Project Gutenberg's Viagens na Minha Terra (Volume II), by Almeida Garrett

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Title: Viagens na Minha Terra (Volume II)

Author: Almeida Garrett

Release Date: January 15, 2008 [EBook #24319]

Language: Portuguese

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Rita Farinha (Jan. 2008)




OBRAS

DE

J. B. DE A. GARRETT.

IX.

(segundo das viagens.)






VIAGENS

NA MINHA TERRA

POR J. B. DE ALMEIDA-GARRETT.


II.







LISBOA
NA TYPOGRAPHIA DA GAZETA DOS TRIBUNAIS.
1846.






VIAGENS NA MINHA TERRA.





CAPITULO XXVI.


Modo de ler os auctores antigos, e os modernos tambem.―Horacio na sacra-via.―Duarte Nunes iconoclasta da nossa historia.―A policia e os barcos de vapor.―Os vandalos do feliz systema que nos rege.―Shakspeare lido em Inglaterra a um bom fogo, com um copo de old-sack sôbre a banca.―Sir John Falstaff se foi maior homem que Sancho-Pansa?―Grande e importante descuberta archeologica sôbre San'Thiago, San'Jorge e Sir John Falstaff.―Próva-se a vinda d'este último a Portugal.―O enthusiasta britannico no tumulo de Heloisa e Abeillard no Pere-la-Chaise.―Bentham e Camões.―Chega o auctor á sua janella, e pasmosa miragem poetica produzida por umas oitavas dos Lusiadas.―De como emfim proseguem éstas viagens para Santarem, e que feito será de Joanninha.



Se eu for algum dia a Roma, heide entrar na cidade eterna com o meu Tito-Livio e o meu Tacito nas algibeiras do meu paletó de viagem. Alli, sentado n'aquellas ruinas immortaes, [2] sei que heide intender melhor a sua história, que o texto dos grandes escriptores se me hade illustrar com os monumentos d'arte que os viram escrever, e que uns recordam, outros presenciaram os feitos memoraveis, o progresso e a decadencia d'aquella civilização pasmosa.

E Juvenal e Horacio? o meu Horacio, o meu velho e fiel amigo Horacio!.. Deve ser um prazer regio ir lendo pela sacra-via fóra aquella deliciosa satyra, creio que a nona do L. I.

Ibam forte sacra via, sicut meus est mos,
Nescio quid meditans nugarum...

Deve ser maior prazer ainda, muito maior do que beijar o pé ao papa. Parece-me a mim; mas como eu nunca fui a Roma...

E não é preciso. Pegue qualquer na bella chronica d'elrei D. Fernando, a que Duarte Nunes menos estragou...

O Duarte Nunes foi um reformador iconoclasta das nossas chronicas antigas, truncou todas as imagens, raspou toda a poesia d'aquellas venerandas [3] e deliciosas sagas portuguezas... Em ponto historico pouco mais eram do que sagas, verdade seja, mas como taes, lindas. E o Duarte Nunes, que era um pobre grammaticão sem gôsto nem graça, foi-se ás filagranas e arrendados de finissimo lavor gothico d'aquelles monumentos, quebrou-lh'os; ficaram so os traços historicos que eram muito pouca e muito incerta coisa; e cuidou que tinha arranjado uma história, tendo apenas destruido um poema. Ficámos sem Nibelungen, podendo-o ter, e não obtivemos história porque se não podia obter assim.

Pois digo: pegue qualquer na bella chronica d'elrei D. Fernando, obedeça á lei concorrendo com o seu cruzado-novo para o augmento e glória da benemerita companhia que tem o exclusivo d'esses caranguejos de vapor que andam e desandam no rio, entre n'um dos referidos caranguejos, em que, além da porcaria e mau-cheiro, não ha perigo nenhum senão o de rebentar toda aquella camara-optica que anda por arames, e que em qualquer paiz civilizado onde a policia fizesse alguma coisa mais do que imaginar conspirações, ha muito estaria condemnada a ir alli caranguejar para as Lamas á sua vontade. Mas [4] emfim ca não ha d'outros nem haverá tam cedo, graças ao muito que agora, diz que, se cuida nos interêsses materiaes do paiz: e portanto tome o seu logar, passe o mesmo que eu passei; chegue-me a Santarem, descanse e ponha-se-me a ler a chronica: verá se não é outra coisa, vera se deante d'aquellas preciosas reliquias, ainda mutiladas, deformadas como ellas estão por tantos e tam successivos barbaros, estragadas emfim pelos peiores e mais vandalos de todos os vandalos, as auctoridades administrativas e municipaes do feliz systema que nos rege, ainda assim mesmo não ve erguer-se deante de seus olhos os homens, as scenas dos tempos que foram; se não ouve fallar as pedras, bradar as inscripções, levantar-se as estátuas dos tumulos; e reviver-lhe a pintura toda, reverdecer-lhe toda a poesia d'aquellas edades maravilhosas!

Tenho-o experimentado muitas vezes: é infallivel. Nunca tinha intendido Shakspeare em quanto o não li em Warwick, aope do Avon, debaixo de um carvalho secular, á luz d'aquelle sol baço e branco do nublado ceo d'Albion... ou á noite com os pés no fender, a chaleira a ferver no fogão, e sôbre a banca o crystal antigo de [5] um bom copo lapidado a luzir-me alambreado com os doces e perfumados resplendores do old sack; em quanto o fogão e os ponderosos castiçaes de cobre brunido projectam no antigo tecto almofadado, nos pardos compartimentos de carvalho que forram o apposento, aquellas fortes sombras vacillantes de que as velhas fazem visões e almas-do-outro-mundo, de que os poetas―poetas como Shakspeare―fazem sombras de Banco, bruxas de Mackbeth, e até a rotunda pansa e o arrastante espadagão do meu particular amigo Sir John Falstaff, o inventor das legítimas consequencias, o fundador da grande eschola dos restauradores caturras, dos poltrões pugnazes que salvam a patria de parolla e que ninguem os atura em tendo as costas quentes.

Oh Falstaff, Falstaff! eu não sei se tu es maior homem que Sancho Pança. Creio que não. Mas maior pansa tens, mais capacidade na pansa tens. Quando nossos avós renegaram de San' Thiago por castelhano perro, e invocaram a San' Jorge, tu vieste, ó Falstaff, em sua comitiva de Inglaterra e aqui tomaste assento, aqui ficaste, e foste o patriarcha d'essa immensa progenie de Falstaffs que por ahi anda.

[6] Este importante ponto da nossa história, da demissão de San'Thiago e da vinda de San'Jorge de Inglaterra com Sir John Falstaff por seu homem-de-ferro―ésta grande descoberta archeologica que tanta coisa moderna explica, como a fiz eu? Indo aos sitios mesmos, estudando alli os antigos exemplares: que é a minha doutrina.

Em tudo, para tudo é assim. Chegou um dia um inglez a Paris: um inglez legítimo e cru, virgem de toda a corrupção continental; calça de ganga, sapato grosso, cabello de cenoira, chapeo fillado na cova-do-ladrão. Era enthusiasta de Heloisa e Abeillard, foi-se ao Pére-la-Chaise, chegou ao tumulo dos dois amantes, tirou um livrinho da algibeira, pôs-se a ler aquellas cartas do Paracleto que tem indoidecido muito menos excentricas cabeças que a do meu inglez puro-sangue. Não é nada; excitou-se a tal ponto que entrou a correr como um perdido, bradando por um conego da sé que lhe acudisse, que se queria identificar com o seu modêlo, purificar a sua paixão, ser emfim um completo―ou um incompleto Abeillard.

Eu não sou susceptivel de tammanho enthusiasmo, [7] sôbretudo desde que dei a minha demissão de poeta e cahi na prosa. Mas aqui tem o que me succedeu o outro dia. Tinha estado ás voltas com o meu Bentham, que é um grande homem por fim de contas o tal quaker, e são grandes livros os que elle escreveu: cançou-me a cabeça, peguei no Camões e fui para a janella. As minhas janellas agora são as primeiras janellas de Lisboa, dão em cheio por todo esse Tejo. Era uma d'estas brilhantes manhans d'hynverno, como as não ha senão em Lisboa. Abri os Lusiadas á ventura, deparei com o canto IV e puz-me a ler aquellas bellissimas estancias

E ja no porto da inclita Ulyssea...

Pouco a pouco amotinou-se-me o sangue, senti baterem-me as arterias da fronte... as lettras fugiam-me do livro, levantei os olhos, dei com elles na pobre nau Vasco-da-Gama que ahi está em monumento-caricatura da nossa glória naval... E eu não vi nada d'isso, vi o Tejo, vi a bandeira portugueza fluctuando com a brisa da manhan, a tôrre de Belem ao longe... e sonhei, sonhei que era portuguez, que Portugal era outra vez Portugal.

[8] Tal fôrça deu o prestigio da scena ás imagens que aquelles versos evocavam!

Senão quando, a nau que salva a uns escaleres que chegam... Era o ministro da marinha que ia a bórdo.

Fechei o livro, accendi o meu charuto, e fui tractar das minhas camelias.

Andei tres dias com odio á lettra-redonda.

Mas de tudo isto o que se tira, a que vem tudo isto para as minhas viagens ou para o episodio do valle de Santarem em que ha tantos capitulos nos temos demorado?

Vem e vem muito: vem para mostrar que a história, lida ou contada nos proprios sitios em que se passou, tem outra graça e outra fôrça; vem para te eu dar o motivo porque n'estas minhas viagens, leitor amigo, me fiquei parado n'aquelle valle a ouvir do meu companheiro de jornada, e a escrever para teu aproveitamento, a interessante história da menina dos rouxinoes, da menina dos olhos verdes, da nossa boa Joanninha.

[9] Sim, aqui tenho estado extendido no chão, as mulinhas pastando na relva, os arrieiros fummando tranquillamente sentados, e as últimas horas de uma longa e calmosa tarde de julho a cahir e a refrescar com a aragem percursora da noite.

Mas basta de valle, que é tarde. Oh lá! venham as mulinhas e montemos. Picar para Santarem, que no inclyto alcaçar d'elrei D. Affonso-Henriques nos espera um bom jantar d'amigo―e não é so a vacca e riso de Fr. Bartholomeu dos Martyres, mas um verdadeiro jantar d'amigo, muito menos austero e muito mais risonho.

―'Porquê? ja se acabou a historia de Carlos e de Joanninha?' diz talvez a amavel leitora.

―'Não, minha senhora,' responde o auctor mui lisongeado da pergunta: 'não, minha senhora, a historia não acabou, quasi se póde dizer que ainda ella agora começa; mas houve mutação de scena. Vamos a Santarem, que lá se passa o segundo acto.'



CAPITULO XXVII.


Chegada a Santarem.―Olivaes de Santarem.―Fóra-de-Villa.―Symetria que não é para os olhos.―Modo de medir os versos da biblia.―Architectura pedante do seculo XVII.―Entrada na Alcáçova.



Eram as últimas horas do dia quando chegámos ao princípio da calçada que leva ao alto de Santarem. A pouca frequencia de povo, as hortas e pomares mal cultivados, as casas de [12] campo arruinadas, tudo indicava as vizinhanças de uma grande povoação descahida e desamparada. O mais bello comtudo de seus ornatos e glórias suburbanas, ainda o possue a nobre villa, não lh'o destruiram de todo; são os seus olivaes. Os olivaes de Santarem cuja riqueza e formosura proverbial é uma das nossas crenças populares mais geraes e mais queridas!.. os olivaes de Santarem lá estão ainda. Reconheceu-os o meu coração e alegrou-se de os ver; saudei n'elles o symbolo patriarchal de nossa antiga existencia. N'aquelles troncos velhos e coroados de verdura, figurou-se-me ver, como nas selvas incantadas do Tasso, as venerandas imagens de nossos passados; e no murmurio das folhas que o vento agitava a espaços, ouvir o triste suspirar de seus lamentos pela vergonhosa degeneração dos netos...

Estragado como os outros, profanado como todos, o olival de Santarem é ainda um monumento.

Os povos do meio-dia, infelizmente, não professam com o mesmo respeito e austeridade aquella religião dos bosques, tam sagrada para as nações do norte. Os olivaes de Santarem são excepção: [13] ha muito pouco entre nós o culto das árvores.

Subimos, a bom trotar das mulinhas, a impinada ladeira―eu alvoraçado e impaciente por me achar face a face com aquella profusão de monumentos e de ruinas que a imaginação me tinha figurado e que ora temia, ora desejava comparar com a realidade.

Chegámos emfim ao alto; a majestosa entrada da grande villa está deante de mim. Não me inganou a imaginação... grandiosa e magnífica scena!

Fóra-de-villa é um vasto largo, irregular e caprichoso como um poema romantico; ao primeiro aspecto, áquella hora tardía e de pouca luz, é de um effeito admiravel e sublime. Palacios, conventos, egrejas occupam gravemente e tristemente os seus antigos logares, infileirados sem ordem aos lados d'aquella immensa praça, em que a vista dos olhos não acha symetria alguma; mas sente-se n'alma. É como o rhytmo e medição dos grandes versos biblicos que se não cadenceiam por pés nem por sylabas, mas cahem certos [14] no espirito e na audição interior com uma regularidade admiravel.

E tudo deserto, tudo silencioso, mudo, morto! Cuida-se entrar na grande metropole de um povo extincto, de uma nação que foi poderosa e celebrada mas que desappareceu da face da terra e so deixou o monumento de suas construcções gigantescas.

Á esquerda o immenso convento do Sítio ou de Jesus, logo o das Donas, depois o de San'Domingos, célebre pelo jazigo do nosso Fausto portuguez―seja ditto sem irreverencia á memoria de San'Frei Gil que, é verdade, veio a ser grande sancto, mas que primeiro foi grande bruxo.―Defronte o antiquissimo mosteiro das Claras, e aopé as baixas arcadas gothicas de San'Francisco... de cujo último guardião, o austero Frei Diniz, tanta coisa te contei, amigo leitor, e tantas mais tenho ainda para te contar! Á direita o grandioso edificio philippino, perfeito exemplar da massissa e pedante architectura reaccionaria do seculo dezesette, o Collegio, typo largo e bello no seu genero, e quanto o seu genero póde ser, das construcções jesuiticas...

[15] Não ha alma, não ha genio, não ha espirito n'aquellas massas pesadas, sem elegancia nem simplicidade; mas ha uma certa grandeza que impõe, uma solidez travada, uma symetria de calculo, umas proporções frias, mas bem assentadas e esquadriadas com methodo, que revelam o pensamento do seculo e do instituto que tanto o characterizou.

Não são as fortes crenças da meia-edade que se elevam no arco agudo da ogiva; não é a relaxação florída do seculo quinze e desesseis que ja vacilla entre o byzantino e o classico, entre o mystico ideal do christianismo que arrefece e os symbolos materiaes do paganismo que acorda; não, aqui a renascença triumphou, e depois de triumphar, degenerou. É a inquisição, são os Jesuitas, são os Philippes, é a reacção catholica edificando templos para que se creia e se ore, não porque se crê e se ora.

Até aqui o mosteiro e a cathedral, a ermida e o convento eram a expressão da idea popular, agora são a fórmula do pensamento governativo.

Alli estão―olhae para elles―defronte uns [16] dos outros, os monumentos das duas religiões, a qual mais expressivo e loquaz, dizendo mais claro que os livros, que os escriptos, que as tradições, o pensamento das edades que os ergueram, e que alli os deixaram gravados sem saber que o faziam.

Mais embaixo, e no fundo d'esse declive, aquella massa negra é o resto ainda suberbo do ja immenso palacio dos condes de Unhão.

Rodeámos o largo e fomos entrar em Marvilla pelo lado do norte. Estamos dentro dos muros da antiga Santarem. Tam magnífica é a entrada, tam mesquinho é agora tudo ca dentro, a maior parte d'estas casas velhas sem serem antigas, d'estas ruas moirescas sem nada de arabe, sem o menor vestigio de sua origem mais que a estreiteza e pouco aceio.

As egrejas quasi todas porêm, as muralhas e os bastiões, algumas das portas, e poucas habitações particulares, conservam bastante da physionomia antiga e fazem esquecer a vulgaridade do resto.

[17] Seguimos a triste e pobre rua Direita, centro do debil commercio que ainda aqui ha: poucas e mal providas logeas, quasi nenhum movimento. Ca está a curiosa tôrre das Cabaças, a velha egreja de San'João do_Alporão. Ámanhan iremos ver tudo isso de nosso vagar. Agora vamos á Alcaçova!

Entrámos a porta da antiga cidadella.―Que espantosa e desgraciosa confusão de intulhos, de pedras, de montes de terra e calissa! Não ha ruas, não ha caminhos, é um labyrinto de ruinas feias e torpes. O nosso destino, a casa do nosso amigo é aopé mesmo da famosa e historica egreja de Sancta Maria da Alcaçova.―Hade custar a achar em tanta confusão.



CAPITULO XXVIII.


Depois de muito procurar acha emfim o auctor a egreja de Sancta-Maria d'Alcaçova.―Stylo da architectura nacional perdido.―O terremoto de 1755, o marquez de Pombal e o chafariz do Passeio-publico de Lisboa.―O chefe do partido progressista portuguez no alcassar de D. Affonso Henriques.―Deliciosa vista dos arredores de Santarem observada de uma janella da Alcaçova, de manhan.―É tomado o auctor de ideas vagas, poeticas, phantasticas como um sonho.―Introducção do Fausto.―Difficuldade de traduzir os versos germanicos nos nossos dialectos romanos.



Depois de muito procurar entre pardeiros e intulhos, achámo-la emfim a egreja de Sancta Maria d'Alcaçova. Achámos, não é exacto: ao menos eu, por mim, nunca a achava, nem [20] queria accreditar que fôsse ella quando m'a mostraram. A real collegiada de Affonso Henriques, a quasi-cathedral da primeira villa do reino, um dos principaes, dos mais antigos, dos mais historicos templos de Portugal, isto?.. esse egrejorio insignificante de capuchos? mesquinha e ridicula massa d'alvenaria, sem nenhuma architectura, sem nenhum gôsto! risco, execução e trabalho de um mestre pedreiro d'aldeia e do seu apprendiz! É impossivel.

Mas era, era essa. A antiga capella-real, a veneranda egreja da Alcaçova foi passando por successivos reparos e transformações, até que chegou a ésta miseria.

Perverteu-se por tal arte o gôsto entre nós desde o meio do seculo passado especialmente, os estragos do terremoto grande quebraram por tal modo o fio de todas as tradições da architectura nacional, que na Europa, no mundo todo talvez se não ache um paiz onde, a par de tam bellos monumentos antigos como os nossos, se incontrem tam villans, tam ridiculas e absurdas construcções públicas como essas quasi todas que ha um seculo se fazem em Portugal.

[21] Nos reparos e reconstrucções dos templos antigos é que este pessimo stylo, ésta ausencia de todo stylo, de toda a arte mais offende e escandaliza.

Olhem aquella impena classica posta de remate ao frontispicio todo renascença da Conceição-velha em Lisboa. Vejam a implastagem de geço com que estão mascarados os elegantes feixes de columnas gothicas da nossa sé.

Não se póde cahir mais baixo em architectura do que nós cahimos quando, depois que o marquez de Pombal nos traduziu, em vulgar e arrastada prosa, os rococós de Luiz XV, que no original, pelo menos, eram florídos, recortados, caprichosos e galantes como um madrigal, esse stylo bastardo, hybrido, degenerando progressivamente e tomando presumpções de classico, chegou nos nossos dias até ao chafariz do passeio-público!

Mas deixar tudo isso, e deixar a egreja da Alcaçova tambem; entremos nos palacios de D. Affonso Henriques.

[22] Aqui, pegado com o pardeiro rebocado da capella hãode ser. Por onde se entra?

Por ésta portinha estreita e baixa, rasgada, bem se ve que ha poucos annos, no que parece muro de um quintal ou de um páteo.

É comeffeito aqui; apeemo'-nos.

Recebeu-nos com os braços abertos o nosso bom e sincero amigo, actual possuidor e habitante do regio alcassar, o Sr. M. P.

Notavel combinação do acaso! Que o illustre e venerado chefe do partido progressista em Portugal, que o homem de mais sinceras convicções democraticas, e que mais sinceramente as combina com o respeito e adhesão ás fórmas monarchicas, esse homem, vindo do Minho, do berço da dynastia e da nação, viesse fixar aqui a sua residencia no alcassar do nosso primeiro rei, conquistado pela sua espada n'um dos feitos mais insignes d'aquella era de prodigios!

Entrámos na pequena horta em fórma de claustro que une a antiga casa dos reis com a [23] sua capella. Assim foi sem dùvida n'outro tempo: a parede oriental da egreja é o muro do quintal de um lado, mas as communicações foram vedadas provavelmente quando a coroa alienou o palacio e o separou assim perpetuamente do templo.

Plantado de larangeiras antigas, os muros forrados de limoeiros e parreiras, aquella pequena cêrca, apezar dos muitos canteiros e alegretes de alvenaria com que está moirescamente intulhada, é amena e graciosa á vista.

Appresentou-nos o nosso amigo a sua mulher, senhora de porte gentil e grave; beijámos seus lindos filhos, e fomos fazer as abluções indispensaveis depois de tal jornada para nos podermos sentar á mesa.

O palacio de Affonso Henriques está como a sua capella: nem o mais leve, nem o mais apagado vestigio da antiga origem. Sabe-se que é alli pela bem confrontada e inquestionavel topographia dos logares, por mais nada...

E que me importam a mim agora as antiguidades, [24] as ruinas e as demolições, quando eu sinto demolir-me ca por dentro por uma fome exasperada e destruidora, uma fome vandalica insaciavel!

Vamos a jantar.

Comêmos, conversámos, tomámos chá, tornámos a conversar e tornámos a comer. Vieram visitas, fallou-se politica, fallou-se litteratura, fallou-se de Santarem sôbretudo, das suas ruinas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente. Emfim, fomo'-nos deitar.

Nunca dormi tam regalado somno em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e appresurado dos sinos da Alcaçova. Saltei da cama, fui á janella, e dei com o mais bello, o mais grandioso, e ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda puz os meus olhos.

No fundo de um largo valle aprazivel e sereno, está o socegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre d'agua juncto ás margens, d'onde se debruçam verdes e frescos ainda os salgueiros que as ornam e defendem. D'alêm do rio, com os pés no pingue [25] nateiro d'aquellas terras alluviaes, os riccos olivedos d'Alpiarça e Almeirim; depois a villa de D. Manuel e a sua charneca e as suas vinhas. D'aquem a immensa planicie ditta do Rocio, semeada de casas, de aldeias, de hortas, de grupos de árvores sylvestres, de pomares. Mais para a raiz do monte em cujo cimo estou, o picturesco bairro da Ribeira com as suas casas e as suas egrejas, tam graciosas vistas d'aqui, a sua cruz de Sancta Iria e as memorias romanescas do seu alfageme.

Com os olhos vagando por este quadro immenso e formosissimo, a imaginação tomava-me azas e fugia pelo vago infinito das regiões ideaes. Recordações de todos os tempos, pensamentos de todo o genero me affluiam ao espirito, e me tinham como n'um sonho em que as imagens mais discordantes e disparatadas se succedem umas ás outras.

Mas eram todas melancholicas, todas de saudade, nenhuma de esperança!..

Lembraram-me aquelles versos de Goethe, [26] aquelles sublimes e inimitaveis versos da introducção do Fausto:

Resurgis outra vez, vagas figuras,
Vacillantes imagens que á turbada
Vista accudieis d'antes. E heide agora
Retter-vos firme? Sinto eu ainda
O coração propenso a illusões d'essas?
E appertais tanto!... Pois embora! seja:
Dominae, ja que em nevoa e vapor leve
Emtôrno a mim surgis. Sinto o meu seio
Juvenilmente trépido agitar-se
Co'a maga exhalação que vos circunda.
Trazeis-me a imagem de ditosos dias,
E d'ahi se ergue muita sombra amada:
Como um velho cantar meio-esquecido,
Véem os primeiros simplices amores
E a amizade com elles. Reverdece
A mágoa, lamentando o errado curso
Dos labyrintos da perdida vida;
E me está nomeando os que trahidos
Em horas bellas por fallaz ventura
Antes de mim na estrada se sumiram.
....................................................
....................................................

Não me atrevo a pôr aqui o resto da minha infeliz traducção: fiel é ella, mas não tem outro merito. Quem póde traduzir taes versos, quem de uma lingua tam vasta e livre hade passá-los [27] para os nossos appertados e severos dialectos romano para os nossos appertados e severos dialectos romanos?[1]



CAPITULO XXIX.


Doçuras da vida.―Imaginação e sentimento.―Poetas que morreram moços e poetas que morreram velhos.―Como são escriptas éstas viagens.―Livro de pedra. Criança que brinca com elle.―Ruinas e reparações.―Idea fixa do A. em coisas d'arte e litterarias.―Sancta Iria ou Irene, e Santarem.―Romance de Sancta Iria.―Quantas sanctas ha em Portugal d'este nome?



Este sonhar acordado, este scismar poetico deante dos sublimes spectaculos da natureza, é dos prazeres grandes que Deus concedeu ás almas de certa têmpera. Doce é gosar assim... mas [30] em que doçuras da vida não predomina sempre o acido poderoso que stimula! Tirae-lh'o, fica a insipidez; deixae-lh'o, ulcéra porfim os orgams: o gôso é mais vivo porque a acção do stímulo é mais sentida... mas a ulceração cresce, o coração está em carne-viva... agora o prazer é martyrio.

Infeliz do que chegou a esse estado!

