The Project Gutenberg EBook of A Morte Vence, by João José Grave

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Title: A Morte Vence

Author: João José Grave

Release Date: December 3, 2007 [EBook #23687]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MORTE VENCE ***




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Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Dez. 2007)

Obras de JOÃO GRAVE


Os Famintos Paixão e morte da Infanta
A Eterna Mentira Os Sacrificados
O Último Fauno Os que amam e os que sofrem
O Passado Cruel Amor
Gente Pobre Fogueiras de Santo António
Jornada romântica Vida do Espíríto (pensamentos).
Reflorir
Reinado trágico
A Inimiga No prélo:
O Mutilado
A Morte Vence Almas ínquietas.
Vitória de Parsifal




JOÃO GRAVE

DA ACADEMIA DAS SCIÊNCIAS DE LISBOA



A MORTE VENCE

ROMANCE


«Sê leal a ti mesmo...»

shakespeare.



SEGUNDA EDIÇÃO, EMENDADA






PORTO
Livraria Chardron, de Lélo & Irmão, L.da
editores―Rua das Carmelitas, 144
Aillaud e Bertrand―Lisboa-Paris

1922




A MORTE VENCE






I


A criança dormia tranqùilamente, deitada no seu pequenino berço vaporoso de rendas e resplandecendo de brancura, por êsse glorioso meio-dia de calor e de luz, no grande e benéfico silêncio que envolvia a vivenda feliz. A sua carne viriginal e transparente, ainda mal formada, parecia exalar claridade e tinha a coloração suave de certas rosas pálidas e orvalhadas. A cabeleira anelada e loura espalhava-se, como uma ligeira nuvem de ouro, na alvura da almofada, macia e fôfa, que servia de travesseiro; e sôbre essa fronte angélica não profanada por impuros, venenosos pensamentos, baixava um halo de inocência luminosa e de graça imaterial.

Havia no quarto uma penumbra sedosa e frouxa que refrescava o ambiente inefável e que tornava mais imprecisas, mais vagas, as linhas e as formas do mobiliário. Na pacificação deleitosa tudo repousava [8]docemente. Em cima do mármore do toucador, em frente dum largo espêlho em que se reflectiam imagens baças e indecisas, floriam perfumados ramos de cravos brancos em jarras de cristal cheias de água límpida; e da parede alta pendia, como a protecção celeste da infância adormecida, uma cópia a óleo da Virgem, de Murillo, que, entre anjos alados, extasiava os puros olhos nos fulgores siderais. Cá fóra, o sol―um ardente sol de junho―rutilava e ardia na atmosfera pesada e abafadiça.

Brandamente, na ponta dos pés para não fazer barulho, Júlia entrou no compartimento solitário, aproximou-se do casto leito do filho, que tinha apenas meses de vida, contemplando-o com enlêvo e ternura. Ela contava então vinte e quatro anos, estava em pleno esplendor da sua beleza e do seu encanto de mulher, a alegria reflectia-se-lhe no rosto e a ventura iluminava-se-lhe na alma. Duma elegância natural e sóbria, vestia um amplo roupão de cassa creme apertado na cinta por laços de veludo preto. O curto decote deixava a descoberto a pele do colo que era setinosa, dourada e sem o mais ligeiro vinco. Um pente de tartaruga com embutidos de ouro segurava a massa dos seus cabelos castanhos enrolados no alto da nuca. Os seios direitos e rijos formavam uma delicada curva sob os tecidos flexíveis, ao arfarem. Dois anos antes, em Vizela, apaixonara-se sériamente por Nuno Aragão, para quem fôra levada por um forte impulso de sentimento; e com êle casara ao fim dum romântino idílio em que os seus sonhos de felicidade deram flor. Essa união íntima que a fizera espôsa e mãe e a que se devotou com um admirável espírito de abnegação, completou-a. Os [9] dias do seu noivado tam doce fugiram de leve sem que dêles ficassem resíduos de tédio...

Absorvida na visão do frágil sêr que lhe trouxera, com a sua pureza e a sua formosura, uma revelação à inteligência e à subtileza emotiva, Júlia ajoelhou junto do berço, compondo a roupa à volta da cabecinha ideal, que a virgindade aureolava, com dedos mais ágeis do que asas―e nem sequer notava a presença de Nuno que a seguira de perto e que, por detrás dela, sorria comovido. Houve um momento em que Júlia se curvou sôbre a face gorda e picada de còvinhas do filho, roçando-a com os lábios.

―Cautela, não vás acordá-lo!―murmurou o marido em voz de segrêdo.

Ela voltou a cabeça, sorridente: e, fitando-o com uma emoção que o olhar traía, interrogou:

―Estavas aí?

―Quis acompanhar-te na tua amorável visita―respondeu.

―Olha, vem cá!...― pediu Júlia. Não é verdade que é lindo?

Nuno aninhou-se tam perto dela que lhe sentia o sussurro brando da respiração, passou-lhe um braço à volta do pescoço, puxou-a tôda para o peito e ambos se embeberam na adoração da criança que continuava dormindo com a gracilidade e a poesia dum botão de rosa, fazendo um pequeno volume sob as lãs quentes e as cambraias ténues.

―Não é lindo?―insistiu Júlia. Fala!...

―Como não havia de ser lindo, se veio de ti, da tua purificação, do teu amor!...

―Do nosso amor!―emendou ela, com palavras [10] de mimo e de queixume, beijando-o demoradamente na bôca.

―Do nosso amor, dizes bem!―confirmou Nuno, enleado.

―E é curioso como já na sua carinha se desenham as tuas feições. Vê... O nariz, a testa, o queixo...

―São os teus...

―Não! São os teus!―atalhou Júlia, indicando com o dedo os traços fisionómicos do filho. Ora observa com atenção...

―Não lhe toques, que podes magoá-lo, coitadinho!―exclamou êle. A sua carninha é tam tenra, que até tenho mêdo de amolgá-la, quando a beijo.

―Que tolice!...―exclamou Júlia, rindo.

Por um instante, as cabeças de ambos, unidas, fizeram um docel animado sôbre o berço inocente que agasalhava, embalava, um destino misterioso para o qual aspiravam tôda a grandeza, todo o génio, tôda a bondade, todos os favores generosos da sorte enigmática, nessa hora bemdita e profética em que os seus corações palpitavam com o mesmo ritmo e a mesma ânsia, as suas vontades se fundiam numa só vontade e as suas ambições se irmanavam. Depois, com os olhos humedecidos de lágrimas de gôzo interior, ergueram-se, sempre estreitados num apertado abraço, fitaram-se com enternecimento, emmudecidos, penetrados por idêntico júbilo, com a imaginação perdida no encanto das mesmas idealizações.

―Abençoada sejas!―disse Nuno.

―E tu tambêm, por esta paz, esta certeza, [11] esta confiança, esta bôa fortuna que comunicaste à minha vida―atalhou Júlia com convicção, afagando-o no rosto.

Saíram do quarto, mirando ainda o filho―que fôra como que a visitação duma divindade propícia à adoração que nunca deixara de aproximá-los mais desde o instante admirável em que pela primeira vez se conheceram e que, entre os ternos cuidados dos dois, cresceria, se faria homem, prolongaria as suas existências, iria para as éras vindouras, cantando um hino de esperança. Êle representava a expressão definitiva e tangível do amor que os identificara, do desejo puro que os fizera vibrar e que alvoroçara a sua carne, da simpatia física que os juntou. Nas suas veias corria um sangue que era de ambos; no seu corpo latejava uma carne que lhes pertencia; e, mais tarde, quando fôsse grande, teria a mesma fé, as mesmas crenças, as mesmas ideias, as mesmas piedades, as mesmas finuras de sentir, a mesma nobreza de aspirações.

―Estou hoje tam contente!―afirmou Júlia já na sala, dispondo um bibelot sôbre a mesa do centro, coberta com um largo pano pintado, enquanto Nuno acendia um charuto. E êste contentamento vem-me de ti, da tua fidelidade, da tua delicadeza, e vem tambêm do nosso filho. A luz e a ventura que esta criancinha veio trazer à nossa casa, Nuno! Pois não é assim?

―É, querida!

―Parece um milagre! Às vezes, nem quero acreditar!...

―Um milagre que merecíamos.

―Antes dêle nascer, tudo em mim eram sustos, [12] receios, hesitações. Em certos momentos, tinha dúvidas que me faziam chorar!...

―Dúvidas?

―Sim, dúvidas! Que queres? Aterrava-me o pensamento da morte, do abandôno em que ficavas... Não era de ti que eu duvidava, isso não; mas não sei que tristeza me pungia, ennegrecendo, obscurecendo o meu cérebro... Agora, porêm, tudo se apaziguou, serenaram as inquietações, tranqùilizaram-se os sobressaltos...

Foi para o marido, que a esperava no meio da sala, com um sorriso de fadiga que a tornava mais graciosa e mais bela, as pálpebras meio cerradas, os braços caídos e sem acção, e, encostando-se-lhe ao ombro forte, acrescentou:

―E sempre te direi que o nosso filho me inspira uma veneração maior por ti e me fez melhor, mais compadecida por todo o infortúnio, por tôda a humana desgraça, por todo o vasto sofrimento.

―Se tu és uma santa!―disse Nuno, abraçando-a novamente e com uma comoção imperceptível na voz.

―Não! Sou apenas mulher e mãe. E é por isso que me lembro constantemente da desdita das outras mulheres e das outras mães. Ainda ontem, por exemplo, não pude reter o pranto―oh! um pranto que me desoprimiu!―ao ver brincar na quinta os filhos do caseiro, descalços e tam rotinhos, com as faces chupadas e macilentas e uma funda melancolia no olhar... Antigamente, êstes espectáculos lamentáveis passavam-me despercebidos, Nuno...

―O mundo está cheio de desigualdades, com efeito.

[13] ―Mas é doloroso que haja fome ao lado da nossa abundância!...

―Há de fazer-se alguma coisa, sossega...

―Porque a verdade é que o nosso filho, se fôssemos pobres, andaria por aí tambêm faminto e nú como os outros, os que nada teem!... É êle que me pede pelos deserdados...

―Não digas isso!―acudiu Nuno, de repente, muito perturbado... O nosso filho esfomeado e rôto!... Bem sei que não pretendes acusar-me de injustiças que não pratiquei... Eu mal conhecia esta quinta e a gente que a habita; ainda hoje não conheço o caseiro e ignoro as suas misérias. Antes do nosso casamento, só uma vez vim aqui, porque a existência tumultuosa das cidades solicitava-me, reclamava-me e aturdia-me. Há uma semana apenas que nos encontrâmos neste sitio e nestas terras, que são nossas. Não tive tempo para familiarizar-me com a sua população, para tudo saber minuciosamente...

―Oh! meu amor, quantas palavras inúteis!

―Não!... É que me fizeste vislumbrar, de repente, possíveis castigos, terríveis calamidades, abatendo-se sôbre criaturas sem culpa!...

―Eu não queria...―atalhou Júlia, perturbada.

―Certamente, certamente!―disse Nuno, beijando-a na fronte e nos olhos. É escusado defenderes-te... Mas é que as palavras das mulheres que amam como tu amas e que no seu amor abrangem tôda a vida consciente, teem uma profundidade, uma vastidão e uma inflexão que conturba... De resto, tu só foste justa:―e esta noção exacta da justiça significa a superioridade das almas femininas sôbre os homens, duros, sêcos, implacáveis. Com [14] efeito, para sermos absolutamente felizes, é necessário que à nossa volta só haja felicidade...

―Então, bem vês!...

―Pois está claro, querida... Obrigado pela tua lição tam digna e tam eloqùente. A tua elevação moral sublima o que em mim ainda existe de grosseiro e de egoista. Sem o teu aviso, continuaria a haver, perto de nós, privações e amarguras. Eu nada via; tu, com a subtileza dum amor materno incomparável, viste tudo, num relance. Ensina-me sempre. Não sou mau, com certeza, mas incompleto: felizmente, tu completas-me e por isso a minha gratidão subirá perpétuamente para ti como o perdão dos crentes sóbe para o céu...

Tinham-se sentado num amplo sofá de molas flácidas que, a um canto, convidava ao repouso. O sol vivo que se filtrava pela vidraça da janela respirando para o jardim, batia, já atenuado pelo store de linho cru e pelo tule dos cortinados, sôbre as rosas que morríam nos solitários, faùlhava sôbre os móveis, dourava fugidiamente o papel verde que forrava as paredes. De longe chegava o som duma nora rangendo no meio dum imenso campo de milho e produzindo um ruído especial e ritmado de tear. Júlia, encolhida perto de Nuno, com as mãos esquecidas no regaço, tornava-se mais pequenina, mais humilde, como se temesse pesar demasiadamente sôbre aquele amor que pressentia isento de tôda a mácula, perfeito de dedicação e de constância―um amor que era a razão do seu sêr e o seu maior orgulho. As express de linho cru e pelo tule dos cortinados, sôbre as rosas que morríam nos solitários, faùlhava sôbre os móveis, dourava fugidiamente o papel verde que forrava as paredes. De longe chegava o som duma nora rangendo no meio dum imenso campo de milho e produzindo um ruído especial e ritmado de tear. Júlia, encolhida perto de Nuno, com as mãos esquecidas no regaço, tornava-se mais pequenina, mais humilde, como se temesse pesar demasiadamente sôbre aquele amor que pressentia isento de tôda a mácula, perfeito de dedicação e de constância―um amor que era a razão do seu sêr e o seu maior orgulho. As expressões carinhosas de Nuno faziam-na còrar, causavam-lhe uma sensação de inexprimível bem-estar e de pacificação interior. No seu sobressalto, nem sabia que responder, [15] não encontrava os termos precisos com que manifestar a sua gratidão.

―Que maravilhosa manhã eu passei hoje na tua companhia, minha preguiçosa!―exclamou Nuno, quebrando a monotonia dum silêncio que se ia prolongando.

―Estou tam cansada!―afirmou Júlia, pousando-lhe a cabeça no ombro. E olha que não tenho feito nada.

―Anunciará êsse cansaço alguma doença?

―Não, que ideia! Nunca me senti com tanta saúde. Êstes ares campestres teem-me feito muito bem. Por mim, não saíria mais daqui!

―Então, encontramo-nos na mesma ambição, o que não me surpreende, porque já nos havíamos encontrado no mesmo sentimento.

―Pois queres, na verdade?...―perguntou ela, fitando-o com infinita meiguice. Que prazer me dás com isso!...

Arrependendo-se, porêm, dum contentamento que não soubera esconder e que lhe parecia impuro, atalhou prontamente:

―Não, não!... Que loucura! Na cidade, tens os teus amigos, os teus passatempos, as tuas conversas, as tuas distracções. Aqui não há nada disso. Terminarias por aborrecer-te, por enfadar-te...

―É necessário que saibas que não há coisa que me cative, longe de ti, fóra do nosso lar, para alêm do berço do nosso filho. Nem sequer tenho pensamentos que não sejam os teus.

Júlia, no entanto, teimava na certeza de que a permanência constante na quinta seria o sacrifício de Nuno, segura de que se não pode romper sem [16] violência com hábitos contraídos e fundamente enraízados: e, para que a sua teimosia encontrasse vibração no marido, asseverava:

―Eu mesma viria a sofrer neste êrmo, mais tarde. Enquanto durar o verão, isto será, realmente, bonito. Há luz, há horizonte, podemos dar largos passeios, admirar tôda essa paisagem deliciosa, sentir tôda a poesia rural... Mas depois, quando aparecer o inverno, com os seus dias e as suas noites de chuva, a sua desolação, os seus frios, as suas tempestades, a cidade, que é o movimento, a variedade, a sociabilidade, voltaria a apetecer-nos...

Falando assim, Júlia estava intimamente convencida de que defendia a continuidade da adoração de Nuno, a sua felicidade permanente, a inalterável placidez de relações conjugais que um mal entendido seria capaz de comprometer irremediávelmente. A ternura que sentia pelo marido e que se lhe apoderara do sangue, da substância nervosa, de todo o seu organismo psíquico e material, afinava-lhe a inteligência, tornava mais arguta a sua capacidade de analisar e de compreender. Não aspirava, únicamente, ao amor de Nuno, mas tambêm à sua gratidão e ao seu respeito. Residir para sempre na quinta, distante dum bulício que a desgostava e de episódios sociais que a não interessavam, sería o seu supremo desejo―um desejo a que Nuno acederia alegremente: mas considerava que o isolamento, a ausência de convivências e de amizades, a falta de ocupações recreativas, viriam fatalmente a deprimir e entristecer aquele homem que era o mais fiel dos homens e que, para a amar mais puramente e mais intensamente, renunciara a tudo o que fôsse estranho à sua paixão.

[17] ―Ah! se é por isso!...―disse Nuno. Na verdade, não te habituarias a êste deserto, minha filha... Eu sim, porque gosto da solidão, porque as multidões fazem-me mal. Mas, o que eu não permito é que te sacrifiques...

Uma criada entrou, trazendo o correio que acabava de chegar. Eram jornais e cartas que Nuno começou a abrir distraídamente, enquanto Júlia continuava a arrumar com mais ordem e mais elegância as peças do mobiliário, a deitar água nas jarras das flores, a espanejar o pó leve que maculava o verniz das étagères.

―Tu não tens quem faça êsse serviço?―perguntou Nuno, parando um momento de lêr a sua correspondência.

―Oh! filho! Deixa-me ocupar em alguma coisa... Depois, é uma séca. Por mais que recomende e que ralhe, nunca me atendem, não fazem nenhum caso do que digo. Isto de criadas...

―Procuram-se outras melhores.

―Ora! São tôdas piores!...―exclamou Júlia, rindo.

―Mandam-se fabricar por um modêlo que tu escolherás à tua vontade, com molas vindas das oficinas de Londres, movendo-se por um sistema de relojoaria... E tu verás então como obedecem, como são atenciosas e pacientes...―respondeu êle, rindo tambêm e reencetando a leitura interrompida.

A vélha habitação, onde outrora tinham vivido os avós de Nuno, que eram abastados proprietários rurais, parecia cabecear de sono sob o dourado, faíscante banho do sol, sem que o menor ruído perturbasse a sua sonolência. Altas roseiras de trepar [18] subiam pelas paredes cobrindo-as de vermelhas e míudinhas rosas de toucar. No pombal, que ficava ao lado, perto da capoeira, arrulhavam as pombas aos pares. Errava no ar um dormente zumbido de moscas.

―E esta?―bradou Nuno, de súbito, pousando sôbre uma cadeira a carta que tinha entre as mãos.

―Que é?―inquiriu Júlia, aproximando-se. Alguma novidade?

―Uma novidade estupenda. Nem tu calculas. Sabes quem vem aí, fazer-nos uma visita?

―Não sei, não posso adivinhar...

―Pois devias, para seres absolutamente perfeita, dispor dêsse dom... Quem vem aí visitar-nos é Frederico, aquele rapaz que foi meu camarada e que é o meu, o nosso melhor amigo!...

―Tinha-lo convidado?... E não me dizias nada!...

―Escrevi-lhe, antes de partirmos para aqui, como me obrigava o meu afecto. Ofereci-lhe, na nossa casa, uma enxêrga e uma tigela de caldo, à severa moda de Esparta... E êle aceitou. Bom, excelente Frederico!...

―Quando chega êle?

―Estará, entre nós, àmanhã ao romper do dia. Já almoça. Dá as tuas ordens para que se arrange um quarto a êste vagabundo que tam amávelmente se lembra do nosso exílio... Será uma companhia.

De dentro, da alcova, veio um débil vagido que deteve repentinamente a conversa de Nuno e de Júlia.

―Sua ex.a despertou e reclama, naturalmente, [19] o lunch―disse êle, levantando-se. Onde está a ama?

―Lá em baixo, a brunir. Vai chamá-la, enquanto eu entretenho a criança―murmurou Júlia, dirigindo-se ao quarto.

Nuno pegou nos jornais e nas cartas apressadamente lidas e desceu ao pavimento inferior, gritando pela ama do filho, que acudiu tôda afogueada do calor do ferro. Era uma rapariga na fôrça da vida, saùdavel, bem constituída, de fortes seios estalando de seiva sob o pano do colete, braços gordos e estriados de rija musculatura.

―Corra lá acima à senhora. O menino acordou agora mesmo.

Ela galgou logo as escadas ágilmente, num rumor de saias engomadas, exclamando jovialmente:

―Aí vou, meu amorsinho, aí vou!...

Nuno, satisfeito com as suaves emoções daquela clara e plácida manhã familiar, saíu para o jardim que, à roda da vivenda tranqùila, rescendia e refrigerava, com os seus canteiros coloridos onde desabrochavam os cravos rajados e as derradeiras rosas do estio. Estava um tempo maravilhoso. O céu luzente e translúcido arqueava-se sôbre a quinta como um enorme pálio de sêda azul sem uma ruga. Os negrilhos, as tílias, os amieiros e os plátanos deixavam caír das suas espêssas folhagens a consolação afável das sombras. Pelas ramagens que sussurravam à brisa adejante, cantavam as aves. A cada passo, amplos bancos de cortiça, que as copas dos vetustos arvoredos amenizavam de fresquidão, solicitavam ao descanso e às séstas aprazíveis. Nuno, passeando vagarosamente, ia pensando que por ali se teriam sentado [20]outrora, nas tardes de calor, as senhoras da sua casa com os livros dos poetas esquecidos no regaço, sempre que de verão vinham procurar ao campo a saúde e as bôas côres que a cidade lhes roubava. Aquele retiro estava cheio de recordações, de saùdosas memórias dos antepassados. Sua mãe, que havia falecido dois anos antes de êle se casar com Júlia, passara no doce refúgio―em que agora se encontrava com a família que constituira e que era todo o seu enlêvo―a primeira infância, saltando pelos arruamentos que o Jacinto jardineiro trazia sempre bem areados, regados e varridos. Evocando piedosamente a figura de mamã, que fôra tam gentil e que uma doença cruel bem cedo arrebatara, Nuno concentrava-se, recolhia-se para com mais intensidade sentir. Pobre, pobre mãe precocemente morta e que com tanto fervor lhe queria! Revivia-a na imaginação, reconstituia-a com nitidez. Parecia-se ainda um pouco com Júlia na bondade, na afabilidade, nas maneiras, no timbre da voz, na candura e na meiguice materna. Existiam nelas mesmo determinadas semelhanças exteriores que o surpreendiam―nos olhos que, em ambas, eram negros, profundos e húmidos, na finura das linhas plásticas, na brancura da pele, na nobreza da expressão fisionómica que reflectia conjuntamente a paixão, a gravidade e a graça. Sobretudo, quando observava o sorriso de Júlia―um sorriso em que havia qualquer coisa de castidade infantil, de seriedade ponderada e de ternura ingénua, Nuno assistia, deslumbrado, a uma verdadeira ressurreição. E foi por isto, de-certo, que amou desvairadamente a espôsa desde a primeira noite em que a viu, no salão dum hotel de Vizela [21] onde se dançava, e que ainda a amava e amaria sempre com o mesmo transporte e a mesma firmeza. A mãe, que não fôra feliz no casamento―porque o marido desertava do lar conjugal para correr atrás doutros amores, para atirar ouro aos punhados sôbre as bancas do jôgo, para dissipar uma existência que nunca encontrou sossêgo senão na sepultura―ressurgia na mulher admirável que era a sua doce companheira e que, com geito divino, devotando-se-lhe, lhe fizera a revelação da felicidade!...

Continuando o passeio e embebendo-se em lembranças, que aviventava para seu gôzo espiritual, Nuno chegou, insensivelmente, a meio da propriedade, que era de vastas dimensões. Para lá do parque frondoso, com uma rica decoração de troncos nodosos e recobertos de musgos parasitários, ficava o pomar que vergava de frutas pelos outonos elegíacos, quando as fôlhas amarelas caíam como asas que cessassem de bater: e mais abaixo, espraiavam-se as terras de cultura, as pastagens para o gado, abundantemente regadas por águas espertas e vivas que desciam, cantando, das bôcas negras das minas, frias e saborosas: o casebre dos caseiros pegado aos currais: a eira todo o dia batida de sol. Ao fundo, um pinheiral cerrado de rama verde-negra, que dava a lenha para o lume, fechava à vista a linha do horizonte. Das bandas do norte, elevavam-se espinhaços de serranias escarpadas, correndo dum extremo a outro e azulando-se, no crepúsculo, com os nevoeiros que, como um fumo ligeiro e branco, ascendiam das profundidades do vale, afogado em vegetações exuberantes. A quinta, situada nos arredores de Guimarães, pertencia já a Nuno ainda em vida dos pais. [22] Legara-lha seu avô materno, aterrado certamente com as dissipações do genro que fundia em orgias, em viagens que não tinham fim, em ligações ilicitas, o dote da mulher legítima e que ameaçava deixar na miséria, aos acasos incertos do destino, o filho único. Ah! êsse pai! Nuno não queria mal à sua memória, que venerava, recordava-o com saùdade e com mágoa, não invejava o dinheiro que êle espalhara estérilmente com mãos perdulárias. Desculpava-o. Era fogoso, irreflectido, embrenhava-se em aventuras arriscadas, perseguindo uma ilusão dos sentidos que jàmais alcançou, tinha um irónico desdêm por tôdas as convenções, caracterizava-se por uma rebeldia de temperamento que nenhum conselho prudente e fecundo conseguia apaziguar; o seu egoísmo de jouisseur não admitia restrições naquilo que julgava essencial ao seu gôzo próprio; fôra, talvez, um doente, uma organização enfêrma expiando sucessivas acumulações de hereditariedade mórbida que vinham de longe, prolongando-se em gerações taradas e denunciando um doloroso fim de raça. Obedecera passivamente, por ausência de vontade, aos secretos e vertiginosos impulsos do seu mal interior―do mal que insaciávelmente o roía, lhe debilitava o carácter, o esgotava de energia para tôdas as reacções nobilitantes...

O amor tornava Nuno generoso. Só lamentava que sua mãe tanto tivesse sofrido sem se queixar, transida, conformada com o infortúnio, agarrando-se ainda nervosamente ao seu verdugo como as heras se agarram a uma árvore carcomida, negando-se com obstinação a separar-se dêle e a voltar para o lar paterno, onde seria recebida em festa e onde a sua [23] existência atribulada encontraria suavidade e consôlo―porque, a-pesar-de tudo, continuava a amá-lo com ansiedade, com loucura, com uma constância que nunca afrouxou. Pensando neste caso singular de devoção e de sacrifício, Nuno julgava que havia herdado da mãe as virtudes afectivas, a rectidão, a lealdade, a sensibilidade aguda―e considerava-se feliz por isso...

Meteu-se resolutamente por um fechado milheiral, onde amadurecia ao sol de Deus o pão sagrado que daria alento e fartura às bôcas famintas e pálidas. Largas fôlhas compridas como espadas roçavam-lhe o rosto, açoutavam-lhe as mãos; as suas botas atolavam-se no terreno remexido de fresco e humedecido das regas que levavam o alimento às raízes; um cheiro acre de seivas e de ervas esmagadas impregnava a aragem. Nuno aspirava-o a fundos haustos, murmurando, regalado:

―Ah! isto vigoriza, tonifica!

Da banda do nascente, uma poeira de luz flutuava sôbre os píncaros das montanhas escalvadas que, por vezes, na sua imobilidade, tinham atitudes quáse humanas, sugerindo formas gigantescas e animadas, curvando-se sôbre a sombra, o vazio dos abismos. Enquanto caminhava e admirava êste maravilhoso trecho de paisagem, Nuno ia recebendo uma lição de coisas ignoradas. Com efeito, era aquela a primeira vez que visitava tam minuciosamente a quinta, que fôra a morada pacífica e venturosa dos seus avós, da sua gente. Só ali tinha vindo uma vez, de fugida, para conhecer uma parte dos domínios territoriais de que era senhor, mas não passara do jardim, onde por sinal havia colhido um cravo branco [24] com que floriu a lapela do seu casaco de casimira inglesa. Ao cabo duma curta hora, logo abalou para o Pôrto, onde nascera e onde vivia, alarmado com tanta solitude, penetrado de melancolia e de desalento, sem compreender como certas criaturas podiam permanecer longe das cidades, do seu movimento, das suas seduções, dos seus aliciantes espectáculos. Nesse tempo, estava ainda solteiro, completava na Academia Politécnica o curso de engenharia, era revolucionário como todos os seus camaradas, freqùentava com assiduidade as reùniões políticas em que se conspirava contra a Monarquia, tinha rixas com a polícia e namorava as costureiras. Agora, porêm, via com olhos diferentes dos dessa época, possuía uma compreensão mais lúcida, tudo nêle se havia modificado, existia na sua alma um sentimento mais equilibrado e mais justo. A inquietação antiga apenas servira para transmitir um grato sabor á paz actual: a reflexão e o estudo tinham-lhe revelado o mundo e as sociedades por um outro aspecto. Para êle, as urbs onde se agitam os densos formigueiros de seres conscientes, gritando os seus desesperos e as suas cóleras, representavam a tentação corruptora, a deliqùescência, eram as sinistras geradoras da dor e dos pessimismos modernos: e o campo, a aldeia, constituíam os reservatórios da vida salubre, os últimos santuários da crença religiosa e da felicidade onde os réprobos deviam retemperar-se anualmente. Como a sua mocidade fôra inconsiderada! Em compensação, como os seus trinta e cinco anos eram sábios e estavam na verdade!... Ao romper do milheiral em que se perdera, encontrou uma clareira bucólica de terra que andava a horta, onde cresciam e enconchavam [25] as couves tronchudas, verdejavam as tiras das alfaces e os talhões de feijoal ondulavam ao vento brando. Um homem, em mangas de camisa, magro, esguio, de rosto queimado pelos ardentes bafos das soalheiras, cavava, com uma grande tristeza na face, em que se emmaranhava a barba crespa e negra, e nos olhos que fulguravam. Nuno foi direito a êle, saùdando-o amigávelmente. O cavador, tirando o chapeú esburacado e sujo, murmurou com humildade:

―Salve-o Deus, meu senhor.

Durante um momento Nuno entregou-se à contemplação do pobre trabalhador, de cara macilenta e mãos calejadas e nodosas, em que os dedos deformados lembravam negras raízes. A camisa aberta no peito deixava a descoberto uma pele macerada, repuxando sôbre os ossos salientes: e uma grande piedade comoveu Nuno por tanta miséria.

―Vocemecê―perguntou êle―é que é o caseiro?

―Saiba vossa senhoria que sim. Já lá vai um ror de anos depois que para aqui entrei, e tenho pago honradamente as rendas.

―Bem sei, bem sei! Eu sou o dono da quinta...

―Pois vossa senhoria é que é o netinho do snr. Vicente, que Deus haja?

―Sou eu mesmo...

―Oh! meu senhor! Desculpe, que eu não o conhecia.

―Mas, desculpar o que, bom homem?...

―É que eu nem sequer fui vê-lo lá acima, ao palácio... Não podia adivinhar... Tinha-me dito o snr. José, procurador, que vinham viver na casa grande por algum tempo uns senhores, mas eu não [26] contava... Sempre uma assim! A gente anda cá nas nossas apoquentações, não tem vagar para nada...

E imediatamente, vergado ao hábito da obediência, submetido ao jugo da escravidão que sempre, no decurso duma vida trabalhosa e amarga, o coagia a rojar-se, a fazer-se mais pequeno diante dos poderosos, atirando a enxada para a leiva revolvida, aproximou-se de Nuno, baixando a cabeça descoberta como para receber o justo castigo duma grande falta.

―O senhor perdôe... Eu não sabia...

―Homem, já lhe disse!... Não tenho que perdoar. Está claro que a sua visita era-me agradável:―mas como amigo e não como dependente. É boa... Ponha o chapéu.

―Como amigo, como amigo!...―mastigou o caseiro, com a língua embrulhada na bôca e os olhos rasos de água, conservando o chapéu nas mãos.

―Como amigo, certamente... E ponha o chapéu. Agora, mando eu. Ponha o chapéu, avie-se.

―Isso é que não... O respeito não fica mal a ninguêm. É um dever...

-Se não pôe o chapéu, zango-me e vou-me embora...

―Ora essa!... Pois!...

―Afirmo-lho! Ou faz o que lhe peço ou retiro-me...

―Então, com sua licença, fidalgo...

―E vamos conversar à bôa paz... Está contente com os terrenos que traz arrendados?

―Eu não me queixo... Vão dando para viver, com a ninhada dos filhos e a mulher entrevada, melhor ou pior, como Deus é servido. [27]
―Pois, não tira lucros?

―Umas vezes pelas outras tiro, sim, senhor, que a terra anda bem tratada. Não lhe roubo ao sustento preciso... Mas lá vem um ano mau em que parte das colheitas se perde, lá morre um boi, e vão-se as economias escassas, para uma pessoa não ficar envergonhada... Adeus, minhas encomendas! Percam-se os aneis, mas conservam-se os dedos, como o outro que diz...

―Ah! eu julgava que a lavoura era remuneradora.

―A terra é quáse sempre ingrata para os que dela vivem, senhor... Alêm disso, para recolher é necessário semear e o dinheiro não me sobra... Mas isto não é chorar-me. Não quero aborrecê-lo. Vive-se com o muito e vive-se tambêm com o pouquinho...

―E a mulher entrevada, disse?

―É verdade, coitada! Fiquei dum dia para o outro sem o braço que me ajudava, e ando consumido, cá por dentro, de vê-la sofrer. Depois que teve o último filho, nunca mais se ergueu...

―Infeliz!... E os médicos?!...

―Os médicos... São muito caros. Veio aí um algumas vezes, para me dizer que o mal não era de morte mas que não tinha cura!... E o que mais me custa, meu senhor, é que a pobre de Cristo está sempre a pensar na labuta, na canseira do trabalho, e quando vou para comer a migalha, costuma dizer:―«Oh! meu homem, que te matas... Oh! criatura que não tens um momento de descanso e eu para aqui a curtir a minha doença, sem poder auxiliar-te... Que Deus me leve!»... Enfim, corta o coração, coitadinha... E foi sempre tam minha amiga, [28] Senhor do céu! Estamos casados há anos e damo-nos como Deus com os anjos...

Enquanto falava, o cavador limpava as lágrimas, que lhe corriam em fio dos olhos, às costas da mão negra e cheia de terra. Nuno, condoído, desviara a vista.

―Quantos filhos tem?

- Em casa tenho seis. Quatro, três raparigas e um rapaz, já casaram.

―São grandes, os que vivem consigo?

―Dois lá me vão ajudando a levar a cruz ao Calvário. Os outros são pequeninos... Teem a fatia do pão, mas falta-lhes a mãe para olhar por êles...

―Pois, está bem! Creio que a renda anda um pouco elevada... Hei de falar com o meu procurador... E ouça...

―Oh! meu fidalgo, eu não pedi que me baixasse a renda...―acudiu o caseiro, de fronte erguida por uns restos dêsse orgulho que existe tambêm no coração dos desgraçados.

―E ouça―continuou Nuno―disse há pouco que, se tivesse dinheiro, faria com que a terra produzisse mais. Terá êsse dinheiro. Sou eu que lho empresto... Nada de agradecimentos. Pagar-mo há quando o tiver... Quanto à entrevada, é preciso tratar dela. Minha mulher há de ir vê-la―porque as mulheres entendem-se umas às outras. E adeus!―concluiu, estendendo-lhe a mão.

O caseiro olhou com espanto a mão aberta, franca e leal de Nuno, cravou depois no rosto do seu senhorio os olhos atónitos e fulgurantes como carvões acesos, muito enleado, sem nada compreender, sem fazer um movimento, sem murmurar uma palavra.

[29] ―Adeus, bom homem!―insistiu Nuno. Não se acanhe. Tenho apertado a mão a criaturas muito menos dignas do que vocemecê é!

Então, o caseiro, entalado de soluços, rendido de admiração diante de tanta grandeza de alma, apoderou-se daquela mão purificada que se baixava bondosamente para levantar os que sofriam e que eram humildes, gaguejando, com a voz entaramelada:

―Ah! meu amo, que isto é o fim do mundo! Um fidalgo como vossa senhoria a tratar assim um ninguêm como eu!... Bemdito seja o Senhor, que ainda há tanta gente bôa!

E, na sua exaltada gratidão, queria beijar a mão que Nuno lhe dava.

―Não, isso não! Há maneiras de reconhecimento que se não aceitam, porque melindram quem as pratica e quem as recebe...

―Deixe-me, meu senhor!... Ainda há pouco disse: «meu amigo!» Um lagalhé, como eu, amigo de vossa senhoria!...

Nuno, por fim, desembaraçando-se do cavador, despediu-se e afastou-se dêle, enternecido e murmurando entre dentes:

―Creio que realizei hoje a melhor acção de tôda a minha vida... E devo a sua inspiração a Júlia... Que horror! Tanta miséria, mulher entrevada, criancinhas com fome e eu a alimentar a minha opulência com o esfôrço desta penúria!...

Dirigindo-se novamente para o jardim, meditava que, para as almas sensíveis, as transfiguradoras alegrias de bem pouco dependem. Bastava para conquistá-las, um gesto mais espontâneo de bondade... Como o seu dia fôra proveitoso, efectivamente! [30] Vivera momentos inolvidáveis junto do berço do filho, que dormia como uma doce flor por desabrochar com tôda a alma inocente reflectindo-se-lhe na face, que era inconsciente, que mal reparava ainda nas coisas que o cercavam e que, no entanto, enchia tôda a casa, tôda a sua vida, todo o seu amor de encanto, de esperança e de perfume! Depois, a adoração da espôsa dera-lhe uma lição de magnanimidade e fizera-lhe sentir a branda promessa duma ternura eterna, duma inalterável dedicação que o iluminaria pelos anos fóra. Em seguida, recordara a memória venerável da mãe, no seu passeio pelo parque―essa mãe que tanto o tinha amado e que, mesmo morta, era uma radiante luz de que lhe vinha claridade e beleza moral, e corrigira nobremente desigualdades sociais, decidido a conceder um pouco mais de bem estar a sêres desditosos que activamente lidavam, acrescentando a sua riqueza. Para que nada faltasse à formosura dêste dia magnífico, até o seu único amigo e seu companheiro de estudos e de boémias românticas, acabava de anunciar-lhe que viria passar junto dêle uma semana, um mês! Levantara-se com sorte, certamente. Há horas predestinadas para a ventura, como há outras predestinadas para a desgraça...

Entrou em casa, trazendo debaixo do braço jornais que não abrira e cartas a que não ligara atenção, exceptuando a de Frederico, que era sumamente grata à sua amizade. Subindo ao primeiro andar, foi encontrar Júlia com o filho, gordo, robusto, de cabelo muito louro e uns olhos muito azúis, nos braços amorosos. Nuno beijou a criança com mais devoção do que beijaria uma imagem religiosa, beijou tambêm [31] a espôsa longamente na testa e na bôca, para agradecer-lhe a felicidade de que transbordava.

―Que é isso, que é isso?―perguntou ela, sorrindo com aquele sorriso que lhe fazia evocar a mãe.

―É que te amo, que te amo, e que não sei dizer-te por outra forma o meu amor!



II


Frederico chegou, com efeito, na manhã seguinte e foi efusivo o abraço que trocou com Nuno, ao saltar do automóvel, diante do portão do jardim que um grande ramo de jasmineiro em flor cobria de sombra, de frescura e de aroma. Enquanto os criados conduziam as malas de viagem, do carro para casa, êle, compondo a roupa desmanchada e alisando, com a mão, os cabelos despenteados, dizia para o amigo:

―Menino, o que eu agora mais desejo, antes do almôço, que ficarei devendo à tua generosidade, é um banho frio que me restitua a elasticidade aos membros entorpecidos e me purifique da poeira da jornada―uma poeira corrosiva que me morde a pele.

