainha, Princesa, nem Infante, salvo depois que fosse casada, se casasse com o Principe D. João de Castella, como podia ser e ao diante se dirá.

Outro si n'estas pazes encorporaram e reformaram [132] os capitulos das pazes antigas, feitos entre El-Rei D. João o primeiro d'estes reinos de Portugal com El-Rei D. João o segundo de Castella quando outra vez tiveram guerra. E além da aprovação das ditas pazes antigas, foi mais concordada e firmada outra nova adição e capitulação, que esta nova concordia especialmente requeria, em que sustancialmente foram declaradas e determinadas estas cousas.

Que as cidades, villas e castellos que de um reino a outro fossem tomadas, e assi os prisioneiros todos de qualquer sorte e condição que fossem, se restituissem e entregassem, e soltassem livremente, e que os Reis de Castella perdoassem como perdoaram em geral e especial a todos seus naturaes, que depois da morte d'El-Rei D. Anrique por qualquer maneira serviram e seguiram a El-Rei D. Affonso e ao Principe D. João seu filho até a publicação das pazes, e assim lhes restituissem em Castella todas suas villas, castellos, terras, lugares, e todalas rendas, officios, beneficios, e cousas para os terem e possuirem indistintamente, assi como os tinham e possuiam ao tempo que com os ditos Reis e Principe se ajuntaram.

E por alguns cavalleiros e pessoas particulares se fizeram algumas capitulações especiaes, as quaes por cautellozos e não proprios entendimentos que lhes os Reis de Castella davam, nunca depois perfeitamente se cumpriram, e assi os ditos Rei e Principe uns aos outros se remetteram, perdoaram, e quitaram todalas mortes, danos, malles, e roubos que em guerra ou tregoa de uma parte ou de outra por qualquer maneira se fizeram, e que assi se derribassem como derribaram as fortalezas que nos estremos dos reinos, de um reino e do outro novamente se fizeram.

Outrosi que o senhorio de Guiné, que é dos cabos [133] de Não e do Bojador até os Indios inclusivamente, com todos seus mares ajacentes, ilhas, costas descobertas e por descobrir com seus tratos, pescarias e resgates, e assi as ilhas da Madeira, e dos Açores, e das Flôres, e do Cabo Verde, e assi a conquista do reino de Fez ficasse insollido, e para sempre ao dito Rei e Principe de Portugal, e a todos seus herdeiros e sobcessores para sempre, e que as ilhas das Canarias logo nomeadas, com a conquista do reino de Grada ficassem outrosi insollido aos Reis de Castella, e a seus sobcessores para sempre.

A qual capitulação, adoção e reformação nova, com todas estas cousas de Guiné e conquitas mais declaradas, o Papa Sixto quarto a requerimento e suplicação do Principe D. João depois de ser Rei, confirmou e ratificou por sua Bulla, ad perpetuam rei memoriam, em que as ditas capitulação e cousas de verbo a verbo foram todas encorporadas, com penas e excomunhões e maldições, aos que em qualquer maneira para sempre as quebrantassem, além das outras conteudas nas Bullas das doações que os outros Papas pozeram, concederam e declararam, quando d'este senhorio primeiramente a requerimento do Infante D. Anrique fizeram doação a este Rei D. Affonso, e a todos seus herdeiros e sobcessores para sempre, como na morte do dito Infante D. Anrique brevemente atrás apontei.

Outrosi que para maior seguridade e firmeza das ditas pazes, o Infante D. Affonso filho primeiro do Principe D. João de Portugal, tanto que fosse em idade de sete annos casasse por palavras de futuro, e em idade de quatorze annos por palavras de presente, com a Infante D. Isabel, filha maior dos ditos Rei e Rainha de Castella, e além dos corregimentos de sua pessoa, casa e camara, houvesse em dote quarenta contos ou milhões de reaes, pagos em certo modo e [134] tempo, em que os vinte contos d'elle entravam em satisfação pelas despezas que El-Rei D. Affonso tinha feitas na guerra, os quaes em todo caso este reino de Portugal sempre havia d'haver, posto que os outros vinte contos por algum caso que sobreviesse houvessem de ser restituidos a Castella.

E que d'hi a certo tempo nos contratos conteudo a dita Senhora D. Joana, com todalas escripturas que tivesse, e se podessem haver ácerca do que tocava á sua subcessão de Castella, e assi os ditos Infantes fossem postos em terçaria na villa de Moura em poder da dita Infante D. Briatiz, na qual estivessem até serem perfeitamente casados. Porque outrosi foi acordado que o Principe D. João, filho dos ditos Rei e Rainha de Castella, tanto que fosse em idade de sete annos casasse por palavras de futuro com a dita Senhora D. Joana, e em idade de quatorze annos casasse com ella por palavras de presente, e então se chamaria Princesa, e haveria d'arras vinte mil florins d'Aragão, além das rendas com que bem podesse manter seu estado, e que sendo caso que o dito Principe aos ditos tempos com ella não se quizesse esposar e casar, que então ella fosse livre da terçaria, e lhe fossem entregues suas escripturas, e mais houvesse para si em Castella d'El-Rei e da Rainha cem mil dobras d'ouro de banda, pagas em dois annos, ou a cidade de Touro a penhor d'ellas, com suas rendas e jurdições sem descontar até lhe serem pagas, e podesse então despoer de si o que quizesse.

E porém que a dita Senhora D. Joana logo se pozesse em terçaria, em poder da Infante D. Briatiz com todalas ditas escripturas que fossem em seu favor, ou entrasse em religião em um de cinco moesteiros, ou em Santa Clara de Santarem, ou de Coimbra, ou no moesteiro de Christus d'Aveiro, ou no Salvador de Lisboa, [135] ou na Conceição de Beja, em cada um dos quaes recebesse o habito, e estivesse um anno que se dizia da aprovação. Acabado o qual de necessidade escolheria uma de duas cousas, ou fazer inteira profissão, e ser freira professa no habito da ordem que recebesse, ou ir-se pôr nas terçarias de Moura com os ditos infantes D. Affonso e D. Isabel, para n'ellas estarem em poder da Infante D. Briatiz até se cumprirem os tempos e cousas dos capitulos que para cada uma d'ellas eram concordados, para que a dita Infante em sua vida e por seu fallecimento a Senhora D. Fellipa sua irmã, ou D. Diogo duque de Vizeu, e o Senhor D. Manuel seus filhos com seus alcaides e capitães e cavalleiros fossem os sós e principaes mantedores e seguradores das ditas terçarias, e n'ellas haviam de poer as guardas e officiaes á sua vontade, sem os Reis nem Principe poderem a ellas ir durando o tempo d'ellas, e para o melhor poderem fazer, houveram dos ditos Rei e Principe autentica faculdade e licença para d'elles se desnaturarem. Por tal que sem cahirem em caso, lhes fizessem cumprir todo o que por bem dos ditos tratos e capitulações fossem obrigados, das quaes cousas todas se fizeram capitulações e escripturas juradas e firmadas pelos ditos Reis.


[136]

CAPITULO CCVII


Da publicação das pazes e das mais cousas que para cumprimento d'ellas se fizeram, principalmente ácerca da Excellente Senhora D. Joana



E no fim do mez de Setembro d'este anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil quatrocentos e setenta e nove, as ditas pazes se publicaram logo no dito lugar das Alcaçovas, e des hi por todolos reinos de Portugal e Castela, onde de hi em diante se guardaram e cumpriram inteiramente. E porém o titulo de Rainha e estado que a Senhora D. Joana tinha, não lhe foi logo tirado até os seis dias d'Outubro logo seguinte; porque então se cumpriam seis mezes que a dita Senhora D. Joana teve de liberdade, para sem quebrantamento d'estas pazes se poder sair dos reinos de Portugal, mas em tal caso não podia d'elles, nem d'El-Rei e do Principe por alguma maneira receber ajuda nem soccorro, nem menos ser por elles intitulada Rainha, Princesa nem Infante, e porque isto não sobcedeo á dita Senhora em Castella como á sua honra, estado e desejo cumpria, sendo forçado escolher um de dois meios que para ella eram estremos de mortal sentimento, ou poer-se em terçaria ou entrar em religião, ella escolheu por melhor entrar em religião. Pelo qual estando ella não com menos força alheia que tristeza sua propria, e com dorosas lamentações suas e de todolos seus, leixou o titulo de Rainha e tomou nome de D. Joana, e despio seu corpo dos brocados e sedas que trazia, e vestiram-na em habitos pardos de Santa Clara, tirando-lhe da cabeça a corôa real de Castella e Portugal de que era intitulada, e cortando-lhe d'ella [137] seus cabellos como a uma pobre donzella, e por maior seu agravo e magoa não lhe leixando os servidores de seu gosto e vontade, nem menos cousa que tivesse imagem d'estado. E o primeiro mosteiro em que assi entrou, foi Santa Clara da dita villa de Santarem.