Bemaventurado o que póde graduar, como Goethe, a dóze d'amphião que quer tomar, que poupa as sensações e a vida, e economiza as potencias de sua alma! N'esses porêm é a imaginação que domina, não o sentimento. Byron, Schiller, Camões, o Tasso morreram moços; matou-os o coração. Homero e Goethe, Sophocles e Voltaire acabaram de velhos: sustinha-os a imaginação, que não despende vida porque não gasta sensibilidade.

Imaginar é sonhar, dorme e repousa a vida no entretanto; sentir é viver activamente, cansa-a e consomme-a.

Isto é o que eu pensava―porque não pensava [31] em nada, divagava―em quanto aquelles versos do Fausto me estavam na memoria, e aquella saudosa vista do Tejo e das suas margens deante dos olhos.

Isto pensava, isto escrevo, isto tinha n'alma, isto vai no papel: que d'outro modo não sei escrever.

Muito me pêza, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas Viagens, se te falto, sem o querer, a promessas que julgaste ver n'esse titulo, mas que eu não fiz decerto. Querias talvez que te contasse, marco a marco, as leguas da estrada? palmo a palmo, as alturas e larguras dos edificios? algarismo por algarismo, as datas de sua fundação? que te resummisse a historia de cada pedra, de cada ruina?..

Vai-te ao padre Vasconcellos; e quanto ha de Santarem, peta e verdade, ahi o acharás em amplo folio e gorda lettra: eu não sei compor d'esses livros, e quando soubesse, tenho mais que fazer.

So tenho pena de uma coisa, é de ser tam [32] desestrado com o lapis na mão; porque em dois traços d'elle te dizia muito mais e melhor do que em tanta palavra que porfim tam pouco diz e tam mal pinta.

Santarem é um livro de pedra em que a mais interessante e mais poetica parte das nossas chronicas está escripta. Ricco de illuminuras, de recortados, de florões, de imagens, de arabescos e arrendados primorosos, o livro era o mais bello e o mais precioso de Portugal. Inquadernado em esmalte de verde e prata pelo Tejo e por suas ribeiras, fechado a broches de bronze por suas fortes muralhas gothicas, o magnífico livro devia durar sempre em quanto a mão do Creador se não extendesse para apagar as memorias da creatura.

Mas ésta Ninive não foi destruida, ésta Pompeia não foi submergida por nenhuma catastrophe grandiosa. O povo de cuja história ella é o livro, ainda existe; mas esse povo cahiu em infancia, deram-lhe o livro para brincar, rasgou-o, mutilou-o, arrancou-lhe folha a folha, e fez papagaios e bonecas, fez carapuços com ellas.

Não se descreve por outro modo o que ésta [33] gente chamada govêrno, chamada administração, está fazendo e deixando fazer ha mais de seculo em Santarem.

As ruínas do tempo são tristes mas bellas, as que as revoluções trazem, ficam marcadas com o cunho solemne da historia. Mas as brutas degradações e as mais brutas reparações da ignorancia, os mesquinhos concertos da arte parasyta, esses profanam, tiram todo o prestigio.

Tal é a geral impressão que me faz ésta terra. Almocemos, que ja oiço chamar para isso, e iremos ver depois se me inganei.

Ao almôço a conversação veio naturalmente a cahir no seu objecto mais óbvio, Santarem. D. Affonso Henriques e os seus bravos, San'Frei Gil e o Sancto-milagre, o Alfageme e o Condestavel, el-rei D. Fernando e a rainha D. Leonor, Camões desterrado aqui, Frei Luiz de Sousa aqui nascido, Pedralvares Cabral, os Docems, quasi todas as grandes figuras da nossa historia passaram em revista. Porfim veio Sancta Iria tambem, a madrinha e padroeira d'esta terra, cujo nome aqui fez esquecer o de romanos e celtas.

[34] Quem tem uma idea fixa, em tudo a mette. A minha idea fixa em coisas de arte e litterarias da nossa peninsula são as xacaras e romances populares. Ha um de Sancta Iria.

Porque é a Sancta Iria da trova popular tam differente da Sancta Iria das legendas monasticas?

A trova é ésta, segundo agora a rectifiquei e appurei pela collação de muitas e várias versões provinciaes com a ribatejana ou bordalenga, que em geral é a que mais se deve seguir.[2]



Stando eu á janella co'a minha almofada,
Minha agulha d'ouro, meu dedal de prata;

Passa um cavalleiro, pedia pousada;
Meu pae lh'a negou: quanto me custava!

―'Ja vem vindo a noite, é tam so a estrada...
Senhor pae, não digam tal da nossa casa,

Que a um cavalleiro que pede pousada
Se fecha ésta porta á noite cerrada.'

[35]
Roguei e pedi―muito lhe pezava!
Mas eu tanto fiz que porfim deixava.

Fui-lhe abrir a porta, mui contente entrava;
Ao lar o levei, logo se assentava.

Ás mãos lhe dei agua, elle se lavava;
Puz-lhe uma toalha, n'ella me limpava.

Poucas as pallavras, que mal me fallava,
Mas eu bem sentia que elle me mirava.

Fui a erguer os olhos, mal os levantava,
Os seus lindos olhos na terra os pregava.

Fui-lhe pôr a cea, muito bem ceava;
A cama lhe fiz, n'ella se deitava.

Dei-lhe as boas noites, não me replicava:
Tam má cortezia nunca a vi usada!

Lá por meia noite que me eu suffocava,
Sinto que me levam co'a bôcca tapada...

Levam-me a cavallo, levam-me abraçada,
Correndo, correndo sempre á desfilada.

Sem abrir os olhos, vi quem me roubava;
Callei-me e chorei―elle não fallava.
[36]
D'alli muito longe que me perguntava
Eu na minha terra como me chamava.

―'Chamavam-me Iria, Iria a fidalga;
Por aqui agora Iria, a cansada.'[3]

Andando, andando, toda a noite andava;
Lá por madrugada que me attentava...

Horas esquecidas commigo luctava;
Nem fôrça nem rogos, tudo lhe mancava.

Tirou do alfange... alli me matava,
Abriu uma cova onde me interrava.



No fim de sette annos passa o cavalleiro,
Uma linda ermida viu n'aquelle outeiro.

―'Minha Sancta Iria, meu amor primeiro,
Se me perdoares, serei teu romeiro.'

―'Perdoar não te heide, ladrão carniceiro,
Que me degollaste que nem um cordeiro.'



Ou houve duas sanctas d'este nome, ambas de aventurosa vida e que ambas deixassem longa e profunda memoria de sua belleza e martyrio―o de [37] que não tenho a menor idea―ou nos escriptos dos frades ha muita fábula de sua unica invenção d'elles que o povo não quiz acreditar: alias é inexplicavel a singeleza d'esta tradição oral.

Tam simples, tam natural é a narração poetica do romance popular, quanto é complicada e cheia de maravilhas a que se auctoriza nas recordações ecclesiasticas.

O caso é grave, fique para novo capitulo.



CAPITULO XXX.


Historia de Sancta Iria segundo os chronistas e segundo o romance popular.



A milagrosa Sancta Iria―Sancta Irene―que deu o seu nome a Santarem, donzella nobre, natural da antiga Nabancia[4], e freira [40] no convento dupplex[5] benedictino que pastoreava o sancto abbade Celio, floreceu pelos meados do septimo seculo. Namorou-se d'ella extremosamente o joven Britaldo, filho do conde ou consul Castinaldo que governava aquellas terras, e não podendo conseguir nada de sua virtude, cahiu infêrmo de molestia que nenhum physico acertava a conhecer, quanto mais a curar.

É sabido que a mais sancta lhe não pêza de que estejam a morrer por ella; e, mais ou menos, sempre sympathisa com as victimas que faz.

Sancta Iria resolveu consolar o pobre Britaldo; e ja que mais não podia por sua muita virtude, quiz ver se lhe tirava aquella louca paixão e o convertia. Sahiu, uma bonita manhan, do seu convento―que não guardavam ainda as freiras tam absoluta e estreita clausura―e foi-se a casa do namorado Britaldo.

Consolou como mulher e ralhou como sancta, e porfim, impondo-lhe na cabeça as lindas e bemdittas mãos, n'um instante o sarou de todo [41] achaque do corpo; e se lhe não curou o d'alma tambem, pelo menos lh'o adormentou, que parecia acabado.

Mas como o demo, em chegando a entrar n'um corpo humano, parece que não sai d'elle senão para se ir metter n'outro; tam depressa o inimigo deixou ao pobre Britaldo, como logo se foi incaixar em não menor personagem do que o monge Remigio, que era o mestre e director da bella Iria.

Arde o frade em concupiscencia, e não obtendo nada com rogos e lamentos, jurou vingar-se. Disfarçou porêm, fingiu-se emendado, e deu-lhe, quando ella menos cuidava, uma bebida de sua diabolica preparação, que apenas a sancta a havia tomado, lhe appareceram logo e continuaram a crescer todos os signaes da mais apparente maternidade.

Corre a fama do supposto estado da donzella, chovem as injúrias e os insultos dos que mais a tinham respeitado até então. E Britaldo, que se julga escarnecido pela hypocrisia d'aquella mulher artificiosa, em vez de a esquecer com desprêzo―sente [42] reviver-lhe, senão tam pura, muito mais ardente, toda a antiga paixão.

Tam mysterioso é o coração do homem!―tam vil! dirão os asceticos―tam inexplicavel! direi eu com os mais tolerantes.

Novas tentativas, promessas, ameaças do furioso amante... A sancta resiste a tudo, forte na sua virtude.

Costumava a devota donzella ir todas as noites a uma occulta lapa que jazia no fim da cêrca e juncto ao rio Nabão, para alli estar mais so com Deus, e desabafar com Elle á sua vontade. Soube-o Britaldo, espreitou a occasião e alli a fez apunhalar por um seu criado cujo nome a legenda nos conservou para maior testimunho de verdade: chamava-se Banam.

Banam! é um verdadeiro nome de mellodrama.

Morta a innocente, Banam despiu-lhe o hábito e lançou o corpo ao rio, que depressa a levou ás arrebatadas correntes do Zezere em que desagua; e logo este ao Tejo―que defronte da [43] antiga Scalabicastro lhe deu sepultura em suas louras areas, para maior glória da sancta e perpétua honra da nobillissima villa que hoje tem o seu nome.

Mas emquanto ia navegando o corpo da sancta, teve Celio, o abbade do convento, uma revelação que lhe descobriu a verdade e os milagres do caso; e communicando-a logo aos monges e ao povo de Nabancia, sahiu com todos de cruz alçada, e foi por esses campos da Golegan fóra, até chegar á Ribeira de Santarem. Ahi benzendo as aguas do rio, éstas se retiraram cortezes e deixaram ver o sepulchro que era de fino alabastro, obrado á maravilha pelas mãos dos anjos.

Chegaram aopé do tumulo, abriram-n'o, viram e tocaram o corpo da sancta, mas não o poderam tirar, por mais diligencias que fizeram. Conheceu-se que era milagre; e contentando-se de levar reliquias dos cabellos e da tunica, voltaram todos para a sua terra.

As aguas tornaram a junctar-se e a correr como d'antes, e nunca mais se abriram senão [44] d'ahi a seis seculos e meio, quando a boa rainha sancta Isabel, mulher d'el-rei D. Diniz, tam fervorosas orações fez aopé do rio pedindo á sancta que lhe apparecesse, que o rio tornou a abrir-se como o mar Vermelho á voz de Moises, dizem os devotos chronistas, e patenteou o benditto sepulchro.

Entrou a rainha a pé inchuto pelo rio dentro, seguida de seu real espôso e de toda a sua côrte; mas por mais que rezasse ella, e que trabalhassem os outros com todas as fôrças humanas, não poderam abrir o tumulo; quebraram todas as ferramentas, era impossivel. Desinganado el-rei de que um podêr sobrehumano não permittia que elle se abrisse, mandou a toda a pressa levantar um padrão muito alto sôbre o mesmo tumulo, e tam alto que o rio na maior inchente o não podesse cubrir.

O rio esperou com toda a paciencia que os pedreiros acabassem, e quando viu que podia continuar a correr, deu aviso, retiraram-se todos, tornaram a junctar-se as a O rio esperou com toda a paciencia que os pedreiros acabassem, e quando viu que podia continuar a correr, deu aviso, retiraram-se todos, tornaram a junctar-se as aguas e o padrão ficou sobresahindo por cima d'ellas.

[45] Passaram mais tres seculos e meio; e no anno de 1644 a camara de Santarem mandou refazer de cantaria lavrada o ditto marco ou pedestal que não era senão de alvenaria, e pôr-lhe em cima a imagem da sancta.

Ainda lá está, assás mal cuidado com tudo; lá o vi com estes olhos peccadores no corrente mez de julho de 1843. Mas, sem milagre nem orações, o rio tinha-se retirado, havia muito, para um cantinho do seu leito, e o padrão estava perfeitamente em sêcco, e em sêcco está todo o anno até começarem as cheias.

Tal é, em fidelissimo resummo, a historia da Sancta Iria dos livros.

A das cantigas é, como ja disse, muito outra e muito mais simples, conta-se em duas palavras. A sancta está em casa de seus paes; um cavalleiro desconhecido, a quem dão pousada uma noite, levanta-se por horas mortas, rouba a descuidada e innocente donzella, foge a todo o correr de seu cavallo, e chegado a um descampado d'alli muito longe, pretende fazer-lhe violencia... A sancta resiste, elle mata-a. D'alli a annos [46] passa por ahi o indigno cavalleiro, ve uma linda ermida levantada no proprio sítio onde commetteu o crime, pergunta de que sancta é, dizem-lhe que é de Sancta Iria. Elle cai de joelhos a pedir perdão á sancta, que lhe lança em rosto o seu peccado e o amaldiçoa.

E acabou a historia.

Sería o povo que se esqueceu nas suas tradições, ou os frades que augmentaram nas suas escripturas? Pois a legenda monastica é realmente bella e cheia de poesia e romance, coisas que o povo não costuma desprezar.

É difficil de explicar-se este phenomeno, interessantissimo para qualquer observador não vulgar, que n'estas crenças do commum, n'estas antigualhas, desprezadas pela suberba philosophia dos nescios, quer estudar os homens e as nações e as edades onde elles mais sinceramente se mostram e se deixam conhecer.

A extrema simplicidade do romance ou xacara de Sancta Iria, o ser elle, d'entre todos os que andam na memoria do nosso povo, o [47] mais geralmente sabido e mais uniformente repettido em todos os districtos do reino, e com poucas variantes nas palavras, nenhuma no contexto, me faz crer que ésta seja das mais antigas composições não so da nossa lingua, mas de toda a peninsula. A phrase tem pouco sabor antigo: este é um d'aquelles poemas quasi aborigines que a tradição tem vindo intregando, e ao mesmo tempo traduzindo, de paes a filhos insensivelmente; e tambem não é porcerto dos que desceram do palacio ás choupanas e fugiram da cidade para as aldeas, como em muitos outros se conhece: este visivelmente nasceu nos arraiaes, nos oragos dos campos, e por lá tem vivido até agora.

A fórma metrica da composição é a que a phrase didatica das Hispanhas chamou romance em endechas. Eu, adoptando para elle, mais que para a fórma ordinaria do metro octosyllabo, a theoria do ingenhoso philologo allemão, Deeping, tam benemerito da nossa litteratura peninsular, creio que estes são verdadeiros versos de dôze syllabas, e que as coplas não constam senão de dous versos cada uma, segundo a óbvia significação da palavra. O povo cantando não separa os hemistychios [48] d'estes versos como fazem os que os escrevem: e ao contrário nos romances da medida mais commum, o canto popular reparte distinctamente cada membro de oito syllabas sôbre si.

Não sei se me ingano, mas desconfio que as quatro coplas últimas, em que muda completamente a rhyma, sejam additamento posterior feito á cantiga original. Todavia estes oito versos apparecem, com ligeiras variantes, em toda a parte.



CAPITULO XXXI.


Quommodo sedet sola civitas.―Santarem.―Portugal em verso e Portugal em prosa.―Exquisito lavor de umas portas e janellas de architectura mosarabe.―Busto de D. Affonso Henriques.―As salgadeiras de Affrica.―Porta do Sol.―Muralhas de Santarem.―Voltemos á historia de Fr. Diniz e da menina dos olhos verdes.



Eram mais de dez horas da manhan quando sahimos a começar a longa viasacra de reliquias, templos e monumentos que são hoje toda Santarem.

[50] A vida palpitante e actual acabou aqui inteiramente: hoje é um livro que so recorda o que foi. Entre a historia maravilhosa do passado que todas éstas pedras memoram, e as prophecias tremendas do futuro que parecem gravadas n'ellas em characteres mysteriosos, não ha mais nada: o presente não é, ou é como se não fosse: tam pequeno, tam mesquinho, tam insignificante, tam desproporcionado parece a tudo isto.

Dá vontade de intoar com o poeta inspirado de Jerusalem: 'Quommodo sedet sola civitas!' Portugal é, foi sempre uma nação de milagre, de poesia. Desfizeram o prestigio; veremos como elle vive em prosa. Morrer, não morre a terra, nem a familia, nem as raças: mas as nações deixam de existir.―Pois embora, ja que assim o querem. A mim não me fica escrupulo.

Passámos a egreja da Alcaçova, que achámos ja fechada; e tomando sempre sôbre a esquerda, fomos pelo que hoje parece uma azinhaga de entre quintas, mas que visivelmente foi n'outras eras a rua mais fashionavel d'esta villa cortezan. Aqui estão quasi aopé da egreja umas portas e janellas [51] do mais fino lavor e gôsto mosarabe que me lembra de ter visto.

E a proposito, porque se não hade adoptar na nossa peninsula ésta designação de mosarabe para characterizar e classificar o genero architectonico especial nosso, em que o severo pensamento christão da architectura da meia edade se sente relaxar pelo contacto e exemplo dos habitos sensuaes moirescos, e de sua luxuosa e redundante elegancia?

De que palacio incantado foram éstas portas tam primorosamente lavradas? Que bellezas se debruçaram d'essas arrendadas janellas para ver passar o cavalleiro escolhido do seu coração? São tam lindas, tam elegantes ainda éstas pedras desconjunctadas, e mal sustidas de um muro insosso e grosseiro que as facea, que naturalmente despertam a mais adormecida imaginação a quanto sonho de fadas e trovadores a poesia fez nascer dos mysterios da edade-média.

Pouco mais adeante está, em um mau nicho escalavrado e feio, um pretendido busto de D. Affonso Henriques, a que attribuem grande antiguidade. [52] Não me fez esse effeito a mim.

Chegámos á porta do Sol; sentamo'-nos alli a gosar da majestosa vista. É majestosa mas triste. A ribanceira que d'alli corta abaixo, até ao rio, é arida e quasi calva: cobrem-n'a apenas, como a mal povoada nuca de um velho, alguns tufos de verdura cinzenta e grisalha de um arbusto rasteiro, meio frutex meio herbaceo que aqui chamam 'Salgadeira' e que a tradicção diz ter vindo de Affrica para segurar a terra n'estes taludes e precipicios. O aspecto e hábito da planta é realmente affricano e oriental, não tem nada de europeu. Mas ésta derradeira e occidental parte da nossa Hespanha é, geologicamente fallando, ja tam affrica, tam pouco europa, que não sería necessaria a transplantação talvez; e porventura ficou ésta memoria entre o povo do uso que os moiros faziam da planta para esse fim.

Ésta porta do sol dizem que é onde se faziam as execuções em tempos antigos. Foi bem escolhido o sítio; não o ha mais triste e melancholico. Aopé está um torreão quadrado da muralha que ahi fórma canto para seguir depois na [53] direcção de sul a norte. D'este lado as fortificações e lanços de muro estão todas pouco estragadas; e do mirante a que subimos, póde-se formar perfeita idea do que era uma antiga cidade murada.

Sería aqui, dizia eu commigo, que o nosso Fr. Diniz de quem ja tenho saudades―o velho guardião de San'Francisco veio chorar o seu ultimo threno sôbre as ruinas da antiga monarchia? Sería aqui n'este logar de desolação e melancholia que correram as suas derradeiras lagrymas! Elle que ja não chorava, acharia aqui quem desse aos seus olhos as fontes de agua que o coração lhe pedia para se desaffogar dos pezares que o rallavam na aridez e seccura de sua desconsolada velhice?

Passavam-me éstas ideas pelo pensamento quando o historiador que tantos capitulos nos retteve no vale, contando-nos os successos de Joanninha e da sua familia, nos disse:

'Sentemo-nos aqui na sombra que faz ésta muralha e acabemos a historia da menina dos rouxinoes. De tarde vamos á Ribeira saudar a memoria [54] do Alfageme. Ámanhan de manhan está detalhado que iremos ver a Graça, o Sancto milagre, San' Domingos e San' Francisco. Concluamos hoje ésta historia.'

'Seja' respondemos nós.

Entraremos portanto em novo capitulo, leitor amigo; e agora não tenhas medo das minhas digressões fataes, nem das interrupções a que sou sujeito. Irá direita e corrente a historia da nossa Joanninha até que a terminemos... em bem ou em mal? D'antes um romance, um drama em que não morria ninguem era havido por semsabor; hoje ha um certo horror ao tragico, ao funesto que perfeitamente quadra ao seculo das commodidades materiaes em que vivemos.

Pois, amigo e benevolo leitor, eu nem em principios nem em fins tenho eschola a que esteja sujeito, e heide contar o caso como elle foi.

Escuta.



CAPITULO XXXII.


Tornámos á historia de Joanninha.―Preparativos de guerra.―A morte.―Carlos ferido e prisioneiro.―O hospital.―O infermeiro.―Georgina.



'Escuta!' disse eu ao leitor benevolo no fim do último capítulo. Mas não basta que escute, é preciso que tenha a bondade de se recordar do que ouviu no capitulo XXV e da situação em [56] que ahi deixámos os dous primos, Carlos e Joanninha.

N'este despropositado e inclassificavel livro das minhas Viagens, não é que se quebre, mas inreda-se o fio das historias e das observações por tal modo, que, bem o vejo e o sinto, so com muita paciencia se póde deslindar e seguir em tam imbaraçada meada.

Vamos pois com paciencia, caro leitor; farei por ser breve e ir direito quanto eu podér.

Lembra-te como n'uma noite pura, serena e estrellada, aquelles dous se despediram um do outro no meio do valle, como se despediram tristes, duvidosos, infelizes, e ja outros, tam outros do que d'antes foram.

N'essa mesma noite, a ordenada confusão de um grande movimento de guerra reinava nos postos dos constitucionaes. Á longa apathia de tantos mezes succedia uma inesperada actividade. Preparavam-se os sanguinolentos combates de Pernes e de Almoster, que não foram decisivos logo, mas que tanto appressaram o termo da contenda.

[57] Carlos achou ordem de se appresentar no quartel-general, partiu immediatamente. O pensamento absorvido por ideas tam differentes, tam confuso, tam alheado de si mesmo, seguiu machinalmente o corpo. Foi, chegou, recebeu as instrucções que lhe deram, e voltou mais satisfeito, mais tranquillo.

Tractava-se de morrer. Não sabe o que é verdadeira angústia d'alma o que ainda não abençoou a morte que viu deante de si, o que a não invocou ainda como unico remedio de seu mal, ou, o que é mais desesperado, como unica sahida de suas fataes perplexidades.

Estes momentos são raros na vida, é certo; mas quando occorrem, não ha exaggeração nenhuma em dizer que antes, muito antes a morte do que elles.

Oh! e se a morte que se contempla é de honra e glória, se o enthusiasmo, tirando fortemente a corda dos nervos, os faz vibrar n'aquelles tons secretos e mysteriosos que arrebatam, e elevam o coração do homem á sublime abnegação de si, e de tudo o que é piqueno, baixo e vil [58] na sua natureza―oh então a morte parece um triumpho, uma bemaventurança porcerto!

Carlos esqueceu-se de tudo, menos da sua espada que affiou com escrupuloso cuidado, e das suas boas e seguras pistolas inglezas que limpou minuciosamente, carregou e escorvou com um verdadeiro amor de artista que se compraz no último acabamento de um trabalho predilecto.

O pouco da noite que lhe restava passou-se n'isto, a marcha começou antes do dia. E os primeiros raios do sol foram saudados pelo fuzilar das espingardas, e pelo trovejar dos canhões.

Combateu-se larga e incarniçadamente―como entre irmãos que se odeiam de todo o odio que ja foi amor―o mais cruel odio que tem a natureza!

O dia declinava ja quando n'um hospital em Santarem entravam muitas maccas de feridos, e entre elles, um todo crivado de ballas e cuberto de sangue que, assim pelos restos do un O dia declinava ja quando n'um hospital em Santarem entravam muitas maccas de feridos, e entre elles, um todo crivado de ballas e cuberto de sangue que, assim pelos restos do uniforme como por certo ar bem conhecido―e charecteristica [59] então, se via claramente ser do exército constitucional.

Eram muitas e perigosas as feridas d'esse homem; estenderam-n'o n'uma especie de tarimba sôbre que havia alguma palha, e quando lhe chegou a sua vez foi examinado e pençado como os outros. Não dava signal de padecer, tinha os olhos fechados, o pulso forte mas não agitado de febre; não proferia uma syllaba, não soltava um ai, e prestava-se a tudo o que lhe diziam e faziam, menos a soltar da mão esquerda que apertava contra o peito o que quer que fosse que alli tinha seguro e que lhe pendia ao pescosso de uma estreita fitta preta.