―Pois terás êsse banho purificador, homem!―prometeu Nuno, alegremente.

Foram andando pelos arruamentos que corriam [34] junto dos canteiros rescendentes, no inspirador silêncio matinal.

―Tu tens isto lindíssimo, na verdade. Sente-se a ventura, o encanto de viver à volta desta habitação que eu creio bem que seja a morada da Fortuna!... E como vai a saúde da família? Próspera, não é assim?... Desculpa. Tinha-me esquecido de cumprir êste elementar dever de cortesia.

Do lado que dava para o parque havia uma escada de pedra com grade de ferro pintada de verde, subindo, entre redouças de trepadeiras que a bucolizavam, até ao primeiro andar, sob a folhagem fechada duma acácia. Tinham êles galgado o primeiro lanço, quando Júlia apareceu no alto, vestida com simplicidade e gôsto. Frederico, tirando o chapéu, exclamou logo, ao avistá-la:

―Oh! minha senhora!...

E avançou, mais apressado, de mão estendida, acrescentando:

―Venho pedir um pouco de repouso, de tranqùilidade espiritual, às divindades protectoras dêste lar, que é o Palácio da Ventura...

―Seja então bemvindo―acudiu ela, tôda risonha.

―Não o acredites, Júlia! É um réprobo e tem o sentimento derrancado―gritou Nuno. Ainda agora me dizia da aldeia coisas pavorosas. Não te admires se êle, logo à tarde, bocejando o seu aborrecimento e renunciando a uma conversão de alma, nos fugir para a cidade...

Frederico, voltando-se para o amigo, murmurou com ar cómico e forçadamente constrangido:

―É, então, assim que o afecto fraternal compreende [35]e pratica as obrigações sagradas da hospitalidade, mentindo para me comprometer? Com franqueza! Isso não é leal...

Júlia, còrada e encantadora no seu pudor e no seu recato de espôsa e de mãe, ria enlevada.

―Deixe-o falar!

―Pois se eu, só de atravessar a pacificação campestre, embebendo-me, impregnando-me da sua doçura, até já me sinto outro e me parece que dentro de mim um outro coração renasce!...―disse Frederico.

―É que o Espírito Santo estava à tua espera para baixar-te sôbre a cabeça em língua de lume e iluminar-te―zombou Nuno.

Entraram na sala que as flores das jarras incensavam. Por tôda a parte se notava logo o cuidado e a subtileza duma diligente ménagère, tal era a ordem, a elegância, o claro aceio daquele atraente lugar de repouso. Sentaram-se um momento, conversando.

―Quis, então, dar-nos por algum tempo o prazer da sua companhia, abandonando as alegrias da vida citadina?―perguntou Júlia.

―Nuno assim mo impôs. E creia V. Ex.a que nunca imposição alguma foi mais brandamente acatada por um rebelde como eu sou―afirmou Frederico.

Um relógio de bronze dourado, montado em colunas de alabastro côr de rosa, marcava as horas sôbre o mármore do fogão, quebrando com o ritmo do seu tic-tac a paz do compartimento: e evolava-se de tudo o que os cercava essa serenidade, êsse divino mistério inspirador, essa graça imaterial que só existem nos ambientes calmos em que as almas de élite fazem a troca mútua das suas afeições puras, [36] das suas emoções delicadas, das suas aspirações nobres.

―De-certo que não encontrará aqui as distracções que um grande centro de população pode oferecer―exclamou Júlia. No entanto, haverá para o snr. uma sincera amizade.

―Eis tudo de quanto eu preciso, minha senhora, porque a amizade é o que ainda vale no egoísmo e na tristeza da nossa época.

―Mas, não terias perdido a virtude, o dom e motivo de senti-la?―interrogou Nuno, com ironia afável. Êste homem é um perdido, Júlia. Vamos a ver se conseguimos levá-lo de novo para a luminosa vereda da verdade... E vai-te arranjar, criatura, que aqui, na aldeia, almoça-se cedo, janta-se cedo e deita-se a gente ao anoitecer...

―Bem! Começa a minha regeneração―murmurou Frederico, erguendo-se. Se me concede licença, minha senhora, vou tratar da toilette. Vejo que Nuno, antes de me servir o alimento, pretende servir-me um método. É justo. Quem dá o pão, dá o pau...

―Se precisas dêle!...

―Do pau?

―Não, desgraçado, do método!...

Nuno acompanhou-o ao quarto, enquanto Júlia descia à cozinha. A tranqùilidade envolvente era tam profunda que os menores ruídos adquiriam uma prolongada vibração. Ouvia-se a voz dos carreteiros ao longe, excitando os bois nas subidas e as cantigas dos ranchos de mulheres que trabalhavam nas terras de cultivo, sob o banho fluido e louro da luz. Nuno, deixando Frederico, veio um instante para a varanda envidraçada exposta ao sol, sentando-se numa cadeira [37]de encôsto, perto dos vasos com avenca e com begónias de estufa, de largas fôlhas espalmadas e ferruginosas, onde costumava passar as tardes com Júlia, contemplando a ondulação dos milheirais que se estendiam por todo o vale, a ramaria dos pinheiros vasta como um mar de verdura, a mancha azulada das montanhas de perfil irregular e que formavam, das bandas do nascente, uma rica, prodigiosa scenografia natural. Estava contente, a vida tinha para êle um grato sabor, nesse momento. Por mais absorvido que andasse na sua feliz, plácida existência conjugal, não podia subtrair-se a determinadas influências que certos factos produziam. A vinda de Frederico tinha acordado, para seu regalo, um mundo de sensações longínquas, de recordações adormecidas. Com a presença do amigo, ressuscitavam tambêm a sua mocidade distante, os anos consagrados ao estudo, à conquista duma posição social que lhe imprimisse maior relêvo à personalidade, as ilusões que fôra tecendo, as esperanças sonhadas em prometedoras horas de confiança. Relembravam-lhe episódios há muito olvidados, uma tumultuosa onda de saùdade e de indecifrável ternura invadia-o. Ah! êsse bom Frederico! Havia perto de dois anos―desde o seu casamento, a que êle assistira―que não tornara a vê-lo. Nos primeiros meses de casado, como o seu forte amor por Júlia reclamasse um absoluto recolhimento, isolou-se inteiramente das suas relações, duma sociabilidade que o não interessava. Fizera, com ela, uma longa viagem de núpcias por países que nunca visitara e que muito desejava conhecer, encantado pelo anonimato da sua individualidade no meio das ruidosas multidões. Estiveram em Itália, em França, na Suíça, observando [38] uma civilização que se denunciava radiosamente em tôdas as manifestações da actividade humana, na sumptuosidade de capitais que são resumos lúcidos do mundo consciente, passando as manhãs nos Museus, indo à noite aos teatros, aparecendo nos sítios preferidos pelo mundanismo para a exibição maravilhosa da esplêndida flor do luxo e da beleza, ofertando à adoração que os estreitava a surprêsa de espectáculos constantemente novos e cativando pela sua variedade infindável. Depois, quando regressaram ao Pôrto, amando-se mais porque entre os dois se tinha feito uma perfeita unidade moral e afectiva, Frederico havia partido igualmente «para uma confortável vadiagem por êsse bemdito Portugal» como dizia numa carta a Nuno, porque, mesmo separados, nunca deixaram de estar juntos em espírito, correspondendo-se com regularidade, comunicando-se as impressões recebidas, as opiniões, os pensamentos, os pontos de vista, por uma necessidade imperiosa, que provinha de identidades de inteligência e simpatias de temperamento.

Frederico nada ocultava ao amigo e ao camarada, confessava-se-lhe sinceramente. Uma casualidade singular os aproximava ainda mais:―eram ambos ricos, sem família, fizeram o mesmo curso, manifestavam as mesmas predilecções. Nuno conhecia-o minuciosamente no seu carácter, na sua psicologia, nas suas tendências, nos seus hábitos. Um pouco leviano e volúvel, por certo. Não havia em Frederico estabilidade de sentimentos, fixidez, reflexão. Os seus actos quáse nunca estavam em concordância com as suas ideias. Abandonava inconsideradamente, como futilidades sem raízes na realidade universal, [39] projectos no dia anterior aceitos com entusiasmo e fervor, como se representassem a verdade irredutível. Era um dêsses homens estranhos que, possuindo um grande orgulho de si próprios, ou pela superioridade mental ou por dons puramente exteriores, são incapazes de contrariarem a sua espontânea vontade, de se sacrificarem na satisfação do seu sonho, muito embora sigam por caminhos errados, de renunciarem ao que, para êles, encerra um efémero minuto de prazer. Foi por isso mesmo que não quis jàmais reduzir ou comprometer a sua liberdade, conservando-se solteiro com mêdo às responsabilidades duma família, ao jugo dos deveres contraídos. Nuno lembrava-se, enquanto reavivava um passado ainda recente, do desgôsto que em Frederico provocara a sua decisão de casar-se com Júlia. Êle ouvira-o friamente, com uma expressão de sarcasmo na bôca―um sarcasmo em que havia compaixão e desdêm.

―E tu devias fazer o mesmo. Arranjavas, assim, uma ocupação séria!―dissera-lhe Nuno.

―Ah! obrigado pela intenção―respondera Frederico, sêcamente e encolhendo os ombros.

―Homem, parece que estou a aconselhar-te uma acção má!...

―Não! Apenas me aconselhas a loucura, o absurdo...

Êle, casar-se, efectivamente! Nunca sentira vocação para a vida conjugal, sempre que se consultava sôbre êsse complicado e perigoso problema. Julgava que o casamento destruiria tôda a sua paz, tôda a sua felicidade―se é que essa felicidade significa mais alguma coisa do que uma rima frívola em poesia ou do que uma imagem literária.

[40] ―Tu bem sabes, Nuno, que não sou um inexperiente em amor―asseverou Frederico.

Não era um inexperiente, na realidade. Nuno conheceu-lhe, durante muitos meses, uma ligação sentimental íntima com uma linda rapariga que êle seduzira e de quem mais tarde, saciado, fatigado, desiludido, se afastou, oferecendo-lhe um forte punhado de oiro. E, nessa ligação, que foi mais do que um capricho, a princípio, porque a sua alma nela teve interferência, encontrou Frederico a certeza de que, para o seu organismo, para a sua individualidade psíquica, as venerações eternas e conservando perpétuamente a mesma intensidade, as afinidades da carne e da emoção que estabelecem para sempre uma estreita comunidade física e ideológica entre dois seres de sexos diferentes, pelo laço do desejo insaciável, que incessantemente se renova, e das semelhanças espirituais, representam uma engenhosa mentira.

―A não ser―concluiu êle―que para além da minha experiência haja um mundo por mim ignorado.

―Porque não hás de tentar a sua descoberta?―insinuava Nuno.

―Porque não quero enliçar-me em aventuras arriscadas... Se falhasse, o mal seria irremediável.

Nuno casou, entregou-se às meigas preocupações do seu amor, não tornou a falar com Frederico, a não ser por cartas: mas êste facto nunca mais lhe esqueceu. Permaneceria ainda o amigo dentro dos apertados limites das mesmas ideias, prevaleceria no seu espírito o terror ao casamento? Era provável que assim fôsse: mas Frederico seria uma testemunha da sua felicidade, que era imperturbável e perene: e [41] podia muito bem acontecer que modificasse raciocínios falsos. Felicitava-se por êle haver aceitado o seu convite, porque talvez a permanência naquela casa o convertesse―o que seria sumamente grato ao afecto que lhe consagrava.

―Porque não? Porque não?―monologava Nuno.

A aridez da existência de Frederico entristecia-o, porque o estimava profundamente. A-pesar da sua leviandade, duma ponta de cinismo que a vida lhe transmitira, do pessimismo que tornava estéreis os seus anos alacres e improdutiva a sua actividade, êle era um excelente moço duma lealdade firme, afável, encantador por mais dum traço da sua personalidade: e só por isto, lhe abrira alegremente a porta da sua vivenda onde com sobressalto, quáse com ciúme, guardava quanto possuía de mais querido e de mais puro...

Um berro súbito interrompeu o fio do scismar de Nuno. Frederico, já lavado do pó da viagem, já perfumado, já mudado de roupa, entrou inesperadamente na varanda, exclamando:

―Tenho andado a procurar-te por tôda a parte inutilmente.

―Estava aqui a reviver coisas extintas que a tua chegada me sugeriu. E sabes o que evoquei? Não sabes? Pois foi a última conversa que tivemos nas vésperas do meu casamento. Lembras-te?

―Perfeitamente...

―E ainda pensas da mesma forma?

―Pois que razão havia de desviar-me dêsse pensamento?

―Vejo que és um convicto no êrro.

[42] ―Como tu o és na verdade...

―Bem, bem. Não falemos mais nisso!... Ocupemo-nos de coisas proveitosas. Nem sequer viste o meu morgado... Vou mostrar-to. Anda comigo.

Enquanto se dirigiam ao quarto da ama, que comunicava com o de Nuno por uma ampla porta, êle ia-lhe fornecendo esclarecimentos sôbre o filho:

―Oh! é um respeitável senhor com as pernas e os braços às roscas de carne, uma cara rabugenta e uns olhos negros como contas de vidro que, a-pesar-de ser ainda pequenino, é já um déspota. Manda em mim, manda na mãe, que o adora, e, como os príncipes, tem servos atentos à volta da sua importante pessoa. Todos nós somos seus escravos.

Atravessavam um corredor quando Júlia apareceu com a criança ao colo, entre rendas, cambraias, laçarias de sêda.

―Aqui o tens. Vê que figurão!

Frederico curvou-se para uma carinha rosada, emergindo da brancura imaculada das roupagens, tocou-lhe levemente com a mão na face, esteve um momento a contemplá-lo.

―Hein? Que te parece?―perguntou Nuno, beijando, com ternura, o pequenino.

―Admirável!... Com certeza que a estas horas, já elegeste, para êle, um destino incomparável, já meditaste na situação que mais lhe convêm. É o primeiro dever dos pais.

―Coitadinho!―murmurou Júlia, enlevada.

―E V. Ex.a tambêm, minha senhora. Ah! as mães! Se elas forem tôdas como a minha, que era uma santa, nunca se sentarão à beira dum berço sem sonharem quimeras para os seres que lá dormem.

[43] ―Não, não! Eu apenas quero que êle viva, para o meu amor, para o amor de Nuno.

―Cá por mim―atalhou Nuno―decidi.

―Sim? Então, conta lá...

―Resolvi fazê-lo rei, dar-lhe um trono...

―Oh! Nuno, que disparate!...―interrompeu Júlia.

―Disparate? Ora essa!... Que dizes tu, Frederico?

―Eu digo que, na verdade, um trono é uma grande comodidade para os mortais, mesmo por êstes ásperos dias de democracia, de revoluções, de indisciplinados movimentos políticos e religiosos. Sim, minha senhora. Nuno está na sapiência. Uma corôa, uma rialeza, milhões de vassalos vergados e sem vontade sob o poderio dum scetro é, entre tôdas as vaidades humanas, a mais invejável vaidade. Resta saber...

Júlia ouvia saborosamente as palavras de Frederico, afagando o filho, aconchegando-o mais nos braços, encostando-o ao seio com infinitas cautelas.

―Resta saber o quê?―interrogou Nuno.

―Resta saber se o pequerrucho terá uma decidida vocação para tirano...

Riram com alarido, dando alguns passos no corredor que a meia-tinta da luz refrescava.

―Se sair à mãe, será um tirano de primeira ordem!―concluiu Nuno, rindo ainda.

―Não creia, Frederico―replicou Júlia, jovialmente. Quem aqui sofre um domínio tirânico, sou eu!... Nem pode calcular...

―Imagino, imagino, minha senhora. E lamento-a. Em outras épocas, nos séculos mortos da cavalaria, [44]eu ofereceria a V. Ex.a uma espada libertadora. Mas, desde D. Quichote que os cavaleiros andantes não são bem vistos pela polícia. Tudo quanto posso fazer é recomendar-lhe resignação...

―Sou já uma resignada―disse ela, envolvendo Nuno num inexprimível olhar de afecto.

A ama veio pegar na criança, que agitava os bracinhos, que levava os punhos fechados à bôca e galrava, quando em baixo, no rés-do-chão, uma sineta de estridente timbre, tocou para o almôço, assustando as pombas no pombal.

―Ora, graças a Deus! Pensava que nos querias hoje matar à fome, Júlia―disse Nuno.

―Que horas são?

―Meio-dia. E Frederico deve estar com um apetite igual ao de Ugolino na sua prisão. Desde alta madrugada que rolou, através de estradas poeirentas, para nossa casa, animado na sua tortura pela única esperança duma farta mesa...

―Nem só de pão vive o homem―exclamou Frederico. Mas lá apetite há, bemdito seja o Senhor que nos fez assim glutões e terrestres.

Foram caminhando pelo corredor, ao lado de Júlia muito elegante no seu vestido de sedinha branca―um vestido que lhe modelava nítidamente as linhas corpóreas, ondulantes e flexíveis, e em que havia harmonia, graça e ritmo―entrando, por fim, na sala de jantar, que era espaçosa, clara, aprazível, com o seu mobiliário de nogueira americana, as suas três janelas abrindo para o jardim, os seus cortinados de renda inglesa, os seus brise-bise de tule bordado. Nos aparadores, as pratas resplandeciam, iluminando-se de súbitas claridades; o esmalte das porcelanas [45]pintadas faíscava de brilhos metálicos; os cristais dardejavam a um raio de sol que incidia nas vidraças e se prolongava como um delgado fio de ouro, ardendo, fulgurando, tremendo sôbre o verniz dos móveis. Uma perturbante fragrância vinha de fora, exalando-se das corolas, subindo na aragem.

―É agradável, esta sala!―louvou Frederico.

―Como situação...―alvitrou Nuno.

―Por tudo:―pela situação, pelo aspecto ornamental, pela simplicidade, que logo revela o solícito cuidado e o bom gôsto feminino... Os meus cumprimentos, minha senhora.

―Ora! Amabilidades de hóspede amável!―disse Júlia.

―Mas não, mas não! Digo a verdade, digo o que sinto.

A larga toalha da mesa, do linho mais puro e mais fino, alvejava entre os solitários com cravos e avencas e espalhava frescura; largas cadeiras de couro lavrado, de alto espaldar e pregarias de metal amarelo, ofereciam repouso; dos pratos cheios de fruta evolavam-se vivos aromas; os morangos, colhidos de manhã, no morangal, por Nuno, perfumavam o ambiente. Sentaram-se: e Frederico, desdobrando o guardanapo vagarosamente, afirmou:

―Pois, senhores, adorável retiro para uma doce convalescença de espíritos doentes, para um perfeito exame de consciência! Aqui é o El-Dorado que o dr. Pangloss em vão procurou na terra.

―Tu o dirás!―retorquiu Nuno. Mas mais tarde. Por enquanto, é cedo para julgamentos ousados. Não te precipites, não arrisques opiniões temerárias [46]que podem ser erradas... Chegaste há três horas apenas.

―Há três horas já? Nunca, para mim, o tempo fugiu tam ligeiro...

Júlia sorria sempre, muito rosada, muito animada, diante de tôda aquela efusão do amigo da casa, que viera trazer com o seu afecto por Nuno mais movimento e mais vida à tranqùilidade inefável da vivenda rural. Os cabelos abundantes, enrolados no alto da cabeça e apenas presos por travessas guarnecidas a ouro em que fulguravam pequenos brilhantes talhados em rosa, caíam-lhe em madeixas até ao lóbulo das orelhas, onde duas pérolas dum belo íris reluziam em fogos surdos. Na sua testa ebúrnea havia toques de luz. Frederico olhou-a um momento, assim envolvida de claridade, satisfeita na sua ventura de mulher, numa atitude que dava a tôda a sua pessoa um extraordinário poder de sedução.

―Quem tem feito uma grande diferença, para melhor, é a snr.a D. Júlia―disse.

―Sinto-me bem, com efeito!―respondeu ela.

―Eu, de resto, apenas a vi no dia do casamento, e já lá vão dois longos, fastidiosos anos. Mas parece-me que tem mais côr e mais saúde, que está um pouco mais nutrida.

―Pois, olha que veio para aqui adoentada, muito fraca―esclareceu Nuno. Meses depois do nascimento do filho, chegou a inspirar-me cuidados. Os médicos mandaram-na sair da cidade a tôda a pressa: e, com efeito, na aldeia, curou-se. Não há como o campo, para êstes milagres.

―Visto isso, minha senhora, por gratidão, deve ficar aqui, esquecer as grandes aglomerações, [47] que são o veneno, a indigência orgânica, a morte...―comentou Frederico.

―Por mim, ficava. Mas Nuno não se acostumaria à solidão, à tristeza, ao isolamento...

E, como êle protestasse, acudiu logo:

―E nem eu, tambêm. Já outro dia falamos nisso... O inverno, neste destêrro, deve ser medonho...

O almôço decorreu alegre, no calor constante das palestras a que Frederico imprimia vivacidade e graça, com a sua verve faíscante. À sobremesa, a conversação derivou para as questões sensacionais do dia, motivadas pela guerra que, dum extremo ao outro, pegava fogo à Europa, sepultando em ruínas uma civilização que levara tantos séculos a construir. Nuno achava-a necessária, pois só por ela seria possível restituir a liberdade aos povos e a independência às nacionalidades débeis. Júlia, pensando no filho, na desdita das outras mães, nas torrentes de sangue e de lágrimas que corriam nos campos de batalha e nos lares lutuosos, horrorizava-se com uma carnificina que imolava à morte as primaveras humanas. Não compreendia a ferocidade dos homens e das nações, despedaçando-se por ambições de domínio, de hegemonias políticas, de conquistas de territórios e de mercados comerciais, quando para todos havia um lugar ao sol e um direito à existencia. Falava com uma verbosidade que Nuno não lhe conhecia e que encantava Frederico.

―V. Ex.a, minha senhora, é uma das poucas mulheres que assim pensam e eu creio que, como mulher, está na lógica e na verdade. Mas quer saber o que faz o gentil mundo feminino das potências [48] envolvidas no conflito? Não pensa nas modas, no luxo, o que até agora parecia impossível. Trabalha nas fábricas de munições, faz granadas, engenhos de destruìção!...

―Por isso mesmo, essas mulheres são admiráveis!―atalhou Nuno, com entusiasmo.

―Admiráveis? Oh! Nuno, que heresia!―contrariou Júlia.

No seu critério simplista, ela compreendia que as mulheres, seres de abnegação e de sacrifício, destacando-se mais intensamente pela emoção do que pela inteligência, mais pelo espírito do que pelo cérebro, amassem as suas pátrias; mas era-lhe doloroso pensar que mãos de afago e de carícia, feitas para apaziguarem o sofrimento, para enxugarem com infinita doçura os olhos que choram, para sararem feridas, se ennegrecessem na pólvora, destinada a devastar homens que vão para os combates, passivamente, como as rêses para um matadouro. A sua colaboração nas pendências guerreiras nunca devia ir alêm dos hospitais de sangue, onde acalmariam dores e tranqùilizariam delírios.

―Pois, não é assim, Frederico? Diga! Seja imparcial.

―Na realidade, minha senhora, através de tôda a história, nunca vi as mulheres associadas às lúgubres matanças. Pelo contrário, tenho-as visto sempre dispostas a lutar para conseguirem tudo o que signifique elevação, nobreza, bondade, amor. Elas foram, positivamente, os melhores arautos de Jesus para a vitória do Cristianismo, que redimiu o mundo; elas impuzeram, com as religiões, a arte e a poesia.

[49] ―Então, aí está!―disse Júlia, com um sorriso triste.

―Vejo que tu não eras capaz de dar o teu filho, se ele fôsse grande e pudesse manejar uma arma, para a defesa do país―exclamou Nuno.

―Com certeza que não!―asseverou ela resolutamente e com uma grande convicção na voz. E digo-to:―para o defender da morte, eu era capaz de tudo, de tudo, mesmo dum crime.

―Pensa, portanto, no heroísmo das outras mães...

―Nenhuma delas os dará de bôa vontade... Arrancam-lhos à fôrça, cruelmente !

―Repara, Frederico! Aqui tens uma compatriota de Brites de Almeida, a padeira de Aljubarrota, de D. Filipa de Vilhena, doutras criaturas heróicas!―zombou Nuno.

―Ela está na razão, pensa como mulher―e as mulheres, verdadeiramente, só vencem pelo sentimento.

Acenderam os charutos e continuaram a discussão, enquanto Júlia, levantando-se, dava ordens á criada para que o café e os licores fôssem servidos no jardim. Nuno, que a guerra apaixonara, ia agitando ideias, condenava o pacifismo que estava fóra da sua acção eficaz:

―Positivamente, por melhor intencionado que seja, o pacifista é um produto nocivo do nosso estado de perturbações e de ameaças. Até hoje, imaginou erradamente que a maneira mais prática de realizar-se a paz seria odiar e condenar todos os movimentos armados dos povos, sem distinguir lúcidamente entre o justo e o injusto, entre a honra e a [50] cobardia. Quando a tranqùilidade do mundo entrava numa fase precária, êsse pacifista aconselhava a transigência dos menos poderosos, o que era uma vileza.

―Mas que outra coisa poderia êle fazer?―inquiriu Frederico, interessado e soprando baforadas de fumo.

―Que outra coisa poderia fazer? Homem, desconheço-te, perdeste a sagacidade antiga! No domínio espiritual, a felicidade resulta da filosofia e da religião; e no domínio material, da sciência e do trabalho. Igualmente, e nesta ordem de raciocínios, a paz deriva do equilíbrio das potências e das precauções a tomar contra aqueles que pretenderem destruir êsse mesmo equilíbrio. A missão útil e nobre do pacifismo, se êle não andasse transviado, seria esta, portanto.

―É ainda impotente para isso―opinou Frederico.

―Porque lhe falta organização―respondeu Nuno.

Júlia reentrou na sala para dizer que o café já fumegava sob as árvores e entre as flores, à espera.

―Já lá vamos, minha senhora!―informou Frederico. Estávamos aqui a desenvolver coisas muito sérias de sociologia e de política. Nuno é terrível. Tem uma argumentação, uma dialéctica!...

―É porque estou na verdade.

Depois, debaixo dos arvoredos, o diálogo sôbre o mesmo assunto ainda continuou, caloroso, vivo, na tarde serena co Depois, debaixo dos arvoredos, o diálogo sôbre o mesmo assunto ainda continuou, caloroso, vivo, na tarde serena como a doçura e a melancolia duma rosa de luz e de sêda que se desfolhasse lentamente. A sombra, caíndo, despregando-se molemente das [51] ramarias, espalhava na areia das ruas movediças manchas rôxas. Um ar esperto e vitalizador circulava. O sol, descendo para o poente, refulgia e dourava tudo aquilo em que tocava.

Nuno surpreendia uma beleza nova nas vastas massas de homens que avançavam para as batalhas altivamente, sem o temor no coração, sem a palidez nas frontes―nesses soldados que conheciam a embriaguez do sacrifício total a um pensamento grande e nobre e que, no élan supremo das cargas, por entre o ciclone fulgurante da metralha, tinham a visão nítida e simples das coisas, sentindo a divina claridade das almas heróicas, a alegria prodigiosa da única verdade, que é a de lutar até à morte por uma liberdade mais ampla, por uma vida melhor, pelo esplendor das nacionalidades a que pertencem.

―Porque, não tenhas dúvidas! Desta convulsão saírá uma liberdade luminosa.

―Isto é―explicou Frederico―maior extensão do privilégio. Eu não sei, realmente, em que consiste essa liberdade que tam calorosos hinos te merece...

―Não sabes? Pois é fácil sabê-lo. A liberdade perfeita consiste na absoluta adaptação dos interêsses, das actividades e das energias humanas. No nosso tempo, a adaptação de que falo é essencial entre os indivíduos; entre a colectividade e as instituições; entre as instituições e os governos. Quando isto se conseguir, a existência será mais suave e mais bela...

Na espessura dum caramanchão de madre-silvas e clematites, um melro assobiava a sua canção [52] em louvor do claro dia; no parque, a solidão tornava-se mais profunda; perto da varanda da casa, sob a acácia, um gordo gato rebolava-se ao sol.

―Não creio que esta guerra nos dê uma liberdade mais dilatada. Quando muito, fará apenas com que a tirania empregue uma subtileza maior―contestou Frederico.

―Não crês em nada. Perdeste a fé―replicou Nuno, bebendo o seu café a pequenos, espaçados goles.

―Penso, porêm―continuou Frederico sem o ouvir―que dela saírá alguma coisa de inédito. Com efeito, uma parte do culto ocidente sossobra e afunda-se com a hecatombe. Tombaram, sucessivamente, como as messes diante da fouce do segador, as mocidades da Europa, que era a renovadora do mundo consciente pelo génio artístico e scientífico. Essas mocidades haviam sido educadas pelos antigos, pelos vélhos, pelas personalidades formadas em ideias já conhecidas, semente de que germinariam as searas futuras. Deu-se, portanto, com êste salto brusco para o mistério, uma solução de continuìdade. Do saber guardado e arquivado nos livros, pouco subsistirá. A Europa nova tem de educar-se por si, de refazer uma consciência e uma sensibilidade, um espírito e uma razão, em bases tambêm novas...

―Há talvez alguma verdade nas tuas palavras―atalhou Nuno, surpreendido.

―Quem me diz que a Europa de àmanhã não terá de ir outra vez, como na Renascença, às civilizações extintas a procurar as suas inspirações?

―Não se anda para trás. A vida evolute numa progressão ascendente...―exclamou Nuno.

[53] ―Não falo em retrocesso: falo na busca duma fonte geradora de outros ideais. No entanto, se esta peregrinação dos povos doloridos ao passado se fizer, muitas coisas hoje decadentes reconquistarão o seu prestígio.

―Por exemplo...

―O Catolicismo que, depurado das suas imperfeições e das mentiras com que os homens o desfiguram, terá belos e gloriosos dias.

―Que fantasia!

―Homem, contempla a febre, a ansiedade, com que as nações que o tinham repelido, novamente se voltam para êle, procurando uma consolação, uma alegria interior que o racionalismo não lhes oferecia. Em França os templos transbordam de fiéis. Nas trincheiras, os padres combatentes pousam as espingardas para dizerem a missa aos seus camaradas que vivem debaixo da tempestade das granadas e da fuzilaria. Não será isto uma profecia? Nas terríveis calamidades, Deus é preciso para que o sofrimento seja menor...

Júlia voltou a aparecer com o filho ao colo. O seu perfil, de linhas tam delicadas, recortava-se límpidamente no disco, na auréola luminosa de que a claridade lhe envolvia a fronte.

―Santo nome de Maria! Pois ainda discutem a guerra?!...―interrogou ela.

―Sim! Temos feito, à volta de duas chávenas de café e de dois cálices de cognac, uma enorme quantidade de filosofia, minha senhora!―disse Frederico, levantando-se e indo ao seu encontro. Nuno tem sido duma eloqùência notável... Nem V. Ex.a calcula.

[54] ― Eu sei, eu sei! Quando êle se apaixona por uma questão, é um falador incorrigível.

Nuno, que tambêm se aproximara do grupo, todo afogueado do calor da controvérsia, acrescentou:

―Demos à língua, efectivamente. Desforrei-me da minha mudez consecutiva de meses. Frederico estava interessante...

Parou, um momento, absorvido na adoração do pequenino, que mostrava os olhos espantados e que incessantemente abria e fechava as mãosinhas rosadas. Todo êle cheirava a perfumes, como uma flor humana.

―Oh! lá, ó seu fidalgo!... Pst!...―acariciava Nuno, pousando-lhe um dedo na còvinha do queixo. Bem disposto, hein?

―Tomou agora o seu banho, sente-se feliz―disso Júlia, baixando os olhos pensativos sôbre a fronte do filho.

Ouvindo-a falar naturalmente, Frederico notava nas suas palavras uma vibração, um timbre, um enlêvo que não podia definir e que o perturbavam. Na história da sua alma fazia-se uma página de poesia e de ternura, que lhe comunicava gôzo, pacificação interior. Como Nuno era feliz! E bem merecia êle essa felicidade, pelos puros dons do seu carácter, pela sua bondade, pelas suas virtudes de homem. Encontrara a mulher ideal que o completou e que, à sua volta, fazia a graça, a serenidade, a confiança, o repouso.

―E aqui tens tu, Frederico―disse Nuno―a minha pátria grande.

―Não! A tua família... A família é apenas [55] a unidade da pátria, como o individuo é a unidade da família.

―Bem! Que seja então a minha pequenina pátria. Não quero outra. E tu, homem, porque não procuras uma?

Frederico olhou o amigo demoradamente, fitou depois Júlia, agitado por sentimentos, por inenarráveis sensações que lhe pareciam incompreensíveis porque, na sua perturbação, não conseguia explicá-los, determinar-lhes a génese e o carácter. Por uma revelação fulminante, via nessa doce mulher uma imagem venerável e quási religiosa para que o seu respeito e o seu reconhecimento subiam. Reconhecimento de quê? Não o sabia.

―Tenho a certeza de que a não encontrava―respondeu êle. Não possuo o génio das descobertas.

―Não será isso egoísmo, Frederico?―interrogou Júlia.

―Egoísmo? V. Ex.a é injusta com um homem que resolveu sacrificar-se só a êle para não sacrificar os outros...

―Temos S. Francisco de Assis em nossa casa, Júlia!― afirmou Nuno, afagando distraídamente o rosto do filho... Mas, se déssemos uma volta pelo parque? A sombra, a amenidade do dia são convidativas. E temos palrado tanto, justos céus!

Entraram vagarosamente na solitude dos troncos e das folhagens onde corria uma fresquidão vitalizante, na tarde pesada e quente. Através dos ramos entrelaçados, num azul muito alto, flutuavam farrapos esparsos de nuvens. Por tôda a parte, sob a imensa abóbada de verdura, floriam cheirosos [56] arbustos que punham na suavidade da penumbra uma atenuada e bela nota colorida. Por vezes, roseiras, bracejando junto das árvores, trepavam às ramagens, enroscavam-se nelas, rompendo depois para o espaço livre em festões, em grinaldas, desenhando originais movimentos decorativos. Os seus aromas harmonizavam-se, fundiam-se num só aroma, que era excitante. No grande silêncio vespertino, apenas se ouvia o canto medroso das aves que fugiam, assustadas, da torreira do sol. Frederico e Nuno caminhavam ao lado de Júlia, emmudecidos para melhor sentirem e compreenderem a beleza envolvente. A criança palrava entre as rendas e as cambraias vaporosas; e uma bica de água, correndo perto dum maciço de cedros e plátanos enlaçando, casando os seus ramos, cantava e brilhava na fina paz vesperal.

―Isto é a delícia das delícias―disse, por fim, Frederico. Há muito tempo já que não me reconciliava tanto com a vida.

Enquanto êles se detinham numa clareira, reencetando a conversa, Júlia adiantou-se alguns passos, indo sentar-se num banco rústico de cortiça que ficava por baixo dum docel formado por mosqueteiras ainda em flor. Ao vento brando que passava, arripiando as fôlhas, um colorido e perfumado orvalho de pétalas desprendia-se do alto, tremendo como asas de borboletas, caindo sôbre Júlia e o filho. Ela ria, com um riso mais contente, ditosa pela idílica oferta que as trepadeiras faziam à sua gracilidade, á sua pureza feminina, ao seu amor de espôsa, à sua divina maternidade, e Nuno e Frederico admiravam êste espectáculo imprevisto.

[57] ―As flores, para serem justas, deviam-lhe essa homenagem, minha senhora―declarou o hóspede.

O chuveiro das pétalas continuava sempre, cobria duma geada aromática os cabelos de Júlia, o rosto da criança.

―As bôas fadas saùdam a princesa, sua afilhada, e o principe dilecto!―observou Nuno, enternecido. É como nos contos de Perrault, nas lendas doutras idades.

Por fim, Júlia levantou-se, tôda florida, com as faces rosadas por uma ponta de sangue mais vivo, enquanto Frederico a considerava, deslumbrado. Como era encantadora e linda, na verdade!... E outra vez louvou a felicidade de Nuno, do amigo fraterno, para quem o destino tinha sido propício e generoso, pondo no seu caminho, bem junto do seu coração, aquela mulher incomparável.

―Vou-me embora. Faz aqui frio. Tenho mêdo de que a criança se constipe―disse Júlia.

―Vai. Nós ainda por aqui nos conservaremos, filosofando. Quero iniciar Frederico na formosura da solidão!...―exclamou Nuno.



III


Os dias deslizavam serenos, para Frederico, no encanto da simplicidade campestre, no íntimo convívio de Júlia e de Nuno. Nenhuma imperfeição da vida dolorosa e amarga alterava a pacificação dum ambiente que se fazia mais doce à volta de tanta ventura humana. Ao contacto permanente das coisas e dos sentimentos puros, o coração de Frederico purificava-se tambêm, como se fôsse um pouco sua a felicidade dos outros. Vivia numa espécie de esquecimento, não se lembrava de ter sofrido moralmente, parecia-lhe que, na sua existência árida, no seu sentimento estéril, desabrochava, por fim, uma rara e ditosa flor. As faculdades emotivas subtilizavam-se nêle; as tristezas, os desesperos que o haviam atormentado em horas inquietas e febris, dissipavam-se na sua alma. Passava por uma funda renovação, penetrava-o uma fôrça estranha, formava-se-lhe na inteligência e na moral um novo princípio: e uma [60] prodigiosa multidão de sensações espontâneas, que não sabia interpretar, convertiam-se, para êle, num intenso fenómeno psicológico.

―Parece-me que vou renascendo, Nuno!― dizia Frederico ao antigo companheiro de estudos. A alegria que existe em tua casa comunica-se-me tambêm aos nervos, à sensibilidade. E é curioso! A minha confiança no futuro, uma confiança que nunca foi grande, aumenta agora sucessivamente. Porquê? Porquê? Que elemento operou êste milagre estupendo?

―É porque só agora desperta em ti a capacidade mental para a compreensão das coisas belas―afirmava Nuno, zombando. O sêr pensante anda inconscientemente perdido no turbilhão do mundo, até ao momento singular em que acorda para a verdade. Tu nunca leste o drama de Ibsen:―«Quando dentre os mortos nós ressuscitarmos»?

―Nunca li êsse nebuloso escandinavo, na realidade...

―Fizeste mal, porque Ibsen ensina-nos a analisarmo-nos com lucidez... Eras um morto. Começas a ressuscitar. E olha que é dêstes bons ares, desta claridade puríssima, da paz rústica, da singeleza que nos rodeia.