E na execução d'estas cousas porque a necessidade d'outras muitas assi o requeria, o só e principal ministro era o Principe; porque El-Rei D. Affonso seu padre de muito anojado e envergonhado d'ellas, de todas se escusou, e as leixou inteiramente á disposição e ordenança do filho, a cuja vontade El-Rei n'aquelle tempo mostrou ser muito inclinado e sobjeito.

Mas se o Principe no cumprimento d'estas cousas excedeu o modo contra a Senhora D. Joana, porventura mais do que por razão, piedade, e temperança se lhe devia, e isto pela gloria e contentamento que tinha do casamento do Infante seu filho se não desfazer, que não era sem alguma esperança da sobcessão de Castella, a desaventurada fortuna como crú algoz do rigoroso e severo juizo Divino, pela culpa do Principe se a tinha, lhe deu logo a pena com o triste e mortal apartamento dos innocentes Principe e Princesa, depois de novamente casados, sobre que tanto fundamento de honra e segurança fazia. Porque o mesmo lugar de Santarem, que contra a Senhora D. Joana foi o talho d'esta primeira sua crueza, se tornou a ser o principio d'esta sua vingança; porque o Principe D. João depois de ser Rei á vista da mesma Excellente Senhora vio a supita e desastrada morte do Principe D. Affonso seu filho, e a quem á primeira pareceo, que sendo vivo os reinos de Portugal sem os de Castella lhe não abastariam, elle o vio logo morto, e de uma pouca de terra para sempre sobjeito e contente, [138] e a triste e innocente Princesa sua mulher ante de bem casada se vio logo ser viuva, privada do verdadeiro titulo que tinha, e trocados os brocados ricos, e ollandas delgadas que trazia, com pobre burel e grossa estopa em que foi logo vestida, nem ficaram por cortar seus cabellos dourados com accidental proposito de religião, sendo apartada das pessoas mais de sua conversação, e servida por servidores alheios, comendo no chão e em vasos de barro, privada em todo de todo estado, entrando n'estes reinos esposada cuberta d'ouro e de preciosa pedraria, em cima de ricas facas e trotões á vista de todos. E saindo logo d'elles viuva, cuberta de vaso e almafega, em cima d'azemolas, escondida de todos.

Mas vós lagrimas que na lembrança d'esta dôr aqui apontaes, soffrei-vos um pouco, cá para outro mais proprio lugar estaes reservadas.

Nem a culpa do solemne, mas simulado e cautelozo juramento que El-Rei e a Rainha de Castella fizeram sobre o casamento d'esta Senhora com o Principe seu filho, não ficou sem triste pena e mortal perda e sentimento seu, porque Deus em cujo desprezo pareceo que se fez, não padece engano por castigo, do qual vimos que tambem elles viram a não madura morte do Principe innocente moço seu filho, vivendo pouco mais tempo d'aquelle em que com esta Senhora prometeram e juraram de o casar; porque elle já então era casado com Madama Margarida, filha do Rei dos romãos, e a tinha já em seu poder, sem de nenhum d'estes Principes de que os Reis de Castella e de Portugal tanta esperança e fundamento faziam, ficar algum ligitimo herdeiro descendente que os subcedesse e herdasse, e foram seus herdeiros os transversaes mais chegados.


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CAPITULO CCVIII


Da grande pestelença que sobreveio a estes reinos, e como se fez a profissão á Excellente Senhora D. Joana



El-Rei D. Affonso e o Principe com toda a côrte se foram logo a Lisboa, d'onde no Janeiro do anno que vinha de mil e quatrocentos e oitenta se partiram, por causa da grande e mui crua pestenença que na cidade sobreveio, a qual em todo este reino durou bem dezasete annos, que se acabaram nos primeiros dias em que El-Rei D. Manuel nosso Senhor depois começou de reinar, que foi no tempo em que como catholico Principe de todo tirou e arrancou de seus reinos a velha lei de Moysés, e a errada seita de Mafamede, lançando fóra d'elles os judeus que não quizeram ser christãos, e assi os mouros, como infernaes ministros e discipulos d'ellas.

El-Rei D. Affonso se foi a Viana d'Alvito, e o Principe e Princesa a Beja, e a Excellente Senhora porque Santarem da mesma pestenença foi logo contaminado, com gente d'armas que a sempre guardou, foi levada ao mosteiro de Santa Clara d'Evora.

E porque o Principe no anno passado ante das pazes soube que certa armada era ida de Castella resgatar contra sua defesa á Mina, armou contra ella outra de que por uma vez foi capitão mór Jorge Corrêa, comendador do Pinheiro, e da outra Mem Palha, homens honrados e bons cavalleiros. Os quaes toparam na Mina os castelhanos, e assi os cometeram que muito a seu salvo lhes tomaram sua frota, com muito ouro e mercadorias, e trouxeram suas pessoas [140] presos e captivos a Lisboa, que por condição das pazes foram soltos, e o ouro que foi muita soma assi como vinha em joias e arrieis foi levado a Beja, de muita parte do qual o Principe fez mercê aos embaixadores de Castella, que depois a Moura vieram sobre o concerto das terçarias.

E porque Evora no verão d'este anno começou corromper-se de pestenença, foi logo d'ella tirada a Excelente Senhora, e levada com sua guarda ao Vimieiro, onde o Principe veio, e d'alli a levaram ao mosteiro de Santa Clara de Coimbra. E El-Rei D. Affonso se foi a Villa Viçosa, e de hi na entrada do inverno a Coimbra, e o Principe após elle.

E porque n'aquelle mesmo tempo se cumpria o anno de aprovação, que á Senhora D. Joana fôra dado para no cabo d'elle escolher, ou entrar em terçaria em poder da dita Infante D. Briatiz, ou fazer profissão, chegaram alli por embaixadores e procuradores d'El-Rei e da Rainha de Castella o Prior de Prado, que depois foi o primeiro Arcebispo de Grada, e o doutor Affonso Manuel, para serem no auto e execução de qualquer d'estas cousas que a dita Senhora escolhesse.

E n'este tempo e na mesma cidade de Coimbra adoeceu El-Rei D. Affonso de grande infermidade, de que esteve á morte, e a causa d'ella segundo seus acidentes era sómente reportada a nojo e padecimentos que recebia por a mudança e cousas da Excellente Senhora, para que era constrangido. A qual forçada para dois estremos á sua alma tão amargosos e tristes, não fiando nem segurando sua vida na entrada das terçarias, não por duvidar da bondade, conciencia e virtudes da Infante D. Briatiz, mas receando-se da continua conversação e familiaridade de castelhanos contrairos, que não podia escusar, e assi movida [141] por outros respeitos, escolheu por melhor fazer de todo profissão no mesmo habito de Santa Clara que trazia, e n'elle servir a Deos antes que tomar partido tão incerto, e para sua vida e sua honra tão duvidoso. E na bespora do dia em que foi ordenado a dita Senhora fazer profissão, foi no mosteiro tamanho pranto de seus criados e criadas que alli ocorreram, como se a houveram de soterrar. E com isto em alguma maneira foi de seu proposito revolta para não fazer profissão, a que o Principe acudio, e assi a soube temperar com esperanças de futuro bem, e com palavras assi brandas e prudentes, que de todo a confirmou em despejadamente fazer a dita profissão, a qual fez dentro no dito mosteiro, a quinze dias do mez de Novembro do dito anno de mil e quatrocentos e oitenta.