Assim o deixaram largo tempo: elle adormeceu. Não sería largo, mas foi profundo o seu dormir. Quando acordou ja se não viu no vasto caravanseray d'aquelle confuso hospital, mas n'um pequeno quarto arejado, limpo, e quasi confortavel que em tudo parecia cella de convento, menos na boa cama em que jazia o doente, e na extremada elegancia do infermeiro que o velava.

O quarto era comeffeito uma cella do convento [60] de San'Francisco em Santarem, o doente o nosso Carlos; e o infermeiro que o velava, uma bella mulher de estatura não acima de ordinaria mas nem uma linha menos, involvida nas amplissimas pregas de um longo roupão de seda d'aquella acertada côr que, em dialecto da rua Vivienne, se diz scabieuse; a cabeça toucada de finissima Bruxellas, com uns laços de preto e côr de granada que realçavam a transparencia das rendas, a infinita graça dos longos e ondados aneis louros do cabello, e a pureza symetrica de um rosto oval, classico, perfeito, sem grande mobilidade de expressão mas bello, bello, quanto póde ser bello um rosto em que pouco d'alma se reflecte, e em que a serena languidez de uns olhos azues entibía e modera a energia do sentimento que não é menos profundo talvez, mas certamente se expande menos.

De joelhos juncto ao leito de Carlos, com a mão direita d'elle nas suas, os olhos seccos mas fixos nas descahidas palpebras do soldado, aquella mulher estava alli como a estátua da dor e da anxiedade. A uma porta interior e que abria para De joelhos juncto ao leito de Carlos, com a mão direita d'elle nas suas, os olhos seccos mas fixos nas descahidas palpebras do soldado, aquella mulher estava alli como a estátua da dor e da anxiedade. A uma porta interior e que abria para uma especie de alcova obscura, em pé, os braços cruzados e mettidos nas mangas, o capuz [61] na cabeça, estava um frade velho, alto mas curvado do pêso dos annos ou dos soffrimentos.

O frade contemplava o infêrmo e a infermeira, mas visivelmente não queria ser visto n'essa occupação, porque ao menor estremecimento do doente recuava apressado e como assustado para o interior da sua alcova.

Uma so vela de cera allumiava este quadro, accidentando-o de fortes sombras, e dando-lhe um tom de solemnidade verdadeiramente magico e sublime.

Carlos segurava ainda na esquerda com o mesmo affêrro o relicario ou talisman, o que quer que era que não queria desprender de seu coração. A bella infermeira beijava de vez em quando aquella mão tenaz que estremecia a cada beijo, por mais suave e mimoso que fosse o leve contacto d'esses labios delicados.

A outra mão estava nas mãos d'ella, mas era insensivel a tudo, essa.

[62] O silencio era o do sepulchro: so se ouvia o respirar incerto e descompassado do infêrmo.

Derepente Carlos entreabriu as palpebras e exclamou em inglez: 'Oh Georgina, Georgina, I love you still.'―(Georgina, Georgina, eu ainda te amo).

Duas lagrymas―duas perolas, d'estas que se criam com tanta dor no coração e que ás vezes sahem com tanto prazer dos olhos―romperam do celeste azul dos olhos da dama e suavemente correram por aquellas faces de uma alvura pallida e mortal.

Carlos accordou de todo, abriu os olhos e cravou-os fixamente no rosto angelico d'essa mulher.

Esteve assim minutos: ella não dizia nada nem de voz nem de gesto: fallavam-lhe so as lagrymas que corriam quietas, quietas, como corre uma fonte perenne e nativa d'agua que mana sem esfôrço nem impeto, por um declive natural e facil.

[63] ―'Onde estou eu, Georgina?'

―'Nos meus braços.'

―'Que me succedeu?'

―'Que não podes ser feliz senão n'elles: bem sabes.'

―'Sei... devia saber.'

―'Hasde sabe-lo agora. O passado...'

―'O passado! qual?'

―'O passado deixou de existir.'

―'E o futuro?'

―'Eu não creio no futuro.'

―'Porquê?'

―'Porque tu me disseste que não cresse.'

―'Eu!.. Eu sou um...'

[64] ―'Um homem.'

―'Oh!'

―'Basta e descança. Amanhan fallaremos.'

―'Estou ferido, muito; e doe-me agora... não me doía.'

―'Estás, mas sem perigo: e estou eu aqui. Dorme.'

―'Não posso. Que casa é ésta?'

―'San'Francisco de Santarem.'

―'Deus de misericordia!'

―'Es prisioneiro: sára, e eu te livrarei.'

―'Tu!―E tu aqui, como?'

―'Vim buscar-te, e achei-te assim.'

―'Georgina!'

[65] ―'Que tens tu ahi tam seguro na mão esquerda?'

―'Vê: a medalha com o teu cabello.'

―'Então amas-me tu ainda?'

―'Se te amo! Como no primeiro...'

―'Não mintas, Carlos... E dorme.'

―'Oh meu Deus, meu Deus! Georgina aqui, eu n'este estado e... E a minha gente?'

―'A tua gente está salva.'

―'Aonde?'

―'Aqui mesmo, em Santarem.'

―'Quero... não quero... Oh sim, quero mas é morrer. Tende misericordia de mim, meu Deus!'

―'Socega, Carlos.'

Mas Carlos não socegava: immudeceu porque [66] a torrente de seus pensamentos, o incontrado d'elles, e o inesperado d'aquella situação lhe imbargavam a voz, e o quebramento das fôrças lhe tolhia os movimentos do corpo; mas o espirito inquieto e alvoraçado revolvia-se dentro com um phrenesi louco. Era pasmar o que elle soffria.

Á fôrça de bebidas calmantes o accesso diminuiu, a noite passou mais tranquilla; e pela manhan o doente não dava cuidado ao facultativo que o veio ver.

Prohibiram-lhe fallar; e Georgina tinha a coragem de lhe resistir, de lhe não responder todas as vezes que elle tentava quebrar o preceito de que dependia a sua vida... e a d'ella, porque a infeliz amava-o... oh! amava-o como se não ama senão uma vez n'este mundo.

Passaram dias, semanas, Carlos estava melhor, estava salvo; Georgina pôde dizer-lhe um dia:

―'Carlos, meu Carlos, tu estás livre de perigo, vou restituir-te aos teus.'

―'Os meus!'

[67] ―'Os teus. Tua avó, tua prima...'

―'Joaninha! oh! Joanninha...'

―'Tua avó que tambem tem estado a morrer mas que emfim está escapa, ignora que tu estejas aqui. Occultámo-lo egualmente a tua prima.'

―'Ah!'

―'Sim, assentámos de lh'o não dizer a uma nem a outra até que tivessemos certeza da tua melhora. Hoje porêm vais ve-las. E eu...'

―'Tu!'

―'Eu não tenho aqui mais nada que fazer.'

―'Georgina!'

―'Carlos!'

―'Tu ja me não amas?'

―'Não.'

[68] Seguiu-se um silencio torvo e abafado como o da calma que precede as grandes tempestades. O rosto de Georgina estava impassivel, Carlos estorcia-se debaixo de uma compressão horrivel e incapaz de se descrever.



CAPITULO XXXIII.


Carlos e Georgina. Explicação.―Ja te não amo! palavra terrivel.―Que o amor verdadeiro não é cego.―Frade no caso outra vez. Ecce iterum Crispinus; ca está o nosso Fr. Diniz comnosco.



―'Tu ja me não amas, Georgina, tu!' exclamou Carlos depois de uma longa e penosa lucta comsigo mesmo: 'Ja me não amas tu, Georgina? Ja não sou nada para ti n'este [70] mundo? Aquelle amor cego, louco, infinito, que derramavas em torrentes sôbre a minha alma, em que trasbordava o teu coração; aquelle amor que eu cheguei a persuadir-me que era o maior, o mais sincero, talvez o unico verdadeiro amor de mulher que ainda houve no mundo, esse amor acabou, Georgina? Seccou-se no teu peito a fonte celeste d'onde manava? Nem as recordações de nossa passada felicidade, nem as memorias dos crueis lances que nos custou, dos sacrificios tremendos que por mim fizeste, nada, nada póde acordar na tua alma um echo, um echo sumido que fosse, da antiga harmonia de nossas vidas―da nossa vida, Georgina, porque nós chegámos a confundir n'um só os dois seres da nossa existencia―Oh! porque vivi eu até este dia? E tu, tu que refinada crueldade te inspirou o salvar uma vida que tinhas condemnado, que tinhas sacrificado quando a separaste da tua?'

―'Carlos,' respondeu Georgina com a fria mas compassiva piedade que mais o desesperava:―'Carlos, não abuses da pouca saude que ainda tens. O esfôrço d'alma que estás fazendo póde-te ser prejudicial. Socega. Tu illudes-te, e [71] sem querer, procuras illudir-me tambem a mim. Entra em ti, Carlos, e discorramos pausadamente sôbre a nossa situação, que não é agradavel porcerto nem para um nem para outro, mas que póde supportar-se se tivermos juizo para a incarar toda e sem medo, e para nos convencermos com lealdade e franqueza do que ella realmente é. Ouve-me, Carlos: tu amaste-me muito...'

―'Oh como, oh quanto! Nenhum homem...'

―'Poucos homens, é certo, amaram ainda como tu... quem sabe! talvez nenhum.―Não quero perder ésta última illusão... ja não tenho outra... Talvez nenhum amou como tu me amaste ou... ou cuidaste amar-me. Eu... oh! eu quiz-te... pelo eterno Deus que me ouve! eu quiz-te com uma cegueira d'alma, n'uma singeleza de coração, com um abandôno tam completo, uma abnegação tam inteira de mim mesma, que realmente creio, este é o amor que so a Deus se deve, que so ao Creador a creatura póde consagrar licitamente.

Bem castigada estou: mereci-o.'

[72] ―'Georgina, Georgina!'

―'Deixa-me, quero desabafar eu tambem agora. Ouve-me, tens obrigação de me ouvir.―Se te dei provas d'este amor, tu o sabes; se desde que te amei, uma palavra, um gesto, um pensamento unico, um so e o mais leve relampejar da imaginação desmentiu em mim d'esta absoluta e exclusiva dedicação de todo o meu ser... dize-o tu.'

―'Não, minha alma, não, minha vida, não; tu és um anjo, tu es...'

―'Sou uma mulher que te amava como creio que ordinariamente se não ama.'

―'Não, certo, não.'

―'Fomos felizes, é verdade; e creio que poucos amantes ainda foram tam felizes como nós nos breves dias que isto durou.―Tu partiste para a tua ilha; era forçoso partir, conheci-o e resignei-me. Consolavam-me as tuas cartas, as tuas cartas de fogo, escriptas, oh se o eram escriptas com o mais puro sangue do teu coração. [73] Nunca duvidei do que me ellas diziam: não se mente assim, tu não mentias então. É falso que o amor seja cego: o amor vulgar póde sê-lo, amor como o meu, o amor verdadeiro tem olhos de lynce: eu bem via que era amada. Nunca me escreveste a protestar fidelidade, e eu sabía, eu via que tu me eras fiel.―Assim passaram meses, annos. Na ilha e no Porto foste o mesmo. Eu padecia muito, mas confortava-me, vivia de esperanças... triste viver mas doce! Emfim vieste para Lisboa, para aqui... e as tuas cartas que não eram menos ternas nem menos apaixonadas...'

―'Se eu nunca deixei, nem um momento...'

Com um gesto expressivo, e de suave mas resoluta denegação, Georgina pôs a mão na bôcca do pobre Carlos, como para o impedir de dizer uma blasphemia. Elle segurou-a com as suas ambas e lh'a beijou mil vezes com um arrebatamento, uma furia, n'um paroxismo de lagrymas e de soluços, que partiriam o coração ao mais indifferente. Commoveu-se, vacillou a inalteravel rigidez do bello rosto da dama, abaixaram-se [74] as longas palpebras de seus olhos; mas se chegou até elles alguma lagryma mais rebelde, prompta refluiu para o coração, porque ao levantá-los outra vez e ao fixá-los tranquillamente nos do seu amante, aquelles olhos puros, celestes e austeros como os de um anjo offendido, estavam seccos.

Ella continuou:

―'As tuas cartas, que não eram menos ternas nem menos apaixonadas, começaram todavia a ser menos naturaes, mais incarecidas... eram menos verdadeiras por fôrça. Senti-o, vi-o, e cuidei morrer. Uma familia da minha amizade vinha então para Portugal, accompanhei-a. Apenas cheguei, procurei e obtive os meios seguros de tranzitar pelos dous campos contendores: presagiava-me o coração que me havia de ser preciso. E foi; cheguei ao valle no dia em que tu o deixavas para aquella fatal acção que te ia custando a vida. Vim-te incontrar prisioneiro e meio morto no hospital dos feridos. Aopé de ti estava um frade...'

―'Um frade! Meu Deus, se seria elle?'

[75] ―'Era elle.'

―'Pois tu sabes?..'

―'Sei: eu disse-lhe quem era e o que tu me eras...'

―'Tu a elle... disseste?..'

―'Disse. Não sei se fiz mal ou bem, sei que me não importava o que fazia. Vi depois que me não inganára na confiança que posera n'elle. Trouxemos-te para este convento, trattámos de ti, conseguimos salvar-te a vida... E em quanto esse cuidado me livrava de outros, fui... fui feliz. A tua gente... a tua familia do valle tambem veio para Santarem... tua avó e tua prima, Carlos...'

―'Joanninha! Joanninha está aqui?'

―'Está; socega; ja t'o disse, logo a verás.'

―'Eu! Eu para quê? Eu não quero...'

[76] ―'Quero eu: hasde ve-la. Ja sabes que sei tudo.'

―'Tudo o quê, Georgina?'

―'Queres que t'o repitta? Repettirei. Que tu amas tua prima, que ella que te adora. E por Deus, Carlos eu ja lhe quero como se fôra minha irman. Intendes bem agora que te não amo? Comprehendes agora que tudo acabou entre nós, e que não vejo, não posso ver em ti ja senão o espôso, o marido da innocente criança que tomei debaixo da minha protecção, e a quem juro que hasde pertencer tu?'

―'Juras falso.'

―'Como assim! Pois queres mais victimas? Não estás satisfeito com a minha ruina? Eu aomenos não sou do teu sangue. E essa velha decrepita que é tua avó, que duas vezes foi em verdade tua mãe porque te criou,―essa innocente que te ama na singelleza do seu coração... e esse pobre frade velho...'

―'Oh! aqui anda elle, bem o vejo, aqui [77] anda o genio mau da minha familia. Malditto sejas tu, frade!'

O desgraçado não acabára bem de pronunciar éstas palavras, quando a porta da alcova se abriu de par em par, e a rigida, ascetica figura de Fr. Diniz estava deante d'elle.



CAPITULO XXXIV.


Carlos, Georgina e Fr. Diniz.―A peripecia do drama.―



Carlos estava meio sentado meio deitado n'uma longa cadeira de recôsto; Georgina em pé, com os braços cruzados e na attitude de reflexiva tranquillidade. Um sol brilhante e ardente, [80] um sol de maio, feria os estreitos vidros da pequena janella que so dava luz áquelle quarto: a excessiva claridade era velada por uma longa e ampla cortina.

Carlos lançou derepente a mão a essa cortina e a affastou para avivar a luz do aposento. Um raio agudissimo de sol foi bater direito no macerado rosto do frade, e reflectiu de seus olhos incovados, um como relampago de íra celeste que fez estremecer os dous amantes.

Não foi porêm senão relampago; sumiu-se, apagou-se logo. Aquelles olhos ficaram mortaes, mudos, fixos, invidraçados como os de um homem que acabou de expirar e a quem não cerraram ainda as palpebras.

E assim mesmo aquelles olhos tinham o podêr magnetico de fixar os outros, de os não deixar nem pestanejar.

Curvo, incostado a um bordão grosseiro, o seu chapeo alvadio debaixo do braço, o frade deu alguns passos tremulos para onde estavam os dous, arrastando a custo as sôltas alpercatas que davam [81] um som baço e batido, e faziam―não sei por quê nem como―estremecer a quem as sentia.

Parou a pouca distancia, e tirando a voz fraca e tenue, mas vibrante e solemne, do íntimo do peito, disse para Carlos:

―'Tu mal disseste-me, filho, e eu venho perdoar-te. Tu detestas-me, Carlos, de todos os podêres da tua alma, com toda a energia de teu coração; e eu venho-te dizer que te amo, que tomára dar a minha vida por ti, que do fundo das intranhas se ergue este immenso amor que não tem outro egual, a pedir-te misericordia, a clamar-te em nome de Deus e da natureza, a pedir-te, por quanto ha sancto no ceo e de respeito na terra, que levantes essa maldicção, filho, de cima da cabeça de um moribundo.'

Eram dittas em tal som estas vozes, vinham pronunciadas lá de dentro d'alma com tal vehemencia, que lh'as não articulavam os labios, rompiam-n'os ellas e sahiam.

O soldado parecia desaccordado, confuso e sem intelligencia do que ouvia. Georgina impassivel [82] até alli, rigida e inabalavel com o seu amante, sentia commover-se agora d'aquella angústia do velho. É que partia pedras a dor que vinha n'aquellas fallas sepulchraes, que trassudava d'aquelle rosto cadaverico.

Ao mesmo tempo, um som confuso, um tumulto vago e abafado de mil sons que pareciam arredar-se, incontrando-se, tornando, indo e vindo, e dispersando-se para se tornar a unir, e tornando a dispersar-se emfim, reboava ao longe pela villa, extendia-se nas praças, concentrava-se nas ruas, e mandava áquella solitaria e remota cella do convento uns echos surdos, como os do mar ao longe quando se retira da praia no murmurar melancholico que precede um temporal d'equinoxio.

―'Ouves esse borburinho confuso, Carlos? É a tua causa que triumpha, é a d'estes loucos que succumbe, é a de Deus que a si mesmo se desamparou. A hora está chegada, escreveram-se as lettras de Balthasar; a confusão e a morte reinam sos e senhoras na face da terra. Eu quero ir morrer onde haja Deus... Perdoae-me, Senhor, [83] a blasphemia!.. onde o seu nome não seja profanado e malditto...

Ao canto de uma pedra, debaixo de uma árvore hade ser, n'algum logar escuso d'essas charnecas, onde me não rasguem aomenos ésta mortalha, e m'a não insultem nos ultimos instantes, porque eu sou frade, frade, frade... o malditto frade! Mas frade quero morrer, e heide morrer. Oh! assim tivera eu vivido!'

―'Mas que foi; que succedeu?'

―'O resto do exército realista evacua n'este momento Santarem; vão em fuga para o Alemtejo. Os constitucionaes venceram na Asseiceira, e tudo está ditto para nós. Para mim, Carlos, falta uma palavra so: quererás tu dizê-la?'

―'Eu?'

―'Sim tu, Carlos. Revoca as palavras terriveis que proferiste, e em nome de Deus, filho, perdoa a teu...'

A Carlos revolvia-se-lhe no peito uma grande [84] lucta. O horror, a compaixão, o odio, a piedade iam e vinham-lhe alternadamente do coração ás faces, e tornavam do rosto para o peito. Uma exclamação involuntaria lhe rebentou dos labios em meio d'este combate:

―'Padre, padre! e quem assacinou meu pae, quem cegou minha avó, e quem cubriu de infamia a minha... a toda a minha familia?'

―'Tens razão, Carlos, fui eu; eu fiz tudo isso: mata-me. Mas oh! mata-me, mata-me por tuas mãos, e não me maldigas. Mata-me, mata-me. É decreto da divina justiça que seja assim. Oh! assim meu Deus! ás mãos d'elle, Senhor! Seja, e a vossa vontade se faça...'

O frade cahiu de bruços no chão, e com as mãos postas e extendidas para o mancebo, clamava:

―'Mata-me, mata-me! aqui ha pouca vida ja: basta que me ponhas o pé sobre o pescoço; esmaga assim o reptil venenoso que mordeu na tua familia e que fez a sua desgraça e a de quantos o amaram. Sim, Carlos, sê tu o executor das [85] íras divinas. Mata-me. Tantos annos de penitencia e de remorsos nada fizeram; mata-me, livra-me de mim e da íra de Deus que me persegue.'



CAPITULO XXXV.


Reunião de toda a familia.―Explicação dos mysterios.―O coração da mulher.―Parricidio.―Carlos beija emfim a mão a Fr. Diniz e abraça a pobre da avó.



Georgina disse para Carlos:

―'Dá a mão a esse homem, levanta-o e dize-lhe as palavras de perdão que te pede.'

[88] Carlos fez um gesto expressivo de horror e de repugnancia. Georgina ajoelhou aopé do frade, tomou as mãos d'elle nas suas, e lh'as affagou com piedade; depois levantou-lhe o rosto, incostou-o a si e gradualmente o foi accalmando. O velho parecia uma criança mimada e sentida que se vai accalantando nos braços da mãe: agora so murmurava de vez em quando alguns soluços, a mais e a mais raros.

Estavam de joelhos ambos, o frade e a dama; elle mal se tinha, ella amparava em seus braços e contra seu peito o amortecido corpo do velho. E Georgina disse com aquelle som de voz irresistivel que as filhas de Eva herdaram de sua primeira mãe, e que a ella ou lh'o tinham antes insinado os anjos, ou o apprendeu depois da serpente,―um som de voz que é a última e a mais decisiva da seducções femininas―disse:

―'Este homem vai morrer, Carlos: e tu hasde-o deixar morrer assim, meu Carlos?'

Todo o odio, todas as offensas se callaram, desappareceram deante d'aquellas palavras do anjo supplicante. Meu Carlos ditto assim, não o ouvíra [89] elle ha muito tempo, não lhe pôde resistir: extendeu os braços para o frade, cahiu de joelhos aopé d'elle, e um so abraço uniu a todos tres.

Como no eterno grupo de Lacoonte, o velho e os dous mancebos sentiam estreitar-se das cobras da mesma dor, e affogavam junctos da mesma angústia.

Assim estiveram longamente; e não se ouvía entre elles senão algum gemido sôlto, e aquelle sussurrar sumido das lagrymas que mais se ouve com o coração do que com os ouvidos.

O frade disse emfim com uma voz apenas perceptivel de timida e de fraca:

―'Carlos, meu Carlos, perdoa tambem... oh perdoa á memoria de tua desgraçada mãe!'

O mancebo saltou convulsamente como o cadaver na pilha galvanica. Em pé, hirto, horrivel, tremendo, exclamou com um brado de trovão:

―'Demonio! demonio incarnado em figura de homem, que vieste recordar-me? Dizias bem [90] indagora, monstro: so ás minhas mãos deves morrer. E hasde.'

Lançou-se a um enorme velador de pau-sancto que lhe jazia aopé, massa terrivel d'Hercules, e bastante a fender craneos de ferro, quanto mais a descarnada caveira do frade! D'ambas as mãos a levava no ar; e o velho extendeu para elle a cabeça como na ancia de morrer... Georgina fechou involuntariamente os olhos, e um grande e medonho crime ia consummar-se...

Dous gritos agudissimos, dous gritos de desespêro e de terror, d'aquelles que so sahem da bôcca do homem quando suspenso entre a morte e a vida―soaram repentinamente no apposento; uma velha decrepita e meia morta, arrastada por uma criança de pouco mais de dezeseis annos, estava deante de Carlos, e ambas cubriam com seus debeis corpos a fragil e extenuada figura da sua victima.

―'Filho, meu filho!' arrancou a velha com stertor do peito: 'é teu pae meu filho. Este homem é teu pae, Carlos.'

[91] O ponderoso velador cahiu inerte das mãos do mancebo, e rolou pesado e baço pelo pavimento. Carlos cahiu por terra sem sentidos. De um pulo Georgina estava aopé d'elle, e o fez incostar na longa cadeira de braços. Estava lavado em sangue; era uma ferida do pescôço que o excesso da commoção lhe fizera rebentar. Os dous velhos vieram ajoelhar-se aopé d'elle. As duas mulheres moças lidavam pelo restaurar e lhe estancar o sangue. A cambraia dos lenços, as rendas do collo e das cabeças, tudo se fez em ataduras e compressas: o sangue parou emfim.

Admiravel belleza do coração feminino, generosa qualidade que todos seus infinitos defeitos faz esquecer e perdoar! Essas duas mulheres amavam esse homem. Esse homem não merecia tal amor: não, por Deus! o monstro amava-as a ambas: está tudo ditto. E ellas que o sabiam, ellas que o sentiam, e que o julgavam digno de mil mortes, ellas rivalizavam de cuidados e de ancia para o salvarem.

De tanto não somos capazes nós.

E por isso admirâmos tanto.

[92] E perdoâmos tanto.

E esquecêmos tanto.

Mas amar tanto, não sabemos: verdade, verdade...

Amâmos melhor; sim, isso sim: tanto não.

O mancebo permanecia em deliquio. Fr. Diniz e a velha rezavam. Georgina e Joanninha―ja vereis que era Joanninha―olharam uma para a outra, coraram e ficaram suspensas. A ingleza extendeu a mão á amavel criança, estremeceu involuntariamente, mas disse-lhe com firmeza:

―'O ditto ditto, Joanninha! Eu ja o não amo; prometto.'

―'Eu amo-o cada vez mais, Georgina: elle é tam infeliz!'

―'Juras-me tu de o não deixar, de velar por elle sempre, de o defender de si mesmo que é o peior inimigo que tem?'

[93] ―'Se juro!'

―'Então adeus, Joanninha! Eu estou de mais aqui. Ja tenho ouvido o que não devia ouvir. Os segredos da tua familia não me pertencem. O coração d'esse homem não é meu, nem o quero. É um nobre e grande coração, Joanninha; mas... Não te deixes dominar por elle se o queres segurar. Adeus!―Santarem está desamparada pelos realistas; eu vou para Lisboa. Consola tua boa avó, e esse pobre velho. Elle não é tam criminoso, estou certa...'