Frederico, em momentos de solitude, concentrava-se, para melhor observar o seu caso, que era bizarro: e tinha a impressão de que convalescia duma doença de espírito e de corpo. Nesta convalescença, surpreendia-o um facto enigmático. Com efeito, alvorecia nêle um encanto desconhecido que o absorvia todo, que o exaltava e lhe perturbava os sentidos. Levantava-se cedo, quando ainda a casa dormia na [61] frescura da luz, na ternura matinal, tomava o seu banho bem frio, que o tonificava, descia ao jardim que o orvalho nocturno tornava mais viçoso, passeava nas ruas, fumando, entregando-se ao prazer contemplativo, parando ingénuamente junto dos arbustos floridos. Depois, Nuno levantava-se tambêm, vinha ao seu encontro, ambos encetavam uma animada palestra, que se demorava pelos inefáveis recantos de sombra―por onde circulava um ar estimulante e ligeiro―até ao almôço. Perto de Júlia Frederico principiava a sobressaltar-se, experimentava uma ansiedade confusa que o angustiava. Nem sequer pretendia investigar a origem dêsse sobressalto, por temer que dentro dêle se fizesse uma revelação assustadora e terrível... Via-a andar dum lado para o outro, nas ocupações caseiras, tôda sorridente e natural. A luz difusa imprimia-lhe mais nitidez e destaque às linhas plásticas, dava uma irradiação maior à sua beleza de mulher completamente formada. À mesa, sentada em frente dêle, perto de Nuno, os seus olhos pensativos, iluminando-lhe o rosto, pousavam, por vezes, sôbre Frederico, que se sentia feliz sob aquela muda carícia em que nada de impuro existia: e o tempo ia fugindo, leve e animado, sem deixar resíduos de fadiga.

Nas horas de solidão e de calor, Nuno, cansado, recolhia-se ao quarto para dormir a sésta: e Frederico, pegando num livro, que escolhia na pequena biblioteca do amigo, ou num jornal, dirigia-se ao parque, indo sentar-se no banco de cortiça, sob a mosqueteira que, na tarde da sua chegada, peneirara uma chuva colorida de florações sôbre Júlia e sôbre o filho: e ali, fazendo esforços para recordar-se, [62] evocava com saùdade um passado que já ia muito longe, quando a sua existência era inconsiderada e o seu pensamento não tinha inquietações. Na solidão, no isolamento, estudava-se. Fôra sempre um afectivo, por necessidades de temperamento, talvez por vícios de educação: e, justamente, essa afectividade levara-o outrora para as aventuras de amor, em que procurava o infinito para a sêde ardente que o devorava e em que sempre encontrou o desengano, a desilusão, o aborrecimento, o desgôsto. Certas imagens femininas que mais forte impressão lhe tinham produzido, despertavam um momento nas suas recordações. Lembrava-se, sobretudo, de Adelaide, uma pobre e linda costureira por quem se apaixonara e com quem fez um idílio saboroso que durou seis meses. O alvorôço com que para ela fôra impelido, como se essa mulher pudesse oferecer-lhe a verdade nos seus beijos!... Mas, sossegada a animalidade dum sensualismo grosseiro, apaziguada a febre carnal, viu que se havia iludido, mais uma vez, e que a crédula rapariga que nêle confiara, entregando-se-lhe, nenhum gôzo emotivo e intelectual lhe daria para assim prolongar uma voluptuosidade que a posse arrefeceu.

Nuno reconhecera êste seu romance, tinha-o mesmo reprovado, dizendo-lhe que êle andava a gastar, em caprichos banais da fantasia e da luxúria, e em desvairamentos românticos, a reserva de energia sensitiva de que precisaria mais tarde para uma adoração séria que lhe enchesse tôda a vida, que o transfigurasse. Só depois, quando o desalento surgiu―e com êle o cansaço, o enfado, a saciedade―Frederico verificara que Nuno estava na razão... Que [63] seria feito de Adelaide? Em que lamaçais profundos teria caído? Por que despenhadeiros a iria conduzindo a mão implacável do destino? Frederico, na noite em que decidiu separar-se dela―uma noite tempestuosa que decorreu entre lágrimas e lamentações―deixara-lhe sôbre a roupa desfeita do leito uma carteira com dinheiro. Fôra a sua primeira acção vil, porque nenhum ouro pagaria a felicidade para sempre destruida duma alma que era virginal quando o seu egoísmo a encontrou; mas, nesse procedimento, reprovável de-certo, guiara-o ainda a generosidade. Parecia-lhe que um punhado de notas de Banco atenuaria o seu abominável feito―e só agora reconhecia o seu êrro e a sua ignomínia...

Com o livro ou o jornal, que não lia, abertos sôbre o joelho, scismando ininterruptamente, seguindo com os olhos vagos as espirais de fumo do charuto, que se esgarçavam e ascendiam na atmosfera luminosa, Frederico, durante longas horas, revivia os seus fantasmas inertes e experimentava a sensação dum pêso contínuo que o esmagava, que esmagava tôda a sua vida. Oh! a bela quimera dum amor eterno, conservando sempre a mesma intensidade, a mesma fôrça superior de atracção, uma fonte inexaurível de sentimento, uma novidade que jàmais, jàmais, se banalizasse para os corações que fizesse palpitar! Existia êle, na verdade? Ou não seria mais do que uma mentira entre o acervo de mentiras de que o mundo estava cheio e que os homens criavam conscientemente para se iludirem a si próprios?...

Mas, quando o seu scepticismo era mais devastador, o exemplo da união feliz de Júlia e de Nuno [64] surgia-lhe como a imagem tangível dêsse amor de que duvidava. Então, para explicar a contradição que lhe exacerbava o sofrimento, construía teorias originais.

―O que há é almas completas e almas incompletas. Umas, possuem uma finura sensível que as torna perfeitamente aptas para a vida amorosa. Outras não teem uma receptividade que as faça vibrar sob as influências dessa vida, e daí deriva todo o mal, que vai espalhando nas sociedades a funda melancolia contemporânea. A alma de Nuno pertence às primeiras...

De resto, Frederico entendia que as verdadeiras mulheres são as admiráveis educadoras do sentimento, as inspiradoras sublimes de tudo o que pode fazer os homens grandes dentro do lar. Júlia era uma dessas mulheres excelsas, pelas graças do corpo e pelas graças mais puras e elevadas do espírito: e a ventura de Nuno provinha de êle a ter encontrado no seu caminho. Por sua parte, em vão buscaria uma criatura assim, que fôsse a companheira ideal e perpétuamente desejada, a amante incomparável, a espôsa atenta, a mãe solícita! Com ela, a sua existência improdutiva entraria numa fase diversa e activa, numa realidade que nunca se extinguisse...

Lembrando-se insistentemente de Júlia, Frederico era assaltado por um sentimento curioso. Tinha a sensação especial de estar encerrado num círculo muito estreito, em que nada havia de claro, de definido, de preciso. Tôdas as impressões da natureza exterior passavam por êle, velozmente, sem lhe provocarem uma simpatia mais demorada. Apenas [65] lhe ficava, na intimidade moral, a noção profunda do seu próprio isolamento, entre a vastidão e o tumulto das aspirações indecifráveis. Sofria essa fascinação estranha que um desejo veemente―que se não abandona, porque o abandôno excitaria o padecimento, e se não procura realizar tambêm, porque a realização teria conseqùências funestas―produz nas almas!... Por cima da sua cabeça, a mosqueteira, ramalhando ao vento, sacudia os seus cachos aromáticos que se desfolhavam numa nuvem loura; ao seu lado, a fonte, correndo no jôrro faíscante da água entre musgos verdes e veludosos, cantava sempre, exalando-se em frescura e murmúrio. Frederico, extenuado de imaginação pelas suas infindáveis rêveries, erguia-se, fechava o livro inútil, o jornal mais inútil ainda, e recomeçava o passeio por entre os arvoredos, por entre os canteiros de flores, onde umas abelhas, tam douradas como as do Hymeto, procuravam o mel. Nuno, às vezes com os olhos inchados de sono, uma preguiça que lhe comunicava lassidão, um pouco còrado, descia ao jardim, perguntava-lhe:

―Em que passaste o tempo?

―Meditando, sentado num banco do parque―respondia Frederico.

―Procuras, como S. Bruno, os logares solitários para pensares nas felicidades do céu?

―Homem, ando a tratar da minha conversão e S. Bruno, efectivamente, é um modêlo desejável.

―E se fizéssemos uma jornada mais larga, por êsses campos, por essas amplidões? Júlia podia ir tambêm...

[66] ―Acho o teu alvitre muito digno de ser aceito.

Iam acima chamar Júlia, calçar luvas que lhes resguardassem as mãos dos bafos da soalheira e do pó cáustico dos caminhos, e na suavidade maravilhosa da tarde, rindo, conversando, sensíveis ao mais fugidio eflúvio do ar ambiente, metiam pelos atalhos escorregando por entre sébes que as madre-silvas perfumavam, por azinhagas onde havia repouso e penumbra, por congostas que os ervaçais reverdeciam. A essa hora do dia, no delíquio da luz que principiava, tudo era gracioso, jovial. Dos casais disseminados pelas terras cultivadas, subiam colunas delgadas e direitas dum fumo branco, que algodoava o espaço. Nas eiras secava o milho, que lembrava pequeninas bolhas de sol cristalizado. Errantes, nas pastagens, os bois erguiam um instante a cabeça, para os ver passar, fitando-os com uns grandes olhos de infinita melancolia. Júlia que marchava à frente, na elegância dum vestido de tecidos leves que lhe modelava puramente as formas corpóreas, assustava-se, tinha mêdo, soltava pequeninos gritos, acolhia-se à protecção de ambos. A palha do seu chapéu em que, entre laços de veludo negro, destacava a côr sugestiva de pálidas rosas de toucar, fazia-lhe uma sombra doce no rosto adorável. Nuno animava-a:

―Que mulher! Que criança! Tem mêdo dos bois, que são tam mansos. Oh! tôla! Olha que não fazem mal!...

Frederico ria-se e achava-a encantadora.

Cortavam através das pradarias, das lezírias, das veigas, ao acaso, sem fim. Às roupas de Júlia prendiam-se os perfumes dos fenos atravessados, que [67] as suas saias roçavam, as seivas vitalizadoras das ervas esmagadas. Sentiam uma grande e nobre pacificação interior. O gôzo íntimo emmudecia-os.

―Hein, Frederico? Como isto é diferente da cidade! Era preciso que conhecesses a aldeia, homem. A aldeia é a verdade―dizia Nuno, entusiasmado.

Frederico não conhecia a aldeia, com efeito, e nunca imaginara, vendo-a através das janelas de combóios lançados a tôda a velocidade, que pudesse seduzir sêres civilizados; mas, eis que ela se lhe revelava, totalmente, por uma feição atraente, que o cativava. Louvava, com sinceras palavras, a fertilidade dos extensos domínios, que são o Calvário da gente humilde e que a sua dor, o seu suor, a sua miséria, fecundam; as casas dos camponeses, duma arquitectura rudimentar; os milheirais de longas fôlhas já sêcas, ondulando e rangendo à aragem; a paìsagem que a luz, fulva e rutilante, espiritualizava, transmitindo-lhe animação, uma vida quáse supersticiosa, insuflando-lhe uma alma. De quando em quando, Júlia, batendo as palmas de contente, detinha-se para observar de perto as trepadeiras silvestres que se cobriam de florescências cheirosas, e as suas mãos, que eram tam lindas, tinham delicadezas extrêmas ao tocarem nas folhagens, nas corolas rescendentes.

―Veja que beleza, Frederico!―convidava ela.

E fazia um ramo que prendia, com alfinetes, na blusa de sêda―uma sêda transparente que o tom sadio e casto da sua carne rosava.

A cada momento deparavam vergeis em que os frutos apetitosos amadureciam. Nos ramos mais [68] altos, as maçãs còravam ao calor como faces humanas; as laranjas, no meio das fôlhas, redondas e amarelas―dum amarelo brilhante,―ofereciam-se às gulodices. A terra mostrava-se hospitaleira e generosa, e Frederico, já iniciado, sob o céu que tinha a meiguice dum amoroso olhar humano, compreendia, enfim, que essa terra, mãe piedosa e inexaurível, comunicasse às criaturas um pouco da sua bondade clemente, da sua energia vigorosa, inspirando-lhes uma regra justa da vida. Diante dos casebres pobres, Júlia, compadecida, parava, contemplando com piedade as crianças rotinhas e sujas que brincavam pelos portais e pousando-lhes os dedos sôbre as cabeças. Elas fitavam-na, espantadas, com um secreto temor no olhar.

―A vossa mãe?―perguntava.

―Não está cá―respondiam elas, com modos agressivos.

Dava-lhes moedas de cobre, amimava-as com essa ternura que só as mulheres felizes conhecem, enquanto Nuno, enojado da porcaria em que a gracilidade daquela infância murchava, dizia:

―Nas aldeias há, de-certo, muita pobreza, muita penúria. Mas tambêm há muito desleixo. Oh! senhores, uma tina de água transformaria em flores êstes pequeninos selvagens!

―Que queres tu, Nuno?―atalhava Júlia, condoída. As desgraçadas mães trabalham um dia inteiro e quando chegam a casa o que querem é repousar.

Vendo-a assim, luminosa, pura e branca no meio das meninices desditosas, Frederico tinha a visão deslumbrante duma aparição celeste baixando [69] do azul, num vôo brando, para consolar aflições, acolher no seu desamparo as plebes lacrimosas, sarar feridas, suavizar torturas: e cada vez a sua admiração por Júlia mais crescia. Nela tudo era perfeito, sedução, perfume, ritmo, claridade: e o encanto que derramava à sua volta penetrava-o até ao âmago da consciência. Pensando na sua beleza, na unção da sua bondade, abstraía-se por tal modo que até chegava a esquecer Nuno, marchando ao seu lado: e era-lhe necessário fazer um esfôrço violento para reentrar na realidade das coisas.

Nestes instantes, analisando-se, espavorido, perguntava a si próprio se não estaria interessando-se demasiadamente por essa mulher tam digna e tam cândida que, legítimamente, pertencia ao seu melhor, ao seu único amigo. No espírito passava-lhe confusamente a recordação doutros dias já extintos em que, entre êle e Nuno, se fôra consolidando uma camaradagem nunca interrompida; e, por isso mesmo, julgava que a fôrça secreta que o impelia para Júlia era uma traição... Uma traição? A esta ideia, ficava transido de terror e ansiosamente pretendia conhecer a essência da sua admiração, da sua simpatia, para ver se nelas surpreenderia qualquer coisa de impuro: mas, a análise minuciosa tranqùilizava-o. Não! Não existia nenhuma impureza no seu sentimento. Amava Júlia santamente, como amaria uma irmã mais nova.

―Em que diabo vais tu a matutar, Frederico?―interrogava Nuno, intrigado com a sua prolongada mudez.

―Eu? Em nada! A paz rural mergulha-me num estado psíquico de tal ordem que me torna [70] incapaz de sustentar uma conversa. Verdadeiramente, nem sei o que hei de dizer. Custa-me a articular os vocábulos, a construir as expressões.

Quando o crepúsculo, descendo progressivamente, idealizava as perspectívas e desdobrava sôbre arvoredos, sôbre outeiros, pelas encostas, pelos vales mais fundos, uma sombra e uma névoa que de instante para instante se adensavam e gradualmente escureciam, regressavam a casa, satisfeitos, reconciliados com a natureza que lhes ofertava alegrias, prazeres nunca experimentados. Júlia, pousando os ramos de flores silvestres, que sempre trazia das suas digressões pela campina, corria para o filho, já saùdosa da sua inocência, da sua formosura. Devorava-o com beijos, acariciava-o com meiguice, mostrava-o, orgulhosamente, a Nuno, que sorria enlevado, a Frederico, que a fitava num alheamento. Os stores subidos das janelas deixavam entrar os derradeiros fulgores da claridade expirante. Lentamente, o céu embranquecia. Longe, as linhas dos montes tinham enredamentos complicados que decompunham uma paìsagem quáse sem realidade, fantástica, cheia de vago e de mistério.

―E se tu tocasses alguma coisa antes do jantar, Júlia?―lembrava Nuno. Até nos abria o apetite...

―Pois sim! Que queres que eu toque? Prefere alguma composição, Frederico? Ou tem horror á música?

―Eu, minha senhora? Sou um guloso do som...

A delicadeza de Júl A delicadeza de Júlia, interrogando-o sôbre as suas preferências musicais, encantava-o. Não seria isto já uma correspondência da simpatia fraterna―oh! [71]simplesmente fraterna―que sentia por ela? A suposição alvoroçava-o.

―Que eu toco mal, muito mal. Não me julgue uma grande artista. Há dificuldades que nunca me foi possível vencer. Preciso que me escute com benevolência...

―Deixa falar, Frederico. É exímia, por exemplo, em Chopin―nos Nocturnos,―afirmava Nuno.

Júlia, protestando, sentava-se ao piano. O marfim das teclas reluzia ainda no fulgor indeciso da luz moribunda. O verniz dos móveis perdia o brilho. A sombra parecia prender-se molemente aos cortinados de renda, amontoar-se aos cantos: e um Nocturno soluçava, em harmonias, sob os dedos afusados de Júlia, em que as pedras dos aneis chamejavam fogos mortiços. Nuno e Frederico, sentados em poltronas de molas flácidas e embalados pelo afago da música, em que vozes ignoradas, vindas de muito longe, das mais recônditas regiões da alma, se lamentavam, narrando a tristeza das aspirações nunca alcançadas, os sonhos de amor traídos, as ilusões nunca realizadas, fechavam os olhos para mais se absorverem no segrêdo, no mistério espiritual dessa música divina que pouco a pouco, e por influxo da sua beleza, da sua potência expressional, da sua doçura penetrante, extinguia todos os azedumes, acalmava, pacificava as imaginações sobreexcitadas, era como que uma simbólica promessa de aspirações veementes que haviam de realizar-se e parecia conter em si o sentido oculto da graça de viver. Fóra, na noite silenciosa, a lua branca e enorme flutuava no céu, entornava o seu luar suave como uma carícia pelo jardim adormecido, sôbre as ramagens dos [72] arvoredos imóveis do parque, alongava as formas, transmitia às coisas inertes quáse que uma emoção.

Na cozinha, em baixo, a vélha Margarida terminava o jantar. O clarão vermelho do lume, que ardia no fogão, irradiava, reflectia-se em cheio nos cobres e nos metais, que resplandeciam, enquanto dois belos gatos ingleses, cinzentos e listrados de negro, ronronavam ao calor, enrodilhados debaixo duma mesa. Depois, o piano calava-se, numa derradeira vibração de som: e na tranqùilidade que envolvia a vivenda, a sineta retinia, anunciando festivamente a refeição, que se prolongava até tarde, entre as conversas.

Muitas vezes, se o tempo corria brandamente e a temperatura convidava, Frederico e Nuno baixavam ao jardim, fumando e palestrando, ou, com Júlia, iam sentar-se à varanda, entre as avencas, os fétos arbóreos, as begónias, contemplando a scenografia nocturna, que era surpreendente. Os campos solitários, sob o fulgor do luar, repousavam sem um sussurro. Um lento nevoeiro elevava-se para o alto como uma ténue nuvem de algodão, esfumando a paisagem. Os casais adormeciam na efusão luminosa, extenuados da lide diurna. A paz que caía sôbre a natureza, como uma bênção de Deus, era infinita e inexprimível. De instante a instante, a aragem desprendia das frondes fôlhas mortas que baixavam vagarosamente, quáse imperceptíveis, que se demoravam um momento, no ar, trémulas, hesitantes como asas de falenas. No seu recolhimento, Júlia dizia, em voz baixa, para não perturbar o enlêvo contemplativo em que os três se abismavam:

[73] ―Admirável! Admirável! Só o campo ainda pode oferecer êstes espectáculos aos que veem do ruído, da barafunda das cidades!...

O timbre da sua voz, que era muito puro, mais encanto imprimia ao êxtase do Frederico, sentindo que alguêm muito suavemente lhe falava à alma para revelar-lhe sensações nunca experimentadas...





Nessa manhã, Júlia, que estivera tocando a Sonata Patética, de Beethoven, descansava ainda os dedos fatigados sôbre as teclas, enquanto Nuno e Frederico, encostados ao peitoril da janela, espreitavam o parque. Uma criada entrou, de repente, na sala, com o correio. Eram cartas e jornais, de que êles logo se apoderaram para conhecerem o que a cidade, pela sua imprensa ou pelas suas epístolas, lhes revelaria de mais importante. Em face da pressa com que ambos correram para a correspondência, Júlia riu saborosamente, comentando:

―As grandes aglomerações hão de ser eternamente tentadoras para os que um dia habitaram a sua perigosa confusão.

―Porquê?―interrogou Nuno.

―Ora! Ainda perguntas! A ansiedade com que todos os dias esperas o correio! E dizes que te agradaria ficar aqui, para sempre...

―Viva! Viva!... Sim, senhor!―bradou Frederico, de súbito, concluindo a leitura duma carta.

―Que é, homem?

―Pois, é uma coisa estupenda. Nem podem imaginar!...

[74] ―Entrou a revolução no Vaticano? Foi proclamada a monarquia na Suíça?

―Santo Deus, não. Êsses factos consideráveis não me causariam surprêsa, porque hão de dar-se àmanhã, daqui a um ano, a dois séculos... O caso é êste:―a Alice Tôrres fugiu ao marido.

―A Alice Tôrres? Quem diabo é essa Alice?―perguntou Nuno.

―Ora, tu conheces... A Alice, uma loura, casada há dois anos com o Fernando Tôrres, que foi nosso condiscípulo na Politécnica e que não concluiu o curso...

―Ah! sei, sei... Perfeitamente... Agora me lembro. E tu tambêm conheces, Júlia.

Voltaram-se ambos para ela, que ainda se conservava ao piano, muito còrada do pudor melindrado.

―Sim, eu conheço-a... É uma infeliz!

―Infeliz?... Não, o nome que ela merece é outro mais violento.

―Oh! Nuno! Jesus!...

―Queres, talvez, desculpá-la?

―Não! Lamento-a... O seu acto não tem desculpa, mais inspira compaixão.

―O que êle inspira, no meu entender, é bengaladas―atalhou Nuno, brutalmente.

―O que, porêm, torna mais reprovável esta fuga é que o homem que ela seguiu foi o Vaz de Sousa, o amigo íntimo, a inseparável sombra do marido―comentou Frederico.

―O que? Que porcaria é essa?―atalhou Nuno, com furor.

―Exactamente!... Com o Vaz de Sousa. Está [75] aqui a coisa com todos os pormenores, nesta carta que me escreve o Alfredo de Oliveira.

E, para dar às suas revelações um ar mais solene e verídico, Frederico leu alguns trechos menos escabrosos.

―Ouçam, que tem graça:―«O grande escândalo da semana forneceu-o a mulher do Fernando Tôrres, a scismadora dos olhos ideais, que se safou, com tôda a semcerimónia e todo o descaramento, com o Vaz de Sousa, visita permanente dêste curioso ninho conjugal. Simpatia romântica? Admiração pelo ôlho lúbrico e pela melena do amante? Não sei! Mas o palerma do marido―que nunca percebeu que os dois há muito conjugavam o verbo inglês To flirt―está como uma bicha. Há miopias fatais e a de Fernando foi uma delas... Aqui tens tu!...»

Nuno, muito sério e sombrio, cofiava o bigode, enquanto Frederico lia. Júlia, emmudecida, curvada mais sôbre o piano, batia nervosamente com a ponta da unha sôbre um caderno de músicas. O silêncio tornava-se angustiado e embaraçoso para os três.

―Que fará agora Fernando?―perguntou, finalmente, Frederico, levantando-se da cadeira em que estava sentado e dando alguns passos sôbre o tapête.

―Não faz nada!―replicou Nuno. É um imbecil e, alèm disso, é um grotesco. Ainda havemos de vê-lo, outra vez, muito amigo da mulher, depois de perdoar à Madalena arrependida. Coitado, tem bom coração, é inultrapassavelmente cómico e a sua dignidade é uma hipótese...

[76] ―Crédo, Nuno!―interveio Júlia. Pois, é lá possivel?

―Com êste idiota, tôdas as vergonhas são possíveis―afirmou sêcamente.

Ergueu-se tambêm, torceu o bigode com fúria e depois, de mãos nos bolsos, parando diante de Frederico:

―Se êle fôsse, na realidade, um homem, sabes o que fazia?

―Procurava uma solução violenta...

―Tu o disseste... Porque esta traição carecia dum castigo tremendo, exemplar, moralizador. Portanto, partia atrás dos fugitivos, com um bom punhal ou uma bôa pistola, corria até os encontrar, e, seguidamente, frio, implacável como a vingança, abatia-os a tiro como dois animais malfazejos e imundos, retalhava-lhes as carnes sórdidas à punhalada, molhando bem as mãos no sangue culpado, que escorresse das feridas, para se lavar...

Nuno falava apressadamente, com uma raiva concentrada nos olhos, que fulguravam. Júlia desconhecia-lhe aquela cólera que de súbito irrompera, costumada como estava a vê-lo sempre afável, sempre terno, cheio de delicadezas e de tolerâncias para tôdas as fraquezas humanas.

―Não há nada que mais me transtorne, que me perturbe até à loucura, do que uma deslealdade―explicou êle. E neste caso, Frederico, há deslealdade e há vileza. O coração humano tem abismos de infâmia insondáveis...

Júlia levantou-se, pensativa e atribulada. Pensava na doida que um engano de amor fazia desertar do lar, para perseguir aventuras ilusórias, obrigando-a [77] a romper com o respeito e a consideração da gente honesta, com as convenções sociais, a cobrir-se de lama, a preparar por suas próprias mãos um destino que seria doloroso e cruel. Tinha-a conhecido no colégio, outrora, na mocidade, fôra mesmo amiga dela até ao momento em que a vida as separara. E compadecida com aquele desvairamento, encontrava na sua bondade e na sua pureza um sentimento para atenuar a sua culpa.

―Vais-te?―inquiriu Nuno.

―Tenho tanto que fazer, filho!―respondeu ela.

Nuno e Frederico ficaram sós, no salão que a luz, entrando pelas vidraças descidas, alegrava. Sentaram-se em frente um do outro, reatando a conversa momentâneamente interrompida.

―Ela era uma cabeça no ar―dizia Frederico. E o ludibriado não valia mais do que a mulher.

―Todos os maridos―retorquiu Nuno com rancor―teem as mulheres que merecem; e êsse Fernandete, já depois de casado, continuava uma existência de devassidões. Ora, o casamento é um acto de responsabilidade que deve confinar-se na fidelidade mútua dos cônjuges. Fóra dêstes limites de dignidade e de nobreza, transforma-se numa miséria. Mas o que me indigna não é a fuga da adúltera. Caso banal... Ocorre constantemente... E muitas vezes, mesmo, pode até justificar-se.

―Então que é?

―Mais desprezível do que Alice e do que Fernando é êsse Vaz de Sousa, abusando duma estreita amizade e da entrada num lar que o recebia confiadamente, [78]para praticar as suas odiosas façanhas...

―Sim, com efeito!...―aprovou Frederico.

―É reles, é dissolvente de tôda a moral.

E puxando mais a sua cadeira para junto do amigo, para que só êle o ouvisse nas confidências que ia fazer-lhe, Nuno continuou:

―O primeiro dever do homem justo é saber defender integralmente a sinceridade dos seus afectos―porque para isso pensa―e saber dominar o impulso das suas paixões bestiais―porque para isso difere dos brutos e tem uma consciência. Posso falar assim, porque já tive de repelir ásperamente dos braços a espôsa dum conhecido―um simples conhecido, nota!―que por fôrça queria enxovalhar o marido comigo.

―E quem era essa interessante dama?

―Perdoa-me. Não to digo―afirmou Nuno com energia.

―Desculpa-me... A minha curiosidade é, na verdade, irreflectida...

―Foi no último ano do nosso curso... Nunca te falei nisto, por dignidade, porque me rebaixaria. Há coisas que sujam... Mas, o mais pitoresco é que êsse marido e essa dama se transformaram, mais tarde, em meus inimigos irreconciliáveis!... Não é encantador?... Embora! Ainda hoje me louvo por esta acção, que é uma das mais belas da minha vida, Frederico!...

―Efectivamente, há beleza, há coragem, há heroísmo nela. Só conheço um acontecimento semelhante na História Sagrada―riu Frederico.

―Tu, que és justo e que és leal, vê isto:―Mete [79]a gente, ingénuamente, na sua casa um homem que nos merece a maior confiança, para quem vai a nossa dedicação, tôda a nossa afectividade. E desde o primeiro dia em que lá entra, êsse homem, êsse amigo certo, começa a observar que a nossa espôsa é bonita e apetitosa, que deve ser tentador o sabor dos seus beijos e doce a palpitação da sua ternura. Como goza de favores que só se concedem às pessoas que verdadeiramente se estimam, há para êle as maiores deferências. Surgem as ocasiões propícias à traição, veem as intimidades, as fraquezas da mulher confiante. Diz-se-lhe uma palavra mais ousada, que lhe melindra a candura, mas que a não faz protestar. A sua passividade dá coragem ao sedutor para levar mais longe a audácia. Depois, ambos cúmplices no crime premeditado, encontram nêle solicitações cada vez mais fortes. São os sustos perto do marido que se engana abominávelmente, a suspeita de que êle venha a descobrir tudo e se vingue, os olhares medrosos que se trocam. Por fim, chega-se à quéda irremediável, a maior injúria com que se pode humilhar uma criatura. E de quem parte essa injúria? Duma pessoa indiferente ao nosso sentimento, alheia aos nossos interêsses morais, à nossa alma? De modo algum! Parte dum amigo!...

―É horrivel, na verdade!―asseverou Frederico.

―É pavoroso!

―Mas, sabes o que eu ainda não consegui entender bem, Nuno? Pois, é isto. Nos casos de adultério em que a mulher prevarica, as ironias insultantes da multidão vão para o marido. Para a prevaricadora existem a piedade e a absolvição!...

[80] ―Iniquidades sociais. A turba-multa é sempre impulsiva, injusta, não raciocina, não procura ser equitativa nos seus juízos... Mas, por isso mesmo, os traídos teem de desafrontar-se com a maior ferocidade. Eu, no logar de Fernando, matava-os! Matava-os, trucidava-os, despedaçava-os como bêstas feras!...―concluiu Nuno, rilhando os dentes de furor.

Júlia, surgindo imprevistamente, veio surpreendê-los ainda no comentário fatigante daquele escândalo clamoroso, que punha uma sombra mais negra na fisionomia de Nuno e que não deixava expandir livremente a jovialidade de Frederico.

―Então, aqui fechados, com um dia que é uma delícia, um verdadeiro dia de rosas?―exclamou ela, com uma extraordinária animação no rosto.

―Tens razão! Êsse animal do Tôrres, com as suas infelicidades caseiras, veio estragar a nossa paz de espírito―murmurou Nuno. Queres ir até lá abaixo, ao fundo da quinta, onde trago obras importantes na habitação do caseiro, Frederico? É uma diversão que nos há de fazer bem!...

―Não! Se mo permites, aproveito o tempo para pôr em ordem uma correspondência atrasada e desordenada. Olha que estou aqui, na tua hospitaleira vivenda, há duas semanas e ainda não respondi a ninguêm! Quem sabe se me julgarão morto ou exilado?

―Bem! Então vou eu. Cumpre os teus deveres de bisbilhotice.

―E eu acompanho-te, Nuno―acudiu Júlia.

―Tu? Mas é admirável a companhia. O príncipe e a princesa passarão as horas fazendo le tour [81] du proprietaire e oferecendo-se à veneração dos seus súbditos, dos seus vassalos, dos seus escravos... Então, de-pressa! Vem daí.

―Ando há tanto tempo para ir ver essa pobre gente, essa entrevada de quem me falaste, essas crianças desgraçadas...―disse Júlia, comovida.

Au revoir, Frederico. E sê prolixo, homem... Olha...

Curvou-se ao ouvido do amigo, murmurou qualquer coisa que Júlia não pôde perceber, e riram ambos com alacridade. Descendo a escada, atrás da espôsa, Nuno ainda ria, jovialmente, enquanto Frederico se encerrava no escritório, diante dum tinteiro, de cadernos de papel de cartas e duma jarra com rosas frescas que Júlia tôdas as manhãs renovava para que ali houvesse continuamente graça, côr e perfume.

Sôbre a escrivaninha de pau preto com ferragens amarelas e polidas que refulgiam, brilhavam no banho fluido da claridade envolvente, havia um soberbo retrato de Júlia, representando-a vestida de baile, em corpo inteiro. A sua beleza, a-pesar-de morta na fotografia, tinira uma pureza de linhas, uma opulência de contornos, um relêvo, um esplendor indizíveis. O decote deixava a descoberto o princípio do seio, que era redondo e farto; o pescoço, desafogado da espuma das rendas, exibia uma elegância e uma nitidez impecável de modelação, tendo a gracilidade e o movimento de certos caules de flores, ondulando à aragem. Uma expressão de felicidade sem nuvens animava todo o seu rosto; e uma grande rosa prendia-se à corsage. Frederico esteve contemplando o retrato um instante, perdido em vagas meditações. Como ela [82] era graciosa e divina, efectivamente! Os seus olhos tinham um encanto virginal ainda―um encanto que as lágrimas não haviam queimado. De tôda ela se exalavam, imperceptivelmente, a castidade, a sedução, a ternura. A casa estava impregnada da sua personalidade, da sua virtude, do seu enlêvo. Júlia era a bôa deusa familiar que enchia, com a sua alma, com a sua dedicação de mulher, com a sua abnegação, com o reflexo da sua formosura, aquela habitação em que um amor tam nobre vivia e se esquecia dos males da existência. E Frederico via-a sorrir ao lado de Nuno, mais presa do que nunca à sua paixão, suavizando-lhe os dias, acalmando-lhe as inquietações, assistindo à formação das suas vontades, dos seus desejos, das suas ideias, para imediatamente obedecer-lhe, oferecendo-lhe a bôca num beijo. Experimentava uma inexprimível consolação interior, pensando nela...

Ao mesmo tempo, e sem saber porquê, acudia-lhe à memória a cólera tempestuosa de Nuno, quando soube da fuga da mulher de Fernando Tôrres com o outro―uma cólera que se adensava no olhar, que ardia, que coriscava, que chamejava... Os dois amantes iriam agora, entregues ao ardor da sua volúpia pecaminosa, impura, talvez para as cidades estrangeiras onde melhor pudessem ocultar-se, na embriaguez dum gôzo que dura apenas um fugaz minuto e com que a desgraça fabrica a dor, que é eterna. Mas ao menos, considerava Frederico, seriam felizes. A si mesmo perguntava se êsse minuto, de que restaria uma perdurável recordação, não constituirá a felicidade duma vida, de duas vidas inteiras...

Para fugir ao curso mórbido das suas lucubrações, [83]Frederico levantou-se, aproximou-se da janela, na ponta dos pés, como se temesse que o sentissem. Na radiação loura da manhã, uma alegria esparsa flutuava sôbre as coisas. De baixo, do jardim, subia um arôma adocicado. Nuno e a espôsa, de braço dado como dois namorados, afastavam-se ao longe, através dos arvoredos do parque. Por entre os troncos musgosos alvejava a brancura do vestido de Júlia―brancura que ficava pairando no ar macio... Frederico voltou a sentar-se. Uma grande, confusa tristeza abatia-se sôbre o seu coração...



IV


As primeiras manhãs de setembro tinham chegado. Emigravam as andorinhas e as rôlas bravas e no ar luminoso errava a melancolia vaga dum outono próximo. Grandes nortadas sopravam rijamente, levando através do espaço densas nuvens de poeira. Pelos arvoredos do parque, na meia tinta de luz, amareleciam as folhagens: e os crepúsculos, tendo ainda, no horizonte, reverbarações imensas, eram já um pouco húmidos. Havia, por vezes, céus brumosos que davam indeterminados longes á paisagem, tocando-a de lentos nevoeiros.

Durante todo o tempo que Frederico passara na quinta afastado da variedade e dos tumultos da vida citadina, estabelecera-se entre êle e Júlia uma estreita intimidade afectiva que mais gratas tornava as horas doces que de contínuo fugiam. Nuno andava inteiramente ocupado com as alterações [86] a que mandara proceder nas dependências habitadas pelo caseiro, para que nelas houvesse mais confôrto e mais higiene. Interessava-o, afinal, o pobre cavador que envelhecera precocemente, nas dolorosas labutas da terra, vendo crescer à sua volta outras vidas louras, frescas e inocentes, tambêm condenadas â escravidão da gleba, e enchera-o de piedade a miséria da entrevada que no seu leito, escasso de roupas, tinha um riso de resignação, absolutamente conformada com o destino. Mesmo enfêrma, enquanto o homem, o bom Mateus, se extenuava de sol a sol, segurando entre as mãos calejadas e firmes a rabiça do arado que rasgava o seio da leiva, para fertilizá-la, ou espalhando no húmus revolvido as fecundas sementes que germinariam nas abundantes searas, remendava as roupas e dirigia o ménage.

―A-pesar-de doentinha―dizia uma vez o caseiro a Nuno―ainda é uma ajuda. Deus ma conserve mesmo assim, porque se morresse fazia-me grande falta...

De quando em quando Nuno, comovido, abria vagarosamente a porta cerrada, para a ver, para lhe falar. Júlia, com a sua bondade, melhorara muito a sorte da paralítica, rodeando-a de bem-estar, mandando-lhe todos os dias um alimento mais apetitoso e nutritivo: e ela, grata a estas delicadezas, não se cansava de louvar, nas suas orações ardentes, os bons senhores que ao seu lar desditoso haviam levado uma clara luz de alegria.

―Então, como vai hoje, snr.a Teresa? Melhorsinha, não é assim?―perguntava-lhe Nuno.

―Para aqui estou à espera da minha hora! Pois, como hei de estar, se é esta a vontade de Deus?... [87] E curtidinha de padecimentos!―respondia ela, com um fundo suspiro.

Mas logo, no seu rosto macerado e pálido se iluminava a claridade dum sorriso.

―E a senhora e o menino?―interrogava a doente.

―Estão esplèndidos. Não há mal que lhes chegue, neste paraíso. Êles qualquer dia por aí voltam a aparecer.

―Ai! Deus os guie, que bem o merecem!...

Nuno, que não queria que à roda da sua felicidade existisse gente desgraçada, ordenou a construção duma casa nova ao lado da primitiva―que se esboroava de vetustez e que vinha dos tempos longínquos em que os seus antepassados tinham adquirido aquela propriedade que constituía a parte mais vasta dos seus domínios territoriais. Alargara os estábulos para o gado, dera maior amplitude ao alpendre e à eira e procurara longe, na encosta dos montes que ficavam ao fundo da quinta, um mais farto veio de água de rega, canalizando-o, com argamassa e pedra, para as terras alugadas ao tio Mateus, que resplandecia de contentamento e que murmurava, com a face jubilosa e enrugada em que as barbas crespas encaneciam:

―Isto é o poder do mundo! As colheitas futuras hão de encher-me celeiros e tulhas!...

―Está contente?―inquiria Nuno.

―Ora! se estou contente!... Pois, o patrão faz um milagre destes e ainda me baixa a renda! Que hei de querer mais?

O caseiro, na sua gratidão, comparava a generosidade do amo com a secura do procurador, um [88] unhas de fome que nunca lhe atendia as mínimas reclamações, que nem sequer lhe mandava concertar o telhado por onde, nos invernos agrestes, entrava a água das chuvas, e que, nos anos hostis, não lhe perdoava um ceitil.

―Se quereis conhecer o vilão metei-lhe a vara na mão―dizia o tio Mateus, lembrando-se dêsse homem de expressão dura e coração empedernido que um mês antes do pagamento do aluguer, o procurava, exclamando:

―Olhe que é daqui a trinta dias. Previno-o, para que não venha depois com desculpas.

Agora, mercê da magnanimidade de Nuno, a esperança renascia na alma do lutador destroçado que, durante uma longa existência, em vão se afadigara para que nas suas arcas o pão fôsse mais farto e que a vida amarga vencera, acabrunhando-o de tristeza. E êsse renascimento palpitava por tôda a parte, nos vergeis, nas hortas, que eram mais viçosas, nos espíritos humildes, que adquiriam maior confiança!