E ao auto da dita profissão esteve o Principe sem El-Rei, e com elle foram a ella presentes os ditos embaixadores de Castella, e todolos grandes senhores, Prelados e fidalgos da côrte de Portugal, perante os quaes depois de ser reconhecida por a mesma Senhora D. Joana, ella com uma paciencia e segurança com que a muitos commovia a muitas lagrimas, das mãos de Frei Diogo d'Abrantes recebeu o veo preto, na fórma, e com a solenidade e cerimonias que a dita ordem manda. Do qual todos os ditos embaixadores logo pediram publicos estromentos, que depois lhe foram dados á sua vontade.

N'este tempo foi a cidade de Rodes cercada de turcos, e posta em grande afronta, sendo Gram Mestre D. Frei Pedro d'Ahábusam, a cujo socorro foi d'estes reinos D. Diogo Fernandes d'Almeida que trazia o habito da dita Ordem, e era eleito para ser como foi Prior do Crato, e foi bem armado e aparelhado, e no caminho e em Rodes ganhou muita honra, [142] sendo ferido pelejando com gallés, e fazendo ricas presas como homem de nobre sangue, a que em todas suas cousas d'antes e depois nunca falleceu discressão, bondades, e grande esforço de coração.


CAPITULO CCIX


De como se fizeram as entregas do Infante D. Affonso e da Infante D. Isabel nas terçarias de Moura



E feita a dita profissão, o Principe se partiu de Coimbra, e mui aforrado chegou a Beja onde era a Princesa sua mulher e o Infante D. Affonso seu filho, que ainda não era de cinco annos.

E porque no mesmo dia se cumpria o tempo em que o dito Infante havia de ser entregue em Moura em poder da Infante D. Briatiz como era sob grandes penas capitulado, na mesma hora que o Principe chegou, logo por prazer da Princesa o inviara mui honradamente a Moura. E não partiu d'ante elles com menos dôr e saudade que se lhes levara os corações d'ambos, e o arrancaram de sua propria carne, e não era sem causa; porque alem de ser só filho ainda, n'elle havia em tudo tantas e tão angelicas perfeições, que o privar de sua vista e conversação assi o merecia. Mas por cumprirem o que como bons e verdadeiros Principes deviam, posta a natural dôr que o contradizia, despensando com a privação do filho pela piedade do reino, permitiram que o primeiro caminho que seus mui tenros pés fizessem, fossem com risco de sua vida ir tirar a guerra e a morte dos reinos, porque então já esperavam.

E com tanta aflição do corpo e d'alma, não havia [143] quem a estes Principes mais confortasse que a fé e verdade que a Deus e ao mundo sem cautella sempre mantiveram com grande cuidado; porque n'estas que eram suas proprias virtudes, para sua consolação e descanso ora buscavam ante elles rasões e confortos, com que lhe alimpavam as reaes lagrimas, que sua humanidade não podia escusar.

E como o Infante D. Affonso foi assi entregue, logo o Principe e a Infante D. Briatiz, por Rodrigo Affonso e por Ruy de Pina notificaram sua entrega, e a profissão da Senhora D. Joana á Infante D. Isabel e aos Senhores de Castella que a traziam e com ella estavam na villa da Fonte do Mestre, para ella vir e ser tambem entregue na dita terçaria, como era capitulado. E feita a dita notificação, logo D. Affonso de Cardenas, Mestre de Santiago, e D. Diogo Furtado de Mendonça, Bispo de Pallença, e D. Affonso d'Afonseca, Bispo de Avyla, e outros senhores que com ella eram se vieram a Freixinal.

E d'hi se emaderam mais e juntamente por embaixadores d'El-Rei e da Rainha de Castella, aos outros que foram a Coimbra, o Bispo de Coria D. João de Ortiga, e o licenceado d'Ilhescas, os quaes todos quatro sem a Infante se vieram diante a Moura, onde com o Infante D. Affonso e com a Infante D. Briatiz, eram já o duque de Vizeu D. Diogo, e o duque de Bragança D. Fernando, e o conde de Faram D. Affonso, e o senhor D. Alvaro, com outros senhores e fidalgos do reino, e por procuradores d'El-Rei e do Principe D. João de Mello, Bispo de Silves, e D. João da Silveira, barão d'Alvito, para todos concordarem e praticarem as menagens, seguridades e desnaturamentos, e cousas que para entrega e vinda da dita Infante D. Isabel cumpriam. Nas quaes por parte dos dois derradeiros embaixadores de Castella, [144] contra a opinião e voto dos outros primeiros se moveram e apontaram de novo tantas duvidas e condições para dilatarem a entrega da dita Infante, com que foi necessario ir algumas vezes consulta ao Principe, que era em Beja; porque todo este negocio sobre elle pendia, o qual anojado de suas importunações e injustas delongas, finalmente enviou aos ditos embaixadores dois escriptos, com duas palavras feitas de sua mão, e em um dizia Paz, e no outro Guerra, e mandou que no Conselho onde os de um reino e do outro cada dia se juntavam fossem os ditos escriptos apresentados aos ditos embaixadores, e que logo em nome dos Reis seus Senhores escolhessem um d'elles, qual quizessem, e que se tomassem o da guerra, que mais seria d'ella contente por ser uma guerra, que de paz, que tantas guerras lhe dava. E que se quizessem o da paz, que d'elle tambem lhe prazia sem mais negociações das que já eram concordadas, e que para isso logo trouxessem e entregassem a Infante.

Os quaes dois escriptos do Principe, com sua determinação tão perantoria tiveram no Conselho tanta força, que os embaixadores todos sem mais altercações se conformaram e acordaram a entrega da dita Infante, que foi a onze dias do mez de Janeiro de mil e quatrocentos e oitenta e um, a que a Infante D. Briatiz com toda a frol e gentileza de Portugal que alli foi junta sahio, e a uma legoa de Moura junto com a quintã que dizem da Coroada, e no meio de um ribeiro que alli corre, das mãos dos ditos senhores e embaixadores de Castella recebeu a dita Infante D. Isabel. E entregou a elles o Senhor D. Manuel seu filho, que com a gente que á sua honra e estado cumpria, levaram á côrte dos Reis de Castella em lugar do duque D. Diogo seu irmão, que por contrato das terçarias houvera primeiro de ser entregue, mas por [145] a este tempo o duque ser doente, ficou por então até ser são, mas verdadeiramente assi foi muita razão, e ainda pareceu quere-lo assi Deos, que o Senhor D. Manuel primeiro fosse arrefens e segurança da paz e assessego dos reinos de Portugal, pois elle por graça Divina primeiro os havia de sobceder com a mesma paz e assessego como sobcedeu, e ao diante se dirá.

E porém o duque foi depois a Castella, e o Senhor D. Manuel tornou a Portugal, como em seus tempos e lugares será declarado.

E porque a villa e fortaleza de Moura em que terçarias foram logo ordenadas, e em que o Principe á sua custa para os Infantes mandou fazer honrados aposentamentos, era nos verãos naturalmente muito doentia e perigosa, requereu o Principe a El-Rei e á Rainha de Castella e á Infante D. Briatiz, que para segurança das vidas e pessoas dos ditos Infantes, houvessem por bem as ditas terçarias pelas mesmas condições se mudarem á villa de Beja, que de seu sitio era sã e de bons ares.

E por algum consentimento, que com razão os ditos Senhores Reis e Infantes logo para isso deram, o Principe mandou fazer grandes percebimentos de pedraria e madeiras e officiaes, para no castello de Beja se fazerem outros aposentamentos. E elle e a Princesa se foram de Beja ter a Pascoa da Resurreição a Torres Novas, onde era El-Rei D. Affonso. Mas porque a Infante D. Briatiz por conselhos e induzimentos não verdadeiros, com que pareceu que foi enganada, mudou este proposito, e com todo o grande perigo de Moura quiz ficar no primeiro de se não mudar da dita villa, o Principe começou tomar d'ella alguns descontentamentos, pelos quaes logo desejou desfazer ou mudar as ditas terçarias em outra maneira.