―'Oh não! Carlos cuida-o assassino de seu pae; e é falso. Minha avó ja me disse tudo.'

―'Falso!' murmurou Carlos sem abrir os olhos: 'é falso? Pois não foi elle que matou meu pae?'

―'Não, filho, clamou a velha: 'não, meu filho; teu pae é este infeliz.'

―'E minha mãe?'

―'Tua mãe... e eu somos duas desgraçadas. [94] Que mais queres saber? Tua mãe amou esse homem...'

―'Ah!' disse Carlos: 'ah!' e abriu os olhos pasmados para a avó e para o frade que cravaram os seus no chão, e ficaram como dous réos na presença do seu inflexivel juiz.

―'Mas esse homem que é... que por fôrça querem que seja meu... meu pae... Sancto Deus! elle matou o outro.'

―'Defendi-me, foi defendendo ésta vida miseravel... Oh nunca eu o fizera! E paraquê? Paraque quiz eu viver? Para isto!'

―'E meu tio, o pae de Joanninha? Tambem esse era preciso que morresse?'

―'Ambos se junctaram para me assassinar, e me accommetteram atraiçoadamente na charneca. Não os conheci; foi de noite escura e cerrada. Defendi-me sem saber de quem, e tive a desgraça de salvar a minha vida á custa da d'elles. Filho, filho, não queiras nunca sentir o que eu senti, quando pegando, um a um, n'esses cadaveres [95] para os lançar no rio, conheci as minhas victimas... Era hynverno, a cheia ia de valle a monte: quando abateu e se acharam os corpos ja meios desfeitos, ninguem conheceu a morte de que morreram; passaram por se ter affogado. Ninguem mais soube a verdade senão eu―e tua infeliz mãe a quem o disse para meu castigo, a quem vi morrer de pezar e de remorsos, que expirou nos meus braços chorando por elle, e maldizendo-me a mim. Não sería bastante castigo, meu filho?―Não foi, não. Este burel que ha tantos annos me roça no corpo, estes cilicios que m'o desfazem, os jejuns, as vigilias, as orações nada obtiveram ainda de Deus. A sua íra não me deixa, a sua cholera vai até a sepultura sôbre mim... Se me perseguirá além d'ella!..'

Fez-se aqui um silencio horroroso: ninguem respirava; o frade proseguiu:

―'Não me dei por bastante castigado com a agonia de tua mãe, a mais horrorosa e desesperada agonia que ainda presenciei, oh meu Deus!.. Tive o cruel ânimo de explicar a tua avó as negras circumstancias d'aquella morte, e de lhe patentear toda a fealdade e hediondez do [96] meu crime. Rasguei-lhe o coração, e vi-lhe sahir sangue e agua pelos olhos, até que lhe cegaram. Que mais queres? Cuidei que podia morrer sem passar por ésta derradeira expiação. Deus não o quiz. Aqui estou penitente a teus pés, filho. Aqui está o assassino de tua mãe, de seu marido, de teu tio... o algoz e a deshonra de tua familia toda.―Faze de mim como fôr tua vontade. Sou teu pae...'

―'Meu pae!.. Misericordia meu Deus!'

―'Misericordia, filho, e perdão para teu pae!'

Carlos levantou-se deliberadamente, veio ao velho, tomou-o a pêso nos braços, foi sentá-lo na cadeira que acabava de deixar, e pondo-se de joelhos, beijou-lhe a mão em silencio. Depois foi abraçar-se com a avó, que o apalpava soffregamente com as mãos trémulas, e murmurava baixo:

―'Agora sim, ja posso morrer, ja posso morrer porque o abracei, porque o senti juncto a mim, o meu filho, o filho da minha filha querida...'

[97] Carlos é que não proferiu mais palavra; tinha-se-lhe rompido corda no coração, que ou lhe quebrára o sentimento ou lh'o não deixava expressar. Sahiu da cella fazendo signal que vinha logo: mas esperaram-n'o em vão... não tornou.

D'ahi a tres dias, veio uma carta d'elle, de juncto d'Evora onde estava com o exército constitucional.



CAPITULO XXXVI.


Que não se acabou a historia de Joanninha.―Processo ao coração de Carlos.―Immoralidade.―Defeito de organização não é immoralidade.―Horror, horror, maldicção!―Um barão que não pertence á familia lineana dos barões propriamente dittos―Porta de Atamarma.―Senatus consulto santareno.―Nossa Senhora da Victoria afforada.―Threnos sôbre Santarem.



―Pois ja se acabou a historia de Joanninha?

―Não, de todo ainda não.

[100] ―Falta muito?

―Tambem não é muito.

―Seja o que for, acabemos, que está a gente impaciente por saber como se concluiu tudo isso, o que fez o frade, o que foi feito da ingleza, Joanninha e a avó que caminho levaram, e o pobre Carlos se...

―Pois interessam-se por Carlos, um homem immoral, sem principios, sem coração, que fazia a côrte―fazer a côrte ainda não é nada―que amava duas mulheres ao mesmo tempo? Horror, horror! como dizem os dramaticos romanticos: horror e maldicção!

―Horror seja, horror será... e horror é, sem dúvida. E maldicção que deitaram ao pobre homem. Mas immoralidade! Immoralidade é inganar, é mentir, é atraiçoar: e elle não o fez. Desgraça grande ter um coração assim; mas não me digam que é próva de o não ter. Eu digo que elle tinha coração de mais: o que é um defeito e grande, é um estado pathologico e anormal. Physicamente produz a morte; e moralmente [101] póde matar tambem o sentimento. Bem o creio: mas é molestia commum, e com que vai vivendo muita gente, até que um dia...

―Um dia, o orgam, que progressivamente se foi dilatando, não póde funccionar mais, cessa a circulação e a vida. Deve ser horrivel morte!

―Fallam physicamente?

―Physicamente. Mas no moral anda pelo mesmo. E se esse é o defeito de Carlos...

―Sentir muito?

―Não; ter sentido muito: que o coração, como orgam moral, não se dilata a esse ponto senão pelo demaziado excesso e violencia de sensações que o gastaram e relaxaram. Se esse é o defeito, a molestia de Carlos, digo que ja sei o fim da sua historia sem a ouvir.

―Então qual foi?

―Que um bello dia cahiu no indifferentismo absoluto, que se fez o que chamam sceptico, [102] que lhe morreu o coração para todo o affecto generoso, e que deu em homem politico ou em agiota.

―Póde ser.

―Mas qual das duas foi, deputado ou barão? queremos saber.

―Saberão.

―Queremos ja.

―E se fossem ambas?

―Oh horror, horror, maldicção, inferno! Ferros em braza, demonios pretos, vermelhos, azues, de todas as côres! Aqui sim que toda a artelharia grossa do romantismo deve cahir em massa sôbre esse monstro, esse...

―Esse quê? Pois em se acabando o coração á gente...

―Eu não creio n'isso. Acaba-se lá o coração a ninguem!..

[103] Houve gargalhada geral á custa do pobre incredulo, e levantamo'-nos para ir ver o Sancto-milagre, que era a hora apprazada, e estava o prior á nossa espera.

Ámanhan o fim da historia da menina dos olhos verdes.

No caminho incontrámos o nosso antigo amigo, o barão de P.―barão de outro genero, e que não pertence á familia lineana que n'esta obra procurámos classificar para illustração do seculo―cavalheiro generoso, e typo bem raro ja hoje da antiga nobreza das nossas provincias, com todos os seus brios e com toda a sua cortezia d'outro tempo, que em tanto relêvo destaca da grosseria villan d'essas notabilidades improvisadas...

Vinha em nossa procura para nos guiar. Seguimo-lo.

Fomos de passagem observando algumas das mais interessantes coisas d'aquella interessantissima terra em que se não póde dar um passo sem que a reflexão ou a imaginação incontre objecto [104] para se entreter. Inclinando um pouco á direita, démos na celebrada porta de Atamarma.

Por aqui entrou D. Affonso Henriques, por aqui foi aquella destemida surpreza que lhe intregou Santarem, e acabou para sempre com o dominio arabe n'esta terra.

Os illustrados municipaes Santarenos têem tido por vezes o nobre e generoso pensamento de demolir ésta porta! o arco de triumpho de Affonso Henriques, o mais nobre monumento de Portugal!

A idea é digna da epocha.

Felizmente parece que tem faltado o dinheiro para a demolição; e o senatus consulto dos dignos padres conscriptos não pôde ainda executar-se.

Não que eu creia este arco o genuino arco moiresco por onde entraram os bravos de D. Affonso; mas creio que essa porta da antiga villa se foi reparando, concertando e conservando em suas successivas alterações, até chegar ao que hoje está: [105] e ainda assim como está, é um monumento de respeito que so barbaros pensariam desacatar e destruir.

Porcima d'ella está uma capellinha de N. S. da Victoria: quer a tradicção que primeiro erguida e consagrada á Virgem pelo heroico fundador da monarchia e da independencia portugueza. Este é um dos muitos pontos em que a religião das tradições deve ser respeitada e crida sem grandes exames, porque nada ganha a crítica em pôr dúvidas, e o espirito nacional perde muito em as acceitar.

Deixá-la estar a Virgem da Victoria sôbre o arco de Affonso Henriques. Prostremo'-nos e adoremos, como bons portuguezes, o symbolo da fé christan e da fé patriotica levantado pelas mãos insanguentadas do triumphador!

Mas sería elle ou não que levantou essa capellinha? os documentos faltam, os escriptores contemporaneos guardam silencio; a historia deve ser rigorosa e verdadeira...

Deve: e os grandes factos importantes que fazem [106] epocha e são balizas da historia de uma nação, tambem eu os regeitarei sem dó quando lhes faltarem essas authênticas indispensaveis. Agora as circumstancias, para assim dizer, episodicas de um grande feito sabido e provado, quem as conservará senão forem os poetas, as tradições, e o grande poeta de todos, o grande guardador de tradições, o povo?

Eu creio na Senhora da Victoria de Santarem, e em muitos outros sanctos e sanctas, que a religião do povo tem por esses nichos e por essas capellas e por esses cruzeiros de Portugal, a recordar memorias de que se não lavrou outro auto, não se escreveu outra escriptura, de que não ha outro documento, e que os frades chroniqueiros não julgaram dever escrever no livro de terça ou de noa, em nenhum livro preto nem incarnado, porque o tinham por melhor escripto e mais bem guardado nos livros de pedra em que estava.

Coitados! não contaram com os apperfeiçoadores, reparadores e demolidores das futuras civilizações que, para pôr as coisas em ordem, tiram primeiro tudo do seu logar.

[107] A camara de Santarem, não podendo demolir o arco, tomou um meio termo que appósto que ninguem é capaz de adivinhar. Afforou a capella por cima d'elle, com altar, com sanctos e tudo: e assim esteve afforada alguns annos, não sei paraquê nem porquê; o caso é que esteve.

O anno passado porêm (1842) começou a manifestar-se ésta reacção religiosa que os especuladores quizeram logo converter em ganancia pessoal, descontando-a no mercado das agiotagens facciosas; mas perdem o seu tempo, inda bem! Veio, digo, ésta reacção nas ideas das gentes; e a capella da Senhora da Victoria sôbre o arco, não sei tambem como nem porquê, foi desafforada, e restituida ao culto popular.

Subimos a ver a capella por dentro: é um rifacimento ridiculo e miseravel, sem nenhuma da solemnidade do antigo, nem elegancia moderna alguma.

Desappontou-me tristemente. Vamos ao Sancto-milagre depressa, que me quero reconciliar com Santarem: e ja começa a ser difficil.

[108] Mas é injustiça minha. Que culpa tem ella, coitada?

Ai Santarem, Santarem, abandonaram-te, mataram-te, e agora cospem-te no cadaver.

Santarem, Santarem, levanta a tua cabeça coroada de tôrres e de mosteiros, de palacios e de templos!

Mira-te no Tejo, princeza das nossas villas: e verás como eras bella e grande, ricca e poderosa entre todas as terras portuguezas.

Ergue-te, esqueleto colossal da nossa grandeza, e mira-te no Tejo: verás como ainda são grandes e fortes esses ossos desconjuntados que te restam.

Ergue-te, esqueleto de morte, levanta a tua foice, sacode os vermes que te poluem, esmaga os reptis que te corroem, as osgas torpes que te babam, as lagartixas peçonhentas que se passeiam atrevidas por teu sepulchro deshonrado.

Ergue-te Santarem, e dize ao ingrato Portugal [109] que te deixe em paz ao menos nas tuas ruinas, myrrhar tranquillamente os teus ossos gloriosos; que te deixe em seus cofres de marmore, sagrados pelos annos e pela veneração antiga, as cinzas dos teus capitães, dos teus lettrados e grandes homens.

Dize-lhe que te não vendam as pedras de teus templos, que não façam palheiros e estrebarias de tuas egrejas; que não mandem os soldados jogar a pella com as caveiras dos teus reis, e a bilharda com as cannellas dos teus sanctos.

Tiraram-te os teus magistrados, os teus mestres, os teus seminarios... tudo, menos o intulho e a caliça, as immundices e os monturos que deixaram accumular em tuas ruas, que espalharam por tuas praças.

Santarem, nobre Santarem, a Liberdade não é inimiga da religião do ceo nem da religião da terra. Sem ambas não vive, degenera, corrompe-se, e em seus proprios desvarios se suicida.

A religião do Christo é a mãe da Liberdade, a religião do Patriotismo a sua companheira. O [110] que não respeita os templos, os monumentos de uma e outra, é mau amigo da Liberdade, deshonra-a, deixa-a em desamparo, intrega-a á irrisão e ao odio do povo.




Vamos ao Sancto-milagre.



CAPITULO XXXVII.


A Graça e sua bella fachada gothica.―Sepultura de Pedr'alvares Cabral.―Outro barão que não é dos assignalados.―Egreja do Sancto-milagre.―Bellos medalhões mosarabes.―De como, chegando o prior e o juiz, houve o A. vista do Sancto-milagre, e com que solemnidades.―Monumento da muito alta e poderosa princeza a infanta D. Maria da Assumpção.―Casa onde succedeu o milagre, convertida em capella de stylo philipino.―O homem das botas, e o que tem elle que haver com o Sancto-milagre de Santarem.―Admiravel e graciosa esperteza da regencia do Rocio.―Aaroun-el-Arraschid: e theoria dos governos folgasões; os melhores governos possiveis.―Volta o paladio scalabitano de Lisboa para Santarem.



Inclinámos o nosso caminho para a esquerda, e fomos passar deante do arrendado e elegante frontispicio gothico da Graça. A ausencia de não sei que regedor, ou insignificante personagem [112] que não respeita os templos, os monumentos de de egual importancia que tem as chaves da egreja e convento, nos fez perder toda a esperança de visitar a sepultura de Pedr'alvares Cabral que alli jaz, assim como outras bellas e interessantes antiguidades de não menor preço.

Fomos seguindo até casa do barão d'A., outro illegitimo, porque não pertence aos barões assignalados

Que, sem passar além da Taprobana,
No velho Portugal edificaram
Novo reino que tanto sublimaram.

Incontrámo-lo prompto a accompanhar-nos, e a presidir, como juiz da irmandade que é, á grande cerimonia da exposição e ostensão do Sancto-milagre.

Junctos descémos á egreja; que é perto.

A egreja pequena e do peior gôsto moderno por dentro e por fóra. Notavel não tem nada se não uns quatro medalhões de pedra lavrada com bustos de homens e mulheres em relêvo q A egreja pequena e do peior gôsto moderno por dentro e por fóra. Notavel não tem nada se não uns quatro medalhões de pedra lavrada com bustos de homens e mulheres em relêvo que visivelmente pertenceram a edificação antiga, e que actualmente [113] estão incrustados na tosca alvenaria do cruzeiro.

Os bustos são de puro e finissimo lavor gothico, altos de relêvo e desenhados com uma franqueza que se não incontra em esculpturas muito posteriores.

São talvez reliquias da primitiva egreja do Sancto-milagre que nas successivas reedificações se teem ido conservando. Abençoado seja o escrupuloso que as salvou d'este último melhoramento que houve no desgraçado e desgraçioso templo: o que não foi ha muitos annos por certo.

Chamo gothico ao lavor d'aquellas cabeças por que é a phrase vulgar e impropria usada de toda a gente: segundo ja observei n'outra parte, com mais exacção se devêra dizer mosarabe.

Chegou o prior, o Sr. juiz deu as suas ordens, vieram uns poucos de irmãos com tochas, distribuiram-nos a cada um de nós a sua, e processionalmente nos dirigimos á porta lateral do altar-mor, da qual se sobe, por uma escada assás larga e commoda, á especie de camarim [114] que está parallelo com o mais alto do throno em que perpetuamente se conserva o grande paladio santareno.

Subimos, accompanhados do prior em sobrepeliz e estola; chegados ao alto, ajoelhámos em roda d'elle que subiu a uns degrausinhos, abriu, com a chave dourada que trazia pendente ao pescosso, uma como porta de sacrario, depois ajoelhou, incensou, tornou a ajoelhar, disse alguns versetos a que respondeu o sacristão, e finalmente tirou de seu repositorio uma especie de ambula de ouro de fábrica antiga, mas não mais antiga que o decimo sexto, ou decimo quinto seculo, quando muito.

Depois de nos inclinarmos e receber a bençam que o padre nos deitou com a reliquia, foi-nos permittido erguer-nos, e chegar perto para ver e observar.

Entre uns cristaes ja bem velhos e imbaciados se descobre comeffeito o pequeno vulto amarellado-escuro que piedosamente se crê ser o resto da particula consagrada qu Entre uns cristaes ja bem velhos e imbaciados se descobre comeffeito o pequeno vulto amarellado-escuro que piedosamente se crê ser o resto da particula consagrada que a judia roubára para seus feitiços.

[115] Escuso contar a historia do Sancto-milagre de Santarem que toda a gente sabe. O bom do prior, ex-frade trino gordo e bem conservado, não nos perdoou o menor ponto d'ella, que tivemos de ouvir com a maior compuncção.

Incerrada outra vez a ambula com as mesmas solemnidades, entrámos em conversação com o prior.

N'aquelle mesmo camarim juncto á devota reliquia se conservaram, por espaço de cinco ou seis annos, se bem me recordo do que o bom do parocho nos contou, os restos mortaes da senhora infanta D. Maria da Assumpção, que fallecêra em Santarem nos ultimos mezes da occupação d'aquella villa pelas fôrças realistas. O cadaver, mal imbalsemado e com más drogas, foi mettido n'um caixão de folha de Flandres. Em pouco tempo a corrupção estragou e rompeu a folha, e uma infecção terrivel apestava a egreja. Soffreu-se isto annos, representou-se ao govêrno por vezes, mas nenhuma resolução se pôde obter. Até que afinal, declarando o prior que, se não mandavam tomar conta d'aquelles tristes restos da pobre princeza, elle se via obrigado [116] a mettê-los na terra, foi-lhe respondido que fizesse como intendesse; e elle intendeu que os devia sepultar no cruzeiro da egreja, como fez, do lado da epistola, isto é, á direita.

E ahi jaz em sepultura raza, sem mais distincção nem epitaphio, a muito alta e poderosa princeza D. Maria, filha do muito alto e poderoso principe D. João o VI, rei de Portugal, imperador do Brazil, e da conquista e navegação etc.

Assim é o mundo, as suas grandezas e as suas glórias!

A visita ao Sancto-milagre não é completa sem se ir ver a casa onde elle se operou. Conservou-se ella por alguns seculos em grande veneração, e em mil seiscentos e tantos se converteu porfim em capella. Hoje está abandonada, chove em toda ella, e apenas tem uma má porta que a defende das incursões dos animaes. Pena e desleixo grande, porque é elegante e graciosa a capellinha, lavrada de bons marmores, no melhor gôsto do decimo-sexto seculo, de renascença ja muito adiantada no classico: é [117] um verdadeiro typo do stylo philippino, que tanto predomina n'essa epocha em toda a peninsula.

A historia do Sancto-milagre de Santarem muitas vezes tem andado ligada com a historia do reino; e ja n'este seculo, no tempo da guerra da independencia, veio prender com um dos factos mais importantes, e tambem com a mais curiosa e comica aventura de que em Lisboa ha memoria.

Alludo nada menos que ao 'homem das botas.' E perdoem-me as senhoras beatas a irreverencia apparente, que bem sabem não ser eu de motejar com as coisas sérias e sanctas. Mas o facto é que a historia do Sancto-milagre está ligada com a célebre historia do 'homem das botas.'

Saiba pois o leitor contemporaneo, e saiba a posteridade, para cuja instrucção principalmente escrevo este douto livro, que pela invasão de Massena, o grande paladio scalabitano foi mandado recolher a Lisboa, e ahi se conservou alguns annos até muito depois da completa retirada dos francezes.

[118] Passado todo o perigo de que o exército invasor roubasse―ou profanasse―que era o mais provavel―a sancta reliquia, começou a reclamá-la o senado e povo santareno, e a mostrar muito pouca vontade de lh'a restituir o senado e povo ulyssiponense. Era uma questão d'entre Alba e Roma que dava serio cuidado aos reflectidos Numas da regencia do Rocio.

Em poucas preplexidades tam graves se viu aquelle pobre govêrno que tantas teve, e de quasi todas se sahiu tam mal.

Não assim d'esta, que a evitou com o mais inesperado e admiravel stratagema, digno de ornar os maravilhosos fastos do grande Aaroun el-Raschid, ou de qualquer outro principe de bom humor, d'esses poucos felizes que em felizes tempos reinaram a brincar, e zombaram com o seu povo, mas fazendo-o rir.

Pois, senhores, apertada se via a regencia d'estes reinos com a restituição do Sancto-milagre que era de justiça fazer-se a Santarem, mas que Lisboa recusava, e ameaçava impedir. Temia-se alborôto no povo.

[119] Não sei de quem foi o alvitre, mas foi de maganão de bom gôsto; e bom gôsto teve tambem o govêrno em o acceitar e approveitar. Para o dia em que o Sancto-milagre devia sahir de Lisboa Tejo acima, e que se esperava fosse com grande solemnidade e pompa ecclesiastica,―fez-se annunciar por cartazes que um fulano de tal passaria o rio, de Lisboa a Almada, em umas botas de cortiça nas quaes se teria direito e inchuto, navegando a pé sem mais embarcação, vela nem remo.

A logração era gorda e grande; melhor e mais depressa foi ingullida. No dia apprazado despovoou-se a capital, e uns em barcos outros por navios, outros por essas praias abaixo, tudo se encheu de gente de todas as classes, e todos passaram o melhor do dia á espera do homem das botas.

No emtanto, muito surrateiramente imbarcava o Sancto-milagre no seu barco de agua-arriba, e navegava com vento e maré para as ditosas ribeiras de Santarem.

Ninguem o viu sahir, nem soube novas d'elle em Lisboa senão quando constou da sua chegada [120] a Santarem, e das grandes festas que lhe fizeram aquelles saudosos e devotos povos ribatejanos.

Os Aarouns-el-Raschids do Rocio riram de soccapa: e nunca tam innocentemente se riu govêrno algum de ter inganado o povo.

Nós celebrámos a historia como ella merecia, e fomos jantar á Alcaçova, para irmos de tarde ver a Ribeira, e procurar os vestigios do seu inclyto alfageme.



CAPITULO XXXVIII.


Jantar nos reaes paços de Affonso Henriques.―Sautés e salmis.―Desce o A. á Ribeira de Santarem em busca da tenda do Alfageme.―A espada do Condestavel.―Desappontamento.―O salão elegante. Dissipam-se as ideas archeologicas. Os fosseis.―Tudo melhor quando visto de longe.―O baile público.―Soirée de piano obrigado.―Theatro. Desafinações da prima-dona. Syphlis incuravel das traducções. Destempêro dos originaes.―A xácara de rigor, o subterraneo e o cemiterio.―Sublime gallimathias do ridiculo.―A bella e necessaria palavra 'gallimathias.'―Se as saudades matam.―Perigo de applicar o scalpello ou a lente ao mais perfeito das coisas humanas.―De como a logica é a mais perniciosa de todas as incoherencias.



Esperava-nos comeffeito em casa do nosso bom hóspede, nos regios paços de Affonso Henriques, um esplendido jantar a que assistiram quasi todos os cavalheiros da terra.―Não quero [122] dizer as notabilidades, por ser palavra peralvilha a que tenho invencivel zanga.―As iguarias de legítima eschola portugueza, não menos saborosas e delicadas por apparecerem estremes de sautés e salmis extrangeirados. Brilharam sôbre tudo os productos das duas grandes vendimas rivaes, do Ribatejo e Ribadouro. Foi largo e alegre o jantar.

Acabámos tarde, montámos logo a cavallo, e pela porta de Atamarma descémos á Ribeira; era quasi sol pôsto quando la chegámos.

É o suburbio democratico da nobre villa, hoje o ricco e o forte d'ella. Faz lembrar aquellas aldeas que se criaram á sombra dos castellos feudaes e que, libertas, depois, da oppressora protecção, cresceram e ingrossaram em substancia e fôrça: o castello, esse está vazio e em ruinas.

Por aqui se faz quasi todo o commercio da Extremadura e Beira com o Alemtejo. Os habitantes laboriosos e activos conservam os antigos brios e independencia do character primitivo: é a unica parte viva de Santarem.