Entregue ao entusiasmo das suas ocupações de proprietário rural, Nuno, em certas manhãs, abalava logo depois de almôço, de charuto aceso e uma côr de saúde na face máscula, para vigiar os trabalhos. Esta actividade nova tinha para êle um grato sabor. A princípio, Frederico acompanhava-o, interessando-se tambêm por uma lide que desconhecia. Depois, porém, enfadou-se: e, sempre que o amigo o convidava para ir até ao fim da quinta, êsse enfado acentuava-se, reflectindo-se-lhe no rosto desconsolado. Acabou por desculpar-se, dizendo-lhe:

[89] ―Não! Eu fico, se a minha companhia te não é indispensável.

―Pois fica, homem. Fica e dorme!

―Eis um ideal que me encanta, Nuno. Sempre tive as melhores disposições para o sono.

Então, Frederico, penetrado pela quebreira que amolecia o ar, descia ao parque, escolhia um recanto de sombra e lá se demorava lendo um romance ou evocando as suas recordações e pensando no caso passional que o trazia inquieto. O calor, a irradiação crua do sol, faziam pesar mais o silêncio. A atmosfera resplandecia, tinha uma vibração especial no esplendor matutino da claridade. Até ao seu isolamento chegavam o chiar dos carros de bois, vergando sob a carga e atravessando os caminhos desertos, a cantiga idílica dum pastor distante, o sussurro das folhagens estremecendo ao vento, sôbre a sua cabeça. Em certos instantes, repousando das fadigas caseiras, Júlia, ao piano, tocava uma página musical que embalava suavemente a solitude. O sol saía em ondas pelas janelas abertas aos eflúvios do jardim―e a música, nesta solidão inspiradora, adquiria maior sedução e beleza. Frederico, pousando o romance, analisava o estado particular dos seus nervos. Uma grande, inexplicável lassidão prostrava-o. Sentia-se incapaz dum mais vivo esfôrço de reflexão, dum metódico exame da sua sensibilidade. Parecia-lhe que estava fóra da sua personalidade psíquica: a realidade exterior produzia-lhe uma bizarra alucinação que o transtornava; mas, neste sobressalto intimo havia, alternadamente, certos fulgores de pensamento, relâmpagos de inteligência, que lhe aumentavam a angústia e a opressão interior. [90]Um elemento estranho, tendo qualquer coisa de violento, de obscuro e de nítido, conjuntamente, invadia-o e perturbava-o. A imagem de Júlia acudia-lhe, sem repouso, à imaginação―e notava que essa imagem era muito diferente da mulher que êle conhecia, da espôsa encantadora e virtuosa de Nuno, Atribuía êste fenómeno desconcertante a uma singularidade do seu organismo enfêrmo. Monologava, atribulado:

―Eu estarei doente, na verdade? Doente de espírito e de corpo?

Como os dias que ia vivendo, no meio duma confusão e duma agitação que lhe não davam tréguas, eram diversos dos que, dois meses antes, tinha passado naquele refúgio em que Nuno se abrigara com a sua ventura conjugal imensa! Então, tudo era paz, enlêvo, serenidade no seu coração, lucidez no seu cérebro. Compreendia mais fácilmente o espectáculo que o cercava; era mais acessível à bondade e à beleza; convalescia, sarava, uma esperança floria no seu scepticismo, e o calor dos afectos experimentados fundia dentro de si tôda a frieza e todo o egoísmo. E agora, não! A tranquilidade emotiva dos primeiros dias perdera-se completamente. Um agente mórbido, qualquer provocava nêle, de-certo, alterações profundas, transformava-o num sêr humano que o seu próprio sentido ignorava. Que doença seria essa? Física ou espiritual? E se fôsse espiritual, proviria da influência duma luz súbita, revelando aos seus olhos uma felicidade possível, ou da suspeita duma dor inevitavel? Frederico fazia estas interrogações a si próprio, sem encontrar uma resposta que o esclarecesse. No entanto, observando-se [91]minuciosamente, era ditoso pensando em Júlia―e êste sentimento, ao mesmo tempo que o iluminava interiormente, gelava-o de terror, como se representasse um perigo imediato, uma catástrofe de que não pudesse já desviar-se. Ela era a companheira purificada e terna de Nuno, via-a ao lado do marido imersa na ventura que êle lhe oferecia, como uma flor imersa em aroma, surpreendia-os a cada passo beijando-se com transporte, apertando-se no mesmo abraço, peito contra peito, face contra face, para mais intensamente sentirem a pulsação dos corações. Frederico, absorvendo-se em ideias de que não conseguia emancipar-se e que eram a sua permanente obsessão, em sensações que o não abandonavam, ao estudar a sua psicologia com pavor de chegar a alguma conclusão que o aterrasse, murmurava, para se iludir:

―Verdadeiramente, não a amo com um amor físico. Sou-lhe apenas grato pelo encanto que me transmite e devo-lhe um reconhecimento moral a que não quero fugir.

Concentrando-se, calculava as consequências que uma adoração menos pura por Júlia provocaria fatalmente. Via-se perto de Nuno, escondendo, como um remorso ou como um crime, essa adoração que nunca revelaria e que lhe roeria a alma como os vermes roem os frutos podres, quando êle, com uma lealdade que se lhe espelhasse nos olhos e com uma amizade consolidada por longos anos de dedicação, lhe confessasse o reconhecimento que consagrava a Júlia, a claridade, o perfume, a graça que lhe trouxera a vida, a bôa fortuna que nela―na sua pureza, na sua beleza, na sua devoção―encontrara; e, raciocinando [92]assim, como se admitisse a duplicidade do seu afecto por Nuno e do seu amor por Júlia, considerava que seria infinitamente desgraçado. Tinha mêdo dum tal desfecho: e, para se libertar de cogitações dolorosas, tentava esquecer, espairecer, distrair-se. Levantava-se, corria o parque a largos passos, sacudia com as mãos nervosas os arbustos floridos, fazendo cair nos musgos do chão um luminoso e colorido orvalho de pétalas, monologando:

―Ah! não, que horror! Não sinto ainda por Júlia uma paixão sensual, não a desejo pela carne, não me impele para ela um fogo impuro, uma fôrça abominável. Quando essa paixão chegar―se é que ela tem de vir―saberei ser enérgico, hei de dominar-me, fugir, esquecer...

Por nada traíria Nuno, abusando da sua hospitalidade tam carinhosa e tam franca. Não queria imitar Vaz de Sousa; não mancharia, com uma inapagável mácula, a santidade daquele lar; não toldaria a pacificação daquela morada em que se agasalhavam sentimentos perfeitos já abençoados por uma inocência angélica; não conturbaria a limpidez da sua afectividade fraterna com um punhado de lama e de vileza. Era um homem, um consciente, possuía uma dignidade, uma irredutível inteireza de carácter. De resto, Júlia, que aos dons da sua formosura aliava os dons mais nobres e elevados duma dedicação admirável, seria a primeira a repeli-lo com indignação, a execrá-lo, intimando Nuno a pô-lo fóra da porta como um ladrão que ali penetrasse para roubar uma felicidade que só a ela pertencia. E o amigo, sabendo de tudo, iria para êle com uma cólera que a imensidade da traição praticada mais avolumasse, [93]ferozmente, as mãos crispadas, os dentes rilhados, o desvairamento homicida fulgurando nos olhos... Não era, de-certo, o temor que o fazia retroceder. Nunca fôra timorato. O que o assustava mais era a torpeza moral em que se afundaria para sempre.

―Quantos disparates a minha fantasia enfermiça arquitecta!―diria Frederico, zombando forçadamente.

Com efeito, o irremediável não se interpusera, por enquanto, entre êle, Nuno e Júlia. Podia estar absolutamente tranqùilo, sem còrar da perversidade duma acção que nem sequer se esboçava. Mas que infortúnio, o seu! O ardor dos sentidos conduzira-o a uma situação alarmante que já o fazia sofrer com amarga crueldade. Entrando naquela habitação, pela primeira vez, julgou que vinha encontrar o sossêgo de espírito, a calmaria, o repouso da alma: e, afinal, apenas encontrara uma angústia maior, uma tortura mais lancinante! Como se operara no seu ser uma transformação de tal ordem? O convívio de tôdas as horas, a ambição duma ternura igual àquela, o renascimento de ilusões que julgava extintas, deprimiram-no, certamente; o encanto que da formosura e da pureza de Júlia irradiava, penetrava-o subtilmente, contra a sua vontade, contra o seu veemente desejo. Era êle, porventura, culpado desta fatalidade? Podia ser acusado com eqùidade e justiça, pela consciência e pela inteligência que lhe formavam a individualidade psicológica e mental? De-certo que não! Êste subterfúgio apaziguava-o...

Continuava o passeio ou entregava-se, mais calmo, à leitura, olhando a vida por aspectos menos [94] carregados. Se Nuno se demorava, ocupado pelos trabalhos que andava dirigindo, Júlia descia tambêm, um momento, ao parque, graciosa, adorável de beleza e de simplicidade. Frederico via-a avançar, com o coração pulsando desordenadamente, o sangue circulando com mais pressa nas veias e uma grande palidez no rosto. O busto de Júlia modelava-se nítidamente na leveza e na frescura duma blusa de sêda branca, deixando-lhe a descoberto o pescoço redondo, fino e alto, o princípio do colo, em que a pele se dourava à luz, uma parte dos braços que emergiam, admirávelmente contornados, da espuma de rendas das mangas: e isto provocava uma atracção irresistível, tornava mais áspera a sua ânsia. Júlia, avistando-o, ia para êle naturalmente, sem acelerar mais os passos que obedeciam ao ritmo sempre igual dos seus movimentos, falava-lhe:

―Então, para aqui só, aborrecendo-se mortalmente?...

―Oh! minha senhora, que ideia!

―Nuno sempre tem um modo de compreender a hospedagem!...

―Mas, se fui eu que não quis acompanhá-lo!... Hoje, apetece-me o isolamento.

―Tem, talvez, conversas com os espectros das suas saùdades...

―Não. Sou um esquecido do destino, um abandonado da própria saùdade. Ninguêm se interessa, por mim!

―Ninguêm?―interrogava Júlia, risonha e duvidosa.

―Ninguêm...!―afirmava Frederico, fitando-a.

Mas arrependia-se imediatamente da fixídez [95] com que a olhava, no receio de cometer alguma grosseria que a magoasse, no susto de que o seu olhar revelasse coisas que êle nem sequer se atrevia a formular, no confuso turbilhão dos seus sentimentos―e muito perturbado, desviava a vista.

―Creio eu lá nisso!―acrescentava ela.

Numa destas ocasiões, perigosas para a serenidade de Frederico, Júlia sentou-se num outro banco, perto dêle, quis saber que livro lia, quais eram as suas leituras predilectas: e Frederico respondeu com um riso a que pretendia imprimir naturalidade:

―As minhas leituras predilectas são as biografias, a correspondência dos grandes homens, as obras de psicologia.

―Porquê, porquê?

―Porque me interessam as almas superiores...

Júlia pegou no volume que Frederico folheava, viu o título.

―Em todo o caso, lê tambêm romances!...

―Nos romances, há ainda almas, minha senhora...

―De que trata êste?

―Dum amor infeliz, dum amor que nunca se confessou, e que era incomparável de elevação, de fervor, de constância...

―Bem sei! Dum amor absurdo, dum amor que apenas existe na emoção e na ideia dos artistas... Um grande e puro amor confessa-se sempre.

―Sempre?... Eis um belo êrro!

―Ora essa! Êrro?... Não compreendo...

Para se furtar a um diálogo em que, irreflectidamente, podia traír-se, Frederico deu novo rumo à conversação.

[96] ―A uma mulher é que nunca se deve perguntar quais são os livros da sua preferência, snr.a D. Júlia.

―Não sei porque não. Olhe, eu digo-lhe já o que prefiro, em literatura:―são os poetas líricos.

―Não se deve fazer uma tal pergunta indiscreta às senhoras, porque na selecção das leituras os espíritos femininos revelam-se.

―Ah!―atalhava Júlia. Não sabia!...

E os seus olhos negros e imensos, banhados por um claro-escuro húmido e misterioso, pousaram-se vagamente em Frederico, parecendo contemplar aparições inefáveis, longínquas, imprecisas.

―Talvez haja alguma verdade no que diz―exclamou ela.

―Creio que há tôda a verdade...

De repente, levantou-se, pousou o livro, murmurou:

―Nuno demora-se tanto!...

E sorrindo, com um enlêvo maior na voz, uma gracilidade mais animada nos gestos:

―Coitado! Anda todo apaixonado por uma obra de generosidade e de misericórdia. É um santo. A miséria da família do caseiro atormentou-o.

―Um coração de ouro!―concordava Frederico.

―Não é verdade?―atalhou ela, tôda interessada e com o reflexo dum grande contentamento na fisionomia.

―Um coração de ouro!―repetiu Frederico, pondo nas suas palavras a convicção e a sinceridade―uma alma como poucas existem!...

Júlia agradeceu-lhe com um olhar infínitamente [97] meigo aquele justo louvor ao marido e disse afectuosamente:

―Vou até lá acima... Acompanha-me ou ainda fica por aqui, pelas espessuras, como um namorado, com as suas lembranças?

―Ainda fico, minha senhora, mas só, sem recordações, uno e indivisível, em corpo e em alma.

Soltando uma gargalhada, Júlia afastou-se vagarosamente, colhendo uma ou outra flor no caminho, cantando entre dentes, voltando-se ainda para trás e rindo sempre; e Frederico, seguindo-a com a vista, notava que junto dela, respirando o mesmo ar, o envolvia a carícia dum ambiente em que a brisa tépida e odorífera como que emanava a vaporização duma volúpia tôda esperitual em que não havia nenhuma instigação inferior da animalidade, da substância, do sangue, dos nervos. A notação fina desta particularidade tranqùilizava-o. Ah! admirava profundamente a mulher de Nuno, mas apenas porque, entre a fealdade moral da sociedade que conhecia de perto, Júlia era um dêsses raros seres dispondo do condão de reconciliarem com a espécie o homem de temperamento sensível...

Neste devaneio infindável, as horas corriam ligeiras, a tarde baixava, um arrepio friorento passava no parque, entre os troncos, fazia tremer as fôlhas pendentes. O azul, alto e brilhante, empalidecia: e Nuno, voltando das obras, com a roupa em desalinho, despenteado, as mãos cheias de terra, veio encontrá-lo ainda sentado no banco, meditando.

―Cheio de tédio, hein? Mas a culpa é tua, Frederico!―gritou êle, surgindo, de repente, do meio das árvores.

[98] E contou-lhe então, com entusiasmo, como fôra ocupado e fértil em resultados o seu dia, a sua actividade junto dos pedreiros e dos carpinteiros, dando ordens, fornecendo indicações, esboçando projectos de trabalhos mais vastos, pedindo esclarecimentos ao vélho Mateus sôbre a lida agrícola. Até, para se exercitar, para desemperrar as articulações, tirara a enxada ao caseiro e cavara um bom bocado! Mostrava as botas enlameadas, as mãos vermelhas do exercício violento. Frederico, ouvindo-o e como se regressasse das regiões longínquas, irreais, por onde andara com a sua fantasia, atalhou:

―Pretenderás tu fazer-te lavrador tambêm?

―E porque não?―replicou Nuno, muito sério.

―Homem, isso é ainda literatura, poesia rural à maneira das Geórgicas...

Mas Nuno protestava, afirmava que ia pensando, realmente, em dedicar à lavoura a sua existência improdutiva, sendo assim útil a si, aos seus, à colectividade, empregando novos processos de cultura que duplicariam a fecundidade da terra, fazendo experiências em que constantemente pensava desde que se instalara na quinta.

―Porque, sabes tu? Os nossos agricultores seguem fielmente o caminho trilhado por uma rotina secular. Não querem afastar-se dêle, desdenhando as inovações que, com menos dispêndio de fôrças, aumentariam a produção e ofereceriam óptimas compensações.

―Santo Deus, como vais de-pressa!―contrariou Frederico. Mas isso é a multiplicação dos pães de que nos fala uma doce página da Bíblia. A multiplicação [99]dos pães? Que digo eu? Trata-se dum milagre, mais considerável. Chegas, da cidade, vestido como um dandy, nada sabes de agricultura, ignoras mesmo como se produz a torrada que comes ao almôço, com manteiga, mas isso que importa? Tens audácia para tudo! Pegas num punhado de trigo, ao levantar do leito, tomas o teu café, fumas o teu charuto...

―Não rias, Frederico! Olha que começou, na verdade, para mim, uma vida nova...

―Espera, deixa-me acabar!... Espalhas êsse punhado de trigo ao raiar da manhã. Ao meio-dia, uma enorme messe de louras espigas ondula já à aragem, como um mar de ouro fôsco. Á tarde, chamas os ceifeiros, fazes a colheita e enches um celeiro!... É como nos contos do fadas...

― Bem! Não há maneira de nos entendermos―concluiu Nuno. Vamos jantar. Isso é debilidade... A fraqueza excita o teu delírio.

Atravessando os arruamentos da floresta, que escureciam, o jardim, que rescendia, Frederico ainda satirizava as intenções de Nuno, afirmando:

―Se, na realidade, pensas em fazer-te lavrador, em te consagrares à terra, então sempre te digo que há tôdas as probabilidades de que venhas a arruìnar-te...

―Arruìnar-me?

―Não tenhas dúvidas! Um simples pão, que podes comprar por um vintèm em qualquer padaria, agricultado por ti, com máquinas para arar a leira, máquinas para ceifar o trigo, máquinas para a debulha, adubos químicos, outras coisas requintadas e modernas, virá a ficar-te por cinto tostões, o que é, na realidade, barato, não te parece?

[100] Entraram em casa, conversando e rindo. Cá fóra, ao ar livre, anoitecia. O ocaso, com sua tristeza elegíaca e o vago das suas sombras, descia apressadamente. As ramagens dos arvoredos imobilizavam-se na atmosfera. Uma névoa ténue subia da terra para o alto. Das coisas inertes parecia elevar-se um confuso múrmurio que fôsse como que a confissão da natureza para Deus. As criadas acendiam as luzes, na vivenda, e as vidraças lampejavam batidas por um súbito, inesperado fulgor de ouro. Nuno e Frederico lavaram-se, vestiram-se para o jantar, aparecendo na sala já quando os esperava Júlia―e a palestra reatou-se:

―Pois, minha senhora, dou-lhe os parabens!―exclamou Frederico, sentando-se.

―Parabens, porquê?―interrogou ela.

―Nuno está decidido a integrar-se na simplicidade e na lavoura. É bem provável que esta habitação mundana venha a transformar-se em herdade, brevemente.

―Está hoje impossível, Júlia!―retorquiu Nuno. Não compreende que um janota como eu venha a ser um agricultor razoável, a fixar-se aqui definitivamente, a despir-se de todo o artifício por amor à naturalidade.

―Ouve-o? É a renovação que começa. Teremos em Nuno, dentro de pouco, o Jorge Brumell das colheitas.

―E porque não? Porque não?―perguntou Júlia, olhando demoradamente o marido.

―Tambêm V. Ex.a?... Belo! Já está convertida. A coisa é mais importante e profunda do que eu julgava. Assisti, neste lar afável, ao nascimento duma religião nova...

[101] A conversação alegrava-se, sob o reflexo da claridade que fazia relampejar as pratas, scintilar os cristais, alvejar mais puramente os linhos e brilhar com maior nitidez o verniz dos móveis e a coloração das flores que morriam nos solitários. A serenidade em que a vivenda adormecia era tanta que se ouviam os menores ruídos. A criada que servia à mesa, no seu severo vestido preto com punhos e gola de bretanha gomada, ia e vinha sôbre a alcatifa do corredor longo, em passos apressados e miúdos. Da cozinha chegava o rumor das palestras e da louça que se entrechocava. Cães latiam ao longe, pelos casais silenciosos. De vez em quando, o som duma viola passando para os serões ou para as desfolhadas nas eiras, sob a lua branca, poetizava, bucolizava a solidão...

No fim do jantar, Júlia levantou-se, estendendo a face a Nuno para o beijo costumado e apertando a mão de Frederico, para tratar da refeição dos servos. Os dois conservaram-se ainda sentados, fumando e divagando...

Depois, no seu quarto Frederico, sentindo um desalento inexprímivel pesar mais duramente à sua volta, na imensa melancolia dos ideais falhados, no desespêro da ansiedade que o devorava e da incerteza que o consumia, reencetou as suas lucubrações, sentando-se numa poltrona e deixando correr as infindáveis horas de pacificação exterior. O que agora temia era que nêle se viesse a dar o violento conflito do espírito e do instinto, perto de Júlia―o que seria um suplício que mais lhe atribularia a amargura de viver. Observava que já ao lado de Nuno não estava bem, que temia o desconhecido, que experimentava um constrangimento inexplicável. E porquê? De-certo [102]que o amigo tinha para êle as mesmas delicadezas, as mesmas atenções, a mesma inefável simpatia; mas bastava que Nuno o fixasse mais detidamente para que logo julgasse que o seu olhar penetrante pretendia expiá-lo, ler-lhe na alma surpreender os sentimentos impuros que lá se geravam. Suspeitaria dalguma coisa? Teria Frederico deixado adivinhar o seu drama, por uma frase impensada, por uma palavra mais ardente de louvar a Júlia, por um estremecimento de paixão irreprimível que pusesse Nuno de sôbre-aviso? Não! Claramente, não! Tôdas as suas dúvidas nada mais representavam do que uma perversão da sensibilidade nervosa, uma alucinação dos sentidos...

Ainda não sabia se amava Júlia―porque tinha mêdo de interrogar-se; se a desejava carnalmente; se a admiração que lhe dedicava era de essência espiritual ou sensual: mas se, com efeito, era maior a perturbação que o alvoroçava, ninguêm―nem êle mesmo―conheceria êsse amor insensato, que ficaria para sempre secreto, que jàmais seria revelado!...

Enquanto scismava, a casa, sob o afago da sombra nocturna, repousava serena, como a felicidade que a habitava. Apenas do quarto, onde a ama dormia com o filho de Júlia e de Nuno vinha uma claridade dúbia da lamparina acesa, filtrando-se através das bandeiras das portas, que eram de vidro. E Frederico continuava os seus devaneios. Naquele momento, a mulher admirável para quem ascendiam, como um incenso, a sua crença pura e a sua admiração exaltada, adormecia tranqùilamente, junto do marido, tendo ainda na bôca o calor e o perfume dum profundo beijo apaixonado e genesíaco. Êsse calor [103]rosava-lhe a pele da face, acelerava-lhe a circulação do sangue, tornava-a mais linda. Reconstituia-a no sono, a cabeça pousada sôbre a alvura do travesseiro por onde se espalhavam, como uma núvem, os seus cabelos desmanchados, o peito arfando docemente, a carne esplêndida vibrando de desejos... Impaciente, Frederico erguia-se, dava alguns passos irresolutos sôbre o tapête fôfo, e voltava a sentar-se sem poder aquietar. Sentia subir das recônditas intimidades do seu ser um ciúme horrivel pelo amigo, que fruía uma indizível ventura com a posse da mulher esplêndida (que tambêm o aliciava a ele―e com que formidável intensidade! Então, enclavinhando a mão trémula nos cabelos, Frederico revoltava-se contra si próprio.

―Que inferno êste, hein? E que abjecta criatura desperta em mim!...

Na realidade, Nuno era para êle o irmão, a amizade inquebrantável e fidelíssima, a afeição cega. Abrira-lhe confiadamente as portas do seu lar virtuoso, considerava-o como um membro da sua família, devotara-se-lhe inteiramente, mostrara-lhe a alma. E êle, correspondendo a esta confiança, a êste afecto, a esta devoção, estava ali, naquele doloroso momento de tortura, invejando-lhe criminosamente a espôsa legítima, odiando-o pelos beijos que com ela trocava, pela presença de Júlia no seu tálamo―um tálamo que a adoração mútua santificava e em que o ventre da mulher amada recebia o calor que faria germinar as vidas novas e esperançosas.

―Não! Isto é verdadeiramente infame!―exclamava Frederico, acusando-se com rancor.

Deitou-se, mas não podia dormir. A imagem de [104] Júlia perseguia-o; a inquietação permanente irritava-lhe os nervos, exauria-o. Quáse imputava a Júlia a responsabilidade da dor fulgurante que sentia, da agitação que o alucinava; mas logo caía em si, arrependendo-se. Era injusto, inexorávelmente injusto! Ela não fizera nascer, por uma só palavra, por uma atitude suspeita, por uma irreflectida coquetterie, o sentimento funesto que o invadira. Frederico é que não pudera dominar-se, ser casto, ser nobre, ser refractário a um desejo vil. O culpado único do seu tormento era êle, certamente. E julgava que, por mais que sofresse, todos os seus sofrimentos não valeriam uma ligeira mágoa que pudesse causar a Júlia, se lhe revelasse o fogo em que ardia; que tôdas as suas lágrimas não valeriam uma única das lágrimas que Júlia choraria, se êle tentasse destruir-lhe uma placidez de que era tam digna, pela alma, pela bondade, pela elevação moral, pela formosura, corpórea.

Em determinados instantes, o seu cérebro tinha uma estranha lucidez. Lembrou-se, repentinamente, de factos, de acontecimentos há muito olvidados. Ocorriam-lhe trechos de leituras feitas. Recordou-se, por exemplo, de ter lido há muito tempo, num livro de que esquecera o título, esta sentença que agora solicitava particularmente a sua atenção:―«Elemento divino e principal, que a natureza produz mas que apenas a vontade aperfeiçoa, a Beleza é uma simples exteriorização da forma. Tudo é susceptível de beleza, do gesto ao acto, do olhar à palavra. Se o primeiro passo perfeito fôr o de concentrar tôdas as aspirações de beleza num sêr único, o segundo será o de preferir a beleza da alma à beleza físicamente [105]afectiva do corpo». No delírio da sua febre, Frederico construía teorias que lhe pareciam encerrar a verdade total e que logo abandonava, como infantis: e só de manhã, quando uma luz ainda indecisa e fresca se coou através das frinchas da janela, êle conseguiu adormecer, cansado, extenuado pela vigília e pelas emoções intensas. Ao levantar-se, estava pálido, mal disposto, cheio de tédio―e pensava então que a vivenda de Nuno se lhe tornava insuportável de dia para dia...





Uma tarde, o amigo abalou para as obras que continuavam activamente. Ao passar no escritório de Nuno, para escolher um livro, Frederico encontrou lá Júlia, que bordava um pano de mesa, sentada à janela abrindo para o jardim e tôda ensombrada por uma trepadeira já sem flor. Frederico sentou-se tambêm, vendo-a trabalhar. Tinha um vestido preto que lhe imprimia maior destaque à brancura das carnações. Na gola da corsage, afogada ao pescoço, fulgurava um brilhante, irrizando-se à luz. Os seus dedos magros manejavam ágilmente a agulha. Como sempre, a noite de Frederico fôra tempestuosa, deixara-o doente e mais aborrecido. Resolvera internar-se no parque, à procura do isolamento, do sossêgo, que apaziguavam o seu frenesi: mas, deparando Júlia, experimentou logo a irresistível atracção que ela exercia sobre o seu sentimento e achou um doce sabor na sua companhia. Seguia mudamente o bordado, com a face encostada à palma da mão; e, para interromper um silêncio que lhe fazia, mal, exclamou:

[106] ―Só as senhoras teem paciência para tais tarefas...

―Questão de hábito―respondeu Júlia, sem levantar a cabeça.

―Eu era incapaz de chegar ao fim duma coisa dessas, que me parece mais fatigante e difícil do que os dôze trabalhos de Hércules... Estragava tudo, rasgava tudo...

―Jesus! Pois é assim impaciente?...―perguntou ela, fitando-o.

―Sou assim impaciente!

A radiação da luz fluida, que vinha de fóra, batia em cheio na cabeça de Júlia, aureolando-a; sôbre os ombros descaídos havia tambêm manchas luminosas. Frederico, perturbado, voltou-se para a estante, a escolher um volume.

―Que vaí ler?―interrogou Júlia.

―Sei lá! Talvez uma história triste dalguêm que nunca realizasse as suas aspirações. Estou hoje tam nervoso, tam melancólico!...

―Pois por isso mesmo, devia preferir as leituras alegres, para se desanuviar... E diga-me: Crê que haja pessoas correndo continuamente atrás dum ideal que nunca alcançam?

―Oh! de-certo que há!

―Eu julgo que essas pessoas estão fóra da realidade, e eis porque não encontram nunca o seu mundo...

A voz de Júlia tinha, no seu timbre de ouro, uma brandura acariciante. Frederico, enleado, contemplava-lhe o busto, que era admirável de proporções, a linha, a curva ondulante dos seios que se arredondavam sob os tecidos leves, o pescoço esbelto, [107] o lóbulo das orelhas que o penteado deixava a descoberto e que era côr de rosa.

―Mesmo dentro da realidade―exclamou êle―nem sequer se podem atingir certos ideais.

A solitude em que a casa estava mergulhada assustava-o. Desejava o ruido, o barulho, tudo o que o aturdisse.

―Conhece alguns casos dêsses?―perguntou ela, mirando-o com a face tocada pela graça do riso.

Frederico sentiu uma perturbação instantânea, passou-lhe na mente uma névoa, tôda a resolução anterior se deteve no seu sêr, fez-se-lhe uma espécie de vácuo na consciência, a sua timidez aumentou. Sem poder falar claramente, gaguejava. Êste sobressalto inexplicável excitou ao mais alto ponto a curiosidade de Júlia que o envolvia com a luz dos seus olhos tam sinceros.

―Diga!...―insistiu ela.

―Talvez!―respondeu Frederico. Tenho-me entregado a êstes estudos especiais, porque o maior prazer duma alma é reconhecer outras almas belas.

―Oh! mas essas almas escapam-se a tôda a observação―atalhou Júlia.

―Não. Quando muito, constituem um mistério―mas mistério que se sente...

Desvairado, Frederico levantou-se, encaminhando-se para a porta.

―Tem que fazer?―interrogou Júlia.

―Não... Absolutamente nada.

―Então, sente-se, seja a minha companhia, se isso lhe não desagrada.

[108] ―Oh! minha senhora!...

As fontes latejavam-lhe, uma vermelhidão febril afogueava-lhe as faces, a sua respiração acelerava-se.

―E como se denunciam, às vistas perspicazes, as almas de que fala?―inquiriu Júlia, baixando o rosto sôbre o bordado.

―Pelo encanto que irradiam, pelo domínio que exercem, pela inspiração que produzem.

―Julgo que está enganado. As almas femininas, por exemplo, furtam-se às mais subtis análises. Se um homem louvar a beleza duma mulher, ela sorrirá, não se defendendo, mas ocultando-se às revelações íntimas...

―Mesmo quando ama? Sendo o amor a obra da alma, ela revela-se totalmente sob a sua influência...

Insensívelmente, o diálogo entre os dois tinha resvalado para um plano perigoso, e Frederico empregava esforços violentos para subtrair-se às tentações, porque começava a ter receio de dizer tudo a Júlia, de lhe confessar o seu supremo segrêdo, de lhe denunciar, com lágrimas, o seu inferno, o seu tormento de tôdas as horas. Ia-lhe fugindo a faculdade de pensar, de reflectir antecipadamente na significação das suas palavras e de calcular-lhes as conseqùências, porque erradamente supunha que o interrogatório de Júlia, tam natural, tinha qualquer cousa duma provocação.

―Mas ainda me não disse francamente se conhece alguma dessas almas―exclamou ela, de novo.

―Não conheço, mas tenho a certeza de que existem...

―Nos romances?

[109] ―Ah! nos romances, há lenda daquele príncipe que se sabia perto da mulher que amava, que lhe sentia as palpitações do coração, mas que não podia tocar-lhe nem vê-la, porque uma cortina de névoa opaca o separava dela!...

Júlia, esquecendo as mãos no regaço, olhou-o então longamente, como se quisesse compreender alguma obscuridade psicológica que pressentia: e Frederico, comprometido, levantou-se logo, rindo um riso nervoso e atalhando:

―Mas, é claro! O que os romances dizem não tem veracidade. E estas nuvens só aparecem aos príncipes e às princesas...

Dirigiu-se para a porta, resolutamente, depois de tirar um livro da estante.

―Sai?―perguntou Júlia.

―Sempre vou um pouco até ao jardim, tomar ar...

E desceu rápidamente sem se voltar, desgostoso consigo próprio, excitado, ainda no pavor da leviandade irremediável que ia cometendo. Ah! não! Aquilo não podia continuar! Era muito duro, muito cruel para êle. Agora, compreendia que o temido conflito do seu espírito com o seu instinto se daria fatalmente, se prolongasse por mais um dia, uma semana, a sua estada perto de Júlia. Chegaria uma hora de fraqueza em que a energia lhe faltasse para dominar-se. Antes de isso acontecer, fugiria para longe, tentaria esquecer. Queria ser digno de amizade de Nuno e do afecto da mulher de quem um amor infeliz o aproximara. Estava ainda a tempo! E firmemente, nesse mesmo dia, ao jantar, anunciou a sua partida inevitável, pretextando a solução urgente de negócios que não deviam ser adiados...



V


Foi num inquietante estado de alma que Frederico deixou a vivenda pacífica onde o seu sentimento fizera, inesperadamente, uma tam alarmante descoberta, regressando ao Pôrto sem um fim determinado, sem mesmo pensar na maneira de evadir-se duma intensa e amarga tortura. A certeza de que amava a mulher de Nuno com um amor que poderia levá-lo, violentamente, a todos os crimes e a tôdas as degradações da alma, obcecava-o e obrigava-o a reflectir na impureza da argila de que é formado o coração humano. Fugia de Júlia, do amigo, do repousado lar em que vivera tam plácidos dias―antes da fatalidade duma adoração que quisera evitar, a que tentou, em vão, resistir e que lentamente se lhe apoderou de todo o sêr consciente―em condições trágicas para a sua emoção. Sentia-se enfeitiçado por uma espécie de malefício ao mesmo tempo cruel [112] e doce, que lhe causava sofrimento e saùdade e que nêle abolia o senso moral sem, no entanto, lhe conturbar a lucidez da inteligência a ponto de não discriminar entre o bem e o mal...

Durante a jornada para o Pôrto foi sobressaltado, várias vezes, por uma singular diversidade de sensações. Ia fugindo como um bandido, trémulo, aterrado, com mêdo de tudo―e porquê? Ninguêm conhecia o seu drama, bem oculto, bem recalcado dentro de si próprio―a não ser que Júlia o tivesse adivinhado, porque as mulheres; em coisas de sentimento, são subtis. Aquela deserção representava a cobardia dum homem incapaz de afrontar altivamente o primeiro perigo que diante de si imprevistamente se levantava, com a segurança de que venceria; mesmo incapaz de dominar as instigações da outra personalidade em que se desdobrava e que o concitava ao êrro, à deslealdade, à vileza, solicitando a imediata satisfação dum desejo gerado no seu egoísmo e na sua sensualidade; que se mostrava impotente para conter a expansão vertiginosa do instinto. Alucinava-o a quáse eliminação da vontade―de que o último lampejo se exaurira com a resolução de sair apressadamente da casa de Nuno, inventando um pretexto fútil em que se traíria, se o amigo não depositasse nêle a maior confiança. Raciocinando nesta leviandade, Frederico monologava, encolhido a um canto do combóio, sem mesmo espreitar rápidamente a maravilhosa paisagem, que atravessava:

―Como fui imprudente, na realidade!

E agora, que estava mais sereno, aquela imprudência atemorizava-o. Reconstituía na imaginação [113] sobreexcitada a surprêsa de Nuno, quando lhe comunicou a resolução firme de voltar à cidade. Fixando-o com uns olhos penetrantes que o devassavam até às recônditas intimidades da consciência, êle exclamara:

―O que? Vais-te embora?

―Sim, vou!―atalhara bruscamente, com uma perturbação que o denunciava. Assuntos complicados a liquidar, um inferno...

―Homem, sê sincero. Tu o que estás é aborrecidíssimo, odiando êste cárcere, abominando esta solidão, morto por te veres de novo no ruído, no tumulto urbano...

―Mas não, mas não! Que ideia!...

Júlia expiava-o tambêm interrogadoramente, com um olhar em que à vivacidade se mesclava uma pontinha de ironia amável.

―Para que hás de negar?―insistia Nuno.

―Oh! filho, mas que impertinência tamanha, a tua!... Frederico é um homem do mundo e julga ter cumprido já os deveres da amizade para connosco, dando-nos algumas semanas da sua companhia. Se quiséssemos retê-lo aqui por mais tempo, entre estas árvores, nesta solidão, no meio dêste deserto, seria tirânico da nossa parte!―afirmara Júlia benévolamente.

―É claro―acrescentou Nuno ―eu não te imponho o sacrifício de nos aturares até à consumação dos séculos... O meu despotismo não chega a tanto...

―Sacrifício?... Mas que sacrifício?... Se eu te estou a dizer...

―Bem, acabou-se!―concluiu Nuno. Parte...

[114] ―Quem sabe, de resto, se haverá na cidade algum motivo superior que o reclame a tôda a pressa?―insinuara ainda Júlia com aquele riso que era de graça, de bondade, de malícia e de doçura e que tanto encantava Frederico.

―Certamente, minha senhora... Há um motivo!―respondeu êle.

―Sentimental?―inquirira Nuno, rindo tambêm.

―Crê que estou a falar a sério!―replicara Frederico.

Propositadamente, para desviar o rumo da conversa, que o fazia sofrer e o forçava a simular para esconder uma verdade que não podia ser conhecida sem vergonha para êle, sem dor para Nuno e sem cólera amargurada para Júlia, Frederico procurou ser alegre, mas inutilmente. A intensidade da comoção experimentada crestou-lhe a floração do humorismo, tornou-o fúnebre; e as horas que se seguiram à sua decisão foram monótonas, tristes, cheias de fadiga. A cada instante, Nuno murmurava, fumando um charuto e quebrando a cinza na beira do cinzeiro de porcelana:

―Vais, então, para o Pôrto, scelerado, reentras nos teus hábitos.

Frederico notava nestas palavras de afecto, que lhe doíam como um queixume, a vaga sombra dum desconsôlo, e dizia:

―Vou, de-certo... Deveres... As obrigações primeiro e as devoções depois. O método é tudo... E tu? Ficas por aqui ainda?

―Fico. Há uma infinita multidão de factos que exigem a minha presença... Alêm disso, esta [115] é que é a minha casa... Júlia dá-se bem. Eu passo óptimamente. Retirar-me, para quê?

―Pois olha que sou muito capaz de voltar ao calor das vossas afeições, em concluindo os meus negócios!

―Que lisonjeira mentira!―acudiu Júlia, aconchegada na sua cadeira, ainda à mesa do jantar, seguindo o diálogo com a face inclinada na mão.

―Oh! minha senhora, eu nunca minto, por princípio. Seria um pecado.

―Não! Muitas vezes, mentir por amabilidade é uma virtude que denuncia puros dons de alma.