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CAPITULO CCX


Do socorro que pelo Bispo d'Evora foi enviado contra o Turco, quando tomou a cidade do Tranto em Italia



E por quanto no anno passado de mil e quatrocentos e oitenta, o exercito do Gran Turco com seus capitães passou em Italia no reino de Napoles, e por força tomou na Pulha a cidade de Tranto com outras villas e castellos, com grande e piadoso estrago de christãos, e D. Affonso duque de Callabria, filho d'El-Rei de Napoles era já em cerco sobre a cidade para a cobrar; o papa Sixto quarto, que então era presidente na Igreja de Deos, por atalhar á destruição de Italia e Roma, que se aparelhava, enviou pedir socorro e ajuda a todolos Reis e Principes christãos, para que outorgou certas dizimas que mandou lançar pela clerezia, pela qual El-Rei D. Affonso e o Principe seu filho estando em Torres Novas, por obedecer ao Padre Santo em obra tão santa e tão piadosa, e que de seus corações e legitima devoção não era alheia, depois de as dizimas serem ordinariamente tiradas, e elles darem para isso toda outra ajuda necessaria, enviaram para a dita expunação do Tranto e resistencia do Turco o Bispo d'Evora D. Garcia de Menezes com grande frota, e muita e mui nobre gente de seus reinos, que de caminho tocando em Barcellona onde eram os Reis de Castella, foi a gente de Portugal e suas armas e gentileza muito louvada. E de ahi foi a Ostia, porto de Roma, por onde entrou pelo Tibre acima, e o Papa o recebeu e ouviu em S. Paulo, onde o Bispo porque entre os bons oradores de Italia era [147] singular orador, lhe fez uma elegante, e para o caso mui louvada oração.

E em fim por acabar primeiro com o Papa seus feitos, e haver com o bispado d'Evora, que tinha, o da Guarda que juntamente houve, fez alli, e depois em Napoles indo já caminho do Tranto tanta demora, que não sómente não foi onde era ordenado, mas ainda por sua longa estada lhe adoeceo e morreu muita gente. E porque alli veio certa nova que pela morte do Turco que então de peçonha morrera em Grecia, os que em seu nome tinham a cidade de Tranto desesperados de soccorro, por partido se deram ao dito duque de Calabria, o dito Bispo d'Evora cessou de sua ida. E depois de despedir em Roma suas cousas, se veio a estes reinos depois da morte d'El-Rei D. Affonso.


CAPITULO CCXI


De como o duque de Vizeu foi a Castella, e se tornou a Portugal o Senhor D. Manuel seu irmão



E o duque de Vizeu tanto que de sua doença convalleceo, com estado de grande Principe, e acompanhado de muitos fidalgos e d'outra muita escolhida gente sua e d'El-Rei, indo-se á côrte dos Reis de Castella como era concordado, adoeceu outra vez em Caceres, onde por mandado dos ditos Reis tinha cargo de o acompanhar e servir D. Pedro Portocarreiro, senhor de Palma. E de hi com algum melhoramento se foi a Madril, d'onde o Senhor D. Manuel seu irmão que alli era, se despedio d'elle, e se tornou a estes reinos a Moura.

[148] O duque de Vizeu ficou para cumprir o tempo que era capitulado, e foi a tempo que El-Rei de Castella então se partira socorrer e abastecer a gram pressa a villa d'Alfama do reino de Grada, que o marquez de Callez então tomara, e porém a Rainha vio o duque de Vizeu secretamente; porque outra vista sua e recebimento publico se fez depois em Cordova, d'onde o duque sahio a receber El-Rei o dia que n'ella entrou, vindo anojado e descontente do cerco de Loxa, em que por aquella vez sua ida e victoria não sobcedeo á sua vontade, porque foi pelos mouros feito em sua gente grande destroço, e mataram-lhe o mestre de Calatrava, com outra nobre gente.


CAPITULO CCXII


De como foi a morte d'El-Rei D. Affonso



E depois da profissão da Excellente Senhora; porque El-Rei D. Affonso em Coimbra foi em ponto de morte como disse, nunca mais foi alegre, e sempre andou retraido, maginativo e pensoso, mais como homem que avorrecia as cousas do mundo, que como Rei que as estimava. Pelo qual no seguinte verão elle foi a Beja vêr o Principe seu filho e a Princesa D. Leanor sua mulher, e alli tiveram o pae e o filho entre si praticas secretas, em que El-Rei determinou querer no fim d'este anno se vivera fazer côrtes geraes em Estremoz; porque em Lisboa e Evora morriam, e leixar a inteira governança dos reinos ao Principe seu filho, e elle em habitos honestos de leigo e não com obrigação de religião se retraer no mosteiro de Varatojo junto com Torres Vedras, [149] que elle de novo fundou para alli servir a Deos e em sua vida temperar e remediar os odios e dissenções que já entendia que por sua morte entre o Principe seu filho e os da casa de Bragança se não podiam escusar, e cousa justa fôra permitir então a bondade e misericordia de Deos este bem, porque tanto mal depois se não seguia, e porém o Principe ficou em Beja para d'alli continuadamente mandar visitar e prover o Infante D. Affonso seu filho, e a Infante D. Isabel que eram na terçaria em Moura, como sempre fez.

E El-Rei D. Affonso na entrada d'Agosto se foi a Cintra, onde adoeceu de febre muito aguda, de que o Principe sendo avisado, a gram pressa foi logo com elle, que achou já em desposição mortal e sem esperança de vida. Na qual El-Rei tendo feito seu testamento, e recebendo todolos sacramentos alli acabou como bom e catholico christão, dando sua alma a Deos a vinte e oito dias d'Agosto do anno do nascimento de nosso Senhor Jesu Christo de mil e quatrocentos e oitenta e um. E na propria casa em que nasceo, ali morreu e acabou. Foi seu corpo logo metido em um ataude, e posto sobre uma azemola que com cruzes, tochas, e clerigos foi pelo conde de Monsanto, que hi era, e por outros fidalgos levado ao mosteiro da Batalha, e enterrado na casa do cabido, onde jaz até haver sua solemne merecida sepultura.


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CAPITULO CCXIII


Das feições, bondades e virtudes d'El Rei D. Affonso



Foi El-Rei D. Affonso Principe mais de grande que meã estatura, e em todos seus membros bem feito e mui proporcionado, salvo que nos derradeiros dias foi algum tanto envolto em carne, e por encuberta d'isso costumava sempre vestiduras soltas; teve o rosto redondo, bem povoado de barba preta, e em todalas outras partes do corpo muito cabeludo, salvo na cabeça, em que depois de trinta annos começou de ser calvo.

Foi Principe de mui granciosa presença, grande humanidade, e doce conversação, mas foi em tanto extremo, que para Rei superior não foi muito de louvar; porque com grande familiaridade que de si, contra sua gravidade e estado real a muitos dava, além de lhe muitas vezes não guardarem aquella reverencia e acatamento que deviam, tomavam ainda atrevimento de lhe requerer, e elle vergonha de lhe não outorgar muitas e maiores cousas do que os merecimentos nem honestidade, nem do que o acrecentamento de patrimonio real requeriam, segundo todo Rei e Principe é obrigado. Foi de grande memoria e maduro entender, e de sutil engenho, remisso mais que trigoso nas graves execuções. Especialmente nas da justiça que tocavam contra grandes pessoas, as quaes mais folgava de dessimular ou temperar brandamente, que executal-as com rigor, e crê-se que isto procedia de sua grande humanidade, e assi por assessego de seus reinos. Suas palavras no que queria dizer eram sempre bem ordenadas, e entoadas com mui gracioso orgão, e por pena, de seu natural escrevia assi bem, [151] como se por longo ensino e exercicio d'oratoria artificialmente o aprendera; foi amador de justiça e de ciencia, e honrou muito os que a sabiam.