[123] Cruzámos a povoação em todos os sentidos, procurando rastrear algum vestigio, confrontar algum sítio onde podessemos collocar, pela mais atrevida supposição que fosse, a tenda do nosso alfageme com as suas espadas bem 'corregidas', as suas armaduras luzentes e bem postas―e o joven Nun'alvares passeando alli por pé, ao longo do rio―como diz a chronica―namorado d'aquella perfeição de trabalho, e dando a 'correger' a bella espada velha de seu pae ao rustico propheta que tantos vaticinios de grandeza lhe fez, que o saudou condestavel, conde d'Ourem e salvador da sua patria.

Nada podémos descubrir com que a imaginação se illudisse siquer, que nos désse, com mais ou menos anachronismo, uma leve base tamsomente para reconstruirmos a gothica morada do célebre cutileiro-propheta que a historia herdou das chronicas romanescas, e hoje o romance outra vez reclama da historia.

Em Santarem ha poucas casas particulares que se possam dizer verdadeiramente antigas; na Ribeira, nenhuma. As implastagens e replastagens successivas teem anachronizado tudo. É uma feliz [124] expressão do Sr. Conde de Raczinski bem applicada por elle ao estado de quasi todos os nossos monumentos, ésta de anachronismo.

Mas alli, na villa alta ou Marvilla, no Santarem propriamente ditto, ha os templos, os conventos, a cêrca das muralhas que todavia conservam a physionomia historica da terra; aqui nem isso ha.

Voltei completamente desappontado da Ribeira, isto é, da sua pedra e cal: gósto immenso da sua gente.

Outra surpreza de mui differente genero nos esperava á noite em Marvilla, no elegante salão da B. d'A. com quem fomos tomar cha.

Em meio das ruinas e desconfôrto d'aquelles desertos e mortos pardeiros circumstantes, ir incontrar uma casa em plena florescencia de civilização e de vida; ver a amabilidade e a elegancia fazendo graciosamente as honras d'ella―por mais que se devesse esperar―sempre espanta á primeira vista: parecia golpe de varinha de condão.

[125] Em tam agradavel e joven companhia todas as ideas archeologicas se desvaneceram, apezar de dous ou tres fosseis que alli appareciam para se não perder detodo a côr local talvez.

Largamente se conversou, de Lisboa principalmente, dos nossos mutuos amigos, das festas do último hynverno, das probabilidades que se deviam esperar do futuro.

Ralhámos muito da sociedade portugueza; exaltámos París e Londres e não sei se Pekim e Nankim tambem, e concluimos que antes Timbokotuo do que a seccante capital do nosso pobre reino. E comtudo estavamos com saudades d'ella; e concessão d'aqui, concessão d'alli, viemos a que não era tam má terra como isso.

Admiravel condicção da natureza humana, que tudo nos parece melhor e menos feio quando visto de longe!

O baile público mais semsabor, detestavel de barulho e confusão, em que, para repousar os olhos n'um rosto conhecido e agradavel, foi preciso furar por entre centenas de cotovellos barbaros [126] que se não sabe d'onde vieram, levar desalmadas pisadellas do dançante noviço, do deputado recemchegado, e das botas novas do novo director da Galocha―e, mais horrivel que tudo! ver as absurdas toiletes, os penteados fabulosos, as caras incriveis e as antidiluvianas figuras de tanta mulher feia e desastrada... pois esse mesmo baile, quando ja não é senão reminiscencia que acorda no meio do infado ronceiro de uma terra de provincia, parece outro. As luzes, as flores, a musica, toda aquella animação lembra com prazer, o mais esquece, e involuntariamente se descai um pobre homem a suspirar por elle.

A soirée mais massante, de piano obrigado, com dueto das manas, polka das primas e casino das tias velhas―recordada em eguaes circumstancias, tambem ja não accode á memoria senão como uma reunião escolhida e íntima, de facil e doce tracto... oh! o verdadeiro prazer da sociedade.

Pois o theatro... Que se lembre alguem, na provincia, dos martyrios que soffreu o ouvido com os berros da prima-dona, as desafinações do tenor, [127] ou com o infadonho resonar d'aquella adormecida orchestra de San'Carlos!

A injoativa traducção de uma comedia da Rua-dos-condes, roída de incuravel syphilis, figura-se avelludada de todas as graças do stylo de Scribe.

E o destempêro original de um drama plusquam romantico, laureado das imarcessiveis palmas do Conservatorio para eterno abrimento das nossas bôccas! Lá de longe applaude-o a gente com furor, e esquece-se que fummou todo o primeiro acto ca fóra, que dormiu no segundo, e conversou nos outros, até á infallivel scena da xacara, do subterraneo, do cemiterio, ou quejanda, em que a dama, soltos os cabellos e em penteador branco, indoudece de rigor,―o gallan, passando a mão pela testa, tira do profundo thorax os tres ahs! do stylo, e promette matar seu proprio pae que lhe appareça―o centro perde o centro de gravidade, o barbas arrepella as barbas... e maldicção, maldicção, inferno!... 'Ah mulher indigna, tu não sabes que n'este peito ha um coração, que d'este coração sahem umas arterias, d'estas arterias umas veias―e que n'estas veias corre sangue... [128] sangue, sangue! Eu quero sangue, porque eu tenho sêde, e é de sangue... Ah! pois tu cuidavas? Ajoelha, mulher, que te quero matar... esquartejar, chacinar!'―E a mulher ajoelha, e não ha remedio senão applaudir...

E applaude-se sempre.

E não é de mim que fallo, que eu gósto d'isto: os outros é que se infastiam e cansam de tanta barafusta, sempre a mesma...

Mas emfim o que digo é que na provincia não ha tal fastio, que esquece a canceira, e que nem o sublime gallimathias do ridiculo d'alli se percebe.

Peço aos illustres puritanos que, á fôrça de sublimado quinhentista, tem conseguido levar a lingua á decrepitude para a curar de suas infermidades francezas, peço-lhes que me perdoem o gallimathias, porque elle é muito mais portuguez que outra coisa. A célebre oração pro gallo Mathiae deu origem a ésta bella e ex deu origem a ésta bella e expressiva palavra, que sim foi procreada em francez, mas hoje [129] precisâmos ca muito mais d'ella que em parte nenhuma.

Volto ja da digressão philologica: tornemos á optica e á catoptrica.

Grande coisa é a distancia!

E dizem que saudades que matam! Saudades dão vida; são a salvação de muita coisa que, em seu pleno gôso e posse pacífica, pereceria de inanição ou morreria da oppressora molestia da saciedade.

Por isso eu não gósto de metter o scalpello no mais perfeito da construcção humana, nem de applicar a lente ao mais fino e delicado do seu funccionar...

Vamos usando d'estas palavras que herdámos, sem metter louvados na herança; não succeda descobrirmos que estamos mais pobres do que se cuidava... vamos repetindo éstas phrases que nos formularam nossos antepassados sem as analysar com muito rigor; não succeda vermos claro demais que temos passado a vida a mentir...

[130] Detesto a philosophia, detesto a razão; e sinceramente creio que n'um mundo tam desconchavado como este, n'uma sociedade tam falsa, n'uma vida tam absurda como a que nos fazem as leis, os costumes, as instituições, as conveniencias d'ella, affectar nas palavras a exactidão, a logica, a rectidão que não ha nas coisas, é a maior e mais perniciosa de todas as incoherencias.

Não fallemos mais n'isto, que faz mal, e acabemos aqui este capítulo.



CAPITULO XXXIX.


Processo de scepticismo em que está o auctor.―Moralistas de requiem.―O maior sonho d'esta vida, a logica.―Differença do poeta ao philosopho.―O coração de Horacio.―O collegio de Santarem.―Jesuitas e templarios.―O alliado natural dos reis.―'Ficar na gazeta' phrase muito mais exacta hoje do que 'Ficar no tinteiro.'―San'Frei Gil e o Doutor Fausto.―De como o A. foi ao tumulo do sancto bruxo e o achou vazio.―Quem o roubaria?



O final do capítulo antecedente é, bem o sei, um terrivel documento para este processo de scepticismo em que me mandaram metter certos moralistas de requiem de quem tenho a audacia [132] de me rir, d'elles e da sua querella e do seu processo, protestando não me aggravar nem appellar, nem por nenhum modo recorrer da mirifica sentença que suas excellentissimas hypocrisias se dignarem proferir contra mim.

Feita ésta declaração solemne, procedamos.

E quanto a ti, leitor benevolo, a quem so desejo dar satisfação, a ti, se ainda te cansas com essas chymeras, dou-te de conselho que voltes a pagina obnoxia, porque essas reflexões do último capítulo são tam deslocadas no meu livro como tudo o mais n'este mundo. Dorme pois, e não despertes do bello-ideal da tua logica.

É uma descuberta minha de que estou vaidoso e presumido, ésta de ser a logica e a exacção nas coisas da vida muito mais sonho e muito mais ideal do que o mais phantastico sonho e o mais requintado ideal da poesia.

É que os philosophos são muito mais loucos do que os poetas; e de mais a mais, tontos: o que est'outros não são.

[133] Voltemos, voltemos a pagina comeffeito, que é melhor.

Amanheceu hoje um bello dia, puro e sublime. Dorme nas cavernas do padre Eolo aquelle vento sêcco e duro, flagello dos estios portuguezes. Suspira no ar uma viração branda e suave que regenera e dá vida. Mal impregado dia para o passar a ver ruinas! No seio da sempre joven natureza, sob a remoçada espessura das árvores, sôbre a alcatifa sempre renovada das grammas verdes e variegadas boninas, queria eu que me corresse este dia em ocio bemaventurado de corpo e d'alma, sentindo pulsar lento e compassado o coração livre e sôlto de todo impenho, o verdadeiro coração de Horacio,

Solutus omni foenore!

Tomára-me eu no valle outra vez, com a irman Francisca a dobar á porta, a nossa Joanninha a deslindar-lhe a meada; e embora venha o terrivel spectro de Fr. Diniz projectar sua funesta e tragica sombra no idilio d'este quadro suave, que não póde destruir-lhe toda a amenidade bucolica, por mais que faça.

[134] Lá voltaremos ao nosso valle, amigo leitor, e lá concluiremos, como é de razão, a historia da menina dos rouxinoes. Por agora almocemos, que é tarde, e terminemos os nossos estudos archeologicos em Marvilla de Santarem.

Cá estamos no Collegio, edíficio grandioso, vasto, magnífico, propria habitação da companhia―rei que o mandou construir para educar os infantes seus filhos.

Creio que ésta e a de Coimbra eram as duas principaes casas que para isto tinham os Jesuitas em Portugal.

Foram os templarios dos seculos modernos, os Jesuitas. A potencia formidavel e quasi régia que aquelles levantaram com a espada, tinham estes fundado com a doutrina. Riquezas, podêr, influencia, uns e outros as tiveram com applauso e acquiescencia geral; uns e outros as perderam do mesmo modo.

Extinctas e perseguidas, ambas as ordens renasceram no mysterio, e se converteram em associações secretas para conspirarem; ambas tomaram [135] diversos nomes e variadas máscaras para o fazerem mais seguramente.

Ambas em vão!

O predominio, crescente ha seculos, do elemento democratico annulla todas essas conspirações. Sos e sem elle, os reis tinham succumbido... É a alliada natural dos reis a democracia.

O edificio do Collegio é todo philippino, ja o disse: a egreja dos mais bellos specimens d'esse stylo, que em geral sêcco, duro e sem poesia, não deixa comtudo de ser grandioso.

Aqui esteve depois muitos annos o seminario patriarchal, cujas aulas frequentava a mocidade do districto. Hoje leem-se alli outras palestras da cathedra administrativa. É a séde do govêrno civil chamado: corrumper a moral do povo, sophismar o systema representativo é o thema das licções.

Todo outro insino se tirou de Santarem. Falla-se n'um liceu e não sei em que mais 'que ficou na gazetta:' phrase portugueza moderna que [136] deve supprir a antiga e antiquada de―'ficou no tinteiro'―por muitas razões, até porque hoje não fica nada no tinteiro senão o senso commum, tudo o mais de lá sai, tudo. E muitas graças a Deus quando não passa ás ballas do impressor para dar a volta do mundo.

Santarem é das terras de Portugal a melhor situada e qualificada para um grande estabelecimento de instrucção e de educação pública. Porque não hade estar aqui o Collegio-militar ou a Casa-pia, ou outra grande eschola, seja qual for? Porque hade ser ésta centralização d'insino em Lisboa? Em que se funda um privilegio dado á capital em prejuizo e á custa das provincias?

Sahimos do Collegio, fomos direitos a San'Domingos, um dos mais antigos estabelecimentos monasticos do reino e que eu tanto desejava visitar. Não sei descrever o que senti quando a inferrujada chave deu a volta na porta da egreja e o velho templo se patenteiou aos nossos olhos. Acabára de servir, não imaginam de quê... de palheiro!

A derradeira camada de palha que apodrecêra, [137] adheria ainda ao lagedo humido, e exhalava um forte vapor mephitico que nos suffocava. Mal podémos ver os tumulos dos Docems e tantos outros interessantes monumentos que abundam na parte superior do templo. A inferior, ou corpo da egreja como dizem, é de um miseravel e moderno anachronismo.

Respirando a custo aquelle ar infecto, todo o tempo que lhe pudesse resistir, quiz approveitá-lo em examinar a principal e mais interessante reliquia da profanada egreja―a capella e jazigo do grande bruxo e grande santo, San'Frei-Gil.

Algures lhe chamei ja o nosso Doutor Fausto: e é comeffeito. Não lhe falta senão o seu Goethe.

Vixere fortes ante Agamemnona multi.

Houve fortes homens antes de Agamemnão, e fortes bruxos antes e depois do Doutor Fausto. Mas sem Homero ou Goethe é que se não chega á reputação e fama que alcansaram aquelles senhores. Nós precisâmos de quem nos cante as admiraveis [138] luctas―ora comicas, ora tremendas―do nosso Frei Gil de Santarem com o diabo. O que eu fiz na 'Dona Branca' é pouco e mal esboçado á pressa. O grande mago lusitano não apparece alli senão episodicamente; e é necessario que appareça como protagonista de uma grande acção, pintado em corpo inteiro, na primeira luz, em toda a luz do quadro.

Então o seu ardente e anciado desejo de saber, os seus vastos estudos, os reconditos mysterios da natureza que descobriu até penetrar no mundo invisivel―a sêde de oiro, de prazer e de podêr que o perseguia e o fez cahir nas garras do espirito maligno―o fastio e saciedade que o desincantaram depois―o seu arrependimento emfim, e a regeneração de sua alma pela penitencia, pela oração e pelo desprêzo da van sciencia humana―então essas variadas phases de uma existencia tam extraordinaria, tam poetica, devem mostrar-se como ainda não foram vistas, porque ainda não olhou para ellas ninguem com os olhos de grande moralista e de grande poeta que são precisos para as observar e intender.

Lembra-me que sempre entrevi isto desde pequeno, [139] quando me faziam ler a historia de San'Domingos, tam rabujenta e semsabor ás vezes, apezar do incantado stylo do nosso melhor prosador; e que eu deixava os outros capitulos para ler e reler somente as aventuras do sancto feiticeiro que tanto me interessavam.

Com todas éstas reminiscencias que me reviviam n'alma, com os admiraveis versos do Fausto a acudir-me á memoria, e com uma infinidade de associações que essas ideas me traziam, caminhei direito á capella do sancto, cheio de alvorôço, e como tocado, para assim dizer, de sua magica vara de condão.

A capella―oh desappontamento! a cappella de San'Frei Gil é um mesquinho rifacimento moderno, do lado esquerdo da egreja, sem nenhum vestigio de antiguidade, nenhum ornato characteristico, pesada, grosseira―velha sem ser antiga―um verdadeiro non-descriptum de mau gôsto e semsaboria. Quem tal dissera?

O tumulo do sancto está elevado do altar n'uma especie de mau throno. Subi acima da [140] degradada e profanada credencia para o examinar deperto.

É de pedra o jazigo; mas ultimamente ve-se que tinham pintado a pedra; não tem lavor algum.―E estava vazio, a loisa levantada e quebrada!..

Quem me roubou o meu sancto?

Quem foi o anathema que se atreveu a tal sacrilegio?..



CAPITULO XL.


As Claras.―Aventura nocturna.―Se as freiras mettem medo aos liberaes?―O Psalmo.―Tres frades.―Práctica do franciscano.―O corpo de San' Fr. Gil.―Que se hade fazer das freiras?―Mal do govêrno que deixar comer mais aos barões.



Èra de noite, reinava a confusão, a desordem, o susto e a anciedade nos muros de Santarem, tres homens chegavam, por horas mortas, ao antigo mosteiro das Claras, davam [142] á portaria um signal surdo e mysterioso; respondiam-lhe de dentro com outro egual; e d'ahi a pouco, sem rumor e com as mais escrupulosas precauções se abria quietamente a porta da clausura.

Os tres homens entraram, a porta fechou-se sôbre elles do mesmo modo precatado.

Que será?

Os homens levavam uma especie de cofre que parecia conter preciosidades de grande valor: tal era o desvello com que o resguardavam.

Ha um mysterio que se figura criminoso n'esta aventura. Mas os tempos são para tudo.

Era no anno de 1834.

Entremos n'esse convento das pobres Claras, tam afflictas e desconsoladas agora que as ameaçam de dissolução como aos frades.

Não será assim: aquellas instituições não mettem medo aos verdadeiros liberaes, e os outros lá [143] teem o espolio dos frades para devorar; estão entretidos: as freiras salvam-se porora.

Taes eram as esperanças dos tres homens que entravam a essas deshoras nos vedados precinctos do mosteiro. Sigamo-los porêm, que é tempo.

Chegavam elles a uma pequena capella do claustro das freiras, foram depor sôbre o altar o cofre que traziam, e ajoelharam devotamente deante d'elle. Logo se ouviu ao longe o psalmear baixo e sumido de vozes femininas; e d'ahi a pouco, toda a communidade das Claras, de tochas na mão, em duas alas, e a abbadessa com o seu baculo atraz, entravam processionalmente no claustro e se dirigiam á mesma capella.

O psalmo que cantavam era este:

[6] 'Meu Deus, vieram os barbaros ás tuas herdades, polluiram o teu sancto templo, pozeram Jerusalem como um grannel de fructos.

'Pozeram os cadaveres de teus filhos de cevo [144] ás aves do ceo; as carnes dos teus sanctos ás alimarias da terra.

'O sangue d'elles derramaram-n'o como agua nos valles de Jerusalem; ja não havia quem sepultasse.

'Estamos feitos o oppróbrio dos nossos vizinhos; o escarneo e a zombaria dos que vivem por nossos arredores.

'Até aonde, ó Senhor, te hasde irar emfim; e se hade accender o teu zêlo como fogo?

'Vérte a tua íra sôbre as gentes que te não conheceram, contra os reinos que não invocaram o teu nome;

'Que devoraram a Jacob; e desolaram suas terras.

'Não te lembres de nossas iniquidades passadas, e depressa nos alcancem as tuas misericordias; ja que tam pobres de mais estamos.

'Ajuda-nos Deus, salvador nosso; e pela gloria [145] do teu nome livra-nos, Senhor, amercea-te de nossos peccados por causa do teu nome.'

Cantavam assim as pobres das freiras, cantavam em latim que ellas mal intendiam; mas dizia-lhes o instincto do coração, dizia-lhes a tam excitavel imaginação feminina, que era chegada a hora de se cumprir a seus olhos, e sôbre ellas mesmas tambem, a tremenda prophecia do psalmo que intoavam.

Havia pois lagrymas n'aquellas vozes que assim cantavam, sahiam d'alma aquelles sons e n'alma vibravam tambem com profunda e solemne melancholia.

Chegadas juncto á capella aonde estava o cofre, as freiras pararam conservando as mesmas duas alas da procissão e continuando no accentuado mormúrio de seu psalmo.

Os tres vultos de homem permaneceram de joelhos e curvados deante do altar.

Findou o psalmo e seguiu-se breve intervallo de silencio. Depois, os tres homens levantaram-se, [146] e cahindo-lhes para os lados as longas capas em que vinham involtos, viu-se que o do meio era um frade velho, magro, curvado e sêcco, trajando ainda, apezar da lei, o burel preto dos franciscanos e cingido com sua corda. Os outros dous eram dominicos e vestiam de preto e branco segundo as côres de seu tambem proscripto instituto.

O velho franciscano subiu com passo trémulo os degraus do altar, beijou o cofre que estava sôbre elle, e voltando-se para a communidade que o contemplava em religioso silencio, disse com uma voz cava que parecia vir do sepulchro mas accentuada e forte:

'Irmans, vimos intregar-vos este depósito precioso. Deus não quer que os cadaveres dos seus sanctos fiquem expostos ás aves do ceo e ás alimarias da terra. Este é o sancto corpo de um dos maiores sanctos que produziu ésta terra de Portugal quando era abençoada. Hoje é malditta e não devia conservar as suas reliquias. Os filhos de San'Domingos foram expulsos de sua casa, assim como nós fomos, nós os filhos de Francisco, incontrámo'nos sem tecto nem abrigo uns e outros, [147] e junctámos as nossas miserias para as chorarmos como irmãos que somos, como filhos de paes que tanto se amaram e ajudaram. Perigrinaremos junctos por essas solidões da terra, e junctos iremos bater por essas portas que cerrou a impiedade e a indifferença, a pedir o pão de cada dia porque temos fome.

'Que importa! não professâmos nós, não nos honrâmos nós de ser mendigos? De que vivêmos nós sempre senão de esmolla?

'Não choreis irmans, não choreis sôbre nós. Deus que o permittiu bem sabe o que fez. Louvado seja elle sempre! Nós tinhamos peccados para mais! Ainda foi misericordioso comnosco o Senhor da justiça e do castigo.

'A nós tiraram-nos tudo, tudo! Até éstas mortalhas que tinhamos escolhido em vida e que nem a morte ousava roubar-nos.

'A furto e como quem se esconde para um acto criminoso, nós as vestimos ésta noite para commetter o que elles chamarão um furto, e que era uma obrigação sagrada nossa.

[148] 'Fomos á antiga casa de nossos irmãos e roubámos o corpo do bemaventurado San'Frei Gil.

'Aqui vo-lo intregâmos; guardae-o. Emquanto estes muros estiverem em pe, que o abriguem dos desacatos d'essa gente sem Deus nem lei. A vós não ousarão expulsar-vos d'aqui: talvez vos matem á fome... Não póde ser: Deus não hade permitti-lo.

'Mas qualquer que seja a sua vontade, resignae-vos a ella, minhas irmans. So elle sabe como nos ama e como nos castiga. Louvemo'-lo por tudo.'

Aqui foi um chorar e um supplicar fervente como so se ouve na hora da angústia.

As afflictas monjas, estavam prostradas nas lages humidas do claustro, sôbre as sepulturas de suas irmans, sôbre seus proprios jazigos que haviam de ser. O frade com os braços extendidos pronunciou as solemnes palavras de benção, descrevendo com a direita o augusto symbolo da redempção:

[149] 'Bemdiga-vos Deus omnipotente, Pae, Filho e Espirito-sancto!' 'Amen!' respondeu o côro; e os tres proscriptos se retiraram, deixando a salvo o seu thesoiro.

Assim desappareceu do tumulo o corpo de San'Frei Gil de Santarem.

Ninguem sabía d'elle: soube eu e guardei o segredo religiosamente.

Os tempos são outros hoje: os liberaes ja conhecem que devem ser tolerantes, e que precisam de ser religiosos. Não ha perigo em dizer-lhe onde elle está.

Quando houver em Portugal um govêrno que saiba ser govêrno, hade regular e consolidar a existencia das freiras, hade approveitá-la para as piedosas instituições do insino da mocidade, da cura dos infermos, e do amparo dos invalidos.

Os barões andam-lhe com o cheiro nos poucos bens que lhes restam ás pobres das freiras. Mal do govêrno que deixar comer mais aos barões!



CAPITULO XLI.


O roubador do corpo do sancto descuberto pela arguta perspicacia do leitor benevolo.―Grande lacuna na nossa historia.―Porque se não preenche?―Página preta na historia de Tristam Shandy.―Novellas e romances, livros insignificantes.―O adro de San'Francisco e as suas acacias.―Que será feito de Joanninha?―O peito da mulher do norte.―Vamos embora: ja me infada Santarem e as suas ruinas.―A corneta do soldado e a trombeta do juizo final.―Eheu, Portugal, eheu!



Porcerto, leitor amigo, no franciscano velho que vai de noite roubar os ossos do sancto ao seu tum Porcerto, leitor amigo, no franciscano velho que vai de noite roubar os ossos do sancto ao seu tumulo, e os vem esconder na clausura das freiras, porcerto, digo, reconheceu ja [152] a tua natural perspicacia ao nosso Frei Diniz, o frade por excellencia―frade por teima e acinte.

Pois esse era, não ha dúvida.

Assim se passou aquella scena e assim m'a contaram. Do que mediára entre ella e o acontecido com o frade, Carlos, Joanninha, a avó e a ingleza, d'isso é que nada pude saber.

É uma grande lacuna na nossa historia; mas antes fique assim do que enchê-la de imaginação.

Oh! eu detesto a imaginação.

Onde a chronica se calla e a tradição não falla, antes quero uma pagina inteira de pontinhos, ou toda branca―ou toda preta, como na veneravel historia do nosso particular e respeitavel amigo Tristão Shandy, do que uma so linha da invenção do chroniqueiro.

Isso é bom para novellas e romances, livros insignificantes que todos leem todavia, ainda os mesmos que o negam.

[153] Eu tambem me parece que os leio, mas vou sempre dizendo que não...

Emfim, tornemos ao frade, e tornemos ás minhas viagens.