Tornou-se impossivel animar a palestra em tôda a noite. Frederico pensava que o desalento se comunicara, como um fluido subtil e dissolvente, a Júlia e a Nuno, destruindo o gôzo espiritual daquele momento: e foi para ele um grande alívio o instante em que pôde recolher-se ao seu quarto, isolar-se, concentrar-se nas suas meditações. Deitando-se e apagando a luz, reencetou a análise da sua própria psicologia. A impressão que Júlia lhe produzia na sensibilidade era cada vez mais forte. Por enquanto, a imagem da mulher amada iluminava-se ainda de esplendor, movia-se num círculo de claridade e de pureza que o coagia a uma adoração casta. Não atravessaria a zona luminosa que o separava dela, para tocar-lhe com mãos profanas. Chegaria, porêm, uma hora de alucinação em que a generosidade e a grandeza moral que prevaleciam na sua organização desaparecessem, fundindo-se a um fogo de voluptuosidade impetuosa, e em que a sua áspera ânsia carnal, numa súbita e espontânea erupção de luxúria, o impelisse às piores injustiças, às violentas rebeliões, às brutalidades, [116]às loucuras em que nada se respeita. Frederico temia essa hora e libertava-se, pela fuga, da sua terrível influência. Por enquanto, conservava tôda a sua energia, tôda a sua lucidez mental, podia calar-se a tempo, encerrar o seu amor secreto num silêncio impenetrável; mas não viria a perder essas faculdades redentoras se prolongasse a sua estada junto da mulher que inocentemente excitara a sua paixão? Era preciso cortar como flor venenosa o sentimento vil que lhe germinara na alma, exilar-se para longe, esquecer... Tam ardente era nêle a imaginação que lhe parecia que a voz de Júlia tremera ao ouvir-lhe anunciar a partida e que os seus imensos olhos, negros e húmidos, fazendo-se mais lânguidos e acariciadores sob as pestanas, cravando-se nos dêle, lhe pediam que ficasse, o aliciavam com promessas de tôda a sorte. Resistir aos avisos da dignidade, que o mandavam retirar sem demora, seria uma abjecção, um acto inqualificável. Êsse amor, apenas nascente, tinha para êle a sordidez, a vilania, a crápula dum incesto―porque Nuno era o seu irmão. Não reagir contra a voz secreta e criminosa do instinto puramente animal que o tentava a não sair do lado de Júlia representaria a queda num abismo insondável, a submissão que o desonraria para sempre, o remorso, uma dor futura que nem sossegaria sequer, mesmo que fôsse possível satisfazer a ignomínia da paixão que o exasperava.

―Não! Não!―murmurava Frederico, revolvendo-se no leito. Partindo, serei ainda nobre e bom.

E a bondade, para êle, era a mais pura, a mais alta manifestação da vida consciente. Alucinado por [117] um sentimento que agitava tudo o que no seu ser de homem havia de imperfeito, de inferior, de grosseiro, sofrendo tôdas as torturas que um amor impossível e sem esperança pode fazer experimentar a um temperamento ardentemente apaixonado, Frederico sentia, como uma carícia de inexprimível enlêvo, essa bondade à sua volta, naquele calmo lar tam digno. Ela irradiava da candura dum berço onde dormia a inocência sem culpas; denunciava-se numa adoração conjugal que se perpetuava indefinidamente com o mesmo encanto do dia maravilhoso em que principiara; emanava-se de Júlia como uma espécie de imaterialidade visível e penetrava-o a êle mesmo fazendo-lhe transbordar de ternura o coração, purificando-o de pensamentos maus. Por mais duma vez―absorvido na sua meditação e louvando-se pela coragem, pela energia que revelava, afastando-se dum enlêvo que para êle condensava, nesse momento, a felicidade suprema―Frederico descobria uma desconhecida frescura de emoções novas e apaziguadoras, passava-lhe na alma um sôpro vital que o rejuvenescia. Mas êste entusiasmo era fugaz: e uma saùdade muito funda―a saùdade de tudo o que perdia―continuava a exaltá-lo.

Murmurava, na sua viagem para o Pôrto:

―Fiz, talvez, uma asneira. Desertando, demonstrei a mim próprio que sou cobarde, que tenho mêdo, que sou incapaz de resistir...

Então, arrependido, levantava-se do banco em que ia sentado, dava alguns passos nervosos no compartimento em que viajava só e assaltavam-no tentações de descer da carruagem na primeira estação [118]e de voltar para trás, regressando a casa de Nuno e de Júlia. Logo, porém, caía em si, exclamando:

―Mas estou doido, doido! Êsse regresso seria uma revelação, uma confissão completa pelo menos para Júlia, porque nada escapa à sagacidade das mulheres, em amor.

Para se distrair, dissipar os sentimentos contraditórios que o desvairavam, curvou-se à janela da carruagem, observando o panorama que se desdobrava ao sol no esplendor das suas tintas. A manhã resplandecia como um cristal translúcido; tôdas as côres se aviventavam na radiação da luz. As forfas elegantes das árvores, que donde aonde davam sombra e manchavam de verdura os descampados, desenhavam-se com nitidez de linhas e de contornos no azul claro, e a serenidade deliciosa do céu cumunicava-se à natureza inteira. A largura infinita do espaço, mais branco para as bandas do nascente, mais anilado no alto, parecia decorada, vestida como para uma festa voluptuosa e delicada. A profundidade alvacenta e luminosa do ar que envolvia e vivificava tôdas as coisas tinha para Frederico uma novidade nunca surpreendida. Parecia-lhe que Júlia, despertando-lhe a faculdade de amar, lhe despertara tambêm a faculdade de compreender.

Lentamente foi-se-lhe atenuando nos olhos a imagem feminina que sem repouso acariciava. O fenómeno fisiológico intenso que imprimira uma completa modificação à sua consciência em horas tam ardente e dolorosamente vividas, dava agora um rumo diferente aos seus pensamentos―e isto desanuviava-o um pouco. Caía numa dessas cogitações sem [119] objecto definido que constituem verdadeiros e inefáveis desfalecimentos de espírito...

Desejava chegar depressa ao Pôrto, reentrar na serenidade da sua vida de solteirão, mergulhar no tumulto citadino, entregar-se todo à satisfação dos seus caprichos, à sua fantasia, à multiplicidade dos seus prazeres, com a secreta esperança de esquecer completamente, de depurar-se, para ser outra vez digno do afecto de Nuno e da confiança de Júlia. Enquanto dentro de si vivesse aquele amor criminoso, julgava-se impuro:―e como impuro, não deveria pensar no regresso à vivenda do amigo, que era um templo e que a sua impureza profanaria. Foi nesta excitação que entrou no Pôrto, num sábado à tarde.





Começou, então, para Frederico um sombrio período do miséria moral e de sofrimento. Jàmais a sua existência lhe aparecera tam solitária, tam inútil, tam recuada das verdades construtivas e dos sentimentos renovadores. Um inexplicável desalento enchia-o de desgôsto, humilhava-o. Nunca, como nesses dias alucinantes em que, em vão, procurava aturdir-se, afundar-se na embriaguez de tôdas as excitações, Júlia lhe parcera tam desejável. Um fogo sensual muito violento ia secando nêle tôdas as fontes da virtude e da honestidade: e a sua ausência infligia-lhe fulgurantes torturas. Recordava, com uma vivacidade que lhe aumentava o padecimento, a sua graça de mulher, as perfeições do seu corpo, a doçura que a sua posse lhe transmitiria. O ciúme, que já por mais duma vez sentira por Nuno, intensificava-se. [120]Como se na evocação das coisas amargas houvesse para a sua alma um gôzo especial, Frederico imaginava a cada momento Júlia nos braços do marido, fundindo-se ambos no mesmo beijo abrasador, dando-lhe tôda a sua carne latejante, todo o sangue das suas veias, murmurando-lhe ao ouvido tôda a sorte de meiguices em palavras entrecortadas e ternas. E via-a rolando a cabeça desfalecida no ombro de Nuno, cerrando as pálpebras num delíquio, mais côrada, com os lábios pálidos, o peito arfando apressadamente. Insurgia-se contra êste amor conjugal como se êle representasse um crime, como se exprimisse um pecado e como se fosse êle o traído... Um acesso de impaciência e de cólera interrompia este delírio dos seus sentidos. Reentrando novamente nos domínios luminosos da inteligência, Frederico exclamava:

―Preciso de reagir contra esta doença que me devasta, senão enlouqueço!

Esperava que a crise lhe concedesse tréguas, e para apressar êsse instante que seria venturoso e afável para êle, ia aos teatros, aos concertos, freqùentava as reùniões das pessoas do seu conhecimento, nunca faltava nos logares onde o mundanismo se dá rendez-vous: mas, nas salas de espectáculos, nos salões de baile, nas soirées familiares, surpreendia-se a aguardar a entrada súbita de Júlia, radiante no esplendor duma beleza a que a vida campestre tivesse insuflado mais graça e maior poder de sedução, sem reparar em nada do que à sua volta ocorria. As senhoras achavam-no muito mudado e diziam-lho, entre ironias. Não tinha a alegria antiga, a vivacidade doutrora, era um outro Frederico sem a jovialidade [121]que o caracterizava e o impunha às admirações.

Uma noite, em casa de D. Francisca de Medeiros, que às terças-feiras reùnia algumas famílias íntimas, a sua tristeza foi notada pelas damas com quem se entregara, em outras épocas, às suavidades do flirt. Uma delas, D. Felismina Trigoso, que nutrira a esperança de ser por êle amada em tempos findos de que ainda conservava a lembrança doce, surpreendendo-o a um canto a folhear uma revista ilustrada, não se conteve.

―Sabe?―exclamou ela―tôdas nós o estranhamos.

―E porquê, minha senhora?―inquiriu Frederico, fechando a revista e erguendo-se.

―Estranhamo-lo por essa melancolia, pelo desinterêsse de tudo o que o cérca, pelo isolamento em que voluntáriamente se encerra.

―É que ando a fazer um severo exame de consciência. Fui um grande pecador, e para ganhar a glória celeste, decidi fechar-me num convento, ser monge, penitenciar-me―disse êle.

―Não disfarce, não finja!

―Mas sou sincero!

―O que pretende é ocultar qualquer coisa―insistia ela.

―Ocultar o quê?

―Que sei eu? Talvez alguma paixão infeliz, algum desgôsto muito profundo.

―Ah! como é errado o seu juízo! V. Ex.a não sabe, então, que as criaturas que se recolhem, que se isolam, que se concentram, são precisamente as felizes?

―As felizes?

[122] ―Certamente! Só a felicidade é egoísta, concentrada, e não gosta de revelar o seu gôzo interior. O sofrimento, pelo contrário, precisa das multidões, das testemunhas, para dilatar-se.

―Paradoxos...

―Não, minha senhora. V. Ex.a não conhece, de-certo, Heraclito, um filósofo da antiguidade clássica, que, quando sofria, procurava as praças públicas, as ruas das cidades, para chorar... Se eu fôsse desgraçado...

D. Felismina ria saborosamente daquela abundante verbosidade que incitava ao humorismo pelos efeitos do contraste.

―Se fôsse desgraçado?...―interrogava ela.

―Se fôsse desgraçado, rompia aqui num chôro de tal ordem, que a policia teria de acudir!...

―Venham cá, venham cá!―chamou D. Felismina―está hoje brilhante!...

As outras senhoras acudiram, num grande rumor de riso e de sêdas amarrotadas: e D. Felismina, voltando-se para a dona da casa, murmurou:

―Tem estado a dizer-me coisas monstruosas, não calcula!...

―Sim?―atalhou D. Francisca, com um sorriso afável iluminando-lhe o rosto simpático. Então, de que falavam?

―De grandes verdades, minha senhora―respondeu Frederico. Afirmava eu que as paixões amorosas mais sérias, porque decidem de todo um destino, são as que alvorecem nos corações de cincoenta anos de idade. A snr.a D. Felismina, porêm, é de opinião contrária e assevera que essas paixões só podem ser sentidas aos vinte anos...

[123] ―Não era de nada disso!―protestou D. Felismina. É um mistificador...

―E ainda não experimentou nenhuma, Frederico?

―Não, D. Francisca. Encontro-me na infância. Tenho apenas trinta e cinco anos, estou muito longe da minha primavera!...

O riso animou-se mais nas bôcas femininas, que louvavam tôda aquela alegria, tôda aquela mocidade de espírito, e, por momentos, Frederico atraíu as atenções; mas foi um fogo-fátuo êsse instante de jubiloso alvorôço, que se dessipou totalmente, quando D. Felismina, muito solicitada, se sentou ao piano, tocando uma página de Mendelssohn, que ela interpretava maravilhosamente.

De novo isolado e absorvido nos seus pensamentos dolorosos, folheando outra vez a revista que o fatigava de tédio e que tinha aberta sôbre uma mesa de pau preto onde, em jarras de faiança antiga, brilhantes de esmaltes e de coloridos, morriam e se desfolhavam lentamente ramos de azáleas brancas, Frederico observava aquele mundo fútil de exterioridades encantadoras e recordava-se de Júlia. O ambiente era, na verdade, elegante. O salão estava decorado com gôsto. Um tapête de tons suaves, rosa e verde-malva, amortecia o som dos passos e tornava mais confortável o compartimento; os móveis, leves e bem lançados, destacavam-so pela forma e pelos estofos que os recobriam. Sôbre um fogão de mármore, que resplandecia de brancura na crueza da luz eléctrica, um relógio de bronze, estilo Luis xiv, marcava as horas que longos ponteiros dourados indicavam num mostrador esmaltado em que corria, no esplendor das [124] tintas, uma scena idílica, evocando as telas de António Watteau, com pares de namorados enlaçando-se sob as árvores. Ao fundo, um piano Bechstein com velas ardendo em serpentinas de prata e acendendo fulgores de chama no verniz negro da madeira, tinha uma graça ornamental pesada e imóvel. Sòbre a alcatifa, encostados dum lado e doutro às paredes, que um papel côr de ouro fosco forrava, havia enormes vasos do Japão, com figurinhas de mulheres abrigando-se do calor sob largas umbelas de sêda, penteados altos seguros por pregos de feitios bizarros e cegonhas de bico vermelho adormecendo à beira de lagos, junto de cerejeiras em flor. Etagères de ricas talhas sustentavam graciosamente cristais cheios duma água que scintilava na claridade e em que esplendia a graça duma rosa ou a beleza do ramos de violetas, exalando-se em arôma. O que mais seduzia Frederico era a harmonia, a disposição bem achada de cada peça de mobiliário, contribuindo para o equilíbrio do conjunto, a correcção das linhas plásticas e decorativas. Por êste arranjo impecável, reconstituía êle a individualidade psicológica de D. Francisca, que se fanava na sua viuvez de longos anos, que devia ser inteligente, ter um sentimento acessível às emoções produzidas pela arte, possuir uma alma feita de tôdas as delicadezas e de tôdas as bondades. Para ela subiam o culto puro do seu afecto, a sua ternura de homem. Sem saber porquê, D. Francisca fazia-o lembrar com mais doçura de Júlia, que havia de ter, mais tarde, uma velhice assim, encantadora, um porte que inspirasse admiração e respeito, uns olhos em que vivessem milagrosamente as imagens dos sonhos mortos...

[125] Num gabinete ao lado, servindo de fumoir e de sala de jôgo, os homens entregavam-se com interêsse ao seu bridge, enquanto esperavam pela hora da debandada, discutindo, em voz baixa, escândalos sentimentais ou casos frustes de política. A atmosfera pesava, aquecida pela luz, carregada de perfumes. E a música de Mendelssohn ia dizendo, numa voz de sortilégio, a aspiração das almas pelos finos amores idealizados, tudo o que murmura nas florestas pelos crepúsculos religiosos, tudo o que suspira nas aragens, tudo o que sussurra nas fontes e nas folhagens. Conturbado, Frederico fechou a ilustração, levantou-se, deu algumas voltas, sacudido por uma emoção muito viva e muito forte...

Aquela música segeria-lhe uma outra que ouvira em casa de Nuno, por uma noite inspiradora e silenciosa, pouco depois de chegar à aldeia e de conhecer Júlia mais de perto. Nem um só pormenor lhe havia esquecido, tam violenta fôra a comoção experimentada. A sua inteligência tinha uma extraordinária argúcia. Relembrava o enlêvo daquela hora reveladora; a graça ideal do busto de Júlia, sentada ao piano; o banho luminoso que descia do candeeiro suspenso no alto e batendo em cheio na sua cabeça, aureolando-a; a ligeireza, dos seus dedos longos e brancos pousando ágilmente sôbre as teclas de marfim; o seu olhar animado e brilhante; o viço dos seus lábios vermelhos e húmidos; o jardim florindo ao luar; a massa confusa de sombra formada pelo parque, ao longe...

Entrou na sala do jôgo, parando durante minutos. A conversa banal dos homems enfastiava, sufocava-o o cheiro do fumo. Veio novamente para junto das [126] damas que sonhavam ainda sob a influência perturbante e emotiva da música. D. Felismina tinha acabado de tocar e sorria, cansada, encostando ao piano um braço nú, emergindo da alvura das rendas, redondo, gordo e puramente medelado. Frederico, gentilmente, cumprimentou-a.

―Sabe que é um nobre temperamento de artista?

―Ora! Gentilezas...

―Mas não, mas não! É perfeita. Não lhe parece, D. Francisca?

―De-certo! Eu acho-a admirável.

―E fica-lhe bem a modéstia―acudiu uma outra senhora, D. Maria do Céu, espôsa dum magistrado, muito nutrida, entre duas filhas magras e pálidas.

―Não é modéstia, D. Maria. É sinceridade.

―A música desperta em mim singulares comoções, fazendo aflorar tudo o que na minha organização há de mais elevado moral e mentalmente―disse ainda Frederico. É por isso que eu a considero a arte superior, pelos sentimentos e pelas ideias que inspira, quando os seus executantes lhe transmitem uma alma. E é êste, justamente, o seu caso, minha senhora.

―Para que há de zombar duma dilettante sem pretenções?―exclamou D. Felismina.

―Mas então, ninguêm me acredita, mesmo se digo a verdade! Arranja fama de blagueur e deita-te a dormir―comentou Frederico, risonhamente.

Demorou-se mais alguns momentos numa palestra que o aborrecia, pelo seu ar de cortesia convencional; e, por fim, despedindo-se, saíu, seguido [127]pelo olhar de D. Felismina, que outrora galanteara, fazendo nascer na sua ternura feminina uma fina flor de ilusão. A caminho de casa, pela rua mergulhada numa meia obscuridade que mais o entristecia, Frederico meditava na sua condenação atroz e monologava:

―Como custa ser honesto!

Efectivamente, a saùdade de Júlia acompanhava-o para tôda a parte, no passeio, no teatro, nas ceias ruidosas com amigos, nas reùniões familiares, velava-lhe os sonos inquietos, seguia-o sem repouso, vigiava-lhe a formação das emoções e dos pensamentos. Não podia separar-se dela um só minuto. Sentia-a tirânicamente no coração como um remorso conjuntamente aflitivo e suave, no sangue, como um fluido que o incendiava, nos nervos. Em vão procurava libertar-se. Para a apagar no cérebro e na alma, torturava-se inutilmente. Julgava-se abandonado de tôdas as afeições, mesmo de Nuno, que nunca mais dera sinal de si, desde que Frederico deixara a quinta, no terror de praticar uma vilania. Escrevera-lhe para lá uma longa carta, narrando-lhe o repouso inolvidável das horas que perto dêle e de Júlia passara durante duas semanas, pusera nas palavras mais vibração e calor, por imaginar que também ela leria essas linhas em que o seu sentimento transbordava de gratidão, dissera-lhe a solitude e a angústia dos dias que ia vivendo na cidade, longe dum lar que lhe mostrára nítidamente a realização da felicidade terrestre―e nenhuma resposta recebera. Porquê? Traíria êle, nessa confissão ardente, um segrêdo que ninguêm devia conhecer? Suspeitaria Nuno dalguma coisa? Não teria a carta chegado ao seu destino? Estas dúvidas pungiam-no.

[128] Enquanto caminhava, pelas ruas ermas que se esgueiravam como cobras na sombra que as fileiras irregulares de prédios projectavam nas calçadas, Frederico sentia um grande desalento subir e invadi-lo todo. Como a sua existência era estéril! Nem alegrias morais presentes nem confiança no futuro. Evocava, por uma especial associação de ideias e de sentimentos, a melancolia da sua vida desde os dias já remotos da infância, e, por instantes, todo o passado se iluminava aos seus olhos.

Aos oito anos, quando as outras crianças ricas brincavam e eram amimadas pelas mãos puras das mães, fôra êle metido num colégio como interno, depois de lhe vestirem um fardamento. No internato onde a sua meninice se enclausurara, deitava-se, levantava-se, ia para as aulas, para as refeições, para a banca de estudo, para os ócios do recreio, sempre ao toque duma sineta. A sua individualidade passiva resumia-se em obedecer; os deveres da disciplina vergavam-no, a êle que era então tam tímido, sem vontade, incapaz de rebeldias. Com que lucidez maravilhosa se lembrava duma época para êle desoladora! Não lhe escapavam os mínimos detalhes. Recordava, por exemplo, a ansiedade com que, tanto êle como os condiscípulos, esperavam a hora da folga, durante as lições enfadonhas que um homem imensamente calvo e de bigodes brancos―o snr. Justino―lhes professava. O snr. Justino tinha uma voz que soava falso, uma face engelhada, vestia um vélho frac muito coçado na gola e nos cotovelos. Os seus olhos, que eram vivos e pequeninos, faíscavam por detrás dos vidros das lunetas. Nunca se irritava, era fleugmático, pachorrento, as suas palavras arrastavam-se [129]no silêncio da sala―um silêncio tam profundo que, em junho, se ouvia o lento zumbido das moscas descrevendo, no vôo, movimentos giratórios incoerentes. Os rapazes chamavam a êste pobre professor, que era a imagem dos lutadores destroçados, o D. Ana. Escondendo-se com os livros abertos e postos ao alto nas carteiras, curvando o busto, deitavam a língua de fóra, faziam momices, trejeitos humorísticos, protestando assim contra a prisão nas idades em que as infâncias, como as flores, amam os grandes espaços livres, o tumulto, as indisciplinas. Por vezes, das bancadas elevava-se um murmúrio confuso, estalavam risos abafados, as solas das botas raspavam, impacientemente, o soalho frio e encardido. D. Ana, interrompendo a sua vagarosa exposição, erguia a cabeça, fitava um minuto os colegiais, que logo emmudeciam, atemorizados, dizia, na sua voz de falsete:

―Então, meninos! Que é isso? Mais respeito e mais atenção!...

A tranqùilidade restabelecia-se imediatamente, mas por pouco tempo. Perto de Frederico, um estudante com raras aptidões para o desenho fazia a lápis a caricatura do snr. Justino, com as lunetas dependuradas tristemente do nariz que sugeria o agudo e longo bico dum pássaro. A semelhança dos traços era flagrante e já com uma notável noção do grotesco. O caricaturista dava a sua obra humorística a Frederico, dobrada em quatro. Êle abria-a e lia por baixo da figura ridícula do mestre:―«Veja e passe adiante». Frederico via e passava, sufocando o riso na palma da mão com que comprimia a bôca. A caricatura corria assim tôdas as bancadas [130] dum extremo ao outro, despertando as hilaridades que não podiam expandir-se e que espalhavam a inquietação, o nervosismo, a impaciência, na aula. Por vezes, o prefeito, que era muito severo e a quem os rapazes denominavam de Mata e esfola, surgia de repente à porta. Na sua bochecha còrada e gorda, tôda rapada, barbeada de fresco, como a dum padre, espelhava-se a indignação. Lançava um schiu! muito sibilado que fazia entre os escolares o efeito duma ameaça...

Os rapazes odiavam-no, imputavam-lhe a responsabilidade de todos os castigos sofridos, a supressão da sobremesa e das liberdades do recreio, as longas e fastidiosas páginas de escrita em que se repete um verbo cem vezes―e prometiam vingar―se... Depois, D. Ana terminava a lição, os livros fechavam-se de estalo, com alarido formidável, uma sineta badalava na solidão e os colegiais saltavam as carteiras, com o bonet agarrado nas mãos, corriam para o jardim que floria ao sol, no esplendor das formas e das colorações, pulavam por entre os arvoredos que projectavam na areia branca do chão largas máculas de sombra oscilante.

Era a hora melhor e mais doce para os internos do Colégio. Formavam-se grupos, organizavam-se jogos, a gritaria tornava-se ensurdecedora. Dum céu muito nítido vinha uma luz muito loura que dormia pacíficamente nas clareiras. As mimosas enchiam-se de florações de ouro. Os adolescentes que pertenciam a classes mais adiantadas não se associavam aos divertimentos dos mais novos―passeavam dois a dois, liam versos rimados na solitude dos seus quartos, sonhavam com possíveis glórias literárias e tinham escondidos, [131]entre o colchão e o enxergão das camas de ferro, que recordavam tarimbas de caserna, romances de enrêdo complicado e sensacional, que devoravam às escondidas, no refúgio dos momentos de descanso. Alguns, mesmo, ocultavam-se com as ramarias das árvores, para fumarem cigarros...

Frederico reconstituía com verdade surpreendente todos os episódios dos seus longínquos anos de colegial, sem deixar esquecido o menor detalhe. Relembrava que já nessa era remota era infeliz. Nunca pôde criar amigos entre os camaradas, que o miravam desconfiados, que se afastavam dêle, que o satirizavam. Uma vez, insurgindo-se contra estas inexplicáveis antipatias, que não provocava, teve uma grave questão com um estudante, Pedro de Menezes, contundindo-lhe a face com um forte murro. Os guardas acudiram, foi repreendido severamente pelo director do Colégio, que nem sequer escutou as suas desculpas e privado dos folguedos do recreio por tôda uma semana. O conflito, que o tornou temido, mais o incompatibilizou com os condiscípulos. Passou a ser designado pelo nome irónico de Ferrabrás e repelido amargamente pelos escolares, que o detestavam...

Feitos os exames, vinham as férias, os descuidados meses de liberdade por praias, termas, quintas rurais, sem a tirania dos livros, sem os abomináveis toques da sineta, que tinham para êle o horror dum dobre a finados, sem as reprimendas dos mestres, quando as lições se não sabiam. A população do Colégio debandava alegremente. As casas ricas mandavam carros e automóveis para levar os seus; os mais modestos mandavam simplesmente um criado. [132]Frederico ia, então, para junto da mãe, já viúva, que andava sempre vestida de preto, rezando pelos corredores ou ralhando, em voz baixa, com os servos. Chamava-se D. Isabel de Noronha e havia casado, aos trinta anos, com o capitalista Simão de Noronha, muito mais vélho do que ela e que fôra fulminado por uma congestão cerebral poucos meses depois do nascimento de Frederico, único herdeiro da sua abundante fortuna porque uma sua irmãzinha morrera aos dois anos de idade.

Dentro da casa, Frederico sentia-se mais só do que no Colégio. A mamã, absorvida nos fervores da devoção religiosa, nos ardores do seu misticismo, mal reparava nêle, e não ser para o admoestar pelo barulho que fazia na vivenda, sempre de janelas cerradas à luz exterior, como se lá dentro se chorasse uma desdita permanente, como se a morte a povoasse. De manhã e à noite, ao levantar do leito e ao deitar-se, Frederico aproximava, com indiferença, o rosto da bôca materna e recebia um beijo frio e rápido. No fim do almôço, do jantar e depois do chá, ela obrigava-o a rezar, de pé, junto da mesa e de mãos postas, pela glória de todos os santos mencionados na Legenda Dourada, de Voragine, que tinha sempre sôbre a mesinha de cabeceira, perto dum castiçal de prata.

De vez em quando, vinham visitas, quáse sempre senhoras idosas tambêm severamente vestidas de preto, com quem D. Isabel se fechava, no oratório da casa, durante horas seguidas. Nestas ocasiões, Frederico fruía uma liberdade mais larga. Descia à cozinha, palrava com as criadas que se riam muito das suas diabruras, jogava o arco nos arruamentos [133] do jardim... Depois, as férias acabavam, a mamã reforçava o enxoval, puxava-o para junto do peito sêco em que nenhum desejo profano arfava―rosando-lhe as carnes duma ponta de sangue mais vivo―despedia-se dêle com o mesmo beijo frio que lhe causava arrepios, murmurava em voz sumida:

―Vê se tens juízo... Porta-te bem.

Frederico regressava jovialmente ao Colégio, de que já tinha saùdades, e ouvia os seus condiscípulos, com inveja e tristeza, narrarem uns aos outros o encanto das vilegiaturas por estâncias de águas e estâncias marítimas, das pequenas viagens recreativas com a família, das reùniões e das danças nos Casinos, onde alguns tinham arranjado namoros.

―E tu, Ferrabrás, onde passaste o verão?―perguntavam-lhe.

Frederico, por vergonha, para não ser humilhado, tinha vontade de mentir, inventando digressões maravilhosas; mas a mentira repugnava-lhe. Calava-se, ruborizado, afastando-se dos camaradas...

Mais tarde, concluiu os preparatórios, a mamã morreu duma doença do coração, foi nomeado um tutor para administrar os seus bens, aumentados considerávelmente pela viúva que vivia parcimoniosamente, que abominava o luxo como se êle representasse ou um pecado ou um escândalo.

Na Academia Politécnica travou conhecimento com Nuno, que como êle tirava o curso de engenharia, que era igualmente rico e órfão. As suas relações estreitaram-se mais de dia para dia, talvez por esta coincidência que os identificava. Aproximava-os uma singular semelhança de infortúnios, de temperamento [134]e de carácter e foram, durante seis anos, como dois bons irmãos. Nunca no afecto de ambos se levantou uma discórdia que os separasse um instante... E era êste o tempo mais doce e mais feliz da sua existència de homem, pelo menos aquele de que se recordava com maior ternura. Mas Nuno, uma vez, anunciou-lhe o seu casamento. Estavam, então, em Vizela, tôdas as noites se dançava no salão do hotel, e todos os dias se passeava no parque, se organizavam merendas no alto das serras, gericadas, barcarolas, no rio, ao som de guitarras românticas. Frederico assistiu à lenta formação do amor que encheu o coração de Nuno, que o levou para a felicidade conjugal, para as bemditas alegrias da paternidade, para os deveres e para as sérias responsabilidades da vida familiar. A princípio, tomou a inclinação do amigo por Júlia como um banal flirt, como um capricho de que nada restaria quando cada um fôsse para o seu lado. Depois, vendo-o desinteressado de tudo quanto não fôsse Júlia―que fielmente acompanhava para tôda a parte, com quem tôda a noite valsava ou conversava, em quem falava contínuamente como se ela representasse o símbolo das suas mais belas aspirações―sentiu que Nuno estava bem preso e bem apaixonado e que o desfêcho lógico daquele namôro seria o casamento. A partir de então, a sua vida fez-se mais solitária e mais despegada, os seus entusiasmos arrefeceram, perdeu tôdas as suas galvanizadoras confianças. Nesta solitude, porêm, era ainda relativamente feliz, até ao momento em que Nuno teve a má ideia de aproximá-lo de Júlia, já mãe.

―E aqui está―murmurou êle com infinita [135] desolação―o que um amor sem esperança pode fazer dum homem!... Que sorte!...

No ermo da sua casa desabitada, Frederico, no enorme silêncio que invadia os longos corredores, as salas sombrias com um desagradável cheiro e bafio, sentia tôda a imensidade da sua derrota. Era um vencido. Para êle, o futuro não tinha horizontes luminosos, desde que uma adoração impura, penetrando-lhe insidiosamente na alma e incitando-o a trair uma amizade fraternal, lhe cortara toda a possibilidade de vir a amar com paixão e pureza uma outra mulher que não fôsse Júlia. Revoltava-se contra aquela adoração, acusava-se a si próprio por não ter sabido manter uma absoluta impassibilidade de sentimento diante da espôsa de Nuno. A fatalidade pesava sôbre o seu destino, sôbre o seu coração, que empolgava com mão de ferro.

―Mas serei eu o único responsavel?― monologava.

E, na sua dor, alucinado por uma perturbação que lhe toldava o cérebro e a noção da equidade, quáse que responsabilizava Júlia pela sua beleza aliciante, pela sua superioridade de mulher e pelas suas admiráveis virtudes.



VI


Não podendo viver tranqùilamente perto de Júlia, com o seu segrêdo sempre oculto, nem longe dela, com a angústia interior que o devorava, Frederico procurou aturdir-se na febre duma vida em que se esquecesse, que o consumisse lentamente e em que corrompesse a parte pura do espírito, excitando a sua avidez de prazer nos delírios das paixões voluptuosas. Queria libertar-se dum suplício que tanto lhe atribulava a existência. A fatalidade retinha-o entre o amor e os deveres da lealdade para com um homem que era, mais do que o seu amigo, a única pessoa a quem consagrava um afecto profundo. Se, numa alucinação, obedecesse aos impulsos desordenados e abomináveis do instinto carnal, mancharia a limpidez do seu sentimento afectivo: e, só de pensar na possibilidade dum arrebatamento que o levasse a confessar a Júlia a sua adoração pecaminosa―que [138]ela, de-certo, repeliria indignadamente, porque era pura, honesta e refractária às tentações criminosas―uma dor muito funda agravava a sua exaltação física e o seu desequilíbrio emocional...

Notava, em todo o caso, que se tivesse a coragem, a audácia e o cinismo de praticar uma acção vil, não seria o padecimento de Júlia que mais vivamente o pungiria, causando-lhe mágoa e comiseração. A sua piedade ia tôda para Nuno, tam leal, tam comovido de bondade, dotado dum carácter do melhor ouro. Na sua perturbação, imaginava, por vezes, que todo o mal estava feito, que a situação criada pela sua loucura amorosa era já irremediável:―e concentrava-se, transido, para melhor reconstituir a figura de Nuno, no instante em que conhecesse o duplo ultraje à sua dignidade de marido e à sua honra de homem, errando alucinado pela casa erma, barafustando cheio de cóleras vingadoras, ferido na sua alma e na sua confiança, devastado, com a morte no coração e o calor da vergonha nas faces, acusando-o a êle com mais fulgurante raiva do que à espôsa, procurando-o por tôda a parte para lavar com sangue a afronta e a humilhação que o tinham maculado e coberto de escárnio. Então, diante dêste sofrimento, Frederico, espavorido, passava a mão trémula pelos cabelos, agitava-se violentamente para entrar na realidade das coisas, murmurava:

―É horrível, horrível!...

Readquirindo a serenidade e a lucidez, considerava como o seu crime seria monstruoso e sem perdão se êle não soubesse reagir vitoriosamente contra a fraqueza dos sentidos. Mas reagiria a todo o [139] transe, muito emhora a reacção o fizesse sofrer, afirmava Frederico a si próprio:―e parecia-lhe que a sinceridade com que se defendia de desfalecimentos de energia atenuava a imensidade da sua falta.

Foi numa destas crises fulgurantes, repetidas vezes provocadas pela desordem da sua conduta, que Frederico decidiu fugir da inquietação e do remorso, mergulhando na embriaguez dos gozos que a fonte impura dos vícios lhe oferecia como consolação lógica e única da sua singular doença. Ainda a princípio pensou que entregando-se, com delírio, à deliqùescència de todos os abusos, se tornaria indigno da amizade de Nuno e do afecto de Júlia: mas, no seu romantismo, sentia um júbilo íntimo em degradar-se por ela, em descer aos pântanos das misérias morais, erguendo sempre os olhos em èxtase para a mulher intensamente amada através de tudo, como os ergueria para uma claridade purificadora e divina.

Orgulhoso e curioso dos seus actos, havia de ir até ao fim, embora o caminho fosse errado e nêle se transviasse―porque era incapaz de conceber abnegações por si próprio.

Perturbado e cheio de confusão por esta ideia fixa, Frederico, que durante muitas semanas viveu completamente isolado, começou a aparecer de repente em tôda a parte, a freqùentar os cafés e os Clubes. Era novo, era rico, sabia insinuar-se, aliciar. Na roda dos seus conhecimentos houve espanto.

A ressurreição foi saùdada com ruidosa alegria, e logo alguns rapazes resolveram solenizar o acontecimento extraordinário com uma ceia em que o champagne festivamente estalasse e a verve corresse com uma scintilação dourada sob a brancura da [140] luz eléctrica. Alberto de Sequeira, que trazia no dedo um grande anel brazonado e se vangloriava de pertencer às raças finas, desejava um banquete sério e decente, em que os convivas fôssem de casaca, correctos e irrepreensíveis, como para uma mesa em que estivessem duquesas.

―Vejam que devemos isto a Frederico e a nós, à nossa classe social, à nobreza das nossas estirpes―comentou êle.

O Paiva, toureiro amador e guitarrista, insurgiu-se, porêm, muito desdenhoso de fidalguias e pragmáticas, bradando:

―Não, senhor! Nada disso. Trata-se duma festa pagã, para comemorar a volta à estúrdia e à pândega dum companheiro. Temos, portanto, de meter-lhe paganismo:―a rabona igualitária, a ninfa de gordos braços, lânguidos olhos e saborosos beijos. Olha agora a casaca! Não querem ver? Palavra de honra, é escandaloso!...

―Sim, é claro! Devemos meter-lhe a ninfa ! A casaca é fúnebre, e nós vamos para uma calorosa manifestação de regosijo!―concordou o Taveira, filho dum capitalista enriquecido na Argentina.

―Pois não é assim?―interrogou o Paiva.

―Mas...―atalhou Alberto.

―Não, filho! Não há mas nem meio mas. Venha o belo pagode, a bela bacante agitando no ar o seu tirso e saracoteando um maxixe desbragado...

―Muito bem!―acrescentou ainda o Paiva. A bacante e o maxixe, primeiro... O resto, é silêncio, como Hamlet dizia a Horácio.

Com efeito, a ceia realizou-se numa noite memorável, depois do teatro, durou até à madrugada [141] do dia seguinte e ficou marcando uma hora triste de desvio moral na existência de Frederico. Aí conheceu êle a mulher, a intrusa, que havia de exercer uma influência nefasta na sua vida e no seu sentimento. Chamava-se Branca, tinha vinte anos, resplandecia duma beleza capitosa que o fogo dos ósculos impuros ia queimando lentamente, era alta, loura, notava-se-lhe no rosto uma candura, uma espécie de virgindade que certas criaturas femininas nunca perdem por mais baixo que desçam nos charcos da miséria. Foi Paiva quem lha apresentou, exclamando irónicamente:

―Aqui tens tu um regaço de sêda onde os príncipes gostariam de dormir as suas séstas de amor. Infelizmente, pertence a um desgraçado país que nem amar sabe e onde não há príncipes... Tem de contentar-se com os filhos da nossa virtuosa burguesia! Mal empregada! Como o poeta célebre, esta Musa da orgia chegou muito tarde a um mundo muito vélho, caro amigo!...

Frederico apertou-lhe a mão friamente, rindo da apresentação.

―Na Grécia antiga―continuou Paiva―os filósofos da linhagem nobre e genial de Platão repousariam e meditariam sob a luz doce dos seus olhos com o respeito com que repousavam à sombra do Partenon. Branca seria a inspiradora, a deusa. Até talvez se lhe levantasse um templo, como à vaca Ísis, no Egito!...

―Ora! O cavalheiro está a chuchar comigo!...―exclamou ela, amuada.

―Agora, o que Branca desconhece, meu filho, é a linguagem sonora e harmoniosa em que falavam [142]os Imortais... «O cavalheiro está a chuchar comigo!» Vê tu que abominação. Se Péricles ouvisse esta Xantipa, morreria com uma síncope cardíaca ou correria a embriagar-se com o vinho das doces colinas de Atenas. Perdoa-lhe tu, que és generoso...

―E que não sou Péricles!―atalhou Frederico.