Foi o primeiro Rei d'estes reinos que ajuntou bons livros, e fez livraria em seus paços, e tambem foi o primeiro Rei que pelas praças e lugares publicos das cidades e villas de seus reinos fez a todos mui familiar sua vista, porque até seu tempo os Reis d'estes reinos assi raramente o faziam, que quando alguma hora ante a face do povo sahiam, concorria de todalas ruas tanta gente para os vêr, como se fosse uma gram novidade, mas isto procedeo de sua humana condição, por as gentes mais facilmente lhe poderem pedir mercê e requerer justiça, em cujo despacho foi sempre mui liberal e atento.

Foi tão confiado de seu saber, que com dificuldade queria estar por alheios conselhos se contradiziam sua vontade, especialmente nas cousas da guerra dos mouros, em cujo proseguimento foi sempre tão aceso e inclinado, que ácerca d'isso todo seu apetito lhe pareciam vivas razões; foi Principe mui catholico e amigo de Deos, e mui fervente na fé; ouvia continuada e mui devotamente os Officios Divinos, e pela mór parte sem grandes pompas e cerimonias; deleitava-se com homens honestos religiosos e de bom viver, e com elles apartado muitas vezes, ao seu modo conversava, e com isto em seu tempo deu causa que muitos fingidamente quizeram parecer de fóra melhores do que eram de dentro, e esta especie de hypocrisia depois de sair das casas de Deos, entrou nas casas dos homens, que a muitos aproveitou, de que não faço alguma especificação por não ser odioso, pois não é necessaria.

Foi no comer, beber, e dormir mui regrado, e sobre tudo de mui louvada continencia; porque havendo não mais de XXIII annos, ao tempo que a Rainha sua [152] mulher falleceu, sendo aquella idade de maiores pongimentos e alterações da carne, tendo para isso muita desposição e despejo, foi depois ácerca de mulheres muito abstinente, ao menos cauto.

Nos trabalhos do corpo que se lhe offereciam, ou elle por seu prazer queria tomar, não era delicado, antes os soffria bem e como outro homem robusto n'elles criado.

Folgou muito d'ouvir musica, e de seu natural sem algum artificio teve para ella bom sentimento.

Foi esmolador e de mui piedosa condição. E na nobreza e liberalidade teve sem medida tanta parte, que mais propriamente se podia dizer prodigo que verdadeiro liberal, especialmente nas cousas da corôa do reino, de que sem grandes merecimentos nem muita necessidade, mas por sós manhas e praticas que com elle os grandes usavam, a desguarneceo e minguou em não pouca parte. Poucas vezes e por poucas cousas recebia ira nem senha, e as semelhantes cousas porque se lhe causava, em que a consciencia o não contradizia, levemente as perdoava, e por ser Principe de mui alto e esforçado coração, foi sempre zelador de emprender cousas arduas, e prosegui-las por armas como cavaleiro, mais que de entender como Rei no regimento civel e politico de reinos.

Viveu quarenta e nove annos, de que foi Rei os quarenta e tres. E d'estes os XXXIII regeo persi o reino; porque dez annos primeiros de seu reinado, por sua pouca idade regeo por elle o Infante D. Pedro seu sogro e tio, como atraz fica.


FIM DO III E ULTIMO VOLUME




INDEX


1º VOLUME



capitulo pagina
I―Narração 12
II―Alevantamento d'El-Rei 14
III―De como começaram de entender nas cousas do reino e se viu o testamento d'El-Rei 17
IV―Da vinda do Infante D. Anrique á côrte, e das cousas que se logo acordaram 19
V―Como o Infante D. Fernando foi jurado por Principe, se El-Rei não houvesse filho legitimo 21
VI―Primeiro consentimento da Rainha para El-Rei seu filho casar com a filha do Infante D. Pedro 22
VII―Resposta do Infante D. Pedro á Rainha 23
VIII―Contradicção que houve em algumas pessoas no consentimento do casamento d'El-Rei com a filha do Infante D. Pedro 24
IX―De como se fez o saimento d'El-Rei no mosteiro da Batalha 26
X―Como ante de se fazerem as primeiras côrtes em Torres Novas, se fez uma conjuração contra o Infante D. Pedro 27
XI―Como se deu a obediencia e fizeram as menagens a El-Rei e se praticou sobre quem regeria 29
XII―Concordia feita entre a Rainha e o Infante D. Pedro acerca do regimento 30
XIII―Da contradicção e mudança que houve n'este acordo 31
[II]
XIV―Apontamentos que publicamente se fizeram contra o testamento de El-Rei para a Rainha não dever reger 32
XV―Do meio que o Infante D. Anrique tomou entre a Rainha e o Infante D. Pedro acerca do Regimento 34
XVI―Como a Rainha por meio do conde de Barcellos enviou pedir ao Infante D. Pedro o alvará que lhe tinha dado sobre o casamento d'El-Rei 37
XVII―Como El-Rei se foi a Lisboa, onde o Infante D. João veiu a primeira vez 39
XVIII―Do despacho que se deu aos embaixadores de Castella 40
XIX―Como a Rainha começou de reger e ser em seu regimento prasmada 42
XX―Fallecimento da Infante D. Filippa 43
XXI―Nascimento da Infante D. Joana 43
XXI―Praticas que o Infante D. Pedro teve sobre descontentamentos que tinha da Rainha ácerca do regimento 44
XXII―Como o Infante D. Pedro e o Infante D. João ambos se viram e fallaram sobre o regimento 45
XXIII―Como a rainha lançou fora de sua casa certas donzellas por suspeitas a ella, e affeiçoadas ao Infante D. Pedro 48
XXIV―Do alvoroço que se seguiu contra a Rainha pela execução dos varejos de Lisboa 49
XXV―Ida do conde d'Arrayolos a Lisboa sobre assessego d'ella, e como não aproveitou 51