Cheio d'elle e da sua memoria, palpitando com a recordação das tremendas scenas que, havia tam poucos annos, se tinham passado em seu antigo mosteiro, eu me approximei emfim do real convento de San'Francisco de Santarem.

Dei pouca attenção ao bello adro e á solemne vista que d'elle se descobre―e menos ainda ás doentias acacias que ahi vejetam infezadas e rachiticas, como plantadas de má mão e em má hora―porque môças são ellas, é visivel: poseram-n'as ahi depois de extincto o convento. São triste mas verdadeiro symbolo da apagada e facticia vida que se quiz dar ao que era morto.

Vamos dentro, e vejamos pelas baixas e aguçadas arcadas do claustro, pelas altas naves do templo se descubrimos algum vestigio do último guardião d'esta casa, e d'essa fadada familia cujo [154] destino em hora aziaga tam estreitamente se ligou com o d'elle.

Ja me interessa isto mais, confesso, ai! muito mais, do que todos esses tumulos e inscripções que por ahi estão, e que tanto characterizam este um dos mais antigos e mais historicos edificios do reino.

Mas em vão interrogo pedra a pedra, lage a lage: o echo morto da solidão responde tristemente ás minhas perguntas, responde que nada sabe, que esqueceu tudo, que aqui reina a desolação e o abandôno, e que se apagaram todas as lembranças de outro estado...

Que foi feito de ti, Joanninha, e dos teus amores? Que será feito d'esse homem que ousou amar-te amando a outra? E essa outra onde está? Resignou-se ella devéras? Sepultou comeffeito, sob o gêlo apparente que veste de triplice mas falsa armadura o peito da mulher do norte, todo aquelle fogo intenso e íntimo que solapadamente lhe devora o coração?

Não tenho esperanças de saber nada d'isso aqui.

[155] So pude descubrir que, no dia immediato á scena nocturna das Claras, Fr. Diniz sahiu de Santarem, não se sabe em que direcção―que n'esse mesmo dia Georgina sahíra tambem pela estrada de Lisboa, levando em sua carruagem a avó e a neta, ambas meias mortas e ambas meias loucas―que não houvera mais novas de Carlos―e que a sua última carta, aquella que escrevêra de juncto d'Evora, Joanninha a levava apertada nas mãos convulsas quando partíra.

Pois tambem eu me quero partir, me quero ir embora. Ja me infada Santarem, ja me cansam éstas perpétuas ruinas, estes pardeiros interminaveis, o aspecto desgracioso d'estes intulhos, a tristeza d'estas ruas desertas. Vou-me embora.

E comtudo San'Francisco é uma bella ruina, que merecia examinada de vagar, com outra paciencia que eu ja não tenho.

Se tudo me impacienta aqui!

Da bella egreja gothica, fizeram uma arrecadação milítar; andou a mão destruidora do soldado quebrando e abolando esses monumentos preciosos, [156] riscando com a baioneta pelo verniz mais pulido e mais respeitado d'esses jazigos antiquissimos: os lavores mais delicados esmoucou-os, degradou-os. Levantaram as lages dos sepulchros; e ao som da corneta militar acordaram os mortos de seculos, cuidando ouvir a trombeta final...

Decididamente vou-me embora, não posso estar aqui, não quero ver isto. Não é horror que me faz, é náusea, é asco, é zanga.

Maldittas sejam as mãos que te profanaram, Santarem... que te deshonraram, Portugal... que te invilleceram e degradaram, nação que tudo perdeste, até os padrões da tua historia!..

Eheu, eheu, Portugal!



CAPITULO XLII.


Protesto do auctor.―Desaffinação dos nervos.―O que é preciso para que as ruinas sejam solemnes e sublimes.―Que Deus está no Colliseu assím como em San'Pedro.―Quer-se o auctor ir embora de Santarem.―Como, sem ver o tumulo d'elrei D. Fernando?―Em que estado se acha este.―Exemplar de stylo byzantino.―Coroa real sôbre a caveira.―O rei d'espadas e o symbolo do imperio.―Quem nunca viu o rei cuida que é de oiro.―Brutalidades da soldadesca n'um tumulo real.―O que se acha nas sepulturas dos reis.―A phrenologia.―Vindicta publica, tardia mas ultrajante.―Camões e Duarte Pacheco.―A sombra falsa da religião.―Regimen dos barões e da materia.―A prosa e a poesia do povo.―Synthese e analyse.―O senso íntimo.―Se o auctor é demagogo ou Jesuita?―Jesu Christo e os barões.



Não chamem exaggerado ao que vai escripto no fim do último capitulo; senti o que escrevi, senti muito mais do que escrevi. O que poderá haver é desacêrto nas palavras, porque [158] em verdade não sei explicar a impressão que me faz uma ruina n'este estado. Desaffinam-me os nervos, vibram-me n'uma discordancia e dissonancia insupportavel. Queria ver antes estes altares expostos ás chuvas e aos ventos do ceo,―que o sol os queimasse de dia,―que á noite, á luz branca da lua, ou ao tibio reflexo das estrellas, piasse o mocho e sussurrasse a coruja sôbre seus arcos meio-cahidos.

Não me parecia profanado o templo assim, nem descahido de majestade o monumento. Podia ajoelhar-me no meio das pedras sôltas, entre as hervas humidas, e levantar o meu pensamento a Deus, o meu coração á glória, á grandeza, o meu espirito ás sublimes aspirações da idealidade. O material, o grosseiro, o pesado da vida não me vinham affligir ahi.

Deus, a idea grande do mundo―Deus, a Razão Eterna―Deus, o amor―Deus, a glória―Deus, a fôrça, a poesia e a nobreza d'alma―Deus está nas ruinas escalavradas do Colliseu, como nos zimborios de bronze e marmore de San'Pedro.

[159] Mas aqui!.. nos pardeiros de um convento velho, concertado pelas Obras-públicas para servir de quartel de soldados―aqui não habita espirito nenhum.

Quero-me ir embora d'aqui!

E como? sem ver o tumulo d'elrei Fernando? Não póde ser, é verdade.

Onde está elle?

No côro alto.

Subamos ao côro alto.

Oh! que não sei de nôjo como o conte!

O bello jasigo do rei formoso e frivolo, tam dado ás delicias do prazer como foi seu pae ás austeridades da justiça, em que estado elle está!

Oh nação de barbaros! Oh malditto povo de iconoclastas que é este!

O tumulo do segundo marido de D. Leonor [160] Telles é um sarcophago de pedra branca, fina e friavel, elegante e simplesmente cortada, com mais sobriedade de ornatos do que tem de ordinario os monumentos do seculo XIV, mas de uma acabada sculptura, casta e continente, como o não foi a vida do rei que ahi incerraram depois de morto.

Percebem-se ainda vestigios das vivas côres em que foram induzidos os relevos da pedra branca:―stylo byzantino de que não sei outro exemplar em Portugal. Este é―ou antes, era―precioso.

Era; porque a brutalidade da soldadesca o deturpou a um ponto incrivel. Imaginou a estupida cubiça d'estes Allanos modernos que devia de estar alli dentro algum grande haver de riquezas incantadas,―talvez cuidaram achar sôbre a caveira do rei a coroa real marchetada de perolas e rubis com que fosse interrado,―talvez pensaram incontrar appertado ainda entre as sêccas phalanges dos dedos myrhados, aquelle globo de oiro macisso que lhes figura o rei d'espadas do sujo baralho de sua tarimba, e que elles teem pela indisputavel e infallivel insignia do [161] supremo imperio;―talvez supposeram que mesmo depois de morto, um rei devia de ser de oiro... Emfim quem sabe o que elles cuidaram e pensaram? O que se sabe, porque se ve, é que quizeram abrir e arrombar o tumulo. Tentaram, primeiro, levantar a campa; não poderam: tam solidamente está soldada a pedra decíma ao corpo ou caixão do jazigo, que o todo parece macisso e inconsutil. Mas n'este impenho quebraram e estallaram os lavores finos dos cantos, os caireis delicados das orlas; e a campa não cedeu: parece chumbada pelo anjo dos últimos julgamentos com o sêllo tremendo que so se hade quebrar no dia derradeiro do mundo.

A cubiça estolida dos soldados não se aterrou com a religião do sepulchro, nem lhe causou attrição, ao menos, ésta resistencia quasi sobrenatural das pedras do moimento. Ve-se que trabalhou alli, de alavanca e de ariete, algum possante e ponderoso pé-de-cabra; mas que trabalhou em vão muito tempo.

Desinganaram-se emfim com a tampa; e resolveram atacar, mais brutalmente mas com mais vantagem, as paredes do sarcophago, que justamente [162] suspeitaram de menos espessos. Assim era; e conseguiram na parede da frente abrir um rombo grosseiro por onde entra facil um braço todo e póde explorar o interior do tumulo á vontade.

Assim o fiz eu, que metti o meu braço por essa abertura barbara, e achei terra, pó, alguns ossos de vertebras, e duas caveiras, uma de homem, outra de criança.

Não me lembra que haja memoria alguma de infante que ahi fosse sepultado tambem, segundo faziam os antigos muitas vezes que punham os cadaveres das crianças nos jazigos dos paes, dos parentes, até de meros amigos de suas familias.

Tive, confésso, uma especie de prazer maligno em imaginar a estupida compridez de cara com que deviam de ficar os brutaes profanadores, quando achassem no tumulo do rei o que so teem os tumulos―de reis ou de mendigos―ossos, terra, cinza, nada!

Por mim, estive tentado a furtar a caveira d'elrei D. Fernando. Se acreditasse na phrenologia, parece-me que não tinha resistido. Não [163] creio na sciencia, felizmente―n'este caso―para a minha consciencia. Tambem não sei o que faria se a caveira fosse de outro homem. Mas o 'fraco rei' que fez 'fraca a forte gente' não são reliquias as suas que se guardem.

Oh! e quem sabe? Ésta profanação, este abandôno, este desacato do tumulo de um rei, alli na sua terra predilecta―D. Fernando era santareno de affeição―não será elle o juizo severo da posteridade, a vindicta pública dos seculos, que tardia mas ultrajante, cai emfim sôbre a memoria reprovada do mau principe, e lhe deshonra as cinzas como ja lhe deshonrára o nome?

Quero acreditar que tal não podia succceder aos tumulos de D. Diniz, de D. Pedro I, dos dois Joannes I e II, de...

Sim: e aonde está o de Camões? O de Duarte Pacheco aonde esteve? que ainda é mais vergonhosa pergunta ésta última.

Em Portugal não ha religião de nenhuma especie. Até a sua falsa sombra, que é a hypocrisia, desappareceu. Ficou o materialismo estupido, [164] alvar, ignorante, devasso e desfaçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cynica no meio das ruinas profanadas de tudo o que elevava o espirito...

Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apezar d'esta paralysia que lhe pasma a vida d'alma na mais nobre parte de seu corpo. Mas uma nação piquena, é impossivel; hade morrer.

Mais dez annos de barões e de regimen da materia, e infallivelmente nos foge d'este corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espirito.

Creio isto firmemente.

Mas ainda espero melhor todavia, porque o povo, o povo povo, está são: os corruptos somos nós os que cuidâmos saber e ignorâmos tudo.

Nós, que somos a prosa vil da nação, nós não intendemos a poesia do povo; nós, que so comprehendemos o tangivel dos sentidos, nós somos extranhos ás aspirações sublimes do senso-íntimo [165] que despreza as nossas theorias presumpçosas, porque todas veem de uma acanhada anályse que procede curta e mesquinha dos dados materiaes, insignificantes e imperfeitos;―em quanto elle, aquelle senso-íntimo do povo, vem da Razão divina, e procede da synthese transcendente, superior, e inspirada pelas grandes e eternas verdades que se não demonstram porque se sentem.

E eu que escrevo isto serei eu demagogo? Não sou.

Serei fanatico, jesuita, hypocrita? Não sou.

Que sou eu então?

Quem não intender o que eu sou, não vale a pena que lh'o diga...

Perdoa-me, leitor amigo, uma reflexão última no fim d'este capítulo ja tam seccante, e prometto não reflectir nunca mais.

Jesu Christo, que foi o modêlo da paciencia, da tolerancia, o verdadeiro e unico fundador da [166] liberdade e da egualdade entre os homens, Jesu Christo soffreu com resignação e humildade quantas injustiças, quantos insultos lhe fizeram a elle e á sua missão divina; perdoou ao matador, á adúltera, ao blasphêmo, ao impio. Mas quando viu os barões a agiotar dentro do templo, não se pôde conter, pegou n'um azorrague e zurziu-os sem dor.



CAPITULO XLIII.


Partida de Santarem.―Pinacotheca.―Impaciencia e saudades.―Sexta-feira.―Martyrio obscuro.―A figura do peccado.―Estamos no valle outra vez.―Evocação de incanto.―A irman Francisca e Fr. Diniz.―A teia de Penelope.―E Joanninha?―Joanninha está no ceo.―A mulher morta a dobar esperando que a interrem.―A esperança, virtude do christianismo.―Uma carta.



Estou devéras fatigado de Santarem; vou-me embora.

Despedimo'-nos saudosos d'aquella boa e leal [168] familia que nos hospedára com tanto carinho, com toda a velha cordialidade portugueza; partimos.

Apenas comecei a respirar o ar fresco da manhan nos olivaes, senti desaffogar-se-me alma d'aquella constricção cansada que se experimenta na longa visita a um museu de antiguidades, a uma galeria de pinturas.

Perdoem-me que não diga 'pinacotheca': bem sei que é moda, e que a palavra é adoptavel segundo as mais strictas regras de Horacio, pois 'cai da fonte grega' direitamente e sem mistura: mas soa-me tam mal em portuguez que não posso com ella.

Santarem fatigou-me o espirito, como todas as coisas que fazem pensar muito. Deixo-a porêm com saudade, e não me heide esquecer nunca dos dias que aqui passei.

De quê e como sou eu feito, que não posso estar muito tempo n'um logar, e não posso sahir d'elle sem pena?

[169] Ja me está custando ter deixado Santarem. Porque não haviamos de partir ámanhan, e ter ficado ainda hoje alli?

E hoje que é sexta-feira?... Mau dia para começar viagem!

Sexta-feira! Era o dia aziago do nosso valle, da pobre velha cega que ahi vivia sua triste vida de dores, de remorsos e desconfôrto, esperando porêm em Deus, conformada com seu martyrio: martyrio obscuro, mas tam insanguentado d'aquelle sangue que mana gotta a gotta e dolorosamente do coração rasgado, devorado em silencio pelo abutre invisivel de uma dor que se não revela, que não tem prantos nem ais.

Era na sexta-feira que o terrivel frade, o demonio vivo d'aquella mulher de angústias, lhe apparecia tremendo e espantoso deante de seus olhos cegos, elevado pela imaginação ás proporções descommunaes e gigantescas de um vingador sobrenatural.

Era a figura tangivel, e visivel á vista de sua [170] alma, do enorme peccado que contra ella estava sempre.

Creio que escuso dizer que não tenho eu ésta superstição dos dias aziagos que tinha a desgraçada velha, que a sua Joanninha partilhava. Mas confesso que, recordando as fatalidades d'aquella familia e d'aquelle dia, não gostei de voltar n'elle ao valle de Santarem.

Estavamos porêm no valle; e ja eu via de longe aquellas árvores e aquella janella que tanto me impressionaram, quando éstas reflexões me acudiam ao espirito e m'o contristavam.

Affrouxei insensivelmente o passo, deixei tomar larga dianteira aos meus companheiros de viagem; e quando chegava perto da casa, tinha-os perdido de vista.

Involuntariamente parei defronte da janella; mordia-me um interêsse, uma curiosidade irresistivel... Nem viva alma por aquelles arredores; apeei-me e fui direito para a casa.

Apenas passei as árvores, um spectaculo inesperado, [171] uma evocação como de incanto me veio ferir os olhos.

No mesmo sítio, do mesmo modo, com os mesmos trajos e na mesma attitude em que a descrevi nos primeiros capitulos d'esta historia, estava a nossa velha irman Francisca...

Ella era, e não podia ser outra; sentada na sua antiga cadeira, dobando, como Penelope tecia, a sua interminavel meada. Não havia outra differença agora senão que a dobadoira não parava, e que o fio seguia, seguia, inrollando-se, inrollando-se contínuo e compassado no novêllo; e que os braços da velha lidavam lentamente mas sem cessar no seu movimento de authomato que fazia mal ver.

Defronte d'ella, sentado n'uma pedra, a cabeça baixa, e os olhos fixos n'um grosso livro velho, que sustinha nos joelhos, estava um homem sêcco e magro, descarnado como um esqueleto, livido como um cadaver, immovel como uma estátua. Trajava um non-descriptum negro, que podia ser sotana de clerigo ou tunica de frade, mas descingida, sôlta, e pendente em [172] grossas e largas pregas do extenuado pescosso do homem.

Tambem não podia ser senão Frei Diniz.

Cheguei juncto d'elles; não me sentiu nenhum dos dois; nem me viu elle, o que so via dos dois.

Sem mais reflexão, e continuando alto na serie de pensamentos que me vinha correndo pelo espirito, exclamei:

―'E Joanninha?'

―'Joanninha está no ceo':―respondeu sem sobresalto, sem erguer os olhos do seu livro, a sombra do frade―que outra coisa não parecia.

―'Joanninha, pobre Joanninha! Pois como foi, como acabou a infeliz?'

―'Joanninha não é infeliz: foi ser anjo na presença de Deus.'

―'E... e Carlos?' balbuciei eu hesitando, porque temia a susceptibilidade do frade.

[173] ―'Carlos!' respondeu elle erguendo emfim os olhos e cravando-os em mim...

E oh! que nunca vi olhos como aquelles, nem os heide ver!

―'Carlos!... E quem é que m'o pergunta? quem é que tanto sabe de mim e dos meus?.. Dos meus! Eu não tenho meus: sou so.'

―'So! Não está aqui, que eu vejo?..'

―'Ve essa mulher morta que ahi ficou, que a matei eu, e que aqui está á espera que dê a hora de a eu interrar, mais nada. Eu estou so e quero estar so. Morreu tudo. Que mais quer saber?'

―'Venho de Santarem...'

―'Santarem tambem morreu; e morreu Portugal. Aqui não, vive senão o meu peccado, que Deus não perdoou ainda, nem espero...'

―'A nossa religião fez uma virtude da esperança.'

[174] ―'Fez.'

―'E n'isso se distingue das outras todas.'

―'Pois ainda ha quem o saiba n'esta terra?'

―'Ha mais do que não houve nunca―pelo menos ha mais quem o saiba melhor.'

―'Póde ser: os juizos de Deus são incomprehensiveis.'

―'E infinita a sua misericordia.'

―'Mas a sua cholera implacavel, a sua justiça tremenda.'

―'A misericordia é maior.'

―'Quem lhe insinou tudo isso?'

―'O evangelho, o coração, e minha mãe que m'os explicou ambos.'

―'Sente-se aqui... aopé de mim.'

[175] Sentei-me. O frade pegou-me na mão com as suas ambas, e pôs-me os olhos com uma expressão que nenhuma lingua póde dizer, nem nenhum pincel pintar.

Esteve assim algum tempo, como quem me observava. Vi-lhe apontar claramente uma lagryma, vi-lh'a retroceder, e ficarem-lhe inchutos os olhos. Senti-lhe estrangular um suspiro que lhe vinha á garganta; percebi distinctamente o estremeção que lhe correu o corpo; mas observei que todo se serenou depois.

Disse-me então com voz magoada mas placida e sem aspereza ja nenhuma:

―'Sabe a historia do valle?'

―'Sei tudo até á partida de Carlos para Evora.'

―'Aqui tem a carta que elle escreveu.'

Tirou do breviario um papel dobrado, amarello do tempo, e manchado, bem se via, de muitas lagrymas, algumas recentes ainda.

[176] ―'Leia.'

Li.

Ésta era a carta de Carlos.



CAPITULO XLIV.


Carta de Carlos a Joanninha.



Evora-monte...
de maio de 1834.


É a ti que escrevo, Joanna, minha irman, minha prima, a ti so.

Com nenhum outro dos meus não posso nem ouso fallar.

[178] Nem eu ja sei quem são os meus: confunde-se, perde-se-me ésta cabeça nos desvarios do coração. Errei com elle, perdeu-me elle... Oh! bem sei que estou perdido.

Perdido para todos, e para ti tambem. Não me digas que não; tens generosidade para o dizer, mas não o digas. Tens generosidade para o pensar, mas não pódes evitar de o sentir.

Eu estou perdido.

E sem remedio, Joanna, porque a minha natureza é incorrigivel. Tenho energia de mais, tenho podêres de mais no coração. Estes excessos d'elle me mataram... e me matam!

Tu não comprehendes isto, Joanninha, não me intendes decerto; e é difficil.

Es mulher, e as mulheres não intendem os homens. Sempre o entrevi, hoje sei-o perfeitamente. A mulher não póde nem deve comprehender o homem. Triste da que chega a sabê-lo!..

E d'ahi... quando se tem de morrer, antes [179] saber a morte de que se morre, do que expirar na ignorancia do mal que nos matou.

Tu es joven e inexperiente, a tua alma está cheia de illusões doces; vou dissipar-t'as em quanto se não condensam, que te offusquem a razão e te deixem para sempre escrava cega do maior inimigo que temos, o coração.

Quero contar-te a minha historia: verás n'ella o que vale um homem.

Sabe que os não ha melhores que eu; e tam bons, poucos. Olha o que será o resto!

Tu não ignoras ja hoje o porque fugi da casa materna: sabía-a manchada de um grande peccado, e imaginei-a polluida de um enorme crime.

Esse homem que é meu pae, não o podia ver; hoje que sei o que me elle é... Deus me perdoe, que ainda o posso ver menos!

Minha avó, julguei-a cumplice no crime; ella so o era no peccado. Perdoe-lhe Deus; e bem [180] póde e bem deve, ja que a fez tam fraca. Minha pobre mãe succumbiu por sua culpa, por sua irremissivel complacencia...

Deus póde e deve, repitto... mas eu, como lhe heide perdoar eu este rubor que sinto nas faces ao nomear minha mãe?

Tem padecido e soffrido muito... coitada! A sua penitencia é um martyrio, a sua velhice uma longa paixão, e esse homem que a perdeu um verdugo sem piedade. Mas tudo isso é com Deus, não é commigo.

Eu sou filho; minha mãe morreu sem perdoar―não posso perdoar eu.

E quem me hade perdoar a mim? Ninguem, nem quero.

Não serás tu, minha irman; não, que não deves. Porque eu amei-te com um coração que ja não era meu; acceitei o teu amor sem o merecer, sem o podêr possuir, trahi quando te amava, menti quando t'o disse, menti-te a ti, [181] menti-me a mim, e não guardei verdade a ninguem.

Mas espera, ouve; deixa-me ver se posso atar o fio d'esta minha incrivel historia―incrivel para ti, bem simples para quem conheça o coração do homem.

Sahi de Portugal, e posso dizer que não tinha amado ainda. Inclinações de criança, galanteios de sociedade, ligações que nasceram da vaidade, ou que so os sentidos alimentam, não merecem o nome de amor.

Eu não tinha amado.

Ha tres especies de mulheres n'este mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja, e a mulher que se ama.

A belleza, o espirito, a graça, os dotes d'alma e do corpo geram a admiração.

Certas fórmas, certo ar voluptuoso criam o desejo.

[182] O que produz o amor não se sabe; é tudo isto ás vezes, é mais do que isto, não é nada d'isto.

Não sei o que é; mas sei que se póde admirar uma mulher sem a desejar, que se póde desejar sem a amar.

O amor não está definido, nem o póde ser nunca. O amor verdadeiro; que as outras coisas não são isso.

Eu vivi poucos mezes em Inglaterra; mas foram os primeiros que posso dizer que vivi. Levou-me o acaso, o destino―a minha estrella, porque eu ainda creio nas estrellas, e em pouco mais d'este mundo creio ja―levou-me ao interior de uma familia elegante, ricca de tudo o que póde dar distincção n'este mundo.

Extranhei aquelles habitos de alta civilização, que me agradavam comtudo; moldei-me facilmente por elles, affiz-me a vejetar docemente na branda atmosphera artificial d'aquella estufa sem perder a minha natureza de planta extrangeira. Agradei: e não o merecia. No fundo d'alma [183] e de character eu não era aquillo por que me tomavam. Menti: o homem não faz outra coisa. Eu detesto a mentira, voluntariamente nunca o fiz, e todavia tenho levado a vida a mentir.

Menti pois, e agradei porque mentia. Sancto Deus! para que sahiria a verdade da tua bôcca, e para que a mandaste ao mundo, Senhor?

Havia tres meninas n'aquella familia. Dizer que eram as tres graças é uma vulgaridade cansada, e tam bannal que não dá idea de coisa alguma. Tres anjos seriam; tres anjos posso dizer com mais propriedade. E quando em nossos longos passeios solitarios, por aquelles campos sempre verdes, por aquellas collinas coroadas de arvoredo, tapessadas de relva macia, os seus vestidos brancos, singelos, simples, trajados sem arte, fluctuavam com a brisa da tarde... e os longos anneis de seus cabellos―os de uma eram loiros, os de outra castanhos, não ha nome para a indefinida côr dos da terceira―quando esses longos anneis descahiam de sua ondada spiral com o orvalho humido do crepusculo―e que a essa luz vaga e mysteriosa eu as contemplava todas tres com adoração e recolhimento [184] devoto d'alma―sinceramente exclamava: 'São tres anjos celestes que é forçoso adorar!..'

E assim é que os adorava os tres anjos, todos tres, e não podia adorar um sem os outros.