A ceia correu tumultuosamente alegre, e os convivas do «festim pagão», como havia anunciado Paiva, beberam mais do que os deuses de Homero. Frederico tinha ficado junto de Branca, que constantemente o acariciava com a suavidade do seu olhar cheio de promessas, que lhe floriu a botoeira com uma rosa e que, durante tôda a noite, revelou uma melancolia que mais vivo destaque imprimia à sua graça dorida. Alberto de Sequeira, toldado pelo alcool, com as faces escarlates, agarrado a uma companheira de Branca, a Eugénia, tam conhecida nas garçonnières da mocidade elegante, dava-lhe beijos e oferecia-lhe os seus pergaminhos com a mão de marido. Ela, rindo à gargalhada, recusava, dizia-lhe que não tinha vocação para espôsa.

―Vai para um convento, vai para um convento!―intimou Paiva, de pé, ao lado da mesa, erguendo o braço e apontando com o dedo.

―Sim! Talvez para um convento!―concordava Eugénia, enroscando os braços à volta do pescoço de Alberto. E então?...

A tristeza de Branca no meio da jovial estúrdia impressionou Frederico. Perguntou-lhe:

―Que tem?

―Nada! Estou hoje assim!... São dias.

―Tem «telha», é o que tem―afirmou uma [143] outra, Luísa, a quem Paiva fazia ardentes confissões, prometendo-lhe um scetro, uma realeza.

―Ou um scetro ou um poema. Escolhe―gaguejava êle. E pode ser que, para a imortalidade, te convenha mais o poema. Ainda não morreram Beatriz, Laura, Virgínia. Ainda nem sequer morreram aquelas loiras germânicas cantadas por Goëthe.

―Quem são essas damas?―inquiriu Luísa.

―São umas senhoras das minhas relações... Não é verdade, Frederico?

―Beatriz, Laura... Certamente! E damas muito finas!―asseverou Frederico.

Novamente se curvou para Branca, pegando-lhe na mão, mirando-a nos olhos, interrogando:

―E foi sempre assim triste?...

―Para que quere saber?

―Porque me interesso por si... Aí está!

―Acredito eu lá nesse interêsse!

Na mesa, onde brilhavam ainda nos cristais restos de vinhos e licores que pareciam pedras preciosas líquidas, desfolhavam-se as flores. O dourado fulgor da luz batia em cheio nos linhos, fazia reluzir o vidrado das porcelanas. Os criados entravam o saíam, cambaleantes de sono, coçando a cabeça, com os guardanapos sôbre o ombro. O ambiente aquecido pesava e sufocava. Frederico subiu uma vidraça que dava para fóra, sentido-se reanimar por uma lufada de ar frio. Sôbre a cidade, arqueava-se um céu picado de estrêlas, que já empalideciam no cerraceiro da treva que devorava tôda a vida. Por um momento, Frederico, encostado ao peitoril da janela, julgou-se aviltado. Experimentava a sensação desgostante de [144] ter caído numa imundície que o sujava, que o invadia dum nojo profundo; e mentalmente comparava a frescura de impressões de que um amor oculto e malfadado fizera vibrar a sua sensibilidade, a ventura risonha entrevista em exaltações de imaginação, o sôpro de alegria eterna que respirou junto de Júlia, com aquela torpeza, em que se afundava. A solidão da rua que, em baixo, se escoava na sombra, a frialdade do vento, tudo o que para êle havia de novo, de desconhecido, naquela noitada iniciadora, excitavam-no, sacudiam-no. Fumando, olhava as alturas celestes que, no esplendor das constelações scintilantes lhe sugeriam arabescos de luz, uma estranha feeria que ardesse, rutilasse na escuridão. Dentro, os beijos arrulhavam. Branca, levantando-se, aproximou-se de Frederico, encostou-se-lhe ao braço, dizendo numa voz de mimo e de fraqueza:

―Estou tam fatigada!

Êle voltou-se bruscamente, irritado contra aquela interrupção importuna que vinha quebrar-lhe o fio das lucubrações e fazê-lo reentrar de repente na realidade das coisas, mas logo se conteve diante da desdita duma mocidade e duma beleza que tôdas as brutalidades da luxúria iam contagiando e maculando; e, do fundo da sua bondade, ascendeu a emoção compassiva para tanta fragilidade e tanto infortúnio. A delicadeza de alma de Frederico tornava-o incapaz de ser grosseiro e violento com uma mulher, fôsse ela quem fôsse: e Branca, alêm de débil, tinha a graça romântica duma formosura a suavizar-lhe o rosto, o aspecto doentio, uma meiguice que parecia nascer da humildade dolorosa da sua vida e da escravidão do seu corpo. Isto amoleceu a dureza de [145] Frederico, apiedou-o. Pegando-lhe na mão que ela abandonou, disse:

―Cansada, hein?

―Oh! Muito cansada e morta por me ver longe dêste logar, acredite!―respondeu Branca.

―Então, não gostou, não se divertiu?

―Eu?!... Estou para aqui!...

Enquanto falava, Branca olhava-o com uma expressão em que havia ternura e sofrimento. Frederico pensou que aquela sensibilidade numa mulher costumada a vender-se era exagerada. Talvez ela fingisse uma dor que não sentia para o comover, para obter certas complacências que lhe agradavam, por cálculo ou por outra circunstância qualquer: mas, fixando-a mais demoradamente, pareceu-lhe surpreender nos olhos um sorriso que tremia e nos lábios pálidos uma súplica que não ousava denunciar-se claramente, com mêdo de ser repelida, e que no seu silêncio queria dizer:

―Leva-me contigo!... Sou uma companheira ainda desejável para algumas horas. Porque não experimentas? Farei tudo quanto me fôr possível para te distrair, para ser amável!...

Esta suposição comunicou-lhe aos nervos uma languidez sensual: e, avançando para Branca, que se havia afastado alguns passos e que aconchegava uma pele de repôsa à volta do colo friorento, exclamou:

―Pois partamos. Eu acompanho-a...

Nesse momento, Sequeira, com o charuto meio queimado na bôca, dormia com os braços apertados na cinta de Eugénia; Luísa bebia café com Paiva, pela mesma chávena; outros convivas da ceia jovial, espalhados pela sala, palravam, pesados e sonolentos. [146] Já através das vidraças se filtrava uma claridade matinal indecisa e o ar era mais penetrante e vivo. Frederico anunciou que se retirava e que levava Branca. Foi um alarido.

―O quê? Antes do nascer do sol?―interrogou com estranheza o Andrade estrábico.

―Certamente―afirmou Frederico. Não nos encontramos num estado de alma suficientemente puro para compreendermos e sentirmos a poesia da aurora.

―É uma perfídia!―gritaram muitas vozes.

―É sono! E eu tambêm me saio e levo Luísa!―acudiu Paiva.

―Mas, é o rapto das sabinas!...―exclamou o Andrade.

―Oh! senhores, que chiste êste diabo tem!―aplaudiu Paiva, enquanto os outros riam saborosamente.

Frederico vestiu o casaco, despediu-se, deu o braço a Branca, que o esperava arrepiada e frioenta.

―Que Eros vos seja propício!―disse ainda o Andrade, que nessa noite estava em veia.

Frederico, que descia, já o não ouviu. Ajudou Branca a subir para o automóvel que o tinha trazido, acordou o chauffeur que dormitava, encostado ao volante, e partiu velozmente, envolvido na carícia tónica da brisa matutina que o refrigerava e que rescendia às seivas de que se impregnava, adejando por quintais e jardins. Quando entrou em casa, com Branca, o sol elevava-se numa explosão de ouro, e uma leve poeira de luz errava, ardia sôbre os telhados, incendiava as vidraçarias, que relampejavam, irradiavam súbitos clarões...


[147]



Às duas horas da tarde, ao despertar do seu profundo sono, espreguiçou-se, bocejou. Prostrava-o uma grande lassidão, desgostava-o interiormente um tédio como nunca havia experimentado, tinha mau gôsto na bôca, sentia-se embrutecido. Branca dormia a seu lado, fazendo um pequenino volume sob a roupa. Olhou-a atentamente. Estava ainda mais pálida do que na véspera; à volta dos seus olhos havia um grande círculo arroxeado, a mão que tinha fóra da roupa era exangue e tam magra que se lhe adivinhavam todos os ossos. A pele da face e do colo, porêm, era duma brancura, duma transparência que mostrava nítidamente a rêde azulada dos vasos sanguineos; e no seu perfil havia uma regularidade, uma pureza, uma correcção de traços incomparáveis. Frederico esteve a considerá-la durante algum tempo, com uma piedade que a narração da sua vida atormentada e dolorosa―que Branca lhe fizera com os olhos rasos de lágrimas―mais aumentava. A essa piedade mesclava-se conjuntamente um desgôsto muito profundo e que êle não sabia explicar, uma vergonha íntima, uma humilhante sensação de vèxame. Arrependia-se já de ter compartilhado o seu leito com uma criatura de acaso, que se alugava às noites, que nunca tinha visto, por quem mal sentira um minuto de interêsse. Fôra aquela a primeira vez! Resistira sempre a trazer para casa as mulheres que na rua se ofereciam passivamente aos seus beijos, por pudor, por dignidade, por altivez de carácter. Que alucinação o afastara da honesta linha que traçara à sua existência [148]de homem? Que desvario lhe conturbara a lucidez da razão, não lhe deixando ver o que no seu procedimento havia de sórdido, de inferior?... Outra vez envolveu Branca num olhar vagaroso. Ela continuava dormindo e arfando de leve no ritmo da respiração. Frederico novamente se enterneceu. Teria ela, porventura, culpa de andar de mão em mão como uma rosa a que se aspira todo o perfume e que depois se abandona? Certamente que não. Era uma vítima do egoísmo dos homens que lhe apeteciam, por momentos, a beleza e a frescura da juventude e que em seguida, enfastiados, saciados, a repeliam. Cumpria o seu destino triste...

A obscuridade do quarto era cortada, de quando em quando, por claridades inesperadas que se filtravam através das frinchas das janelas. Frederico ouvia o ruído que vinha do exterior, do ar livre, da rua―murmúrios de conversas, de risos, de disputas, rolar de carros que passavam arrastando-se nas pedras da calçada.

―Deve ser muito tarde...―pensou.

Espreguiçou-se com lentidão. Tinha na cabeça uma desordenada multidão de ideas que não chegavam a clarificar-se, a definir-se límpidamente. Ia reconstituindo a scena da noite anterior, a alegria da ceia com mulheres―um espectáculo inteiramente banal para êle―os ditos humorísticos e picantes do Paiva... Acudiam-lhe à memória os mais apagados pormenores dessa festa de rapazes.

―E como hei de desfazer-me desta criatura, que tenho em casa, sem provocar curiosidades escandalosas no bairro?―monologou de repente.

Aí estava, na realidade, uma coisa bem dificil! [149]Morava num sítio muito povoado e muito indiscreto, havia mesmo, em frente à sua habitação, uma outra com vizinhas bisbilhoteiras que passavam os dias por detrás dos cortinados, espreitando, investigando, devassando. Uma delas, bem galante no esplendor dos seus vinte e quatro anos, direita como uma estátua, com uns olhos negros e perturbantes e uns seios que se arredondavam sob a macieza, dos tecidos da blusa como os das patrícias romanas sob o peplum, sorria-se com afabilidade sempre que o via assomar à janela saùdando-a cerimoniosamente... Durante muito tempo, Frederico contemplou-a com encanto, como se quisesse surpreender-lhe no rosto a revelação dum sonho de amor que, no seu coração virginal, se ia formando e desabrochando com a inocência e a beleza duma flor. Depois, cansou-se e esqueceu-a... Se ela visse Branca sair da sua vivenda, em pleno dia, alarmaria a rua, daria, da sua varanda, uma vasta publicidade àquela irreflectida aventura de Frederico:―e, quando mais tarde passasse, tudo seriam risinhos abafados e irónicos nas suas costas, segui-lo-iam todos os olhares escarnecedores, durante uma semana inteira a sua reputação constituiria o tema obrigatório e fundamental da eloqùência da vizinhança!... Era um solteirão, era independente, tinha um desdêm absoluto pelos juízos e pelas opiniões que os outros formulassem a seu respeito:―no entanto, a perspectiva de andar durante horas hilariantes exposto ao ridículo público e cheio de grotesco, vèxava-o. Precisava de ser prudente, de acautelar-se, não por Branca, que nada perderia, mas por si. E decidiu conservá-la em casa, até à noite, comer, mesmo, em sua companhia, um almôço que o Bernardo, [150] seu criado de confiança, iria buscar ao restaurante que freqùentava e, assim que as sombras nocturnas descessem, despedir-se dela com um beijo―e algumas notas de Banco. Aborrecia-o, porêm, o facto de ter de ficar uma tarde inteira fechado, diante duma pobre rapariga que fôra o seu capricho dum instante o que o não prendia nem pelas graças do espírito, nem pelos dons da inteligência e da cultura, nem sequer por uma beleza que começava a fanar-se, queimada pelo fogo da luxúria.

―Olha que estopada eu arranjei por minhas próprias mãos!...―murmurava, desconsolado.

A inexprimível sensação de desalento e de desgôsto que o minava desde que despertou intensificava-se na sua alma. Experimentava alguma coisa de inconcebível; a sua vida interior acelerava-se e fazia-o sofrer amargamente. Julgava-se com severidade:―ia caindo de baixeza em baixeza. Até onde chegaria?...

A certa altura das suas divagações, lembrou-se, subitamente, de Júlia: e esta lembrança tam pura era como uma acusação muda, pela torpeza moral em que principiava a debater-se. Se ela soubesse!... Se ela adivinhasse algum dia, por uma extraordinária intuição amorosa, vulgar nas mulheres de sensibilidade mais fina e de razão mais lúcida, que Frederico a amava e que, quando êsse amor era uma alvorada de poesia na sua alma, longe de o elevar, de o sublimar, de lhe inspirar as grandes bondades e as grandes abnegações, o impelia para os braços de criaturas que pertencem a todos e lhe fazia apetecer os beijos voluptuosos de bôcas femininas que osculam os homens que lhes pagam!... Se Júlia pudesse assistir em espírito [151]ao espectáculo do seu coração devastado diante da imagem luminosa dela e duma cortesã, que tôdas as noites dormia em leitos sempre diferentes! Absolvê-lo-ia dessa miséria? Não se sentiria ela salpicada tambêm pela lama em que Frederico se atolava?... Mas Júlia viveria na perpétua ignorância dos sentimentos impuros que acordavam no seu organismo doente e, mesmo que viesse a conhecer tantos desvarios, não se consideraria traída porque não queria dêle mais do que uma estima fraternal... Por entre a névoa das emoções opostas que o faziam vibrar, Frederico raciocinava ainda com certa clareza. A crise por que estava passando sugeria-lhe palavras que um dia tinha lido em Taine. Compreendia naquele momento que a vida humana―a do corpo ou a da alma―era infinita e de uma imensa multiplicidade: mas que apenas certas das suas porções, certos dos seus instantes, mereciam subsistir, como expressões conscientes superiores. Êsses instantes, essas porções, a que aludia o filósofo excelso, eram marcados pelas atitudes morais que nobilitam o ser pensante. Fóra disso, nenhuma grandeza existia!...

Levantou-se vagarosamente, para não despertar Branca no seu sono. Ha quanto tempo―pensava Frederico―ela não teria uma hora tam sossegada, tam calma como aquela! Nem sempre encontraria amantes condescendentes como êle!... Uma caridade igual e tranqùila iluminava o quarto. Sôbre uma cadeira, amontoado e amachucado, estava o vestido da pobre flor de todos, tendo por cima o espartilho de setim côr de rosa que êle lhe havia ajudado a despir, na pressa violenta de aspirar o perfume de amor que a sua carne exalava. Sôbre uma outra cadeira, [152]pousava uma pele de raposa preta do Japão e um chapéu de palha de Itália dum tom de ouro fôsco picado pelo colorido suave de dois ramos de lilases. Deu alguns passos, com os pés nus, no tapête de Bruxelas, que espalhava uma nota de confôrto e de elegância no compartimento; e, hesitante, voltou-se ainda para olhar Branca. Sôbre a alvura do travesseiro, destacava docemente a mancha fulva duns cabelos louros desmanchados, emmoldurando um rosto sereno e branco, de linhas muito finas. Uma colcha de sêda escarlate bordada a matiz desenhava nítidamente as formas correctas do gentil corpo adormecido. Como Branca era linda e digna de piedade! E o que a vida, com as suas impurezas e as suas terríveis degradações, fizera duma alma outrora virginal que poderia ter sido a graça divina dum lar, uma adorável espôsa, uma admirável mãe capaz de todos os sacrifícios e de tôdas as exaltações da ternura!...

Passou ao quarto de banho, que ficava próximo, mergulhou ávidamente na canôa de ferro esmaltado que Bernardo enchera, duma água fria que o tonificou, enxugou-se a um lençol felpudo e começou a vestir-se lentamente. Mais desanuviado, com a pele cheirando ao perfume do sabão com que se lavara, Frederico contemplou novamente Branca e observou que uma série de sensações antagónicas se sucediam umas às outras na sua emotividade. A verdade apresentou-se diante dos seus olhos. Afinal, Branca não era mais do que uma criatura trivial que se entregava a todos os que a desejassem. O seu ventre estéril era conhecido de muitos olhos lúbricos; a sua bôca havia sido esmagada por milhares de bôcas masculinas, em beijos bestiais. Odiosas imagens fisicas [153]intermináveis desfilavam diante dêle. Que interêsse poderia aquela mulher, profanada e ultrajada, despertar-lhe? Como se arrependia de a ter trazido para a sua habitação, para o seu leito! O contacto com ela manchara-o. E manchara igualmente a limpidez do seu sonho, do seu ideal, deformara a resplandecência duma beleza vislumbrada que nunca atingiria, de que não queria mesmo aproximar-se, mas que, a-pesar disso, mesmo de longe o iluminava e lhe causava orgulho! Esperava agora ansiosamente a hora em que lhe fôsse possivel desembaraçar-se de Branca, para se dar com prazer à recordação de Júlia. Parecia-lhe que essa recordação o purificaria, como uma água lustral...

A um movimento mais brusco de Frederico, devorado por impaciências que o agitavam, Branca acordou, abriu os olhos inchados de sono, sorriu-se para êle, com um sorriso em que havia gratidão, lassitude, contentamento.

―Já a pé?... É curioso. E eu que não o senti levantar!...―murmurou ela, quebrada por uma fadiga feliz.

―Pudera! Se dormias profundamente!...―respondeu Frederico.

―Quantas horas são?

―Duas e meia!...

―Ih! meu Deus!... Que preguiçosa!―exclamou, sentando-se no leito.

As longas tranças do cabelo envolveram-na tôda até à cintura. Através da ténue nuvem de ouro que formavam, alvejavam brancuras da camisa de bretanha fina, de rendas vaporosas. O bafo morno que se emanava dos lançóis amolecia-a. Tinha as faces [154] còradas pela circulação mais apressada do sangue, e os seus olhos azúis iam-se enchendo duma luz que mais os azulava, quáse os espiritualizava. Frederico aproximou-se da beira do leito, acariciou-a levemente, passando-lhe os dedos pela face. Admirava-lhe a formosura, qualquer coisa de virgíneo, de inocente que ainda existia nela. Uma comoção estranha perturbava-o. Ah! Aquela linda rapariga―uma primavera em flor―erguendo-se do seu leito que sempre fôra casto, que nunca agasalhara corpos alheios, comunícava-lhe a impressão singular dum noivado:―e esta ideia subtilizava-o, tinha para o seu sentimento uma venturosa novidade, fazia-o esquecer de que Branca era a noiva de quem a queria.

―Ainda nem sequer me deu um beijo!―queixava-se ela, prendendo as mãos nas mãos de Frederico... Bons dias!

Êle beijou-a, sorrindo tristemente, e notou a delicadeza de Branca, que não ousara tratá-lo por tu. Abraçando-o, suspirava.

―Estás triste?―inquiriu Frederico.

―Estou. E, no entanto, nunca nenhum outro homem me tratou com tanta bondade...

―Então, como se explica essa tristeza?

Branca, repelindo-o brandamente, quis levantar-se.

―Responde!...

―Eu não sei responder... Queria ficar sempre aqui, perto do senhor... É talvez por isto, por ter de ir-me embora... Naturalmente, nunca mais nos tornaremos a encontrar...

―Porque não?

[155] ―Eu sei lá!... É sempre assim. Os amantes duma noite nunca mais se encontram...

―Mas, eu não sou como os outros―afirmou Frederico, fixando-a demoradamente.

―Ora! Tantas vezes tenho ouvido isso!...

Nas palavras de Branca havia uma frieza misturada de desalento que fazia mal a Frederico. Enquanto ela se penteava, sorrindo-lhe sempre―num sorriso cansado e automático―êle considerava-a mudamente, sendo invadido, de repente, por uma aversão instintiva, por uma repugnância inexplicável. E sob a influência de impressões opostas, observava a incoerência das suas sensações que umas vezes lhe tornavam apetecida aquela beleza que ia morrendo como uma rosa cortada e outras o forçavam a uma grande violência sôbre si próprio, para a não repelir brutalmente, aos empurrões, causar-lhe sofrimento, obrigá-la a chorar. De que razão psicológica oculta derivaria tudo o que nos seus sentimentos havia de ilógico, de inconseqùente? Com mêdo de soffrer mais, Frederico nem sequer ousava interrogar-se, procurando definir a laboração tumultuária da sua vida íntima.

Branca, acabando de vestir-se, sentou-se, extenuada, numa cadeira. Frederico, acendendo um charuto, passeava no quarto, a largos passos, enquanto ela o seguia com o olhar inquieto. Esperava... O quê? Naturalmente que êle a mandasse embora, pagando-lhe o amor duma noite. Na sua atitude, na expressão do rosto macerado, em que punham fundas manchas escuras as olheiras de bistre, havia resignação e melancolia. Frederico parou junto dela, encarando-a.

―Estás pronta, hein?...―perguntou.

[156] ―Estou pronta―repetiu Branca.

―Queres ir-te embora?... Mas, é que não pode ser já! Tens de demorar-te até à noite...

―Não tenho que fazer...

―Ainda bem! Almoças comigo, se isso te não desgosta. Irás depois...

Um clarão de alegria, que Frederico surpreendeu, faíscou nos olhos de Branca. Suspirou, fundamente, murmurou como se falasse para a sua consciência:

―Tenho sido tam desgraçada!...

Este grito sincero duma alma que espontâneamente se confessava chocou Frederico, que se sentou junto dela, tomando-lhe a mão que Branca abandonou o que êle efusivamente apertou entre as suas, pensando nas criaturas que incessantemente corriam atrás da ilusão duma felicidade sem nunca a alcançarem. Tambêm êle era desgraçado! Tambêm êle aspirava a uma irrealizável ventura que só um amor impossível poderia oferecer-lhe. Um destino malfadado irmanava-os na tristeza e no infortúnio:―e, talvez por isso, a sua piedade transbordou.

―Branca, queres ser a minha amante?―exclamou de repente, aturdido.

―Quero!―acudiu ela prontamente e tôda alvoraçada.

―Medita!... Se aceitas, serás só para mim... Na tua situação, isto não é fácil. Mas, eu é que não me conformarei com partilhas. Ouve bem!... Não terei rivais.

―Aceito―afirmou ela, novamente, com firmeza na voz.

E, como Frederico a envolvesse num olhar [157] perscrutador, que se demorava a investigá-la, Branca, levantando-se, foi para êle, abraçou-o esteitamente, dizendo:

―Oh! meu filho, como eu te agradeço esta hora de paz e de consolação que me vem da tua oferta... Olha para mim... Assim, não!... Nos olhos... Isso mesmo! Agora, repara... Juro-te que serei só tua e que te não traírei, enquanto tu me quiseres!...

Enternecido, Frederico beijou-a longamente, como se o seu beijo fôsse o princípio duma doce e jubilosa festa amorosa que principiava. Almoçaram e, durante a refeição, Branca, que a intimidade que se ia estabelecendo, tornava audaz, contou-lhe os seus infortúnios e as suas amarguras, còrando muitas vezes por ter de ferir o secreto pudor da sua alma. A sua história era inteiramente igual à história de tôdas as mulheres perdidas. Uma paixão absorvente e cega em que se confia e a que tudo se sacrifica, a queda, o abandôno, a miséria final duma existência passando de mão em mão, enquanto vicejam a florescência e a beleza da mocidade. Ouvindo-a, Frederico compadecia-se, prometia-lhe daí para o futuro uma vida serena e uma emoção pura que a aurorizasse.

―Não me enganes!―suplicava Branca. Se depois de tudo isso hás de deixar-me, então, o melhor é separarmo-nos de vez...

―Não crês na minha sinceridade?... Não tens fé em mim?―interrogava Frederico.

―As desilusões teem sido tantas!...―respondia ela, duvidosa.

E baixando os olhos, na voz humilde e baixa [158] de quem revela uma vida de vergonhas, foi dizendo tudo o que deixara pelo mundo fóra:

―Em minha casa, quando eu de lá saí, havia criancinhas pequeninas, que eram minhas irmãs e que eram puras. Nunca mais as tornei a ver...

Ao baixar da noite, desdobrou-se sôbre a cidade um denso lençol de sombra. Branca saíu contente, com a esperança de que Frederico se encontraria com ela, volvido pouco tempo, para a continuação dum capricho sentimental que ainda lhe parecia absurdo, tanto a havia surpreendido a resolução inesperada do seu amante dalgumas horas; e êle, ficando só no imenso casarão de treva e de silêncio, experimentou uma sensação de tédio mais fundo. Tôda a vida lhe parecia deserta, especialmente a vida emotiva; e, recolhendo-se, a si mesmo perguntava se valeria a pena vivê-la, sem encontrar nas almas e no mundo exterior alegrias puras e interêsses morais. Sentado numa cadeira de braços, junto duma mesa de pau preto sustentando jarras com flores que Bernardo tôdas as manhãs substituía, ia sofrendo o seu permanente suplicio. Verificava que, em certos momentos, ideias claras, fáceis, luminosas, o obrigavam a obedecer-lhes alegremente, e que, em outras, essas ideias eram sombrias, indecisas, indecifráveis, e o assustavam. Encontrava-se, precisamente, num dêstes últimos instantes em que as inquietações interiores o consumiam, como as brasas se consomem no fogo intenso. Justos céus! Como o seu desamparo era grande! E cada vez a solidão mais pesava à sua volta e mais insuportável lhe tornava a carga que trazia sôbre os ombros. Naquela vivenda em que nascera, erravam os espectros do pai, que não chegara [159] a conhecer, o da mãe, que morreu na sua infância, o duma irmã, Maria das Dores, que era afilhada de Nossa Senhora, com quem brincara na meninice e que tambêm se sumira nos negros boqueirões da morte. Da sua casta, que se extinguia, era êle o derradeiro representante directo: e entrava no outono da existência sem ter a coragem e a abnegação de criar uma família. Porque não procuraria uma doce mulher que fôsse capaz de fazer um luar de ventura à sua roda, de oferecer-lhe o peito para êle repousar a cabeça nas horas de angústia, em vez de levar para o leito criaturas que transformam o divino sentimento do amor numa mercadoria e numa torpeza? Ah! como Nuno lhe era superior! Êsse sim! Havia seguido, na sua marcha para os tempos vindouros, o caminho da verdade e da beleza, de que êle se afastara―de que se afastava ainda mais, de dia para dia!...

Com a imaginação perdida na melancolia destas evocações aflitivas, via novamente a imagem de Júlia erguer-se, radiante de luz, ante os seus olhos: e, então, lembrava-se com infinita saudade do lar inefável e calmo de Nuno, da felicidade perene que o envolvia, radiosa como uma nuvem dourada. Enquanto êle para ali estava curtindo o seu padecimento, desgarrado de tudo quanto fôsse humano, fecundo, produtivo, sob o ponto de vista psíquico e material, Nuno, no seu escritório, e depois de um dia fértil em trabalho útil, em inteligência, repousaria lendo um livro, perto de Júlia, que a claridade aureolava e que pousaria de momento a momento a agulha da costura para colhêr um beijo na bôca nobre e risonha do marido. E não haveria acidez, cólera, impurezas, nos corações dum e [160] doutro, unidos pelo mesmo afecto, nutrindo-se de idênticas aspirações, enlevando-se numa confiança ilimitada... Ou talvez que Júlia, ao piano, no sossêgo nocturno, tocasse uma bela página em que vozes enigmáticas narrassem, numa linguagem de som e de harmonia, a ascensão dos espíritos subtis para a purificação e para a graça. Dentro do seu berço, o filho de Nuno, ainda pequenino, dormiria inocentemente, lindo como um botão de rosa, e tôda a casa adormeceria tambêm ao embalo suave da música. Isto sim! Era viver! Mas êle, que com tanta ansiedade buscava a ternura, não passava dum esquecido do destino, dum foragido...

Fóra, na rua, começavam a acender-se os candeeiros de iluminação pública. A chama do gás, torcendo-se à ventania, projectava sôbre as vidraças sombras oscilantes e fantasmagóricas. O ruído afrouxava. Bernardo, entrando de súbito na sala, perguntou:

―Para que horas quere V. Ex.a o jantar?

―Eu não janto hoje, criatura―afirmou Frederico, erguendo-se e dirigindo-se ao criado.

―Santo nome de Maria! Não janta?

―Ou por outra, janto fóra. Arranjem-se lá vocês, tu e a Rosalina.

―Então, está bem!―disse Bernardo, retirando-se, sem estranhar já as excentricidades do amo, desde que nessa manhã o vira almoçar com uma mulher da vida airada, em sua própria casa.

Que fatalidade o perseguia!―pensava Frederico, reatando novamente o fio das suas meditações. A ambição duma família estava agora para sempre comprometida, porque êle não poderia ligar-se a uma mulher que não amasse, que havia de ser-lhe [161] odiosa, sempre que se lembrasse de Júlia, sua única e infeliz paixão... Nesse instante, Frederico via-a bem real, duma personalidade bem determinada, diante de si. A sua beleza era perigosa. Nos seus olhos existia um ardor secreto que denunciava a amorosa. Parecia-lhe que ela tinha uma dessas expressões pensativas que nunca se definem com nitidez e que tanto seduzem, porque denunciam almas de indizíveis delicadezas. Frederico sentia-a em si, consagrava-lhe a adoração perseverante, o culto absoluto, o amor que se bastava a si próprio e que duraria, veemente, vivaz, enquanto êle tambêm durasse. A esta certeza, revoltava-se mais uma vez. Com efeito, que maus fados o tinham levado para casa de Nuno! E que fraqueza lamentável a sua, apaixonando-se pela espôsa do seu melhor amigo, sem que reagisse violentamente contra o amolecimento da vontade, o desfalecimento do coração!

Júlia insinuara-se―sem querer, porque era honesta―na sua admiração, no seu desejo, na sua carne, em todo o seu ser de homem: e, sendo tam pura e tam santificada de bondade, envenenara-o para sempre, fizera dêle alguma coisa de vil e de abjecto que entrava num santuário familiar não para purificar-se ao contacto das grandes virtudes, mas para trair. Porque já traía Nuno, não por actos irreparáveis, mas pelo sentimento!...

Sôb a influência mórbida dêste raciocínio, exasperou-se. Sufocava. Os olhos dardejavam-lhe um brilho especial. Sentia a necessidade de aturdir-se, de bestializar-se, de apagar tôda a claridade da consciência. Outra vez evocou Branca. Iria para ela, embora se afundasse; havia de procurar nos ásperos delírios [162] da sensualidade ou nas alucinações do alcool o sossêgo indispensável que lhe fugira, com o desespêro com que Alfredo de Musset procurava nos copos de absinto o reflexo verde dos olhos da Quimera! O que êle pretendia era esquecer Júlia, por todo o preço―mesmo à custa da sua dignidade...

Como as noites fôssem já frias, vestiu um sobretudo, pôs o chapéu, pegou nas luvas e na bengala e saíu, mergulhando no movimento exterior, que o acalmava. Ao chegar à porta da rua, viu, na casa fronteira, as vizinhas que, por detrás dos vidros da janela, o espiavam. Irritado, não as cumprimentou, seguindo em passos nervosos pela calçada. Tinha feito uma promessa a Branca. Ia cumpri-la, com o coração tranzido e com a certeza de que se dirigia para o mal e para uma nova dor...



VII


Certa manhã, ao entrar em casa depois de tôda uma noite passada com Branca―já instalada numa luxuosa e recolhida vivenda que Frederico para ela escolhera numa rua solitária da Foz e onde reùnira tudo quanto pudesse oferecer bem estar ao seu egoísmo e encanto aos seus olhos saudosos de beleza artística―encontrou uma longa carta de Nuno que o correio trouxera e que Bernardo solicitamente pousara sôbre a larga mesa do seu gabinete de trabalho, num sítio bem visível. Durante muito tempo conservou-a, hesitante, nas mãos, sem ter a coragem de rasgar o envelope. Mirava-a, remirava-a, voltava-a entre os dedos nervosos, estudava a letra miúda e firme do amigo, como se quisesse perscrutar nas particularidades exteriores o oculto sentido do que ela dizia, das revelações gratas ou dolorosas que iria fazer à sua inquietação de espírito cada vez mais violenta e que os [164] delírios da sensualidade carnal não apaziguavam, ao seu sofrimento moral de dia para dia mais veemente, roendo-o com a lentidão com que um acido corrosivo rói certos metais. Era a primeira vez que Nuno lhe escrevia, desde que Frederico deixara a quinta rural, afastando-se duma atmosfera mórbida que fazia mal aos seus nervos, que lhe desgastava a energia, que lhe amolecia a vontade, fugindo à permanente adoração de Júlia―uma adoração criminosa que inutilmente se esforçava por abafar dentro do coração e que subtilmente crescia sempre, invadindo-o todo, cegando-o, alucinando-o, vivaz como uma planta daninha que se quere destruir e que constantemente surge, com teimosia, à superficie da terra. Que iria Nuno dizer-lhe? Inconscientemente, na ignorância do seu amor impuro, o amigo trabalhava contra si próprio, avivando coisas que Frederico pretendia, em vão, esquecer para que mais de-pressa curasse os seus nervos doentes, a sua alma enfêrma!...

Passeando agitadamente, com a carta apertada na mão trémula, Frederico notava que, por uma singularidade inexplicável, tôda a gente, mesmo as pessoas que mais estimava, conspiravam, contra a sua paz, contra a sua ventura. Nuno, por exemplo, havia de falar-lhe da sua felicidade conjugal, da ternura de Júlia, da sua perfeição como mulher e como espôsa, o que o atormentaria, agravaria excepcionalmente o padecimento que trazia consigo. Os beijos de Branca, a graça, a formosura esplêndida do seu corpo nú vibrando dos desejos voluptuosos que êle acendia, só lhe avivavam na imaginação ardente o fogo da paixão alucinante pela outra, por Júlia―uma complexa paixão em que havia conjuntamente [165]delicadezas, mimos, aspirações, purezas quáse místicas e as impulsividades grosseiras duma luxúria que maculava as emotividades mais castas. Vivia, por isso mesmo, numa perpétua ansiedade, sobressaltado de temores contínuos diante dos insignificantes factos que pudessem recordar-lhe a mulher que a todo o transe deveria olvidar para seu sossêgo, por imposições da sua dignidade ainda não totalmente amolecida. Estava reduzido à necessidade de procurar a calmaria interior, aturdindo-se nas orgias sensuais com Branca, nas noitadas com os conhecidos pelos teatros e pelas mesas dos restaurantes, em que bebia até perder a lucidez da consciência, ou a fugir ao seu semelhante, acolhendo-se ao isolamento da sua fria casa de solteirão, onde não encontrava nada daquilo que o sentimento imperiosamente lhe reclamava e onde, frente a frente, o encarava o seu pior inimigo, que era êle próprio. Estas rudes emoções, de que lhe era impossível emancipar-se, iam-lhe aviltando o carácter, extenuavam-no físicamente. A fôrça, a resistência, a saúde, escapavam-se-lhe do corpo como a tranqùilidade se lhe havia escapado da alma. Durante horas seguidas, nada mais sentia do que o pêso esmagador do infortúnio que teimava em acabrunhá-lo; e, se tentava reagir era para se crivar de sarcasmos, de ironias cruéis e fulgurantes, súbitamente avassalado pelo prazer secreto de destruir-se, de se afundar mais nas torpezas que dilaceram e matam, de acabar, com um golpe feroz e rápido, aquela contínua tortura de todas as horas, fermentando nas impurezas emocionais, de que era feito o seu abjecto sêr de homem. Em Frederico, exauriam-se as fontes psíquicas de que brotam as seivas criadoras que engrandecem [166]e nobilitam as criaturas. O seu aniquilamento tinha começado: mas, por cobardia moral ou por orgulho, evitava tudo quanto pudesse sobressaltá-lo neste vagaroso trabalho de desagregação, e lhe perturbasse a alegria feroz com que assistia à sua devastação desordenada...

Ao cabo de demoradas cogitações, aproximou-se duma janela e olhou para fóra. A manhã corria serenamente, iluminada por um fulvo sol de inverno que caía do alto sôbre a cidade como o pólen duma imensa flor de ouro. Na rua, curvada sôbre a carga do seu gigo cheio de hortaliças frescas, passava uma mulher lançando nos ares um pregão vibrante, com a saia rôta embrulhando-se-lhe nas pernas. Bernardo entrou de repente, perguntando a Frederico se tinha visto a carta que o homem do correio trouxera.

―Vi. Tenho-a aqui. Vou lê-la―respondeu.

E, quando o criado saíu, fechando a porta, Frederico, vencendo, por uma decisão súbita, tôdas as irresoluções que o alanceavam, rasgou com desespêro o envelope, desdobrou a larga fôlha de papel ennegrecida de tinta e encetou a leitura. Logo às primeiras palavras se lhe desenrugou a face que envelhecia e se abaixou a curva das suas sobrancelhas contraídas. Nuno narrava-lhe a labuta constante a que se entregava na quinta, sob as soalheiras de verão, que lhe tisnavam a pele, sob as chuvadas de outono, que lhe enrigeciam a fibra, comunicando-lhe mais elasticidade. As obras da vasta propriedade, alugada ao caseiro, estavam quáse terminadas. Instalara o vélho Mateus e a família num «palácio», só para que perto dêle não houvesse o espectáculo dissolvente da miséria humana; rompêra mais minas que, de [167] muito longe, da encosta dos montes próximos, traziam em levadas uma água muito clara e cantante que, pelos estios calcinadores, regariam as terras, levando o alento e o vigor às culturas benéficas: transformara tudo. Entusiasmado, confiava-lhe os seus projectos futuros. Andava com ideia de se fazer lavrador, de abandonar para sempre a cidade, que só visitaria de fugida, para tomar um banho de civilização, regressando logo à simplicidade do campo, à placidez rústica. Se esta vontade vitalizadora, que o galvanizava, não viesse a esfriar, teria, mais tarde, em estábulos bem cuidados, manadas de vacas que lhe dariam o bom leite, o queijo, a manteiga. Exploraria a indústria, tam atrasada entre nós, dos lacticínios, concorrendo para a riqueza do país com uma parte da sua fértil actividade...

Frederico interrompeu a leitura da carta, para murmurar humorísticamente, como se conversasse com o amigo:

―E nas horas vagas, como Vergílio, podes fazer versos, escrever as Geórgicas ou as Bucólicas!...