XXVI―Como o Infante D. Pedro foi a Lisboa reprender e assessegar as uniões da cidade 54
XXVII―Como a Rainha mandou secretamente preceber os de sua valia que viessem ás côrtes armados 56
XXVIII―Como o Infante D. Pedro e o Infante D. João sobre estas cousas se tornaram a vêr, e o que acordaram 58
XXIX―Como o Infante D. Pedro avisou e percebeu o reino sobre os alvoroços que se ordenavam 60
XXX―Como se o Infante despediu da Rainha, e da falla que como descontente lhe fez 61
XXXI―Como a Rainha com El Rei e seus filhos se foi a Alanquer, e do que se seguiu em Lisboa 62
[III]
XXXII―Acordo que o povo de Lisboa fez acerca do regimento 64
XXXIII―Como a cidade de Lisboa entendeu contra o Arcebispo D. Pedro pelos cubelos da alcaçova que tomou 65
XXXIV―Vinda do Infante D. João á cidade 67
XXXV―Como a Rainha escreveu a Lisboa e todo o reino sobre o assessego d'elle 67
XXXVI―Declaração que Lisboa fez de o Infante D. Pedro só reger o reino 68
XXXVII―Forma do acordo sobre o Regimento 70
XXXVIII―Notificação d'este acordo ao Infante D. João, que o approvou 72
XXXIX―Notificação do dito acordo á Rainha, que o contrariou, e assi aos Infantes e ao reino 73
XL―Partida do Arcebispo D. Pedro fóra do reino 75
XLI―Como o castello de Lisboa foi pela cidade tomado e dado ao Infante D. João, e o que se n'isso seguiu 77
XLII―Mandou a Rainha velar e afortalezar Alanquer, onde tinha El-Rei 81
XLIII―Dissensão que a Rainha procurou d'haver entre o Infante D. Pedro e o Infante D. Anrique 81
XLIV―Embaixada dos Infantes á Rainha 83
XLV―Recado da Rainha ao Infante D. Pedro quando de Coimbra vinha para Lisboa ás côrtes 85
XLVI―Entrada do Infante D. Pedro em Lisboa, e como ante as côrtes acceitou o Regimento 88
XLVII―Notificação do acordo passado á Rainha, que o não consentiu 91
XLVIII―Ida do Infante D. Anrique á Rainha para leixar vir El-Rei ás côrtes, e lh'o tornarem 92
XLIX―Entrada de El-Rei em Lisboa para as côrtes 93
L―De como se apontou e aprovou não ser bem El-Rei se crear em poder da Rainha 96
LI―Como a rainha teve pratica com os seus principaes sobre a ida dos Infantes a ella como se foi a Cintra e leixou El-Rei e seu irmão 101
LII―Como Lisboa cometeu de querer fazer uma estatua ao Infante D. Pedro pelo beneficio do relevamento das aposentadorias, e do que lhe respondeu 104
LIII―Como a Rainha sobre suas cousas se querellou aos Infantes d'Aragão seus irmãos, e da embaixada que enviaram 106
[IV]
LIV―De como se entendeu na redempção do Infante D. Fernando, e do que se seguiu 108
LV―Como a Rainha D. Lianor se partiu de Cintra para Almeirim contra vontade de d'El-Rei e dos Infantes, e como se El-Rei foi a Santarem, e do que se seguiu 113
LVI―Liança do Infante D. Pedro com o Condestabre e Mestre d'Alcantara de Castella, contra os Infantes d'Aragão, e das ajudas que lhe deu 115
LVII―Conselhos que o Infante D. Pedro teve sobre o assessego e segurança d'estas cousas, e como a Rainha fingidamente se concordou com elle 117
LVIII―Como o conde de Barcellos desdisse muito á Rainha esta concordia com o Infante, em caso que não fosse verdadeira 119
LIX―Como o Priol do Crato consentiu em receber a Rainha em suas fortalezas 120
LX―Como o conde de Barcellos fez liança com os Infantes d'Aragão, e como foi por isso muito prasmado 121
LXI―Como o Infante D. Anrique se viu com o conde de Barcellos seu irmão para o concordar com o Infante D. Pedro 123
LXII―De como veiu a El-Rei embaixada de Castella, e como foi recebida 124
LXIII―Como o Infante D. Anrique procurou de trazer o Priol do Crato a serviço e prazer do Infante D. Pedro, e do que n'isso passou 127
LXIV―De como se a Rainha aconselhou sobre a ida para o Crato, e como emfim posposto o conselho se partiu 128
LXV―Do que fizeram os da Rainha depois que souberam da sua partida 130
LXVI―De como o Regente foi avisado da secreta partida da Rainha, e do que logo sobr'isso se fez 131
LXVII―Do que a Rainha fez depois de ser no Crato 134
LXVIII―Como falleciam os mantimentos á Rainha e ao Priol do Crato 135
LXIX―De uma embaixada d'El-Rei d'Aragão e de Napoles que veiu ao Infante D. Pedro sobre os feitos da Rainha 136
[V]
LXX―De como o Regente determinou pôr cêrco ao Crato e ás outras fortalezas do Priol, e a que pessoas os cêrcos foram encommendados 137
LXXI―Como El-Rei quiz vêr e viu o capitão na ordenança de guerra em que vinha 139
LXXII―Como a Rainha meteu de Castella gente d'armas n'estes reinos para se bastecer, e do que fizeram 141
LXXIII―Da resposta que o Regente houve d'algumas cousas que com sua embaixada enviou a Roma requerer 142
LXXIV―Como em se accordando o cêrco do Crato soube o regente que a Rainha D. Lianor era partida do Crato para Castella, e como todavia seguiu, e do que se fez 144
LXXV―Como o Infante D. Pedro e o Infante D. Anrique se foram a Lamego para passarem entre Doiro e Minho. E como o conde de Barcellos se poz em defeza, e do que se n'isso passou 148
LXXVI―Das côrtes que se fizeram sobre o casamento d'El-Rei com a Rainha D. Isabel, filha do Infante D. Pedro 152
LXXVII―Como o Regente por meio do conde de Barcellos procurou de se concordar com a Rainha D. Lianor, e das cousas porque ella não quiz 153
LXXVIII―Como a Rainha D. Lianor se foi á côrte de El-Rei de Castella, e das embaixadas que vieram a Portugal 155
LXXIX―De como o Regente sobre a resposta que a estas embaixadas se daria, fez côrtes geraes 157