Que me queriam ellas, é certo; que insensivelmente se habituaram á minha companhia e ja não podiam viver sem ella... ai! era preciso ser um monstro para o não confessar com lagrymas de gratidão e de remorso.

Os mais difficeis e delicados apices da perfeição de sua tam caprichosa e tam expressiva lingua, as bellezas mais sentidas de seus auctores queridos, o espirito e tom difficil de sua sociedade tam desdenhosa e fastienta, mas tam completa e tam calculada para sublimar a vida e a desmaterializar―isso tudo, e um indefinivel sentimento do gentil, que so com natural tacto se adquire, é verdade, mas que se não alcansa com elle so―isso tudo o apprendi alli das suaves licções que insensivelmente recebia a cada instante.

Se valho alguma coisa, tudo valho por ellas; [185] se tenho merecido alguma consideração no mundo, toda lh'a devo.

Ves que confesso a dívida, verás como a paguei.

O tom perfeito da sociedade ingleza inventou uma palavra que não ha nem póde haver n'outras linguas emquanto a civilização as não aparar. To flirt é um verbo innocente que se conjuga alli entre os dois sexos, e não significa namorar―palavra grossa e absurda que eu detesto―não significa 'fazer a côrte'; é mais do que estar amavel, é menos do que galantear, não obriga a nada, não tem consequencias, começa-se, acaba-se, interrompe-se, addia-se, continúa-se ou descontinúa-se á vontade e sem compromettimento.

Eu flartava, nós flartavamos ellas flartavam...

E não ha mais doce nem mais suave intertenimento d'espirito do que o flartar com uma elegante e graciosa menina ingleza; com duas é prazer angelico, e com tres é divino.

Para quem nasceu n'aquillo, não é perigoso; [186] para mim degenerou, breve, aquella placida sensação em mais profundo sentimento.

Veio a admiração primeiro.

E como as eu admirava todas tres as minhas gentis fascinadoras!

E ellas conheciam-n'o, riam, folgavam e estavam incantadas de me incantar.

Fizeram nascer os desejos!

Julguei-me perdido, e quiz fugir.

Não me deixaram e zombaram de mim, da ardencia do meu sangue hespanhol, da vehemencia das minhas sensações...

Em breve eu amava perdidamente uma d'ellas―queria muito ás outras duas; mas amar, amar devéras, d'alma cuidava eu, de coração ia jurá-lo, era a segunda―Laura, a mais gentil, mais nobre, mais elegante e radiosa figura de mulher que creio que Deus moldasse n'uma hora de verdadeiro amor de artista que se dignou tomar por esse pouco de greda que tinha nas mãos ao formá-la.



CAPITULO XLV.


Carta de Carlos a Joanninha: continúa.



Laura não era alta nem baixa, era forte sem ser gorda, e delicada sem magreza. Os olhos de um côr-de-avelan diaphano, puro, avelludado, grandes, vivos, cheios de tal majestade [188] quando se iravam, de tal doçura quando se abrandavam, que é difficil dizer quando eram mais bellos. O cabello quasi da mesma côr tinha, demais, um reflexo dourado, vacillante, que ao sol resplandecia, ou antes, relampejava,―mas a espaços, não era sempre, nem em todas as posições da cabeça:―cabeça pequena, modelada no mais classico da statuaria antiga, poisada sôbre um collo de immensa nobreza, que harmonizava com a perfeição das linhas dos hombros.

A cintura breve e estreita, mas sem exaggeração, via-se que o era assim por natureza e sem a menor contrafeição d'arte. O pé não tinha as exiguidades fabulosas da nossa peninsula, era proporcionado como o da Venus de Medicis.

Tenho visto muita mulher mais bella, algumas mais adoraveis, nenhuma tam fascinante.

Fascinante é a palavra para ella.

O rosto oval e perfeitamente symetrico, pallido; so os beiços eram vermelhos como a rosa de côr mais viva.

A expressão de toda ésta figura é que se [189] não descreve. A bôcca breve e fina surria pouco; mas quando surria, oh!..

Ve-la n'um baile, vestida e calçada de branco, cingida com um cinto de vidrilhos pretos―toilete inalteravel para ella desde certa epocha―sem mais ornato, sem mais flores, apenas um farto fio de perolas derramando-se-lhe pelo collo―era ver alguma coisa de superior, de mais sublime que uma simples mulher.

Tal era Laura, Laura que eu amei quanto podia e sabía amar. Era pouco, sei-o agora; entao parecia-me infinito.

Disse-lh'o a ella, disse-lh'o um dia que passeavamos sós, e depois de andarmos horas e horas esquecidas, sem trocar uma phrase. Pensavamos, eu n'ella, ella não sei em quê.

Sería em mim?

Sería mas não m'o confessou.

E ouviu-me sem dizer palavra, sem olhar para mim uma so vez, sem fugir com a mão [190] que lhe eu appertava, que lhe beijava, e que sentia fria e humida nas minhas que escaldavam.

Era tarde, dirigimo'-nos para casa. Á porta disse-me: 'Não entre'; e vi-a banhada em lagrymas. Quiz segui-la, fez-me um gesto imperioso que me confundiu. Pela primeira vez, depois de tanto tempo, fui so, triste e melancholico para a minha pobre habitação, onde passei a noite.

Quando era madrugada quiz-me deitar. Não dormi.

No dia seguinte recebi uma carta de Julia: assim se chamava a mais velha, a mais sensivel e a mais carinhosa das tres irmans.

O bilhete parecia indifferente; não continha senão palavras usuaes, pedia-me que fosse almoçar com ella... não fallava nas irmans.

Senti que era chegada a minha hora, pareceu-me que ia ser expulso d'aquelle Eden de innocencia em que tinha vivido. A lettra de Julia, [191] uma lettra linda, perfeita, natural, figurava-se-me um aggregado de signaes caballisticos terriveis que incerravam o mysterio da minha condemnação.

Vesti-me, fui, achei-me so com Julia no parlour elegante de seu exclusivo uso.

Era um pequeno gabinete de estudo, ornado somente de umas etagères com livros e musicas, uma harpa e um cavallete.

Sôbre o cavallete estava o meu retratto esboçado, na estante da harpa uma romança franceza a que eu tinha feito lettras portuguezas...

A urna asoviava sôbre a mesa, Julia fazia o cha e não parecia attender a mais nada.

É preciso que eu te descreva a piquena Julia―Julietta como nós lhe chamavamos―nós, as duas irmans e eu que rivalizavamos a qual lhe havia de querer mais...

Oh! que saudade e que remorso para toda a [192] minha vida n'estas recordações de fraternal intimidade!

Julia era piquena, delicadissima, propriamente infantina no rosto, na figura, na expressão e no hábito de toda a sua incantadora e diminutiva pessoa.

Nenhuma ingleza, desde o tempo da rainha Bess, teve pé e ancle mais delicado. Nenhuma, desde o rei Alfredo, se occupou tam elegantemente dos elegantes cuidados de um interior britannico―gentil quadro 'de genero' como não ha outro.

Lady Julia R. era a mais piquena e a mais bonita subdita britannica que eu creio que tenha existido.

Vista á lua, no meio do seu parque, volteiando por entre os raros exoticos que no curto verão inglez se expoem ao ar livre, facilmente se tomava pela bella soberana das fadas realizando aquella preciosa visão de Shakspeare, o 'Midsumer night's dream.'

[193] Seus olhos de azul celeste, sempre humidos e sempre doces, os cabellos de um claro e assedado castanho todos soltos em anneis á roda da cabeça e cahindo pelos hombros, espalhando-se pelo rosto, que era uma lida contínua para os tirar dos olhos, um corpo airoso, uma bôcca de beijar, os dentes miudos, alvissimos e apertados, a mão piquena estreita, e de cera―tudo isto fazia de Julia um typo ideal de bondade, de candura, de innocencia angelica.

E era um anjo... oh se era!

Contemplei-a muito tempo em silencio: ella surria-me tristemente de vez em quando, mas não fallava. Emfim almoçámos, levaram o trem.

Ella disse á sua aia:

―'Phebe, eu estou so com Carlos; e quero estar so. Em casa para ninguem.'

―'Sim, minha senhora.' Resposta obrigada do criado inglez a tudo.

E ficámos sos completamente.



CAPITULO XLVI.


Carta de Carlos a Joanninha: continúa.



Julia levantou finalmente para mim os seus olhos humidos, assombrados das mais longas e assedadas pestanas que ainda vi em olhos de mulher, e disse-me:

[196] ―'Carlos, eu estou triste. Devia consolar-me; diga-me alguma coisa que me console. Falle-me.'

―'Que heide eu dizer?..'

―'É um cavalheiro, Carlos: diga-me que o é, e desassombre-me d'este terror em que estou.'

―'Pois duvída, Julia?..'

―'Não duvido. Queremos-lhe todos muito aqui... muito demais... receio: como havemos de duvidar?'

―'Oh Julia, perdoe-me!' exclamei eu lançando-me a seus pés, tomando-lhe as mãos ambas nas minhas, e beijando-lh'as mil vezes n'um paroxysmo de verdadeira contricção. 'Perdoe-me, Julia: bem sei que fiz mal, e prometto...'

―'Não prometta nada, senão que hade ser cavalheiro. Isso sei eu e sinto que o póde cumprir.'

―'Juro por... por ella.'

[197] ―'Ella!.. Ella ama-o, Carlos. É melhor dizer a verdade de uma vez, e incarar todas as consequencias de uma posição difficil, do que illudir-se a gente sem as evitar. Laura ama-o, mas não deve nem póde amá-lo. Se fosse livre, não sei o que diria―não sei o que faria eu... Mas não se tratta de mim'―proseguiu com volubilidade febril―'não se tratta de mim, Carlos, tratta-se d'ella. Laura não o póde amar, está compromettida. Hade partir em tres mezes para a India.'

―'Para a India!'

―'Sim: é verdade: velo-ha. O seu noivo é capitão ao serviço da companhia, e parte em casando.'

Eu sentia-me morrer o coração dentro do peito: foi a primeira dor verdadeira d'alma que soffri... Aquelle era o primeiro amor sincero da minha vida, e aquella foi tambem a primeira excruciante pena d'amor por que passei.

Eu que de taes penas zombára sempre, que as desterrava da realidade para os romances, eu!.. [198] Ai! que poeta ou que novellista soube nunca pintar um padecer como eu experimentei n'aquella hora?

Não sei o que fiz nem o que disse; não me recordo senão que senti as lagrymas de Julia cahirem-me sôbre a face e misturarem-se com as minhas que corriam em abundancia. Levantei os olhos para ella, e a expressão que vi nos seus... oh! como a heide esquecer nunca?

Quanto ha de piedade e compaixão no thesouro infinito de um coração feminino se derramava d'aquelles olhos celestes para me consolar. Lá não ficava senão uma tristeza profunda, desanimada e mortal...

Não sei que vago pensamento, que idea louca... ou antes, que presentimento indeterminado e confuso me atravessou pelo espirito―ou sería pelo coração?―n'aquelle momento...

Se Julia?..

Mas não póde ser.

[199] ―'Julia, Julia' bradei eu 'quero vê-la: heide vê-la uma vez ao menos. Não me negue este último favor. Sei que devo, que preciso, que é forçoso fugir d'ella. Mas antes heide dizer-lhe...'

―'O quê?..'

―'Que a amo como nunca amei, como nunca mais heide amar...'

―'Ai Carlos!'

―'Que para sempre, sempre...'

Julia levantou-se sem dizer palavra, e lançando sôbre mim um olhar de ineffavel compaixão, sahiu rapidamente do quarto.

Achei-me so, não sei o que pensei nem se pensei. Sentia-me aturdido da cabeça, exhausto do coração―n'uma depressão d'espirito que tocava na estupidez. Se me apontassem uma pistola aos peitos, não levantava o braço para a arredar... Ja não sentia pena nem desejo. Parecia-me que começava a morrer; e não achava que morrer custasse muito.

[200] N'este estado fiquei não sei que tempo; muito não foi. Percebi que se abria a porta, não tive fôrça para levantar os olhos. Até que senti uma doce e querida mão na minha... era Julia... e era Laura tambem... sancto Deus! que estavam aopé de mim ambas.

Julia tinha a minha mão na sua; e Laura incostada ao hombro da irman, deixava cahir sôbre mim aquelles olhos em que a severidade habitual se tinha relaxado n'uma indulgencia tam doce, n'uma compaixão tam celeste que, juro por Deus, n'aquella hora acreditei firmemente que tinha deante de mim dous anjos seus, baixados nas azas da piedade divina para me trazer todo o perdão, toda a misericordia do ceo á minha alma.

Como te direi eu, Joanna, querida Joanninha, como te direi a ti que me amas, a ti que eu amo―porque te amo, e Deus me castigue que deve! porque te amo, cegamente te amo com este infame e abominavel coração que Elle me deu―como te heide eu dizer a ti, e para quê, as palavras que alli dissemos, os protestos [201] que alli fiz, os juramentos que alli se deram, as promessas que alli foram trocadas?

Julia foi para a janella―indulgente chaperão que nos não via e fingia não nos ouvir. O dia passou-se assim, um longo dia de junho que tam curto e rapido nos pareceu. Era noite quando fomos jantar.

Á mesa Laura appareceu em trajos de viagem; partia n'aquella noite para o paiz de Galles onde tinha uma amiga, com quem ia estar até o dia terrivel, e preparar-se para elle, me disse, longe de mim, no seio da amizade.

Imagine-se aquelle jantar. Nem comer fingiamos. Ao sahir da mesa achámos á porta da casa a caleche posta, o cocheiro na almofada, e o criado á portinhola. Montámos, as tres irmans e eu.

Eram duas milhas d'alli á estalagem onde tocava a malla-posta e onde Laura devia incontrá-la. Fizemo-las sem proferir palavra nenhum dos quatro.

[202] A lua ia grande e bella com sua luz triste e fria por um ceo sem nuvens. Era uma d'aquellas noites raras, mas admiraveis do breve estio britannico.

A areia que rangia com o attrito das rodas da carruagem nas lisas ruas do parque, os ramos descahidos das árvores por que roçavamos levemente ao passar, os veados mansos que se levantavam para nos ver―os phaesães que erguiam seu rasteiro voo de moita para moita ao sentir o estalido do chicote, com que o cocheiro mais moderava do que excitava os seus cavallos, tudo para mim eram impressões de nunca sentida e inexplicavel tristeza. Ficava-me a alma apoz tudo aquillo, sentia fugir-me a felicidade para sempre, e que era eu que a affugentava, e que me ia incontrar so, desamparado e proscripto no deserto da vida.

Não me sentia fôrça para blasphemar, para maldizer de Deus, senão tinha-o feito.

Tinha: e outras ancias mais angustiadas e mortaes me teem afflicto na vida; em nenhuma [203] me senti tam capaz de renegar de Deus e descrer d'elle como n'esta.

Sería effeito de sua inexhaurivel piedade que talvez quiz acudir á minha alma antes que se perdesse, sería por certo―pois n'esse mesmo instante distinctamente me appareceu deante dos olhos d'alma a unica imagem que podia chamá-lo do abysmo: era a tua, Joanna! Era a minha Joanninha piquena, innocente, aquelle anginho de criança, tam viva, tam alegre, tam graciosa que eu tinha deixado a brincar no nosso valle: o nosso valle rustico, tam grosseiro e tam inculto! oh como as saudades d'elle me foram alcançar no meio d'aquellas allinhadas e perfeitas bellezas da cultura britannica! Os raios verdes de teus olhos, faiscantes como esmeraldas, atravessaram o espaço, e foram luzir no meio d'aquell'outros lumes que me cegavam. A esteva brava, o tojo aspero da nossa charneca mandavam-me ao longe as exhalações de seu perfume agreste, e matavam o suave cheiro do feno macio d'essas relvas sempre verdes que me rodeavam. As folhas crespas, sêccas, alvacentas das nossas oliveiras como que me luziam por entre a espessura cerrada da luxuriante vegetação do norte, promettendo-me paz [204] ao coração, annunciando-me o fim de uma peleja em que m'o dilaceravam as paixões.

E tu, Joanna, tu, pobre innocente, e desvallida criancinha, tu apparecias-me no meio de tudo isso, extendendo para mim os teus bracinhos amantes como no dia que me despedira de ti n'esse fatal, n'esse querido, n'esse doce e amargo valle das minhas lagrymas e dos meus risos, onde so me tinham de correr os poucos minutos de felicidade verdadeira da minha vida, onde as verdadeiras dores da minha alma tinham de m'a cortar e destruir para sempre...

Oh! de quê e como é feito o homem, para quê e porque vive elle? Que vim eu, que vimos nós todos fazer a este mundo?

Eu sentado alli nas almofadas de seda d'aquella splendida e macia carruagem, rodeado de tres mulheres divinas que me queriam todas, que eu confundia n'uma adoração mysteriosa e mystica―cego, louco d'amores por uma d'ellas, no momento de lhe dizer adeus para sempre... eu tinha o pensamento fixo n'uma criança que ainda andava ao collo!―Revendo-me nos olhos pardos de Laura que eu [205] adorava, eram os teus olhos verdes que eu tinha n'alma! Os sentidos todos embriagados d'aquelle perfume de luxo e civilização que me cercava,―era o nosso valle rustico e selvagem o que eu tinha no coração...

Oh! eu sou um monstro, um aleijão moral devéras, ou não sei o que sou.

Se todos os homens serão assim?

Talvez, e que o não digam.

Joanna, minha Joanna, minha Joanninha querida, anjo adorado da minha alma, tem compaixão de mim, não me maldigas. Não quero que me perdoes, nem tu nem ninguem, que o não mereço: mas que tenhas dó e lástima de mim.

Ai! que isso mereço eu, oh sim.

Deixa-me parar aqui. Falta-me o ânimo para me estar vendo a este terrivel espelho moral em que jurei mirar-me para meu castigo, d'onde estou copiando o horroroso retratto de minha alma que te desenho n'este papel.

[206] Sabía que era monstro, não tinha examinado por partes toda a hediondez das feições que me reconheço agora.

Tenho espanto e horror de mim mesmo.



CAPITULO XLVII.


Carta de Carlos a Joanninha: continúa.



Chegámos ao Inn (estalagem), triste casa solitaria no meio dos campos á borda da estrada. A malla chegava ao mesmo tempo quasi.

Eu dei a mão a Laura para sahir da caleche [208] e entrar no coche; e apenas tivemos tempo para um convulsivo shake-hands e para nos dizer adeus! adeus! com a affectada seccura que exige a lei das conveniencias britannicas.

A malla partiu ao grande trote... E dir-te-hei a verdade ou queres que minta? Não, heide dizer-te a verdade. Pois senti como um alívio desesperado, uma consolação cruel em a ver partir. Senti o que imagino que deve sentir um infêrmo depois da operação dolorosa em que lhe amputaram parte do corpo com que já não podia viver, e que era forçoso perder ou perder a vida.

Tambem deve de ser assim a morte: um descanço apathico e nullo depois de inexplicavel padecer.

Era como morto que eu estava; não soffria pois.

E ja não pensava em ti, ja te não via na minha alma: eu não existia, estava alli.

Voltámos ao parque; apeei silenciosamente as minhas duas gentis companheiras, e eu fui so, [209] apé, com passo firme e resoluto para a minha habitação. Nenhuma d'ellas me procurou retter, nem me disse nada, nem tentou consolar-me. Paraquê?

L. William R. chegava, na manhan seguinte, de uma de suas habituaes excursões a Londres. Veio ver-me assim que chegou, e trazer-me cartas de Portugal que eu esperava ha muito.―Disse-me que partia no outro dia para Swansea, a terra de Galles para onde Laura fôra; e que me incarregava de fazer companhia ás duas filhas que ficavam sos.

A mim!..

Estive tres dias sem as ver: em todos tres não fiz mais do que escrever a Laura.

No quarto dia fui ao parque. Julia deu um grito de alegria quando me viu: raro exemplo de excepção ás formuladas regras que tyrannizam a vida ingleza, que prescrevem até a cara com que se hade morrer, e teem graduado o tom em que se deve exhalar o último suspiro.

Mas a natureza chega a triumphar ás vezes até da propria etiqueta britannica.

[210] Julia cuidava que eu não queria voltar áquella casa, tinha-se resignado a não tornar a ver-me; não pôde reprimir a alegria que lhe causou a minha inexperada apparição.

Passámos todo o dia junctos e sos: quasi todo se nos foi passeando no parque, ou sentados á sombra de seus espessos arvoredos, ou mirando-nos nas crystallinas aguas de uma vasta represa povoada de aves aquaticas e rodeada d'aquelles immensos mantos de velludo verde de que perpetuamente se infeita a terra ingleza e que so desapparecem quando vem o hynverno extender-lhe porcima seus alvos lençoes de neve.

Quiz ver o que eu escrevia á irman; dei-lhe a carta, leu-a, meditou-a, restituiu-m'a sem dizer palavra.

Que horas passámos n'este silencio, n'esta eloquente mudez que não vem senão do muito de mais que a alma sente, do muito de mais que diria se fallasse!

Á despedida, essa noite, deu-me uma bolsa de rede que Laura tinha estado fazendo para mim [211] e que lhe deixára para me intregar. Senti que tinha dentro o que quer que fosse a bolsa, não quiz examinar. Achei, quando voltei a casa, que era o fadado cinto de vidrilhos pretos que eu tanto tinha admirado em certo baile onde foramos junctos, e que Laura não deixára de pôr nunca mais em se vestindo de branco e que fizesse alguma toilette.

Ainda o conservo aquelle cinto precioso, Joanna; ainda a tenho, no meu thesoiro mais guardado, aquella joia, aquella reliquia. E amo-te, e amo-te a ti so como realmente nunca amei nem poderei tornar a amar. Mas aquelle cinto é uma sorte, um talisman, um amuleto em que está o meu destino.

Amei... isto é, amei... pois sim, amei, ja que não ha outra palavra n'estas estupidas linguas que fallam os homens; pois amei outras mulheres, e nos dias de maior enthusiasmo por ellas, não deixei nunca de beijar devotamente aquelle cinto, de o appertar sôbre o meu coração, de me incommendar a elle―como o salteador napolitano se incommenda ao escapulario da madona que traz ao peito, com as [212] mãos insanguentadas de matar, ou carregado do roubo que acaba de fazer.

Ai, Joanna, não te digo eu que estou perdido, sem remedio, e que para mim não ha, não póde haver salvação nunca?

Vivi assim dois mezes. Laura não me escrevia: recebia as minhas cartas e respondia a Julia: por este modo nos correspondiamos. Julia era parte de nós, era uma porção do nosso amor, viviamos n'ella a nossa vida. E ja as confundia ambas por tal modo no meu coração que me surpreendia a não saber a qual queria mais. Julia parecia feliz d'este estado; eu era-o. Insensivelmente me habituei a elle, ja não tinha saudades do passado. E quando se approximou o casamento de Laura, que ella tinha de voltar de Galles, e que eu, fiel ao que promettêra, devia pretextar negócio urgentissimo em Londres que me obrigasse a ausentar-me até á sua partida para a India, eu tive uma pena, uma difficuldade em cumprir o que promettêra que me invergonhava.

Parti porêm; e alli me demorei um mez. Julia escrevia-me todos os dias e eu a ella. Na véspera [213] do dia fatal em que Laura ia ser de outro homem, Julia escreveu-me éstas palavras sos:―'O nosso romance acabou; começa uma historia séria. Laura manda-lhe o seu último adeus.'

E nunca mais se escreveu nem se pronunciou o nome de Laura entre nós dous.

O galeão que me levava para o Oriente as ruinas de toda a minha esperança ha muito que navegava; entrava outubro e o hynverno inglez com suas mais asperas, e n'este anno tam precoces, severidades. Eu sentia-me morrer de tristeza e de isolamento no meio da populosa e turbulenta Londres, Julia percebeu-o, e mandou-me voltar a ――shire. Voltei.



CAPITULO XLVIII.


Carta de Carlos a Joanninha: continúa.



O que eu senti quando, apezar de tam desfigurados pelos tres-altos de neve que os cubriam, comecei a reconhecer aquelles sitios da vizinhança do parque, e a confrontar as árvores, os pastios, os casaes d'aquelles arredores!

[216] Era outra a expressão de physionomia da paizagem, mas as queridas feições eram as mesmas, e uma a uma lh'as ia estremando.

Emfim o meu stage parou á entrada do parque, e eu tomei apé pela longa avenida. Eram nove horas da manhan, e a manhan brumosa, fria, mas o tempo macio, não estava cru, segundo a expressiva phrase do paiz.

Por entre a nevoa que me incubria a antiga mansão e involvia as árvores circumstantes n'um sudario cinzento e melancholico, fui caminhando, quasi pelo tacto, até meia alameda talvez.

Parei a reflectir na minha posição e no que eu ia ser n'aquella casa que de novo me abria suas portas hospitaleiras, quando, atravez da neblina brancacenta e onde ella era mais rara, descubri um vulto que vinha a mim de entre as árvores do parque.

O vulto era de mulher e parecia uma sombra, uma apparição phantastica em meio d'aquella scena mysteriosa, so, triste.

[217] Na distancia figurava-se-me alto em demazia: Julia não era nem podia ser; Julia a mais diminutiva e delicada de quantas fadas bonitas e graciosas teem trazido varinha de condão. Laura... ai! Laura tam longe estava d'alli... Quem sería pois? So se fosse!.. Quem?

Aquella elegancia, aquelle cabello sôlto e annellado, aquelle ar gentil não podia ser senão d'ella...

D'ella, quem?

Ainda te não fallei, quasi, da última das tres bellas irmans que me incantavam, não t'a descrevi, não t'a nomeei pelo seu nome. Repugnava-me fazê-lo. Mas é preciso: custa-me, não ha remedio.