Sorrindo com a sua observação, reencetou a longa epístola de Nuno que ia desenrolando outras empresas que lhe pareciam fabulosas, esquecido completamente de que Júlia lêra aquelas linhas que lhe eram dirigidas, que os seus olhos pensativos haviam pousado em cada palavra, que ela fôra mesmo composta a seu lado, num daqueles demorados e pacíficos serões que constituiam um dos maiores encantos da vida familiar do amigo. Nuno falava agora, sempre com o mesmo júbilo, em granjas, espigueiros, eirados, tulhas e celeiros para os cereais que colheria, adegas para o vinho, apetrechos de lavoura.

[168] «Quero―dizia êle―trabalhar para aumentar assim a fortuna do meu filho―que está um figurão, um grande senhor de olhos espantados e cara rabujenta, que se ri de tudo com uma alegria a que as misérias da existência ainda não comunicaram o seu veneno e a sua dôr―de outros filhos que venham, porque me não satisfaço com ter únicamente por descendente e representante um sêr pequenino e frágil que a menor doença pode arrebatar ao meu afecto. Júlia é da minha opinião...»

Esta última frase transtornou Frederico como um insulto à pureza do seu amor, como uma maldição que tornasse estéril o seu sentimento. Parecia-lhe que Nuno o ofendia e o escarnecia, confiando-lhe a esperança que alimentava de Júlia lhe dar mais filhos―filhos que seriam seus, gerados no calor genesíaco dum beijo profundo em que duas bôcas, que se queriam, se transformavam numa só bôca, em que dois corpos, latejantes e convulsionados pela febre da fecundidade, se fundiam num só corpo! Uma cólera absurda subiu do seu coração por essa mulher que se lhe apoderara da alma e que ao marido entregava tudo e ao amante ignorado nada oferecia que o tranqùilizasse. Para Nuno, para a sua satisfação, para a sua vaidade, para a sua felicidade completa, a vida jorraria ininterruptamente do flanco de Júlia, o seu ventre geraria os sêres quáse divinos pela graça e pela inocência―sêres admiráveis em que ambos, através do tempo, se prolongassem, se perpetuassem. Para êle, que tanto a amava, e que, por isso tanto sofria, não havia mais do que uma amizade certamente sincera, mas que não bastava à sua ansiedade dolorida e que repelia com amargura! Irritado por êstes [169] raciocínios, Frederico nada mais via em Júlia do que o facto brutal que derivava da sua ligação legítima, com Nuno―facto que manchava a purificação do amor impossível que lhe consagrava, sem que ela sequer o soubesse. Considerava que o seu drama passional se transmudava em comédia. Sentia-se ridículo e exagerava o que na sua situação havia de grotesco, para conseguir desdenhá-la, já que a não podia olvidar. Estava, certamente, fóra da equidade, da razão, da justiça, mas achava que a sua revolta era natural... Por fim, reagindo sôbre si próprio, reentrou na realidade das coisas, monologando, revoltado:

―Já não haverá então limites para a minha miséria?

Com que direito, efectivamente, se insurgia êle contra a ternura de Nuno pela espôsa? E com que direito tambêm a reclamava para si, como se ela lhe pertencesse, sem se lembrar do que devia à sua dignidade, á sua afeição fraternal, ao respeito por um lar sagrado onde entrara como um amigo e donde saíra enxovalhado, ennodoado por um sentimento criminoso que fôra impotente para sufocar, à nascença, no coração? Estaria por tal forma perdido para a vida moral sadia, honesta, elevada, que não compreendesse a vileza suprema da acção que praticava? Mas a sua libertinagem―a libertinagem em que esperava consumir-se, matar a sensibilidade, endurecer, embrutecer―era recente...

Arrependido, pedindo íntimamente perdão a Nuno da sua loucura, pegou novamente na carta que tinha pousado sôbre o peitoril da janela, continuando a lê-la. O amigo anunciava-lhe que o inverno havia chegado, com as suas intermináveis [170] noites de treva, os seus cinzentos dias de vento e de chuva. As árvores do parque já não tinham fôlhas, a paìsagem dos arredores da quinta parecia morta ou embebida num sonho inerte em que as vidas futuras germinavam, preparando-se para ascender à luz. Nuno e Júlia levavam agora uma existência mais recolhida e monótona, porque não podiam sair de casa. A água, descendo em torrentes das serras, alagava a planície, transformava caminhos, córregos, azinhagas, barrocais, em rios lamacentos, tornava intransitáveis aquelas estreitas veredas, entre densos silvados, que pelas primaveras românticas floriam e se perfumavam com o aroma das madre-silvas e das roseiras bravas e onde, nas manhãs de verão, amadureciam as negras amoras silvestres...

«Mas―concluia Nuno―eu tenho os meus livros, que leio e releio para colhêr alguma humilde parcela da verdade e da beleza que através dos séculos os cérebros e as sensibilidades mais finas nunca deixaram de perscrutar; Júlia tem o seu piano, o seu Beethoven, o seu Liszt, o seu Schubert, o seu Debussy; e ambos temos ainda, para prender a esta casa solitária um encanto sempre novo, o nosso amor e o nosso filho. E estamos com uma infinita curiosidade de passar aqui todo o inverno, assistindo à ressurreição primaveril, à aleluia das fôlhas e das florações... E tu? Se te aborreceres por aí, com os teus teatros, os teus romances de coração, mais efémeros do que as rosas de Malherbe, os teus conhecimentos, os teus tédios, faz as malas e vem. Serás recebido com a afabilidade e a alegria que, no vasto mundo, apenas nesta cabana amiga encontrarás...»

As últimas linhas da carta enterneceram-no. [171] Bom, admirável Nuno! Como a sua afectuosidade perene se recordava dêle e de tam longe o chamava!...

Havia ainda um post-scriptum. Frederico, alvoroçado, leu:

―«Júlia, que está aqui ao meu lado, depois de ter adormecido ao colo o nosso morgado, recomenda-se, manda-te muitas saùdades e pede-te que te lembres de nós. Anda a estudar, com interêsse, uma sonata de Beethoven, que será para ti e que, na tua volta à quinta, hás de ouvir...»

Por um momento, estas palavras tam naturais e tam simples, conturbaram-no, excitaram-lhe a imaginação. Júlia pedia-lhe para se lembrar dela, estudava pra êle uma das mais belas sonatas de Beethoven, talvez inspirada ao maior poeta de música por uma profunda, transfiguradora paixão, tinha consigo delicadezas do que apenas são capazes as almas que amam em silêncio. Quem sabe se essa doce mulher fôra tocada pelo fluido invisível do amor que o abrasava, se tambêm o amaria em segrêdo, escondendo êsse sentimento, ao mesmo tempo pecaminoso e divino, bem no fundo do coração, para que nem Nuno nem mesmo êle sequer o pressentissem? Quem poderia adivinhar, decifrar o drama oculto naquela alma tam requintadamente feminina?... Depois dalguns minutos de reflexão, porêm, o seu desvairado scismar pareceu-lhe vão e sem sombras de realidade. Com efeito, se Júlia lhe consagrasse um afecto que, por sua essência, tivesse de esconder cautelosamente, não pediria a Nuno para acrescentar à carta que acabava de receber um post-scriptum em que se denunciaria. O amor obrigado a esconder-se é sempre assustado, supersticioso, [172]teme mesmo os actos mais inocentes com mêdo de revelar-se a olhos perspicazes. Não! Que ideia a sua! Júlia era, para êle, apenas uma bôa, sincera amiga, e nada mais do que isso. E esta virtude nobilitava-a para Frederico!...

Sôbre a sua alma passou, nesse momento, uma nuvem da tristeza que, por um instante, o deixara para de novo voltar a deprimi-lo; no seu espírito manifestaram-se alternativamente as crises contraditórias, a desilusão que o pungia pela secura e as aspirações indefinidas que sossegavam a intervalos o seu mal estranho. Amarrotou nervosamente nas mãos a carta de Nuno, atirando-a para cima da mesa, e, concentrado e sombrio, recomeçou o seu passeio. Voltar à quinta, ser uma testemunha da felicidade de Júlia e do marido, tam estreitamente unidos por um amor que incessantemente refloria, que ao fim de dois anos mantinha a mesma febre, a mesma ansiedade, o mesmo calor, a mesma infinita, inextinguível adoração? Não tinha coragem para isso, porque não podia conservar-se impassível, ao menos, diante do espectáculo duma ventura que ardentemente desejava para si e de que, conjuntamente, fugia como fugiria dum pavoroso crime. O amor de Júlia e de Nuno era sagrado pela sua pureza; no entanto, tomava-o, no seu egoísmo, como um insulto, como um sarcasmo de fogo que o queimava, como um escárnio ao seu infortúnio. Não! Nunca mais! Não queria presenciar a florescência maravilhosa e suave duma ternura que tam ardentemente apetecia para si e que um outro, legitímamente, fruía. A sua pessoa não era necessária em casa do amigo para que êle fôsse feliz: e Frederico, êsse carecia de estar longe [173] de ambos para ser menos desgraçado... O que existia de paradoxal no seu caso singular! Sabia que Júlia e Nuno o estimavam fraternamente; que, se a sua alegria de viver, a sua placidez interior, dêles dependessem, seria absolutamente ditoso; que não tinha, no tumulto vertiginoso da existência, mais seguros e nobres afectos; e, no entanto, era justamente de Nuno e de Júlia que para si vinha a maior dor, a mais intensa amargura!...

E o que tambêm havia de bizarro, de incompreensível, de insensato, no seu sentimento! Amando Júlia alucinadamente, querendo-a acima de tôdas as coisas, não odiava agora Nuno, que a possuía. Pelo contrário, a sua afeição crescia cada vez mais por êsse belo rapaz que a uma dignidade inquebrantável aliava os brilhantes dons de carácter, de inteligência, de grandeza moral. Tudo aquilo lhe parecia confuso, baralhado, incoerente, fóra da realidade humana, obedecendo talvez a leis psicológicas ainda ignoradas...

Cansado de se debater sem tréguas na mesma agitação árida, nas mesmas angústias e nas mesmas perplexidades, chegava a desejar que uma catástrofe se abatesse de repente sôbre êle e o aniquilasse ou esclarecesse uma situação que não podia sofrer por mais tempo. Tudo o que viesse imprevistamente, luminoso ou sombrio, irremediável ou ditoso, suave ou amargo, seria preferível àquela tortura lenta em que o seu ser de homem se dissolvia aflitivamente. A casa parecia-lhe deserta como nunca e duma solitude apenas comparável ao ermo do seu coração. O silêncio constrangia-o. Queria o ruído, as conversas, a animação, o riso à sua roda; desejava tudo o [174] que o aturdisse, que desviasse o rumo das suas cogitações, que o insensibilizasse por instantes. Tirou o relógio do bôlso, viu as horas. Era ainda muito cedo para o almôço. Daria uma volta pela cidade, iluminada por um sol pálido de inverno que ardia num céu claro como se fôsse feito de cristal, almoçaria mesmo em qualquer restaurante onde houvesse gente, barulho, tinir de louças e de metais, onde entrassem homens apressados e respirando fortemente, ocupados por uma actividade que os movimentasse, por um interêsse que os impelisse para a frente, sem repouso. Nesse logar, estaria melhor do que à sua mesa, diante dum fresco ramo de flores orvalhadas, de porcelanas, de esmaltes brilhantes, de pratas scintilando à luz, de toalhas de linho muito branco, tendo por companhia única o respeitoso Bernardo que o servia com a solenidade de quem celebrasse um rito e que respondia por monossílabos às suas perguntas... Pôs de novo o chapéu, pegou nas luvas e na bengala, dobrou a carta de Nuno, que guardou na gaveta, e chamou o criado para dizer-lhe que não almoçava.

―Mas, o almôço está quáse pronto!―informou Bernardo.

―Pois, come-o tu e que te saiba bem!...―atalhou, risonho.

Bernardo considerava-o com espanto, envolvia-o num olhar de surprêsa; e quando Frederico saíu, descendo as escadas com rapidez, murmurou:

―Umas vezes não almoça, outras não janta, deu agora em ficar fóra de casa, como um vadio, êle que era tam regular na sua vida... Está estragado... Enfim, eu nada tenho com isso. Sou servo, [175]êle é patrão, tem dinheiro, tem saúde... Adeus, minhas encomendas...

Frederico, a quem a carícia do frio ar circulante refrigerava e desoprimia, encaminhou-se para a Praça da Liberdade, cortando ao acaso através de ruas ruidosas de multidão, coloridas, cheias de pitoresco, exibindo uma fisionomia característica. Nos bairros pobres, secava roupa atada em cordas por varandas e trapeiras. Ranchos de crianças sujas e rôtas erravam nas calçadas, brincando. Criadas de servir regressavam dos mercados e dos talhos com grandes cabazes de vêrga enfiados no braço. As lojas estavam apinhadas de compradores que, aos balcões, regateavam com os caixeiros. Desfilavam soldados, aos pares e de mãos dadas, com o bonet de vivos vermelhos sôbre a orelha e um ar obtuso nas frontes assimétricas e inexpressivas.

Perto de mercado do Anjo, duas peixeiras, de roupas descompostas e de gigas à cabeça, jogavam o braço furiosamente e insultavam-se nos termos mais duros e obscenos, entre um enorme ajuntamento de populares que riam, de bôca escancarada e de face contraída e vincada de rugas. A tôrre dos Clerigos subia na diafaneidade do espaço, projectando uma esguia mancha de sombra no ambiente luminoso e sereno.

Era a um sábado, véspera de festa. Para os lados do Bomfim, sôbre os telhados em que o sol caía a prumo, estralejavam foguetes que subiam, rechinando, no ar e que ao explodirem deixavam pequenas nuvens dum fumo branco e denso pairando na limpidez da atmosfera, como novelos de algodão que se esfiassem ao vento, sob o céu azul e fino.

[176] Frederico marchava apressadamente, absorvido em emoções e cuidados íntimos, sem reparar na scenográfia exterior. A vida envolvente com as suas variadas formas, os seus coloridos, violentos ou ternos, a sua particular expressão, passava-lhe inteiramente despercebida, tam fundo era o recolhimento do seu espírito no drama sentimental de que não conseguia separar a personalidade psíquica. Sempre aquela obcessão a persegui-lo, sempre a venenosa flor dum venenoso desejo por Júlia―pela sua carne, pela sua beleza física, pela sua candura, pela sua graça fresca e luminosa―renascendo dentro de si, perturbando-o, embriagando-o como um perfume deletério! A luta―uma luta contínua de tôdas as horas, de todos os dias―extenuava-o. Já não podia, no desfalecimento de vontade que o esmagava, conduzir-se com firmeza pela própria razão ou pela parte incorruptivel e intacta do seu sentimento:―era conduzido pelo instinto sensual, sem dispôr de energia para uma reacção alacre e vitoriosa que o emancipasse da tortura intensa, que lhe restituisse à natureza espiritual o divino encanto perdido e a pacificação deleitosa. Nuno, ignorando a sua agonia secreta, chamava-o de longe, colaborando assim no monstruoso crime que pretendia evitar, concitando-o a uma traição que Frederico, no seu delírio, julgava já consumada porque lhe ardia na alma o lume dum amor impuro pela espôsa do amigo de tôda a vida, do camarada de estudos, do irmão com quem fizera, em plena concórdia, metade da jornada da existência. Era terrível! A fatalidade abatia-se inexoravelmente sôbre êle, encarniçava-se contra o seu infortúnio, exacerbava-lhe a dor. Frederico notava, com [177] subtileza, a pequenez, a impotência do homem―mesmo quando ele fôr culto e dipuser duma sensibilidade―para dominar-se, para conter-se em face do mal, sempre que nesse mal houver a satisfação áspera dum gôzo, dum interêsse moral ou material. Nestes momentos, que incessantemente se repetem, o que no organismo humano, tam imperfeito, se impõe é a revolta da animalidade grosseira, apagando-se no ser consciente tudo quanto nêle há de superior!...

Mas, Frederico tentava ainda lutar contra essa animalidade, vencer a sua impetuosa paixão, conservar-se num estado de alma que o tornasse digno da afeição fraterna de Nuno, sem que tivesse de còrar de remorsos ou de vergonha, quando diante de Júlia êle lhe chamasse amigo e o apontasse como um exemplo de lealdade. Como não tinha confiança em si mesmo, como suspeitasse de que junto da mulher adorada em silêncio não pudesse esconder um amor que não devia revelar-se para poupar sofrimentos e afrontas, como temia que um instante de fraqueza e de desvairamento o levassem a cometer desatinos que não teriam remédio, caminhando aceleradamente nas ruas, cada vez se aferrava mais à ideia de não voltar a casa de Nuno e de esquivar-se a um encontro com Júlia. Longe dela, o perigo seria menor.

Pensando assim, enquanto à sua roda a multidão indiferente ria e palestrava, circulando activamente, Frederico chegou à Praça da Liberdade e entrou numa tabacaria a comprar charutos. À saída, encontrou-se face a face com alguêm que avançava para êle, de mão estendida, que o saùdava com uma exclamação jovial.

―Oh! Frederico, oh! ladrão!... Que feliz [178] casualidade!... Há quanto tempo eu andava por estas acidentadas e sujas ruas portuenses à procura duma figura conhecida e sem a encontrar!...

―Oh! Duarte!... Duarte de Alarcão e Ataíde, dos Ataídes do Alentejo! Como diabo vieste tu parar mais uma vez a esta nobre cidade de tráfico e de negócios?

―Coisas estupendas, quimeras... Cheguei de Lisboa hoje, no correio da manhã e aqui me encontro.

Apertaram efusivamente as mãos, contemplaram-se por alguns momentos com simpatia.

―Estás mais forte e mais moreno, digno Alarcão e Ataíde!

―E tu mais corcovado e triste, D. Frederico!

―Que queres, amigo?―atalhou Frederico, desalentado. Ça ne marche pas!...

Duarte havia sido seu condiscípulo, no segundo ano da Academia Politécnica, onde não concluira o curso de engenharia por ter armazenado já, segundo confessava, a quantidade do sciência suficiente para viver saborosamente a vida, com a abundante pecúnia herdada. Era, então, ruidosamente alegre, brilhante de vivacidade, tocava na guitarra, que gemia entre os seus dedos, o fado do Conde de Vimioso, com que acordava os corações namorados das trapeiras em noites de luar e de serenata e que, no seu entender, constituia a página de música mais nacional e poderosamente expressiva que Portugal havia criado, desde que entrara nos horizontes maravilhosos da civilização.

―Verdadeiramente―asseverava êle, fazendo a blague―a nossa Pátria possue duas coisas grandes [179]e de génio:―a descoberta do caminho marítimo para as Índias, que definiu os nossos compatriotas como marinheiros e perseguidores de aventuras, e o fado do Conde de Vimioso, que os definiu em tudo quanto nêles existe de elegíaco, de lírico, de subjectivo. Estamos diante de duas epopeias, meninos!...

Aquele admirável Duarte! Caía do céu, providencialmente, no meio das tristezas de Frederico, das suas derrotas, dos seus desconsôlos, para os dourar com uma réstea de alegria transitória como o sol doura uma paìsagem, depois da chuva.

―Tens estado sempre em Lisboa, desde que abandonaste o Pôrto?

-Não, criatura! De vez em quando, sempre que o país me satura de enfado, e, com as suas eternas farças, o seu entremez permanente, me comunica um fastio de Tibério exausto, faço as malas, viajo, desbestializo-me, tomando um banho de elegância, de lucidez mental, por essas bemditas nacionalidades cultas da Europa. E tu? Que fazes? Que tens feito?

―Nunca saí de Portugal, Duarte! Vou murchando, por patriotismo, no nosso torrão natal, como uma couve tronchuda. Sou assim patriota...

―E selvagem!... Tambèm razoávelmente selvagem.... E agora, para onde te dirigias, a passos largos, encurtando o caminho da sepultura, como afirma o Eclesisastes?...

―Deambulava por aí fóra, à procura dum sítio onde almoçasse sem escândalo. Porque não vens comigo, Alarcão e Ataíde? Faríamos um pequenino ágape, celebrando êste acontecimento festivo!

[180] ―Pois, aceito!... Que diabo, estou com debilidade, com fome. E nem sequer me lembrava!...

Atravessaram, lentamente, a Praça da Liberdade, em direcção à rua de Sá da Bandeira, parando a cada instante para relembrarem episódios passados, incidentes humorísticos da mocidade há muito olvidados. Os carros eléctricos corriam velozmente sôbre os rails, num incessante retinir de campaínhas de alarme, os automóveis fugiam no fio do vento, entre nuvens de fumarada, atroando os caminhantes com as suas sirènes; das tílias altas que, nos dias ardentes de verão, espalham sôbre a calçada nódoas rôxas de sombras afagadoras, desciam as derradeiras fôlhas. Duarte, enfiando o braço no de Frederico, evocava scenas hilariantes dos anos extintos.

―Tu ainda te lembras do Martinho, homem terrível da Beira e da batota, que numa noite de azar, vendeu a alma ao Diabo por dez tostões?

―Perfeitamente!... Foi para a África. Nunca mais se soube dêle.

―Por sinal que o Diabo, cansado de comprar almas inúteis para os seus fins de regenerar o mundo pelo espectáculo da tortura, não aceitou a oferta em condições excepcionais de preço, e Martinho, despeitado, pregou-lhe a maior descompostura que êle tem apanhado, desde Santo Agostinho!

Riram com satisfação, na beleza gloriosa da manhã que os remoçava.

―Pobre camarada!―continuou Duarte. Ao dr. Fausto, o Diabo deu ainda, com a juventude, a virgindade e a beleza de Margarida. Ao nosso companheiro, não deu nem dinheiro para cigarros. Era por isso que êle dizia, com rancor, que Satanás, depois que Goëthe [181] o descobriu oculto na consciência, tinha perdido todo o prestígio... E que é feito de Nuno, êsse encantador conviva das ceias de S. Mamede de Infesta, com bacalhau e guitarras?

―Está casado... E já tem um filho.

―Oh! O sórdido burguês!... E talvez feliz, hein?

―Enormemente feliz.

―O animal!... Tu, solteiro.

―Sim, homem! Solteiro...

―Como eu!... Como os heróis de Tyrso de Molina, sempre à caça de rôlas assustadas. Fazes bem. É assim, justamente, que procedem os homens decentes.

Tinham chegado à esquina do Café Portuense. Duarte estacou, exclamando:

―No meu tempo, havia aqui uma fonte e um tanque. Uma noite, o Andrade, o de medicina, quis afogar-se nesse tanque, porque acabava de saber que a costureira que amava o traíra com um oficial de barbeiro. Suicidava-se não por orgulho ofendido, mas por estética. Tive um trabalhão para evitar que êle se molhasse... O que foi feito de tôda essa água?

―Secou, desapareceu.

―Como a fé nas almas!... Oh! os tempos modernos são iconoclastas.

Frederico, afagado por todo êste riso que se irisava de jovialidade como uma espuma ténue e branca se irisa à luz, sentia-se desoprimido das suas inquietações anteriores, e abençoava aquele encontro inesperado, que o distraía, que lhe tornava mais leve e desanuviada a vida. Por momentos, tudo lhe esquecia, tudo adormecia na sua memoria e no seu sentimento:―a carta de Nuno, o amor de Júlia, a luxúria em qu Frederico, afagado por todo êste riso que se irisava de jovialidade como uma espuma ténue e branca se irisa à luz, sentia-se desoprimido das suas inquietações anteriores, e abençoava aquele encontro inesperado, que o distraía, que lhe tornava mais leve e desanuviada a vida. Por momentos, tudo lhe esquecia, tudo adormecia na sua memoria e no seu sentimento:―a carta de Nuno, o amor de Júlia, a luxúria em que se afundava com Branca. Do fundo do seu coração subia o reconhecimento [182]para aquele bom Duarte em quem a jovialidade era perene e espontânea...

Em frente do teatro Sá da Bandeira, ainda se detiveram. Frederico, riscando gestos no ar com a ponta do dedo enluvado, dizia:

―Na parede dêste edificio já havia aquele mesmo buraco, quando eu era estudante. Caíram tronos depois disso, morreram dois Papas, houve três guerras fulgurantes, o Império Celeste mudou as suas instituìções políticas, nasceram-me na cabeça os primeiros cabelos brancos e o buraco lá está. Só êle não evolucionou porque é um documento histórico e representa o amor, o carinho, com que o Pôrto defende a sua fisionomia secular.

―Não zombes, Duarte―atalhou Frederico. Essa tendência conservadora do Pôrto é uma das suas primaciais virtudes.

―Mas, não zombo! Primeiro que tudo, o amor à tradição. Só êle engrandece os povos, no sábio e verídico dizer de Fustel de Coulanges...

Foram andando vagarosamente, meteram pelas ruas próximas, dando uma volta, porque Duarte tinha curiosidade em ver certos logares que lhe evocavam os dias distantes da mocidade, que lhe relembravam certos factos, determinados acontecimentos. A cada instante, chamando a atenção de Frederico, lhe fazia revelações, dizendo:

―Tive antigamente por aqui um namôro. Ela chamava-se Faustina e eu considerava-me o seu Marco Aurélio... Bons tempos!

Mas Duarte, nas suas vagas observações, ia verificando que a cidade envelhecia, que a idade a deformava, lhe comia a côr e o viço, como se fôsse um [183] rosto feminino em que a beleza da juventude fôsse morrendo.

―Tudo envelhece, afinal―murmurava tristemente―o corpo humano e as próprias pedras inertes que fendem, ennegrecem, se cobrem de musgos parasitários. Que formidável poder de destruição, o da morte! Nada é eterno!...

Voltaram, novamente, à Praça, entrando por fim num restaurante. Duarte, enquanto Frederico, depois de tirar as luvas e o sobretudo, escolhia na lista os pratos, coçando a ponta do queixo numa grande, embaraçosa irresolução, lamentava-se por não ter encontrado mais nenhum dos seus condiscípulos ou dos seus conhecidos doutrora. A vida era uma infatigável dispersadora de almas. Mesmo num país tam pequeno como Portugal, os que uma vez se separam, geralmente não tornam, a falar, a não ser por acaso.

―Homem, aí tens a lista. Vê se preferes algum cozinhado―exclamou Frederico.

―Não quero ver a lista! Escolhe tu, Brillat-Savarin. Mas, mete no festim alguma iguaria bem portuguesa, bem portuense, por causa da côr local, sempre necessária a românticos como eu sou, como tu eras...

Ao passo que esperavam, esfregando os garfos e as facas nos guardanapos, diante dos copos vazios e das porcelanas que reluziam sôbre a toalha da mesa, continuaram a conversa.

―Ora, tu pelo Pôrto, Duarte!... Que bela surprêsa!

―É verdade. Por aqui me trazem, durante algumas horas, os meus pecados...

―Aventuras amorosas, aposto...

―Efectivamente, trata-se duma mulher que amo [184] e que me quere. O marido teve a triste lembrança de vir ao Norte, nesta ocasião em que Lisboa está tam bonita, o trouxe-a com ele, para amenizar a jornada.

―Oh! devasso!...

―Que remédio! O coração humano é assim... E nada de lições de moral, porque não me convertes.

Lições de moral! E com que autoridade?―meditava Frederico. Tambêm êle amava profundamente a espôsa do seu maior amigo, pensando nela constantemente como se Júlia fôsse o centro de tôdas as suas recordações, da sua própria existência. Quem tinha ensinado a essa mulher o caminho do seu coração? Por êsse amor sofria, por êle se via condenado a viver num permanente sonho doloroso, na agitação contínua das lutas indomáveis e estéreis, oscilando entre o desejo, a noção do dever a cumprir, a agonia e o desespêro.

―Não tens dêstes saborosos casos na tua história lírica, Frederico?―atalhou Duarte.

―Eu?... Que ideia!―respondeu êle, perturbado.

O criado surgiu, de repente, com uma travessa de peixe frito na palma da mão. Serviram-se, encetaram o almoço vagarosamente. Tentando desviar o fio duma conversa que lhe desagradava, avivando-lhe sentimentos amargos, Frederico, suspendendo o garfo e voltando-se para Duarte, inquiriu:

―Tens viajado muito, não é assim?

―Bastante. Sou mesmo uma espécie de Judeu Errante muito razoável para uma nação do tamanho da nossa. De resto, as viagens são os melhores mestres. Só elas nos ensinam essa fina sciência de sociabilidade tam útil na nossa época.

[185] ―Sabes que estou resolvido a viajar tambêm? Vieste despertar-me o apetite.

―Ainda bem que te forneci uma ideia excelente.

A cada momento entravam na sala homens com as golas dos pardessus erguidas até às orelhas roxas de frio, que respiravam com fôrça, tossiam, se punham à vontade, abancando pelas mesas e comendo com sofreguidão, por entre o ruído monótono das conversas e o barulho dos talheres e da louça, entrechocando-se. Êste tumulto irritava Frederico, já desgostoso com a promiscuidade. Curvado sôbre o mármore côr de rosa do mostrador, um empregado pachorrento, gordo, vermelho, com uma calvície enorme e a cara tôda rapada à navalha de barba, que lhe deixara na face uma sombra azulada, olhava maquinalmente a rua, através dos vidros das portas.

―Só viajando, a gente se instrue―afirmava Duarte, devorando o seu beef com ovos... Diabo, êste vinho é uma peste...

Ouvindo o amigo, Frederico ia pensando, a sério, num longo passeio pela Europa, numa viagem de esquecimento e de purificação em que sarasse o seu coração enfêrmo e acalmasse a sua imaginação exaltada. As grandes capitais, com os seus vibrantes espectáculos desconhecidos, as suas multidões, as suas sumptuosidades, as suas ardentes, imperiosas solicitações a pouco e pouco lhe comunicariam a tranqùilidade espiritual que tanto desejava. Porque não? Veria outros povos, outros costumes, outras civilizações, misturar-se-ia, contente, à onda duma vida complicada que faria por analisar e compreender na sua essência e na sua expressão; encontraria, por alguns meses, uma ocupação que lhe enchesse a alma, o distraísse, lhe serenasse [186] a febre que o queimava. No isolamento em que se confinara, o seu amor por Júlia, longe de dissipar-se, havia de precisar-se mais, de difinir-se, de fortificar-se, por influxo da paixão que o devastava e que o esgotava de tôdas as fôrças vitais, sem deixar-lhe sequer o cuidado pelas banalidades práticas... Talvez que noutros países, noutras cidades, longe de Nuno, longe da sua adoração, esta violência sentimental que o pungia diminuisse, pela multiplicidade de diversões e de interêsse em que se absorvesse...

Tinham chegado à sobremesa, e Duarte, estranhando o silêncio de Frederico, perguntou:

―Em que profundos problemas cogitas tu, criatura?

―No problema de atulhar o estômago. A minha animalidade assim o reclama.

―Estás na verdade cartesiana. Comes, logo existes...

Sempre que no seu sentimento despertava o amor por Júlia―amor que não podia adormecer perpétuamente―Frederico verificava que êle lhe transmitia uma extraordinária abundância de impressões novas e intensas que terminavam por fatigá-lo, por deprimi-lo até à tristeza e ao desalento. Precisava subtraír-se a êste trabalho interior em que o seu ser se abismava. Viajaria, pois, e levaria Branca.

―Está decidido, Alarcão e Ataíde... Dentro em breve, terás um servo humilde para a Europa.

E voltando-se para o criado, pediu a conta que pagou.

Levantaram-se, acenderam os charutos, calçaram as luvas e saíram para a rua, aspirando consoladamente o ar vivo.

[187] ―Demoras-te por esta óptima cidade, D. Duarte?

―Não, menino. Parto ainda hoje à noite. As doces exigências do coração cumpriram-se. De novo me afasto.

―Que pena!

―E até peço desculpa, por te abandonar tam cedo, depois do almôço e do afecto. Enfim, outro poder mais alto se levanta, como disse o nosso épico.

Pararam um instante na rua, apertando as mãos.

―Quando vires êsse Nuno, dá-lhe um grande abraço, por mim. Au revoir!...

Até à noite, Frederico vagabundeou pela cidade, detendo-se diante das vitrines, seguindo com a vista alguma linda mulher que passava, num forte e aristocrático rumor de sêdas. A tristeza que de manhã, com a carta de Nuno, o invadira, acentuou-se, adensando-se cada vez mais. Que suplício!... Por muito que quisesse alhear o pensamento de Júlia, surpreendia-se constantemente a reconstruí-la na fantasia, a recordar os seus suaves olhos langorosos e profundos―uns olhos que diziam tudo o que dentro dela se passava...

A lembrança dessa mulher renovava-lhe incessantemente o sofrimento, mas era-lhe muito grata.

Cansado da sua interminável vadiagem, meteu-se num carro eléctrico com destino à Foz, maldizendo a esterilidade do seu dia sem uma emoção de beleza moral superior, sem um acto nobre.

―Como isto acabrunha! ― monologava, sentado em frente duma inglesa esgrouviada, alta e sêca, com uns cabelos dum louro sêco e uns óculos de ouro na ponta do nariz, que lia um jornal de Londres.

Foi nessa noute, jantando com Branca, que Frederico lhe disse:

[188] ―Sabes? Ando com vontade de ir até Madrid, até ao inferno.

―E então eu? Deixas-me?―perguntou ela com voz de mimo.

―Não! Levo-te comigo, para nos aborrecermos ambos. O tédio, dividido por dois, deve ser menos pesado...



VIII


O inverno tinha chegado, com efeito, à quinta onde Nuno e Júlia ainda permaneciam, sem pressa de regressarem à confusão e ao alarido da cidade, de que se esqueciam na paz, na beatitude da sua vida de recolhimento e de simplicidade, no enlêvo cada vez maior da sua ventura. Como viviam únicamente um para o outro, sentiam-se bem naquele isolamento de que nenhum sobressalto exterior quebrava o ritmo. Parecia-lhes que os seus pensamentos e as suas emoções ganhavam, na solitude, maior nitidez e mais intensidade e que um amor, de instante para instante mais forte, os aproximava tanto pela beleza moral como pela beleza física, enriquecendo os matizes afectivos da sua intimidade espiritual.

A hostilidade do tempo retinha-os quáse sempre dentro de casa. Grossas cordas de água fustigavam com violência as janelas, escorregando lentamente nos vidros, alagavam o jardim, davam, um aspecto lúgubre [190]a paìsagem que se divizava ao longe, através duma cortina de névoa cinzenta e triste. Dos montes próximos, onde densos pinheirais ondulavam e ramalhavam à ventania furiosa, despenhavam-se as torrentes, descendo entre cachões de espuma até ao vale. Por vezes, dos telhados dos casebres, que donde a onde branquejavam na desolação campestre, subiam, colunas de fumo que se torciam, se esfarrapavam, dissipando-se na atmosfera baça. Grandes nuvens negras corriam no ar, do sul para o norte, impelidas pela rajada dos furacões. No cume das serranias havia uma claridade mais límpida do que nas encostas e nas colinas onde um espêsso vapor se acumulava. As árvores sem fôlhas do parque rangiam, gemiam ao vento. De noite, especialmente, o barulho que faziam era sinistro e assustava Júlia. De quando em quando, um pedaço de céu azul rasgava-se no alto, muito puro e translúcido, e uma pálida claridade de sol derramava-se docemente, como uma bênção divina, por tôda a aldeia, dourando a verdura das relvas humildes e rasteiras que vestiam a terra negra. Nestas horas, parecia que a natureza tinha uma alma de bondade e meiguice a comunicar-lhe o encanto supremo duma poesia indizível, e duma infinita piedade pelos desgraçados. Mas em breve o ambiente de novo se toldava e a obscuridade dilatava as perspectivas.

Em certas manhãs, Nuno, com o charuto na bôca, as mãos nos bolsos das calças onde tilintavam chaves, bem agasalhado pelas roupas quentes, assomava à varanda envidraçada, espreitando através dos vidros embaciados, e logo se refugiava junto de Júlia, murmurando:

―Que invernia brava hoje vamos ter!...

Ela olhava-o demoradamente, com êsse olhar em [191] que se reflectia tôda a pureza e tôda a ternura do seu coração e que tanto o comovia, dizendo:

―Fizemos talvez mal em nos deixarmos ficar aqui. Devíamos ter partido nos fins do verão... Mas essas obras que nunca terminaram...

―Partir para quê?―inquiria Nuno, parando diante dela. O inverno é tam fastidioso na aldeia como na cidade. E nota! É mesmo curioso ver cair a chuva entre estas árvores, pelos flancos destas montanhas. Ao menos, temos horizontes largos, desafogados, respira-se. Estamos a assistir a um espectáculo inteiramente novo para nós...

―Mas, na cidade...―contrariou Júlia, com timidez.

―Eu sei. Na cidade, há os cafés, os cinematógrafos, os teatros, outras diversões. Mas ela apenas se torna indispensável para os que não teem família ou para os que não fazem vida familiar. Para mim, que passo as noites perto de ti, tanto me importa estar aqui como num centro imensamente populoso...

Ela agradecia-lhe fervorosamete aquela doce devoção, aquela constância de afecto que nunca afrouxava, e experimentava um calor de ventura que a penetrava tôda, que amaciava à sua roda as asperezas da vida. A confiança de ambos no futuro aumentava constantemente. Tinham olvidado tudo o que se passava para alêm da história lírica da sua paixão―que havia começado anos antes e que ainda não terminara; nem um nem outro se lembravam de ter padecido algum dia. As recordações dos seus tempos antigos diluiam―se, apagavam-se, fundiam-se na fluidez original. Uma nova fôrça, uma energia prodigiosa, pulsava nos seus sêres, renovando-os a cada momento. Dentro de casa, [192] nas alvoradas hostis ou nas tardes tempestuosas, ocupavam-se na infinidade de coisas gratas que os cuidados da habitação oferecem. Júlia, com o saco de costura no regaço, bordava, cosia, enquanto Nuno lia as suas revistas e os seus jornais ou cortava as páginas dalgum livro recente que da cidade o seu livreiro lhe mandava. No abandôno íntimo dêstes saborosos instantes, se se contemplavam, subiam-lhes da alma à memória as longínquas recordações da sua adoração revivida, com extraordinária lucidez. Encontravam, então, um fino prazer emotivo em relembrar tudo o que mais de perto com essa adoração se prendia:―os logares idílicos em que ela tinha nascido, certos objectos e certos episódios que lhe imprimiam relêvo. A elaboração interior destas lembranças emmudecia-os longamente, abismava-os numa espécie de silêncio que temiam interromper e que voluntáriamente prolongavam, para que o seu gôzo espiritual fôsse mais duradouro.

Nuno conservava tam nítidamente na memória êsses acontecimentos, que podia reconstituí-los com facilidade, sempre que quisesse. Não lhe esquecera ainda, o mínimo detalhe do seu primeiro encontro com Júlia, que chegara certa manhã a um hotel de Vizela, com o pai, a mãe e o irmão, o excelente Roberto, que fôra educado em Londres, que tinha nas maneiras, na franqueza, na correcção do porte e no córte do vestuário, acentuados traços britânicos e que partira para a America do Norte, como empregado superior duma casa bancária, dois meses depois do casàmento de Júlia. Viram-se a primeira vez no parque, por uma tarde de luz e de alegria. Ela trazia um vestido de fustão branco muito justo que lhe desenhava claramente as formas plásticas, ondulantes [193] e de linhas puras. O seu busto era perfeito de curvas e de contornos: a sua mocidade tinha a graça subtil duma flor plenamente desabrochada. O seu chapéu de palha côr de ouro com duas rosas vermelhas presas por uma laçada de gaze de sêda branca, fazia-lhe uma discreta sombra sôbre a testa, suavizava-lhe mais a luz dos olhos suaves, iluminando-lhe o rosto dum oval delicado, imprimia-lhe maior destaque à pele das faces e do colo, que parecia alumiada por uma claridade interior e que não tinha um vinco, uma ruga. Nas suas mãos, que eram magras, pequeninas e de dedos delgados, fulgiam pedras de aneis.