2.º VOLUME


LXXX―D'outra embaixada que ao Regente veiu d'El-Rei e do povo de Castella, sobre as mesmas cousas da Rainha, e da resposta que houveram, e como se entendeu em alguma concordia e contentamento da Rainha 5
LXXXI―De como o Infante D. João falleceu, e que filhos d'elle ficaram 10
LXXXII―De como falleceu o filho do Infante D. João que era Condestabre, e como o filho maior do Infante D. Pedro foi d'aquella dinidade provido, que foi causa e fundamento da morte do dito Infante D. Pedro 12
[VI]
LXXXIII―De como foi a morte do Infante D.Fernando que era captivo em Fez 14
LXXXIV―De como foi a morte da Rainha D. Lianor em Toledo, estando já para se tornar a Portugal 15
LXXXV―Como o Condestabre filho do Infante D. Pedro foi enviado a Castella com gentes d'armas, em ajuda de El-Rei de Castella contra os Infantes d'Aragão, e do que se passou até tornar 19
LXXXVI―De como o Regente fez côrtes geraes, em que leixou a El-Rei a primeira vez o Regimento do Reino, segundo era obrigado, e como El-Rei lh'o tornou a dar 22
LXXXVII―De como as filhas do Infante D. João foram casadas 25
LXXXVIII―Como El-Rei por meio do duque e de seu filho o conde d'Ourem pediu ao Infante o Regimento do Reino, e como inteiramente lh'o leixou 27
LXXXIX―Das cousas que o conde de Barcellos fez em abatimento do Infante D. Pedro depois que soube que já não regia, e para lançarem o Infante fóra da côrte 29
XC―Como o Infante D. Anrique entendeu nas cousas do Infante D. Pedro para seu favor, e assi o conde d'Abranches 34
XCI―Vinda do conde d'Abranches ás côrtes 35
XCII―De como o Infante D. Anrique se foi vêr a Coimbra com o Infante D. Pedro, e com elle o conde d'Abranches, e das novidades que se seguiram 37
XCIII―De uma fórma de concordia que El-Rei fez em escripto entre o Infante D. Pedro e o duque de Bragança e d'outras cousas que contra o dito Infante se seguiram 39
XCIV―De como El-Rei enviou requerer ao Infante D. Pedro as suas armas, que tinha em Coimbra 41
XCV―Como o conde d'Arrayolos veiu de Ceuta para concordar o Infante com El-Rei, e as causas porque se presumio que estas cousas se damnavam mais 43
XCVI―De como El-Rei mandou vir o duque de Bragança á sua côrte, e como o Infante D. Pedro determinou que em auto de guerra como vinha não leixaria-o passar por sua terra 46
[VII]
XCVII―Do recado que o Infante D. Pedro enviou ao duque, sendo já em caminho 48
XCVIII―Da resposta do duque ao Infante D. Pedro 49
XCIX―Do que o conde d'Ourem ordenou em favor do duque seu pae para não leixar de proseguir seu caminho, e dos recados que El-Rei ao Infante D. Pedro enviou 51
C―De como o Infante D. Pedro determinou impedir a passagem ao duque, e se percebeu e partiu para isso 55
CI―De uma falla que o Infante D. Pedro fez aos seus, estando todos a cavallo 56
CII―De outra falla que o duque tambem fez aos seus em seu favor contra o Infante, e de como Alvaro Pires de Tavora lhe respondeu 58
CIII―D'outra falla que o duque fez a todolos seus, em que determinou não leixar o seu caminho 60
CIV―De como o conde d'Abranches fallou ao Infante, aconselhando-o que desse no duque 62
CV―De como o duque não quiz esperar o Infante, e se salvou atravessando secretamente a Serra d'Estrella, e do que o Infante sobr'isso disse e fez 63
CVI―Como o duque se foi a Santarem onde era El-Rei, e do que se fez contra o Infante 66
CVII―De como El-Rei declarou o Infante por desleal, e mandou fazer geraes percebimentos de guerra para ir sobr'elle 68
CVIII―Do que o Condestabre filho do Infante D. Pedro fez, estando entre o Tejo e Odiana 70
CIX―De uma carta que a Rainha enviou ao Infante D. Pedro seu padre, sobre um conselho que acerca d'elle se tivera para sua morte ou destruição, e do conselho e determinação que o Infante sobr'ella teve 72
CX―Dos conselhos desvairados que ao Infante sobre sua proposição foram dados 75
CXI―De como o Infante se teve ao conselho do conde d'Abranches, que foi morrer 78
CXII―Como o Infante D. Pedro e o conde d'Abranches consagraram ambos de morrer um quando outro morresse 79
[VIII]
CXIII―Como a Rainha houve d'El-Rei que perdoaria ao Infante seu padre se elle lhe pedisse perdão, e assi lh'o escreveu, e a causa porque não houve effeito 81
CXIV―Como os imigos do Infante D. Pedro procuravam haver antes odio que amor nem afeição entre El-Rei e a Rainha sua mulher 84
CXV―De um cumprimento que o Infante D. Pedro acerca de sua innocencia por meio de religiosos fez com El-Rei 85
CXVI―Como El-Rei não tinha possibilidade de ir sobre o Infante como proposera, e como a partida do Infante de Coimbra foi causa da sua morte 87
CXVII―Como o Infante D. Pedro partiu de Coimbra, e como seguiu seu caminho até Rio Maior, e do conselho que hi teve 89
CXVIII―Como o Infante partiu de Rio Maior e se foi a Alcoentre, e as pessoas d'El-Rei que hi mandou matar, e a causa porque 94
CXIX―Como El-Rei proveu e segurou a cidade de Lisboa, para o Infante se não recolher a ella 96
CXX―Como o Infante partiu de Castanheira, e se foi alojar no Ribeiro d'Alfarrobeira 97
CXXI―Como El-Rei chegou sobre o arraial do Infante D. Pedro, e como por caso e sem deliberação se seguiu sua morte 99
CXXII―Como o conde d'Abranches tambem logo foi morto, e como acabou como esforçado cavalleiro, e do que se mais seguiu no cabo da batalha 102
CXXIII―Da maneira que se teve com o corpo do Infante D. Pedro, e como foi vilmente tratado e soterrado 104
CXXIV―Exclamação á morte do Infante D. Pedro 105
CXXV―Das feições, costumes e virtudes do Infante D. Pedro 110
CXXVI―Do que a Rainha fez com a nova da morte do Infante seu padre 113
CXXVII―Como a Infante mulher do Infante D. Pedro soube de sua morte, e do que se fez de seus filhos 114
CXXVIII―Como os imigos do Infante procuravam que El-Rei se quitasse da Rainha, e quão virtuosamente El-Rei o fez com ella 115
[IX]
CXXIX―Como El-Rei fez aos Reis e Principes christãos uma geral notificação da morte do Infante, e das respostas que houve, e da embaixada do duque e duqueza de Borgonha, que sobre a morte do dito Infante e sua desculpa foi principal 117
CXXX―De como a judaria de Lisboa foi roubada, e a causa porque 119
CXXXI―De como foi o casamento da Imperatriz D. Lianor irmã d'El-Rei com o Imperador Frederico, e festas que por elle se fizeram 120
CXXXII―Da partida da Imperatriz d'estes reinos, e das pessoas que com ella foram 124
CXXXIII―Como a Imperatriz chegou á Italia e foi do Imperador recebida, e assim como ambos foram pelo Papa recebidos e coroados em Roma 126
CXXXIV―Dos filhos que a Rainha pario, e de como o Infante D. Fernando secretamente se foi d'estes reinos, e logo tornou a elles 128
CXXXV―Como o Gram Turco tomou a cidade de Constantinopola, e o Papa publicou cruzada contra elle, e El-Rei D. Affonso a tomou 133
CXXXVI―De como a Rainha pariu o Principe D. João e d'outras cousas a que El-Rei satisfez ácerca do Infante D. Pedro, e como casou a Rainha D. Joana com El-Rei D. Anrique de Castella 135
CXXXVII―Da treladação e exequias que se fizeram aos ossos do Infante D. Pedro, e como a Rainha sua filha logo falleceu, e os ossos da Rainha D. Lianor foram de Castella trazidos ao mosteiro da Batalha 137
CXXXVIII―Como El-Rei outra vez acceitou a cruzada contra os turcos quando fez os Cruzados, e com os percebimentos que para isso fez passou em Africa e tomou aos mouros a villa d'Alcacere 140
CXXXIX―Como El-Rei se foi d'Alcacere a Ceuta, e como a villa foi por El-Rei de Fez cercada, e El-Rei a não pôde socorrer, e desafiou El-Rei de Fez 150
CXL―Das cousas que passaram n'este cerco, até que de todo se alevantou 153


[X]