Era Georgina...

Georgina que tu conheces, Georgina que... era Georgina a que vinha a mim n'aquella―fatal ou feliz?―manhan; Georgina que de todas tres era a que menos me fallava, que eu verdadeiramente menos conhecia.

[218] Este meu coração, á fôrça de ferido e de mal curado que tem sido, pressente e adivinha as mudanças de tempo com uma dor chronica que me dá. Pressenti não sei quê ao ver approximar-se Georgina...

―'Como foi bom em vir! Estou realmente feliz de o ver. E Julia, a pobre Julia, que alegria que vai ter, hade curá-la de todo.'

―'Pois quê! Julia está doente?'

―'Não o sabía!... Ai! não, bem sei que não: ella não lh'o quiz dizer. Julia está doente; mas não é de cuidado. Eu sempre quiz advirti-lo antes que a visse, por isso calculei as horas do coche e vim para aqui esperá-lo.'

Éstas palavras eram simples, não tinham nada que me devesse impressionar extraordinariamente, e todavia eu sentia-me agitado como nunca me sentira. Olhava para Georgina como se a visse a primeira vez, e pasmava de a ver tam bella, tam interessante.

É uma situação d'alma ésta que não sei que [219] a descrevessem ainda poetas nem romancistas: desprezam-n'a talvez, ou não a conhecem. Está recebido que as subitas impressões causadas por um primeiro incôntro sejam as mais interessantes, as mais poeticas.

Eu não nego o effeito theatral d'essas primeiras e repentinas sensações; mas sustento que interessa mais ess'outra inesperada e extranha impressão que nos faz um objecto ja conhecido, que víramos com indifferença atéalli, e que derrepente se nos mostra tam outro do que sempre o tinhamos considerado...

Mas ésta mulher é bella realmente! E eu que nunca o vi! Mas aquelles olhos são divinos! Onde tinha eu os meus atégora? Mas este ar, mas ésta graça onde os tinha ella escondidos? etc. etc.

Vão-se gradualmente, vão-se pouco a pouco descobrindo perfeições, incantos; e o sentimento que resulta é mil vezes mais profundo, mais fundado, sôbretudo, que o das taes primeiras impressões tam cantadas e decantadas.

Que mais te direi depois d'isto? Entrámos [220] em casa, vi Julia, fallámos de Laura muito e muito. Mas eu ja o não fiz com o enthusiasmo, com a admiração exclusiva com que d'antes o fazia...

Julia recobrou, breve, a saude, e com ella o equilibrio do espirito. Renovou-se toda a alegria, todo o incanto das nossas conversações íntimas, dos nossos longos passeios. Laura lembrava com saudade; mas suavizava-se, imbrandecia gradualmente aquella saudade.

Georgina, que atéalli parecia impenhar-se em se deixar eclipsar pela irman, agora, ausente ella, brilhava de toda a sua luz, em graça, em espirito, por um natural singelo e franco, por uma exquisita doçura de maneiras, de voz, de expressão, de tudo.

Julia revia-se n'ella, e eu acabei pela adorar. Vergonha eterna sôbre mim! mas é a verdade: quiz-lhe mais do que a Laura, ou pareceu-me querer-lhe mais... que tanto vale.

Eu sei?.. Não, não lhe queria tanto. Mas amei-a.

[221] Amei, sim, e fui amado!

Tres mezes durou a minha felicidade. É o mais longo periodo de ventura que posso contar na vida. Falsa ventura, mas era.

A imperiosa lei da honra exigiu que nos separassemos, que partisse para os Açores. Fui. Ninguem sacrificou mais, ninguem deu tanto como eu para aquella expedição. A historia fallará de muitos serviços, de muitas dedicações. Quem saberá nunca d'esta?

A historia é uma tola.

Eu não posso abrir um livro de historia que me não ria. Sôbretudo as ponderações e adivinhações dos historiadores acho-as de um comico irresistivel. O que sabem elles das causas, dos motivos, do valor e importancia de quasi todos os factos que recontam?

Ainda não sei como parti, como cheguei, como vivi os primeiros tempos da minha estada n'aquelle escôlho no meio do mar, chamado a ilha [222] Terceira, onde se tinham refugiado as pobres reliquias do partido constitucional.

Habituei-me porfim. A que se não affaz o homem?

Levaram-me uma tarde á grade de um convento de freiras que ahi havia. O meu ar triste, distrahido, indifferente excitou a piedade das boas monjas. Uma d'ellas, joven, ardente, apaixonada, quiz tomar a empresa de me consolar. Não o conseguiu, coitada! O meu coração estava em ――shire em Inglaterra, estava na India, estava no valle de Santarem,

Pelo mundo em pedaços repartido;

estava em toda a parte, menos alli, que nada d'elle estava nem podia estar.

Era Soledade que se chamava a freirinha, e com o seu nome ficou. Disseram o que quizeram os falladores que nunca faltam, mas mentiram como mentem quasi sempre, inganaram-se como se inganam sempre.

Eu não amei a Soledade.

[223] E comtudo lembro-me d'ella com pena, com sympathia... Se eu sou feito assim, meu Deus, e assim heide morrer!

Viemos para Portugal; e o resto agora da minha historia sabes tu.

Cheguei porfim ao nosso valle, todo o passado me esqueceu assim que te vi. Amei-te... não, não é verdade assim. Conheci, mal que te vi entre aquellas árvores, á luz das estrellas, conheci que era a ti so que eu tinha amado sempre, que para ti nascêra, que teu so devia ser, se eu ainda tivera coração que te dar, se a minha alma fosse capaz, fosse digna de junctar-se com essa alma d'anjo que em ti habita.

Não é, Joanna; bem o ves, bem o sentes, como eu o sinto e o vejo.

Eu sim tinha nascido para gosar as doçuras da paz e da felicidade doméstica; fui creado, estou certo, para a glória tranquilla, para as delicias modestas de um bom pae de familias.

Mas não o quiz a minha estrella. Embriagou-se de poesia a minha imaginação e perdeu-se: não me recobro mais. A mulher que me amar [224] hade ser infeliz por fôrça, a que me intregar o seu destino, hade vê-lo perdido.

Não quero, não posso, não devo amar a ninguem mais.

A desolação e o oppróbrio entraram no seio da nossa familia. Eu renuncio para sempre ao lar doméstico, a tudo quanto quiz, a tudo quanto posso querer. Deus que me castigue, se ousa fazer uma injustiça, porque eu não me fiz o que sou, não me talhei a minha sorte, e a fatalidade que me persegue não é obra minha.

Adeus Joanna, adeus prima querida, adeus irman da minha alma! Tu accompanha nossa avó, tu consola esse infeliz que é o auctor da sua e das nossas desgraças. Tu, sim, que podes; e esquece-me.

Eu, que nem morrer ja posso, que vejo terminar desgraçadamente ésta guerra no unico momento em que a podia abençoar, em que ella podia felicitar-me com uma balla que me mandasse aqui bem direita ao coração, eu que farei?

Creio que me vou fazer homem politico, fallar [225] muito na patria com que me não importa, ralhar dos ministros que não sei quem são, palrar dos meus serviços que nunca fiz por vontade; e quem sabe?.. talvez darei porfim em agiota, que é a unica vida de emoções para quem ja não póde ter outras.

Adeus minha Joanna, minha adorada Joanna, pela última vez, adeus!



CAPITULO XLIX.


De como Carlos se fez barão.―Fim da historia de Joanninha.―Georgina abbadessa.―Juizo de Fr. Diniz sôbre a questão dos frades e dos barões.―Que não póde tornar a ser o que foi, mas muito menos póde ser o que é. O que hade ser, Deus o sabe e proverá.―Vai o A. dormir ao Cartaxo.―Sonho que ahi tem.―Volta a Lisboa.―Caminhos de ferro e de papel.―Conclusão da viagem e d'este livro.



Acabei de ler a carta de Carlos, intreguei-a a Fr. Diniz em silencio. Elle tornou-me:

―'Leu?'

[228] ―'Li.'

―'Que mais quer saber? Sinto que lhe posso dizer tudo: não o conheço, mas...'

―'Mas deve conhecer-me por um homem que se interessa vivamente...'

―'Em quê? nas eleições, na agiotagem, nos bens nacionaes?'

―'Não senhor. Fui camarada de Carlos, não o vejo ha muitos annos e...'

―'Nem o conhecia se o visse agora: ingordou, inriqueceu, e é barão...'

―'Barão!'

―'É barão, e vai ser deputado qualquer dia.'

―'Que transformação! Como se fez isso, sancto Deus! E Joanninha e Georgina?'

―'Joanninha inlouqueceu e morreu. Georgina [229] é abbadessa de um convento em Inglaterra.'

―'Abbadessa?'

―'Sim. Converteu-se á communhão catholica; era ricca, fundou um convento em ――shire e lá está servindo a Deus.'

―'E ésta pobre senhora, a avó de Joanninha?'

―'Ahi está como a ve, morta de alma para tudo. Não ve, não ouve, não falla, e não conhece ninguem. Joanninha veio morrer aqui n'esta fatal casa do valle, eu estava ausente, expirou nos braços d'ella e de Georgina. Desde esse instante a avó cahiu n'aquelle estado. Está morta, e não espero aqui senão a dissolução do corpo para o interrar, se eu não for primeiro, e Deus queira que não! quem hade tomar conta d'ella, ter charidade com a pobre da demente? Mas depois... oh! depois... espero no Senhor que se compadeça emfim de tanto soffrer e me leve para si.'

―'Mas Carlos?'

[230] ―'Carlos é barão: não lh'o disse ja?'

―'Mas por ser barão?..'

―'Não sabe o que é ser barão?'

―'Oh se sei! Tam poucos temos nós?'

―'Pois barão é o succedaneo dos...'

―'Dos frades... Ruim substituição!'

―'Vi um dos taes papeis liberaes em que isso vinha: e é a unica coisa que leio d'essas ha muitos annos. Mas fizeram-m'o ler.'

―'E que lhe pareceu?'

―'Bem escripto e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberaes não tiveram menos.'

―'Errámos ambos.'

―'Errámos e sem remedio. A sociedade ja não é o que foi, não póde tornar a ser o que [231] era;―mas muito menos ainda póde ser o que é. O que hade ser, não sei. Deus proverá.'

Ditto isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviario e poz-se a rezar. A velha dobava sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum me deu mais attenção nem pareceu conscio da minha estada alli.

Sentia-me como na presença da morte e atterrei-me.

Fiz um esfôrço sôbre mim, fui deliberadamente ao meu cavallo, montei, piquei desesperado d'esporas, e não parei senão no Cartaxo.

Incontrei alli os meus companheiros; era tarde, fomos ficar fóra da villa á hospedeira casa do Sr. L. S.

Rimos e folgámos até alta noite: o resto dormimos a somno sôlto.

Mas eu sonhei com o frade, com a velha―e com uma enorme constellação de barões que luzia n'um ceu de papel, d'onde choviam, como [232] farrapos de neve, n'uma noite pollar, notas azues, verdes, brancas, amarellas, de todas as côres e matizes possiveis. Eram milhões e milhões e milhões...

Nunca vi tanto milhão, nem ouvi fallar de tanta riqueza senão nas mil e uma noites.

Acordei no outro dia e não vi nada... so uns pobres que pediam esmola á porta.

Metti a mão na algibeira, e não achei senão notas... papeis!

Parti para Lisboa cheio de agoiros, de inguiços e de tristes presentimentos.

O vapor vinha quasi vazio, mas nem por isso andou mais depressa.

Eram boas cinco horas da tarde quando desimbarcámos no Terreiro-do-Paço.

Assim terminou a nossa viagem a Santarem: e assim termina este livro.

[233] Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porêm fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.

Se assim o pensares, leitor benevolo, quem sabe? póde ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e va perigrinando por esse Portugal fóra, em busca de historias para te contar.

Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar.

Escusada é a jura porêm.

Se as estradas fossem de papel, fa-las-iam, não digo que não.

Mas de metal!

Que tenha o govêrno juizo, que as faça de pedra, que póde, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.



NOTAS




NOTAS


AO LIVRO SEGUNDO.



Nota A.



Ficámos sem Nibelungen



Collecção de antigas rhapsodias germanicas contendo o maravilhoso e poetico de suas origens historicas e que é para os povos theutonicos o que era a Ilíada para os hellenos. So se não sabe o nome do Homero [238] allemão que as redigiu e uniformizou como hoje se acham.

Nota B.


Caranguejar para as Lamas



Fundo baixo do Tejo, ao longo da praia de Sanctos, que tem este nome e é onde vão apodrecer as carcassas dos navios velhos e ja inuteis.

Nota C.


Os pés no fender



Fender se chama em inglez a pequena e baixa tea de metal que defende o fogão nas salas, paraque não caiam brazas nos sobrados. Descançam n'elle os pés naturalmente quando a gente se está confortavelmente aquecendo em liberdade.

Nota D.


Perfumados resplendores do Old sack



Tem-se disputado muito sôbre qual seja a bebida espirituosa celebrada por Shakspeare tantas vezes com este nome. A opinião mais acceita é que fosse boa e velha aguardente de França.

[239]

Nota E.


Renegaram de San'Tiago por castelhano



O grito de guerra commum a todas as nações christans hespanholas era: San'Tiago! Quando na accessão da casa de Avis nos alliámos intimamente com a Inglaterra contra Castella, começámos a invocar San'Jorge.

Nota F.


Vacca e riso de Fr. Bartholomeu dos Martyres



Singela e original expressão do sancto arcebispo n'uma carta de convite a um seu amigo. Fez-se, como devia ser, proverbial ésta phrase.

Nota G.


Feliz expressão do Sr. Conde de Raczinski



Na sua obra intitulada 'Les arts en Portugal', Paris 1845.

Nota H.


O centro perde o centro de gravidade, o barbas arrepella as barbas



Centro e barbas são qualificações e nomes de impregos theatraes.




INDICE.


Capitulo XXVI―Modo de ler os auctores antigos, e os modernos tambem.―Horacio na sacra-via.―Duarte Nunes iconoclasta da nossa historia.―A policia e os barcos de vapor.―Os vandalos do feliz systema que nos rege.―Shakspeare lido em Inglaterra a um bom fogo, com um copo de old-sack sôbre a banca.―Sir John Falstaff se foi maior homem que Sancho-Pansa?―Grande e importante descuberta archeologica sôbre San'Tiago, San'Jorge e Sir John Falstaff.―Próva-se a vinda d'este último a Portugal.―O enthusiasta britannico no tumulo de Heloisa e Abeillard no Père-la-Chaise.―Bentham e Camões.―Chega o auctor á sua janella, e pasmosa miragem poetica produzida por umas oitavas dos Lusiadas.―De como em fim proseguem éstas viagens para Santarem, e que feito será de Joanninha. 1
Capitulo XXVII―Chegada a Santarem.―Olivaes de Santarem.―Fóra-de-Villa.―Symetria que não é para os olhos.―Modo de medir os versos da biblia.―Architectura pedante do seculo XVII.―Entrada na Alcáçova. 11
Capitulo XXVIII―Depois de muito procurar acha em fim o auctor a egreja de Sancta-Maria d'Alcáçova.―Stylo da architectura nacional perdido.―O terremoto de 1755, o marquez de Pombal e o chafariz do Passeio-público de Lisboa.―O chefe do partido progressista portuguez no alcassar de D. Affonso Henriques.―Deliciosa vista dos arredores de Santarem observada de uma janella da Alcáçova, de manhan.―É tomado o auctor de ideas vagas, poeticas, phantasticas como um sonho.―Introducção do Fausto.―Difficuldade de traduzir os versos germanicos nos nossos dialectos romanos. 19
[242]
Capitulo XXIX―Doçuras da vida.―Imaginação e sentimento.―Poetas que morreram moços e poetas que morreram velhos.―Como são escriptas éstas viagens.―Livro de pedra. Criança que brinca com elle.―Ruinas e reparações.―Idea fixa do A. em coisas d'arte e litterarias.―Sancta Iria ou Irene, e Sanctarem.―Romance de Sancta Iria.―Quantas sanctas ha em Portugal d'este nome? 29
Capitulo XXX―Historia de Sancta Iria segundo os chronistas e segundo o romance popular. 39
Capitulo XXXI―Quommodo sedet sola civitas.―Santarem.―Portugal em verso e Portugal em prosa.―Exquisito lavor de umas portas e janellas de architectura mosarabe.―Busto de D. Affonso Henriques.―As salgadeiras de Affrica.―Porta do Sol.―Muralhas de Santarem.―Voltemos á historia de Fr. Diniz e da menina dos olhos verdes. 49
[243]
Capitulo XXXII―Tornâmos á historia do Joanninha.―Preparativos de guerra.―A morte.―Carlos ferido e prisioneiro.―O hospital.―O infermeiro.―Georgina 55
Capitulo XXXIII―Carlos e Georgina. Explicação.―Ja te não amo! palavra terrivel.―Que o amor verdadeiro não é cego.―Frade no caso outra vez. Ecce iterum Crispinus; ca está o nosso Fr. Diniz comnosco. 69
Capitulo XXXIV―Carlos, Georgina e Fr. Diniz.―A peripecia do drama. 79
Capitulo XXXV―Reunião de toda a familia.―Explicação dos mysterios.―O coração da mulher.―Parricidio.―Carlos beija emfim a mão a Fr. Diniz e abraça a pobre da avó. 87
Capitulo XXXVI―Que não se acabou a historia de Joanninha.―Processo ao coração de Carlos.―Immoralidade.―Defeito de organização não é immoralidade.―Horror, horror, maldicção!―Um barão que não pertence á familia lineana dos barões propriamente dittos.―Porta de Atamarma.―Senatus consulto santareno.―Nossa Senhora  da Victoria afforada.―Threnos sôbre Santarem. 99
Capitulo XXXVII―A Graça e sua bella fachada gothica.―Sepultura de Pedr'alvares Cabral.―Outro barão que não é dos assignalados.―Egreja do Sancto-milagre.―Bellos medalhões mosarabes.―De como, chegando o prior e o juiz, houve o A. vista do Sancto-milagre, e com que solemnidades.―Monumento da muito alta e poderosa princeza a infanta D. Maria da Assumpção.―Casa onde succedeu o milagre convertida em capella de stylo philippino.―O homem das botas, e o que tem elle que haver com o Sancto-milagre de Santarem.―Admiravel e graciosa esperteza da regencia do Rocio.―Aaroun-el-Arraschid: e theoria dos governos folgasões, os melhores governos possiveis.―Volta o paladio scalabitano de Lisboa para Santarem. 111
[244]
Capitulo XXXVIII―Jantar nos reaes paços de Affonso Henriques.―Sautés e salmis.―Desce o A. á Ribeira de Santarem em busca da tenda do Alfageme.―A espada do Condestavel.―Desappontamento.―O salão elegante. Dissipam-se as ideas archeologicas. Os fosseis. Tudo melhor quando visto de longe.―O baile público.―Soirée de piano obrigado.―Theatro. Desaffinações da prima-dona.―Syphlis incuravel das traducções. Destempêro dos originaes.―A xácara de rigor, o subterraneo e o cemiterio.―Sublime gallimathias do ridiculo.―A bella e necessaria palavra 'gallimathias.'―Se as saudades matam.―Perigo de applicar o scalpello ou a lente ao mais perfeito das coisas humanas.―De como a logica é a mais perniciosa de todas as incoherencias. 121
[245]
Capitulo XXXIX―Processo de scepticismo em que está o auctor.―Moralistas de requiem.―O maior sonho d'esta vida, a logica.―Differença do poeta ao philosopho.―O coração de Horacio.―O collegio de Santarem.―Jesuitas e templarios.―O alliado natural dos reis:―'Ficar na gazeta' phrase muito mais exacta hoje do que 'Ficar no tinteiro'.―San'Frei Gil e o Doutor Fausto.―De como o A. foi ao tumulo do sancto bruxo e o achou vazio.―Quem o roubaria? 131
Capitulo XL―As Claras.―Aventura nocturna.―Se as freiras mettem medo aos liberaes? O Psalmo.―Tres frades.―Práctica do franciscano.―O corpo de San' Fr. Gil.―Que se hade fazer das freiras?―Mal do govêrno que deixar comer mais aos barões. 141
Capitulo XLI―O roubador do corpo do sancto descuberto pela arguta prespicacia do leitor benevolo.―Grande lacuna na nossa historia.―Porque se não preenche?―Página preta na historia de Tristam Shandy.―Novellas e romances, livros insignificantes.―O adro de San'Francisco e as suas acacias.―Que será feito de Joanninha?―O peito da mulher do norte.―Vamos embora: ja me infada Santarem e as suas ruinas.―A corneta do soldado e a trombeta do juizo final.―Eheu, Portugal, eheu! 151
[246]
Capitulo XLII―Protesto do auctor.―Desaffinação dos nervos.―O que é preciso para que as ruinas sejam solemnes e sublimes.―Que Deus está no Colliseu assim como em San'Pedro.―Quer-se o auctor ir embora de Santarem.―Como, sem ver o tumulo d'elrei D. Fernando?―Em que estado se acha este.―Exemplar de stylo byzantino.―Coroa real sôbre a caveira.―O rei d'espadas e o symbolo do imperio.―Quem nunca viu o rei cuida que é de oiro.―Brutalidades da soldadesca n'um tumulo real.―O que se acha nas sepulturas dos reis.―A phrenologia.―Vindicta pública, tardia mas ultrajante.―Camões e Duarte Pacheco.―A sombra falsa da religião.―Regimen dos barões e da materia.―A prosa e a poesia do povo.―Synthese e anályse.―O senso íntimo.―Se o auctor é demagogo ou Jesuita?―Jesu Christo e os barões  157
Capitulo XLIII―Partida de Santarem.―Pinacotheca.―Impaciencia e saudades.―Sexta-feira.―Martyrio obscuro.―A figura do peccado.―Estamos no valle outra vez.―Evocação de incanto.―A irman Francisca e Fr. Diniz.―A teia de Penelope.―E Joanninha?―Joanninha está no ceo.―A mulher morta a dobar esperando que a interrem.―A esperança, virtude do christianismo.―Uma carta. 167
Capitulo XLIV―Carta de Carlos a Joanninha. 177
[247]
Capitulo XLV―Carta de Carlos a Joanninha: continúa. 187
Capitulo XLVI―Carta de Carlos a Joanninha: continúa. 195
Capitulo XLVII―Carta de Carlos a Joanninha: continúa. 207
Capitulo XLVIII―Carta de Carlos a Joanninha: continúa. 215
Capitulo XLIX―De como Carlos se fez barão.―Fim da historia da Joanninha.―Georgina abbadessa.―Juiso de Fr. Diniz sôbre a questão dos frades e dos barões.―Que não póde tornar a ser o que foi, mas muito menos póde ser o que é? O que hade ser, Deus o sabe e proverá.―Vai o A. dormir ao Cartaxo.―Sonho que ahi tem.―Volta a Lisboa.―Caminhos de ferro e de papel.―Conclusão da viagem e d'este livro. 227
Notas 237



Notas:


[1] Transcrevemos aqui o original allemão, para se avaliar o que fica ditto no texto.

Ihr naht euch wieder, schwankende Gestalten,
Die früh sich einst dem trüben Blick gezeigt.
Versuch ich wohl euch diesmal fest zu halten?
Fühl' ich mein Herz noch jenem Wahn geneigt?
Ihr drängt euch zu! nun gut, so mögt ihr walten
Wie ihr aus Dunst und Nebel um mich steigt;
Mein Busen fühlt sich jugendlich erschüttert
Vom Zauberhauch, der euren Zug umwittert.
Ihr bringt mit euch die Bilder froher Tage,
Und manche liebe Schatten steigen auf;
Gleich einer halbverklungen Sage
Commt erste Lieb' und Freundschaft mit herauf;
Der Schmerz wird neu, es wiederholt die klage
Des lebens labyrintisch irren Lauf,
Und nennt die Guten, die, um schöne Stunden
Vom Glück getäuscht, vor mir hinweggeschwunden

[2] Nas notas a Adozinda, vol. I do 'Romanceiro,' nota N, citei differentemente ésta copla pela imperfeita licção de um Ms. do Minho, unico que tinha á mão.

[3] Outra licção, e talvez melhor diz a coitada.

[4] Thomar.

[5] De frades e de freiras.

[6] Deus, venerunt gentes in hereditatem tuam. Ps. 78.





Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 2 et mos ... est mos*
#pág. 5 Faltaffs ... Falstaffs
#pág. 17 San'João-de-Alpiarça ... San'João do Alporão*
#pág. 17 egrea ... egreja*
#pág. 43 retiraam ... retiraram
#pág. 50 recordam ... memoram*
#pág. 62 stil ... still*
#pág. 81 da intranhas ... das intranhas
#pág. 99 Horor ... Horror
#pág. 118 quelle ... aquelle
#pág. 118 digno do ornar ... digno de ornar
#pág. 119 LisboaTejo ... Lisboa Tejo
#pág. 123 confrontar- algum ... confrontar algum
#pág. 138 extistencia ... existencia
#pág. 213 com com ... com
#pág. 217 desdescrevi ... descrevi
#pág. 218 ma curado ... mal curado
#pág. 241 modernas ... modernos
#pág. 241 Flastaff ... Falstaff


* correcções feitas com base na errata do próprio livro.

Shakespeare, San' Thiago e Joanninha surgem neste livro como Shakspeare, San'Tiago e Joaninha respectivamente.
Dada a repetitividade constante, decidi manter de acordo com o original.







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electronic work or group of works on different terms than are set
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both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

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effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
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property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
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Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
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in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
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that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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