3.º VOLUME


CXLI―De como se fez em Alcacere a coiraça para defensão e segurança da villa, e como D. Duarte, capitão, se houvera de perder 5
CXLII―De como a villa d'Alcacere foi de segunda vez cercada por El-Rei de Fez, e do que se passou n'este segundo cêrco até que se alevantou 9
CXLIII―Como D. Duarte foi feito conde de Vianna, e El-Rei quizera outra vez passar em Africa para que se percebeu 13
CXLIV―De como falleceu o Infante D. Anrique, e de seus feitos, bondades, e virtudes 15
CXLV―De como falleceu o duque de Bragança, e sobcedeu sua casa e herança o marquez de Villa Viçosa, e como D. Fernando seu filho passou em Africa, e de vinda foi feito conde de Guimarães 19
CXLVI―De como falleceu a Infante D. Caterina, sendo já concertada para casar 20
CXLVII―De como foi a ida d'El-Rei em Africa com os dois mil de cavallo, e do escallamento de Tangere 21
CXLVIII―Da grande e danosa tormenta que El-Rei e o infante passaram no mar 25
CXLIX―De como foi o primeiro cometimento do escalamento de Tangere 26
CL―De como o Infante D. Fernando sem El-Rei entrou d'Alcacere e correu a terra aos mouros 27
CLI―De como o Senhor D. Pedro, filho do Infante D. Pedro, se foi de Ceuta para Barcellona e se intitulou Rei d'Aragão 29
CLII―De como o escalamento de Tangere se commetteu a segunda vez pelo Infante D. Fernando sem consentimento d'El-Rei 33
CLIII―De como o escallamento de Tangere se commetteu finalmente a terceira vez pelo Infante D. Fernando e do desastrado sobcedimento que houve 36
CLIV―Como El-Rei foi d'este triste caso avisado em Ceuta, o dia que tinha concertadas vistas em Gibraltar com El-Rei de Castella, a que todavia foi, e o fundamento das ditas vistas 42
[XI]
CLV―De como El-Rei em pessoa correu o campo d'Arzilla 44
CLVI―De como El-Rei D. Affonso foi correr a serra de Benafocú, e como foi em grande perigo e como mataram os mouros o conde D. Duarte, e a Diogo da Silveira, escrivão da poridade 45
CLVII―De como El-Rei se veiu a Portugal e foi em romaria a Guadalupe, e se viu com El-Rei D. Anrique e com a Rainha sua mulher 50
CLVIII―De como houve em Castella grande divisão, sobre que houve vistas na cidade da Guarda com a Rainha irmã d'El Rei 51
CLIX―De como se concertou casamento entre o Principe D. João com a Senhora D. Lianor filha do Infante D. Fernando 52
CLX―De como o Infante D. Fernando passou por si em Africa, e tomou a cidade de Anafee 53
CLXI―Do fallecimento do Infante D. Fernando, e dos filhos que d'elle ficaram 54
CLXII―De como tendo El-Rei determinado passar em Africa, convertia a armada contra os inglezes pela tomada das náos de Portugal, e desistiu d'isso pela morte do conde Baroique, e se ordenou a ida sobre Arzilla 56
CLXIII―De como El-Rei levou comsigo o Principe seu filho e como embarcaram, e com que gente e frota 58
CLXIV―De como El-Rei tomou terra em Arzilla 59
CLXV―De como a villa foi entrada, e o Principe foi armado cavalleiro, e morreram o conde de Marialva e o conde de Monsanto e outros 61
CLXVI―De como Mollexeque vinha socorrer Arzilla, e fez pazes com El-Rei D. Affonso 64
CLXVII―De como El-Rei foi certificado que os mouros de Tangere tinham leixado a cidade, e do que sobr'isso logo proveu, e de como se foi a ella, e de hi para o reino 66
CLXVIII―De como a Infante D. Joana filha de El-Rei foi metida no mosteiro d'Odivellas, e de hi ao mosteiro d'Aveiro, e d'outras cousas que El-Rei fez 68
CLXIX―Foi feito primeiro conde de Penella D. Affonso de Vasconcellos 69
CLXX―Tomou o principe D. João sua casa 69
[XII]
CLXXI―De como houve embaixadas e vistas entre El-Rei de Castella e de Portugal, e sobre que 69
CLXXII―De como os ossos do Infante D. Fernando foram a estes reinos trazidos de Fez 71
CLXXIII―Do fundamento que El-Rei D. Affonso teve para entrar em Castella por morte d'El-Rei D. Anrique 72
CLXXIV―Como El-Rei determinou todavia entrar em Castella, e dos requerimentos que logo enviou a El-Rei D. Fernando e á Rainha D. Isabel 74
CLXXV―De como El-Rei se foi a Arronches, por onde acordou de entrar em Castella 75
CLXXVI―De como a este tempo naceu o Principe D. Affonso neto d'El-Rei 76
CLXXVII―Da gente com que El-Rei entrou em Castella e em que ordenança ia 76
CLXXVIII―De como El-Rei chegou a Prazença onde publicamente foi jurado por Rei, e esposado com a Rainha D. Joana, e d'outras cousas 78
CLXXIX―De como El-Rei D. Affonso e a Rainha se foram á cidade de Touro, e como El-Rei D. Fernando veiu sobre elle com todo seu poder 79
CLXXX―De como El-Rei D. Affonso se foi a Çamora, e de hi querendo ir descercar o castello de Burgos tomou Baltanas, e prendeo o conde de Benavente 81
CLXXXI―De como El-Rei tomou Cantalapedra, e se tornou a Çamora 84
CLXXXII―Do cuidado que o Principe D. João tinha em governar e defender Portugal, e como 84
CLXXXIII―De como o principe cercou a villa d'Ougela, e a tomou, e da morte de João da Silva 86
CLXXXIV―De como o Principe indo vêr-se com El-Rei D. Affonso seu padre, foi por elle avisado da traição da ponte de Çamora, e se tornou de Miranda do Doiro 87
CLXXXV―De como foi a dita traição, e da maneira que El-Rei D. Affonso sobre isto teve 87
CLXXXVI―De como El-Rei combateu a ponte, e do que se seguiu, e como El-Rei D. Affonso leixou Çamora, e se foi a Touro 89
CLXXXVII―Dos percebimentos que o Principe fez em Portugal para ir socorrer a El-Rei D. Affonso seu padre, e como entrou em Castella 90
[XIII]
CLXXXVIII―De como El-Rei D. Fernando e a Rainha D. Isabel se apoderaram de Çamora, e pozeram cerco ao castello 92
CLXXXIX―De como El-Rei D. Affonso e o Principe cercaram Çamora da parte da ponte 93
CXC―De como se ordenou a batalha dos Reis entre Touro e Çamora 94
CXCI―De como romperam as batalhas, e as do Principe venceram as d'El-Rei D. Fernando, e a d'El-Rei D. Fernando venceu a d'El-Rei D. Affonso, que se recolheu a Crasto Nunho, e do mais que se seguiu até fim da batalha 97
CXCII―De como o Principe se tornou a Portugal, e do que El-Rei D. Affonso fez por então em Castella 102
CXCIII―De como se ordenou a ida d'El-Rei em França, e se veio a Portugal com a Rainha D. Joana 104
CXCIV―De como El-Rei partiu de Lisboa para França, e da maneira em que foi até se vêr com El-Rei de França 106
CXCV―Da primeira vez que El-Rei D. Affonso se vio com El-Rei de França em Tors em Toraina 109
CXCVI―Do que El-Rei de França e El-Rei D. Affonso entre si acordaram para execução de sua ida 111
CXCVII―De como foram a Roma embaixadores d'El-Rei de França e d'El-Rei D. Affonso requerer a despensação para poder casar com a Rainha D. Joana sua sobrinha 113
CXCVIII―De como El-Rei D. Affonso se foi vêr com o duque de Borgonha, e como logo se seguio a morte do dito duque 114
CXCIX―Da resposta que os embaixadores houveram em Roma ácerca da despensação que requereram 117
CC―Da conclusão que El-Rei D. Affonso tomou com El-Rei de França, quando com elle se vio a segunda vez 118
CCI―Como o Principe cercou a villa d'Alegrete e a tomou, e d'outras cousas que no reino se seguiram andando El-Rei D. Affonso em França 119
CCII―De como El-Rei D. Affonso desappareceu em França, e o Principe seu filho por seu mandado se alevantou por Rei em Portugal 121
[XIV]
CCIII―De como El-Rei D. Affonso embarcou em França e se veio a Portugal, e se vio com o Principe seu filho 125
CCIV―De como Lopo Vaz Torrão se alevantou com a villa de Moura por El-Rei de Castella, e do que se seguio 127
CCV―De como se seguiu a batalha de Merida, em que o Bispo d'Evora, capitão-mór, foi vencido 128
CCVI―De como se ordenaram e trataram as pazes entre Portugal e Castella, e por quaes pessoas, e com que condições e cousas sustancialmente 130
CCVII―Da publicação das pazes e das mais cousas que para cumprimento d'ellas se fizeram, principalmente ácerca da Excellente Senhora D. Joana 136
CCVIII―Da grande pestelença que sobreveio a estes reinos, e como se fez a profissão á Excellente Senhora D. Joana 139
CCIX―De como se fizeram as entregas do Infante D. Affonso e da Infante D. Isabel nas terçarias de Moura 142
CCX―Do socorro que pelo Bispo d'Evora foi enviado contra o Turco, quando tomou a cidade do Tranto em Italia 146
CCXI―De como o duque de Vizeu foi a Castella, e se tornou a Portugal o Senhor D. Manuel seu irmão 147
CCXII―De como foi a morte d'El-Rei D. Affonso 148
CCXIII―-Das feições, bondades e virtudes d'El-Rei D. Affonso 150







Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 10 sobre e porto ... sobre o porto
#pág. 21 cam ... com
#pág. 22 sebr'isso ... sobr'isso
#pág. 35 flcou ... ficou
#pág. 37 d'Alcere ... d'Alcacere
#pág. 42 auctorldade ... auctoridade
#pág. 43 Guimamarães ... Guimarães
#pág. 53 d'Anafce ... d'Anafee
#pág. 55 ti.ulos ... titulos
#pág. 63 EI-Rei ... El-Rei
#pág. 111 grandes o louvados ... grandes e louvados
#pág. 119 E Tornando ... E tornando
#pág. I D. Pedo ... D. Pedro


Os "n" e "u" que surgiram trocados no texto original foram corrigidos de acordo com a ortografia da época.

El-Rei e El Rei são variantes da mesma palavra. Todas estas variantes foram mantidas de acordo com o original.







End of the Project Gutenberg EBook of Chronica de el-rei D. Affonso V (Vol.
III), by Rui de Pina

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Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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Volunteers and financial support to provide volunteers with the
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To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
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