Cruzaram-se no passeio, trocaram um simples olhar e foi como se ficassem compreendendo-se para sempre―porque o amor casto dá aos olhos uma inteligência especial, um admirável poder de entendimento e de expressão. Daí em diante, nunca mais Nuno deixou de a seguir dócilmente para tôda a parte, indo aos chás a que Júlia se associava, às excursões, em grandes ranchos, às serras próximas, para a contemplação dos panoramas que se vislumbram dos píncaros mais altos:―a ondulação ininterrupta e irregular do dorso das cordilheiras, que evocava um colosso fulminado, tocado a espaços por manchas de folhagem verde, alteando e deprimindo a sua ossatura monstruosa na base, elevando-se bruscamente em saltos e galgões de terreno. Em baixo, ao fim da escarpa abrupta dos montes, a natureza rebentava numa torrencial explosão de arvoredos, de milharais, de pomares, de videiras de compridos braços, enroscando-se nos troncos de olmos e de cerejeiras, como as serpentes no coração do Lacoonte, subindo até às copas e vergando de cachos.

[194] Uma frescura e uma abundância de écloga latina, que Vergilio cantaria, em estrofes immortais, corriam alacremente nos fundos vales que se almofadavam de ervaçais e sombras; e em tôda a extensão panorâmica, as serranias sucediam-se umas às outras constantemente, como um mar de enormes vagas terrosas que a tormenta açoutasse. As senhoras, assustadas com a grandeza do espectáculo, sentiam deslumbramentos e davam gritinhos de susto; os homens riam. E Júlia e Nuno, um pouco afastados dos grupos palradores, teciam as horas de sêda e ouro do seu amor que começava e que, não sendo já segrêdo para ninguêm, provocava risinhos maliciosos, ditos picantes ou de despeito.

Ao cair da tarde, quando regressavam ao hotel para jantar, nos olhos de Júlia havia uma extraordinária fascinação e, Nuno trazia uma alvorada na alma. Depois, à noite, no salão, organizavam danças, enquanto os homens de idade se reùniam às mesas dos jogos improvisados, para as suas fastidiosas partidas de bridge, e as damas, sentadas pelo salão, se emaranhavam em banais conversações sem fim:―e Júlia era sempre o par de Nuno, nas valsas...

Uma vez por outra, a colónia da estância balnear levava mais longe as suas digressões, ia até Guimarães, visitando as vélhas igrejas que resplandeciam das talhas douradas, até às Taipas, até Braga, seguindo em automóveis através de estradas cortando campos onde crescia o milheiral e os feijões se cobriam de flor, onde verdejavam os linhos tenros, onde um murmúrio de aragem passava nas messes já maduras, procurando as tiras de sombra veludosa e mole [195] caindo das árvores que, duma banda e doutra, orlavam o macadame. Era uma festa para a vista e para o sentimento dos excursionistas tôda essa larga e incomparável paìsagem do Minho, túmida de seivas, de fôrça, de vigor e duma tam rara e prodigiosa vegetação. A cada instante se detinham à beira duma fonte que gorgolejava no jôrro cristalino das suas linfas, oferecendo fresquidão e consôlo pelos dias tórridos, perto duma levada de água de rega vinda de longe, rolando pedrinhas alvas, grossos saibros reluzentes, cantando misteriosamente nas espessuras discretas dos musgos ou das ervas e transmitindo uma gloriosa vitalidade às raízes. Incessantemente topavam, trotando no cascalho da calçada, as características diligências que rangiam aos solavancos, levando nas imperiais abades rubicundos com guarda-sóis de paninho vermelho entre as pernas e dentro tôda uma população em trajos domingueiros. No meio do estrépito das ferragens, o cocheiro praguejava, fazendo estalar o chicote sôbre o lombo dos cavalos cansados. Os melros assustavam-se pelas balsas floridas, voando para longe; erguiam-se nuvens sufocantes duma poeira cáustica e mordente. Às portas dos casais que davam para as estradas, sob ramadas onde as uvas amadurciam, iam acudindo, ao ruído dos automôveis que fugiam no fio da aragem, mulheres com grosseiras mãos escondidas debaixo dos aventais de riscado, crianças em camisa, com ventres enormes e a palidez de doença na cara suja. Cães ladravam, ameaçadoramente, por debaixo dos portões vermelhos das quintas: e a ranchada jovial dos excursionistas continuava a sua marcha, rindo, palrando distraídamente. Nuno lembrava-se de que―numa [196]destas escapadas encantadoras, por um meio-dia de soalheira abrasadora em que foram ver o castelo de Guimarães, com a sua tôrre de menagem, os seus fossos cheios de ervas parasitárias, as suas seteiras, os seus travejamentos carcomidos―Júlia, ao passar por um quintal onde um alto damasqueiro, esgalhando ramagens para todos os lados, mostrava os seus frutos dourados e penugentos, teve de repente um desejo guloso de comer damascos; e logo êle, mandando parar o carro, bateu à porta da granja, pedindo que lhos vendessem. Imediatamente, uma voz de mulher veio de dentro, convidando-o a entrar, a escolher, a fartar-se, porque aquela fruta não se vendia:―dava-se.

―Não quero isso, não quero. Venda-ma...

―Oh! meu senhor, graças a Deus não precisamos. Olha agora levar dinheiro por uma miséria assim!...―teimou a aldeã, que era linda e ainda nova, acudindo ao limiar. Entre, entre...

E reparando em Júlia, que tinha ficado com o irmão no autómóvel, a mulher acrescentou:

―E a menina e outro senhor tambêm!... Com tôda a franqueza!

Por fim, entraram alegremente e merendaram, com delícia, sob o damasqueiro acolhedor, enquanto a aldeã, sorridente e com uns dentes brancos brilhando no seu esmalte entre uns lábios muito vermelhos, os incitava a comerem mais.

―E podem levar, se quiserem!―oferecia ela.

Chamava-se Maria da Luz, era casada havia seis anos com um lavrador abastado e já três criancinhas, de olhos muito espantados, belas como a mãe, se lhe agarravam às saias. Nuno, enlevado, deu [197] uma moeda de prata a cada uma, para comprarem doces.

―Não! Isso é que não!―acudiu a aldeã, tôda còrada. Ficava-lhe por bom preço a fruta, meu senhor!

―Ora essa!―atalhou Nuno. Coitados dos pequeninos, que são tam simpáticos. Deixe, deixe...

As crianças estenderam a palma das mãos côr de rosa, apertaram, muito contentes, as moedas, enquanto a mãe lhes gritava:

―Então, como se diz?!... Como se diz?!... Êstes mafarricos que me consomem, não aprendem a bôa educação nem à mão de Deus Padre!...

Todos êstes inefáveis episódios duma época distante e bem feliz se tinham gravado fundamente no cérebro de Nuno; e diante de Júlia, que era sua espôsa, que era mãe do seu filho, sentia um prazer infinitamente doce em reavivá-los. O casamento fôra combinado ainda em Vizela, ao fim dum curto namôro, com grande desespêro de Frederico que tambêm estava nessas termas, que ia espairecendo os seus tédios entregando-se a um meigo flírt sempre novo em cada dia e que julgava severamente a imprevista evasão, do amigo, da vida despreocupada de solteiro...

Nas longas horas que agora passavam sós, dentro de casa, Nuno e Júlia gostosamente evocavam o seu passado, que era de dois anos―porque apenas começaram a viver uma existência séria desde que se conheceram e se ligaram por laços que nenhuma dor ou nenhuma fatalidade romperiam―e que lhes pareciam do dia anterior, tam rápidamente o tempo lhes fugia sem que êles o percebessem e sem que na sua emoção deixasse resíduos de amargura e de tristeza.

[198] ―Tu lembras-te?―perguntava êle, fechando o livro que tinha nas mãos, enquanto Júlia esquecia sôbre o regaço a agulha do bordado.

―Lembro!―afirmava ela com um sorriso que a espiritualizava e transmitia maior encanto à sua beleza. Lembro-me, como se tudo isso fôsse de ontem...

―Frederico não queria que eu casasse, dizia-me horrores da vida conjugal, procurava afastar-me de ti por todos os processos, teimava em que eu o acompanhasse numa viagem que tencionava fazer. Creio mesmo que chegou a ser teu inimigo, o pobre rapaz...

―Meu inimigo?... Que ideia! E porquê?

―É claro, não te tinha ódio, não te queria mal, mas não perdoava à mulher que lhe arrebatava o amigo de sempre, o camarada, o companheiro... Era só por isto!

Ah! êsse bom Frederico! Ambos pensavam um pouco nêle―Nuno com saùdade e com uma secreta pena daquela vida tam fecunda pela inteligência e pelo carácter, que se esterilizava, que era improdutiva, como um pragal áspero em que nunca, por acaso ao menos, caísse uma semente fértil; Júlia, com o encanto, com a afeição que lhe merecia o homem tam idêntico ao marido pelo coração, e de tanta grandeza de alma, de tanta finura de espírito...

―O que fará êle por êsse Pôrto, neste desabrido inverno?―interrogava ela.

―Aquilo que todos os rapazes, livres de responsabilidades caseiras, fazem, naturalmente. Êle não quis estar connosco, havia coisa que o chamasse, [199] que o seduzisse... Mas, ouve! Não sei que singularidade descobri em Frederico nos últimos dias. Parecia-me mais desalentado, mais triste do que o costume, amava a solidão, quáse que me fugia... Apenas despertava da sua melancolia quando tocavas, no piano, essas páginas de Schubert que sempre admirou.

―Êle não tinha, para estar alegre, as mesmas razões que nós temos, bem sabes. É só, não ama, não é amado, anda á procura dum destino que ainda não encontrou...

―E que não encontrará jàmais. Aparentemente enérgico, é um fraco de vontade, sofre de preguiça de sentimento, tem os defeitos da raça a que pertence...

―Oh! Nuno! Que severidade!

―Não! Que amizade! Porque eu estimo profundamente Frederico. Não há alma tam leal como a dêle, dedicação mais capaz, de sacrifícios pelas pessoas a quem se devotar! Mas, minha filha, é incompleto como eu, como todos nós...

―Como tu?

―Como eu, não digo bem... Frederico foi mais infeliz...

As horas deslizavam apressadamente, nestas conversas em que ambos se entretinham e em que melhor se estudavam... Por vezes, discutiam juntos o mesmo romance, o mesmo poema, ou então Júlia ia para o piano e Nuno, de pé proximo dela, ia-lhe voltando as fôlhas do caderno de música. Nos momentos de repouso, enquanto a chuva caía, monótona e aborrecida, chamavam a ama, que acudia com a criança ao colo e um grosso grilhão de ouro [200] ao pescoço. Júlia pegava no filho, com ternura e delicadeza, beijava-o num transporte, amimava-o, passava-o ao marido, que o embalava nos braços. O pequenino sorria, com a face cheia de covas, agitando as mãos, galrando, espalhando por tôda a casa uma grulhada infantil. Depois, Nuno beijava-o tambêm longamente, picando-lhe a carinha tenra das faces com a barba crespa, o que o fazia chorar.

―Dá-o cá! Coitadinho!... Tem mêdo dos teus bigodes de turco―dizia Júlia, sorrindo.

―Não! É que é já mais teu amigo do que meu, o ingrato...

À noite, em seguida ao jantar, quando a treva temerosamente afogava todos os aspectos na mesma confusa massa negra e o sossêgo envolvia a vivenda com as vidraças douradas pela luz, o criado, o Manuel, soltava os cães de fila durante o dia amarrados a fortes cadeados de ferro; as portas do rés-do-chão fechavam-se com estrondo; a Francisca, uma vélha cozinheira, arrumava a cozinha, que ficava em baixo, que era revestida de azulejos e que se iluminava com a fulguração dos metais e dos esmaltes faíscando, relampejando sob o clarão da fogueira. Os molossos, de afiados colmilhos saíndo-lhes da bôca babujada como pontas de punhais, latiam, uivavam no jardim e no parque, à ventania que sacudia vertiginosamente as árvores; outros latidos ouviam-se ao longe, vindos das granjas e das herdades; o pequenino adormecia ao peito farto da ama, ainda com o bico rosado do seio que o amamentava na bôca sem dentes, e era levado com mimos e cautelas para o berço, aquecido antecipadamente com botijas de água a ferver: e Nuno e Júlia continuavam [201]ainda os seus serões, conversando, lembrando-se piedosamente dos pobres que não teriam roupa nos leitos, por aquele frio, enregelado, hostil inverno, e experimentando uma ternura doce e secreta no isolamento rural em que se confinavam com a sua felicidade―almas satisfeitas e contentes que nada mais queriam da vida...

Uma vez por outra, o céu desanuviava-se, as manhãs raiavam límpidas como uma imensa e pura flor azul que desabrochasse iluminada por um sol muito louro que dourava os outeiros, os cimos dos montes, tocava as altas ramarias dos arvoredos dum fulgor vivo que parecia arder, scintilar no esplendor da atmosfera. Então, a alegria ressuscitava na paìsagem soturna como uma ave que, pela primavera, é de repente surpreendida pela alvorada gloriosa entre os ramos floridos e começa a cantar sob o mistério celeste de que vitoriosamente desce a luz. Envolvidas pelo banho fulvo da claridade, as próprias coisas inertes pareciam impregnar-se de alma, davam a ilusão de serem dotadas de movimento. Errava no ar uma beleza esparsa; as perspectivas, na nitidez do ambiente, prolongavam-se indefinidamente, cheias de poesia e de vago. A vivenda, elevando-se no meio do jardim, com as suas grossas paredes, as suas varandas, os seus telhados de largo beiral onde as pombas arrulhavam em certos instantes, as suas escadas de pedra com grades de ferro pintadas de verde, em que as roseiras de trepar se enroscavam, animava-se tambêm com o júbilo triunfal daquela festa da natureza. Mais satisfeitos e expansivos, os criados palravam na cozinha, à volta da mesa do almôço.

[202] Uma temperatura morna que fazia inchar os gomos das árvores e das madre-silvas dos valados―que em maio se cobriam de florações e ofereciam embalo e perfume aos ninhos inocentes―convidava aos lentos, agradáveis passeios. Nuno, sentindo o coração desopresso e ligeiro, corria a levar a Júlia a bôa nova, em palavras comovidas e risonhas, interrompendo-a no seu trabalho.

―Que linda manhã, meu amor!―exclamava êle. Vem daí! Faremos uma pequena digressão pela quinta... Até nos abrirá o apetite e nos renovará a saúde. Ao mesmo tempo, desentorpeceremos as pernas emperradas por tôda uma semana de cativeiro.

―Pois vamos!―concordava ela com júbilos e ingenuìdades quáse infantis. Gosto tanto de passear matinalmente!

Animada e sorridente, Júlia vestia a tôda a pressa um casaco de agasalho, calçava as galochas sôbre os pequeninos sapatos de verniz, punha na cabeça um gorro de lã branca, feito por ela nos seus serões, e saíam ambos, de braço dado, aspirando o cheiro acre da terra molhada, internando-so pelas sombrias e ermas alamedas do parque onde as mimosas começavam a florir na pompa dos cachos de ouro pálido, tremendo brandamente à aragem e a que o sol imprimia mais brilho e côr, desciam, por caminhos empedrados, às terras de cultivo já verdejantes de pastos para o gado, dos trêvos, torneavam as extensas vinhas que enchiam tonéis, em setembro, dum vinho aromático e leve, passavam pelos vergeis bem tratados onde, em abril, as pereiras, os pessegueiros e as macieiras vergavam de florescências multicôres que lembravam irisados enxames de borboletas levantando vôo, e [203] paravam, enfim, diante da habitação destinada ao caseiro e que era o orgulho de Nuno.

―Vês tu o que se fez, hein? E a planta foi minha. Para alguma coisa havia de servir-me o curso de engenheiro. O vélho Mateus está aqui óptimamente instalado com a sua gente―dizia êle. Não parece?

Júlia aprovava, com um gesto afável da cabeça, enquanto Nuno minuciosamente lhe ia fornecendo mais indicações:

―Aqui―explicava êle―é a casa de moradia; alêm, ficam os estábulos para os bois, os currais para os porcos, os alpendres para a guarda dos apetrechos de lavoura... Dêste lado, mandei construir as adegas, a eira, o espigueiro e os celeiros. Que me dizes a tudo isto? Olha que foi obra minha!

Na graça luzente da manhã, as paredes caiadas de branco alvejavam sob o tom vermelho dos telhados. Ao fundo, para lá dos terrenos agricultados, rumorejavam pinheirais e cresciam os matos aromáticos que o rosmaninho, no estio, pintalgava de manchas rôxas. Júlia, enlevada, contemplava o marido com ternura, afagava-o com o olhar.

―E agora―continuava Nuno, depois de terem avançado mais alguns passos―aqui está o grande tanque que me deu que entender e em que tanto te falei, durante todo o verão findo, não sei se te recordas.

―Recordo!―afirmava ela.

―Servirá de reservatório das águas de rega que fui buscar longe, por meio dum cano, à encosta daquele monte de pinheiros. Oh! é uma água maravilhosa, muito pura, filtrada por camadas sobrepostas [204] de rocha, e saibro grosso. Quando, nos dias quentes, a colhia para beber, o copo ficava logo nevado. É saborosa e frigidíssima. Porque não mandas a Francisca buscá-la à bôca da mina para o nosso chá? Ando há tanto tempo para dizer-te isto e esquecia-me sempre!...

―Está bem, mandarei―prometia Júlia.

―Pois, essa água corre para êste tanque. Quando se quiser regar, é só soltar a levada e ei-la por êsses campos, fluindo, fecundando, dando alento às plantações e às sementeiras!

―O que tu sabes já das lidas agrícolas, Nuno!―exclamava ela com admiração.

―Minha filha, tem-se estudado um pouco o pelo processo prático, que é ainda o melhor―respondia êle, jovialmente. O meu verão, êste ano, foi útil!

O caseiro, o tio Mateus, se os pressentia, vinha logo para êles, de chapéu na mão, com o seu rosto enrugado que o bom riso sadio, vindo da alma, espiritualizava de bondade, cumprimentando-os respeitosamente. Nuno correspondia ao cumprimento, murmurando:

―Olá! É você, Mateus? Então, como vão os trabalhos, homem?

―Crédo, meu senhor! Com êste inverno de desgraça e de castigo, nada se pode fazer. Tudo parado. As terras estão encharcadas, são lama...

―Não que tambêm nós nunca nos contentamos com o que temos. Se o bom tempo e o calor se prolongam, pede-se, implora-se chuva com preces, orações, lágrimas. Afinal, chega ―Não que tambêm nós nunca nos contentamos com o que temos. Se o bom tempo e o calor se prolongam, pede-se, implora-se chuva com preces, orações, lágrimas. Afinal, chega a chuva, e a humanidade sempre insatisfeita de novo deseja sol. Deus deve [205] ver-se e desejar-se com pedidos tam contraditórios, não é verdade, tio Mateus?―perguntava Nuno alegremente.

―Deus é sábio, é justo, sabe o que faz, meu senhor―replicava o caseiro, rindo. Mas tudo se quere em conta. Nem muito ao mar nem muito à terra. Assim é que é...

―E a doente está melhorzinha?―inquiria Júlia.

―Melhor, coitadinha?... Vai vivendo!... As melhoras dela só na cova. E tanto tem sofrido!...

―Não fale dêsse modo, tenha esperança...

―Pois esperança tenho eu. Esperança e paciência, que ela tudo merece―concluía êle, com voz enternecida e trémula.

Comovida, Júlia fitava-o; e êle, para desviar o rumo da conversa, que o fazia sofrer, acudia:

―Então, hoje a passear?

-Com êste bom sol, não podíamos ficar fechados―dizia Nuno.

―Está de rosas, meu senhor, de rosas!...

Demoravam-se ainda a tagarelar por alguns instantes e depois; vagarosamente, regressavam a casa, na imensa paz que envolvia a natureza e que baixava sôbre árvores, lameiros, casais e selvas, como uma bênção. Voltavam joviais, traziam a alma dilatada de encanto. Como o inverno era lindo na aldeia! Na cidade, os grandes espectáculos naturais passavam-lhes despercebidos na agitação das atormentadas aglomerações humanas, nas atmosferas toldadas de fumo.

―Aquele Frederico, aquele doido!―bradava Nuno. Podia ter ficado aqui connosco, a fazer um [206] severo exame de consciência, a rejuvenescer. Era uma companhia e purificava o sentimento que agora talvez traga pelos boeiros citadinos!...

―Jesus, Nuno! Que expressões tam duras!―repreendia Júlia.

―Sim! Pelos boeiros, pelas sargêtas. É assim mesmo. Hei de dizer-lho com esta ferocidade, numa carta terrível... Enquanto que aqui era a luz, era a pureza...

Lavavam-se, almoçavam com saborosas lentidões, conservavam-se à mesa por muito tempo, conversando. E à tarde, ainda tornavam a sair, atravessando pousios, congostas entre sebes, visitando a aldeia próxima, com um interêsse, uma curiosidade que nunca findava...





Um dia, logo ao romper da manhã, a ama foi tôda aflita bater à porta do quarto, chamando Júlia.

―Que quere?―perguntou, ela, de dentro.

―Era para contar à senhora uma coisa a respeito do menino, que não está bom.

―Que diz você, mulher?...―gritou Júlia, com voz angustiada. Tu ouves isto, Nuno?...

Saltou da cama, vestiu um roupão, calçou as chinelinhas de setim côr de rosa, bordadas a branco e ouro, que estavam sôbre o tapête, e correu logo, assustada, inquieta, enquanto o marido, alarmado, se levantava tambêm, vestindo-se atarantadamente.

―Que tem o menino?―perguntou Júlia, abrindo a porta da alcôva. Onde está êle, onde o deixou você?

[207] ―Deitado no berço... Está um pouco desassossegado...

Júlia dirigiu-se ao quarto da ama, que ficava ao lado do seu, entrou desvairadamente, fóra de si, sacudindo, com irritação nervosa, as madeixas do cabelo solto que lhe caíam sôbre a testa, ajoelhou junto do berço da criança que ergueu carinhosamente nos braços. Encostou-lhe a cabecinha inocente e desfalecida à sua face, amimou-a, passando-lhe levemente as pontas dos dedos pela carne tenra do rosto, murmurando com indizível ternura:

― Está doentinho, o meu amor?... Está?!...

Afastava-o de si, amparando-o com as mãos amorosas, para melhor, mais demoradamente o observar, espreitando, comovida, os seus olhos amortecidos com um círculo arroxeado à volta, e achava-o, na verdade, mais pálido, mais abatido.

―Oh! minha Mãe Santíssima! Mas isto que será? Como notou você a doença do meu filho, ama?

―É que, durante a noite, tossiu algumas vezes, minha senhora.

―Tossiu?―perguntou Júlia, aflita. E a tosse era rouca?

―Pois era!...

―E porque nâo foi logo avisar-me?

―Pensei que não seria nada!...

Nuno, que tinha acudido tambêm, curvou-se sôbre o ombro de Júlia, envolveu o filho num olhar de inquietação e de meiguice, inquirindo:

―Afinal, o que tem? Parece-me tam tranqúilo!...

―De-pressa, Nuno! Manda já um criado a Guimarães, a procurar um automóvel fechado. [208] Que vá a cavalo... E que se não descuide. Temos de partir imediatamente para o Pôrto.

―Um automóvel?... Partir imediatamente para o Pôrto?―interrogava Nuno, maquinalmente, Mas espera!... Dize...

-Depois te digo... O criado que vá sem pêrda de tempo... O nosso filho tem uma tosse rouca. Sabes o que é?... Não sabes? É a difteria, é talvez a morte...

Nuno, empalidecendo, abalou, enfiado, pelo corredor, desceu a quatro e quatro os degraus da escada, gritou:

―Manuel! Manuel!... Onde estás tu?

―Aqui, patrão!―respondeu o servo, saindo dum canto e trazendo nas mãos um pedaço de camurça com que estava limpando e polindo metais.

―Pousa o que estás a fazer, monta na égua e vai a Guimarães, onde procurarás um automóvel fechado, por todo o preço. Que venha a tôda a velocidade. É um caso urgente.

―Sim, meu senhor.

―Mas vai! Deixa-te de cumprimentos, de mesuras, que diabo! Se te estou a dizer que é urgente!...

O criado desapareceu de pronto, e Nuno, desorientado, ficou na cozinha, passeando agitadamente, a largos passos, sôbre os mosaicos. Justos céus! A difteria! O seu filho tinha a difteria. Êle havia de assistir, impotente, longe de todo o socorro da sciência, ao lento agonizar dum corpinho sem culpa em cujas veias corria o seu sangue, em cuja alma inocente se fundia tambêm a sua alma! Havia de vê-lo asfixiar, com o rosto congestionado, os olhos saltando [209] fóra das órbitas, sacudido por convulsões horríveis e sem poder acudir-lhe! Era terrível, terrível! Do seu coração de pai subia urna grande, avassaladora cólera, contra tudo e contra todos. Que mal faria aquele pobre sêr de castidade e de luz que nem sequer conhecia a vida e que tam cedo começava a sofrer dos seus males inevitáveis para que fôsse submetido a uma tal tortura?... Esquecia-se de Júlia que em cima soluçava, andava dum lado para o outro, mudo, sombrio, puxando as barbas, arrepelando-se.

―Que foi, meu senhor? Que desgraça aconteceu?―perguntou a cozinheira, que o contemplava, assustada, encostando-se ao fogão ainda apagado.

―Um horror, Francisca. Um verdadeiro horror. O menino está muito doente.

―Santo Deus!―exclamou ela.

―E temos de ir já para o Pôrto, a senhora, o doente, a ama, eu e tu. O Manuel e as outras criadas ficam ainda a pôr tudo em ordem, e seguirão mais tarde. Arranja as coisas, despacha-te.

Subiu, novamente, a escada como um autómato, governado mais pelo instinto do que pela inteligência. O padecimento alheio sempre o tinha perturbado; mas agora o de seu filho era-lhe atroz... Sentada numa cadeira de braços, com a criança aconchegada ao peito, Júlia chorava silenciosamente. As lágrimas caíam-lhe fio a fio dos olhos. Perto dela, a ama repetia sem descanso:

―Uma destas, uma destas!...

Nuno parou diante da espôsa, revolvendo com as mãos chaves que tinha no bôlso, entalado, sem poder articular as palavras, sem saber como havia de consolar aquela dor inconsolável.

[210] ―Que desventura a nossa, que desventura!...―gaguejava Júlia.

―Mas tranqùiliza-te, por Deus! Pode ser que a doença não valha nada, que te enganes―acudiu êle, por fim.

―Tenho um pressentimento funesto! E olha que as mães nunca se enganam.

E voltando-se para a ama:

―Pegue no menino, mas com cuidado... Vou-me arranjar. E veste-te tambêm, Nuno, para estares pronto.

-Sim, menina!...

Uma hora depois, um automóvel parava, em baixo, junto do portão do jardim. Nuno chamou as criadas, deu-lhes ordens para elas transmitirem a Manuel, mandou que, depois de tudo arrumado, seguissem para a casa do Pôrto e entrou no carro com Júlia―que conduzia o filho ao colo, muito embrulhado, agasalhado em lãs quentes―com a ama e com a cozinheira, dizendo ao chauffeur que, até Guimarães, largasse com a maior velocidade.

Estava uma cinzenta e fria manhã ameaçando chuva. Pelos altos montes, por vales tristes e planícies monótonas, a paìsagem azulava-se no ar baço. Um vento glacial sacudia os ramos das árvores. Nuno e Júlia nem sequer olhavam para fóra, através das portas de vidro do automóvel, concentrados como iam no seu sofrimento.

Em Guimarães, procuraram alvoroçadamente um médico, que logo os tranqùilizou, com um sorriso, acabando de observar o pequenino enfêrmo. Não era caso para sustos―afirmou.

―Oh! doutor! Quanta alegria nos dá!...―interrompeu [211]Nuno, avançando para êle e apertando―lhe efusivamente a mão.

―Mas não é a difteria?―perguntou Júlia, ainda duvidosa. Êle tem tosse rouca!

Não! Não era a difteria―asseverou o clínico, já vélho e ageitando os óculos de aro de ouro sôbre o nariz. Uma simples bronquite sem complicações que a tornassem de mau carácter. Curava-se com resguardo, num compartimento em que não houvesse oscilações de temperatura, e com a aplicação de revulsivos externos.

―Vês, Júlia?―disse Nuno. Não é nada de cuidado. Eu bem o dizia.

―O alarme desculpa-se nas mães... É tam natural!―exclamou o médico.

―E até podíamos voltar para trás, continuarmos a nossa estada na aldeia.

―Não!―replicou Júlia com firmeza. Para trás, não voltaremos. Já que estamos aqui, seguiremos para o Pôrto. Não ficaria sossegada.

-Pois, como quiseres...

O médico receitou, deu instruções; Nuno pagou a consulta generosamente. Despediram-se e reentraram, mais calmos, no automóvel, continuando a viagem―através de estradas, de campos melancólicos, de bosques que rugiam à ventania―para o Pôrto, onde chegaram de tarde e já com uma chuva desabrida fustigando as casarias, alagando, encharcando as ruas negras duma lama viscosa, quáse líquida. Moravam em Costa Cabral, numa vélha casa apalaçada de dois andares feita no gôsto arquitectural das antigas vivendas portuguesas, e que todo o verão estivera fechada. Foi um reboliço na habitação deserta[212] e cheia de treva. O automóvel largara velozmente, e, enquanto Júlia, com o filho nos braços, procurava, no átrio imerso em escuridão, uma cadeira para sentar-se, Nuno, a ama e a cozinheira, abriam portas e janelas com alarido, para que a luz diurna entrasse e desse vida e alegria ao casarão ermo.

Outros médicos vieram e receitaram, nesse mesmo dia, serenando temores sem motivo. A pouco e pouco renasceu a confiança na alma de Júlia e de Nuno que, todo ocupado com a sua reinstalação inesperada no palacete da cidade, não saía, lidando activamente, dando ordens, substituindo na vivenda a espôsa que não deixava, ainda atribulada, o leito da criança. E agora, outra vez no Pôrto, outra vez na sua morada citadina, sentia-se bem, entre mobiliários que conhecia e que considerava como amigos vélhos, entre paredes a que se afeiçoara, no meio dum ambiente de quietação em que vivera desde a infância, em que morara, a que tantas recordações inolvidáveis andavam presas. Novamente a felicidade entrava na sua alma, na alma de Júlia, que assistia amorosa e risonha à convalescença do filho. A nuvem agoureira passara, dissipara-se inteiramente. Já se encontravam outra vez reconciliados com a vida que, por momentos, os amargurara.

―É verdade, Júlia―dizia uma noite Nuno. Sabes de quem me lembrei agora, repentínamente? Foi de Frederico! Ainda nem sequer apareceu!

―Pois tu não tens saído, nem sequer lhe escreveste! De-certo que ignora o nosso regresso. Ninguêm o sabe, alêm dos vizinhos... E pode ser até que não esteja no Pôrto...

―Ah! não! Não deixaria a cidade sem me avisar... [213]E estou zangado com êle―concluiu Nuno, risonhamente. O coração dum verdadeiro amigo devia adivinhar. Serei duro, quando o aviste. Há de ouvi-las bonitas...

Fóra, na rua, os candeeiros de iluminação pública chamejavam ao vento, sob um céu acarvoado. A patrulha da guarda deslizava como uma sombra, sem ruído. A aglomeração das casarias ia adormecendo no silêncio nocturno...



IX


Frederico sentia-se cada vez mais esgotado de energias, mais fraco de vontade, à medida que se gastava nos delírios da paixão carnal, nos desvairamentos duma existência que nem sequer procurava já equilibrar, porque a vida, para êle, perdera todo o interêsse. À sua excitação física, de dia para dia mais intensa, correspondia um desfalecimento moral que constantemente se agravava, debilitando-lhe o carácter, secando-lhe as fontes criadoras de sensibilidade. Convencido da sua própria impotência, trazendo no peito um coração árido, invadido por uma dolorosa melancolia que só os acessos da sensualidade, em horas letais de luxúria, conseguiam dissipar por momentos, levava uma existência desregrada de prazeres de tôda a sorte, em que a luz da sua própria inteligência, tam lúcida outrora, principiava a vacilar. Contudo, conservava-se no seu sentimento alguma coisa que não [216] queria morrer, que era vivaz, persistente, que se obstinava em persegui-lo, empurrando-o violentamente para as maiores loucuras:―o seu amor por Júlia. Era uma obcecação, uma ideia fixa que o aguilhoava sem repouso, por mais que pretendesse esquecê-la. Temendo que o isolamento, a solitude, exacerbassem essa adoração perversa e abominável, que o enxovalhava sempre que espreitava, espavorido, a própria consciência, freqùentava os teatros e o jôgo assíduamente e perdia grossas quantias com absoluta indiferença, porque apenas desejava aturdir-se: arranchava a comesainas tumultuosas com os amigos e ía depois, exaltado pelo alcool, passar a noite com Branca, que definitivamente se apossara dêle e que Frederico considerava como um mal necessário ao apaziguamento da sua tortura, como uma ilusão mentirosa de que derivava, para a sua inquietação permanente, um pouco de tranqùilidade. Os seus nervos enfermos careciam daquela mulher, como certos doentes carecem de venenos para adormecer uma dor fulgurante que os angustia. Consagrava-lhe por isso reconhecimento em vez de ódio. A casa em que a tinha instalado, com riqueza e luxo, era para êle, nas horas de maior atribulação, o logar que uma graça consoladora habitava. Nestes momentos devastadores, submisso como um crente, pousava sôbre a fronte doce e pálida de Branca um beijo quáse religioso, que ela lhe agradecia com um sorriso inexpressivo.

Em certos instantes mais calmos, porêm, quando podia observar-se com lucidez, julgava-se serenamente, acusava-se de se estar aviltando e praticando uma infâmia, procurando apagar com a febre duma lascívia brutal a recordação dum amor puríssimo. [217]Alarmado, cheio de remorsos, entregava-se a longas cogitações, tentando encontrar uma explicação para aquela anormalidade. Que natureza vulgar ou grosseira era a sua que, em vez de ter uma origem de inspirações divinas na paixão amorosa mais elevada que até aí o fizera vibrar, tinha nela, afinal, só um estímulo que o impelia para as abjecções deprimentes? Como é que o amor por Júlia não iluminava a cegueira da sua alma, o não sublimava de tôdas as imperfeições terrestres? E seria, na verdade, amor o que por ela sentia ou apenas um desejo bestial:―o desejo do seu corpo tam perfeito, da sua carne esplêndida, da sua beleza perturbante? Duvidava da sua sinceridade, e sofria mais amargamente por esta dúvida.

O entusiasmo que a ideia duma demorada viagem pelo estrangeiro nêle despertara, em breve arrefeceu. Não manifestava curiosidade por nada: a alegria de viver havia fugido do seu espírito: e pensava, com terror, na perspectiva de sair de sua casa, do seu país, para meter-se, com um monte de malas, em combóios que rolassem monótonamente por terras desconhecidas, para viver na barafunda dos hoteis, entre multidões indiferentes e egoístas. Que enorme alteração tudo isto representaria para os seus hábitos rotineiros, que fadiga mesclaria ao seu cansaço e que tédio juntaria ao seu aborrecimento! E, afinal, para quê? Que lucro positivo tiraria êle duma vagabundagem a outras nacionalidades habitadas por povos diversos do seu? Não lucraria nada! De resto, só se deve viajar em absoluta serenidade espiritual, em pleno contentamento de alma: e Frederico não possuia nem essa serenidade nem êsse [218] contentamento essencial. Não! Não abandonaria o Pôrto. Neste burgo se iria definhando, consumindo, aniquilando!...

Às vezes, Branca, abraçando-o, amimando-o, com carícias em que se não escondia o frio, a secura, o desinterêsse, relembrava-lhe a promessa que Frederico lhe fizera de a levar ao estrangeiro. Gostava tanto de ir a Paris! Ai! Paris era a sua ambição! E, para o convencer, apontava-lhe exemplos de rapazes com dinheiro que tinham ido com as amantes, numa jovial jornada, por essa Europa fóra.

―O Gusmão, por exemplo! Levou a Adriana.

―O Gusmão?―inquiria Frederico. Quem é êsse Gusmão?

―Ora! Tu conheces!... Um trigueiro, de grandes bigodes, que tem um lindo automóvel e que vive aí para os lados de S. Roque. Há quantos anos êle pôs a Adriana por conta! É como se fôssem casados. Aquela sim. Está de grande!...―terminava Branca, fazendo beicinho.

―Pois tambêm tu hás de ir ver a Europa, sossega. Mas mais tarde... Por enquanto, não posso. Preciso primeiro de deixar umas coisas em ordem―afirmava êle, sentando-a nos joelhos e passando-lhe um braço à volta de pescoço.

―Sim, sim! Bem acredito eu nisso!...

―Não acreditas!... Olha para mim... Mas olha bem de frente. Dize lá. Eu tenho cara de quem mente?...

―Não quero dizer que mentes...

―Então, que queres dizer?...

Ela não respondia, fazia-se mais amáv Ela não respondia, fazia-se mais amável entre os seus braços, pousava-lhe a cabeça no ombro, muito [219] terna, muito quebrada, com geitos estudados e pieguices; e Frederico, perturbado, beijava-a furiosamente, exclamando:

―De resto, para sermos felizes, não precisamos de sair daqui...

Uma noite, de volta do teatro Sá da Bandeira, onde fôra ver uma revista deplorável, sem vivacidade, sem espírito, sem arte, maculada por ditos e situações lúbricas, encontrou na rua o jovial Paiva que passava, muito embuçado, rente às paredes.

―Pára aí, criatura―bradou Frederico. Há quanto tempo te não vejo!...

―Oh! menino! Pois és tu?―respondeu Paiva.

Cumprimentaram-se, trocando um demorado apêrto de mão.

―Para onde diabo vais, a esta hora e com tanto mistério, Paiva magnífico?

―Vou para o namôro.

―Para o namôro?...

―Sim! Um caso de sentimento, uma inclinação irresistivel, com diálogos de janela, noite alta―porque o pai é austero―com estrêlas que se contemplam tristemente, com suspiros. Coisa muito séria.

―Oh! Paiva! Tambêm tu?

―É verdade, grande Frederico. Tambêm eu! Que queres? Assim acabam todos os românticos. E adeus, filho. Não posso demorar-me. Já vou tarde. A pequena espera-me... Olha! Aparece qualquer dia, para conversarmos. Depois te direi tudo.

―Vai! Sê pontual como Romeu. Não faças sofrer com a tua ausência os corações ingénuos.

Partiram cada um para o seu lado, em sentido [220]oposto; mas, apenas Frederico tinha dado alguns passos, Paiva, voltando-se de repente, chamou-o aproximando-se novamente dêle:

―Ouve lá, ó Frederico... Ia-me esquecendo... Tu sabes quem está no Pôrto, chegado há seis ou sete dias?

―Não sei. No Pôrto está tanta gente!

―Pois, é Nuno, o teu amigo Nuno.

―O quê?―bradou Frederico, sobressaltado. Nuno? Não pode ser.

―E porque não pode ser? Se eu te estou a dizer que está! Vi-o esta manhã na Praça da Batalha. Vinha do correio... Parámos um momento a palestrar. Até êle me perguntou por ti.

―Essa agora! Nuno no Pôrto! E sem me dizer nada!

―Como não te disse nada? Tu é que lhe foges, ao que parece. Já te procurou em casa e não te encontrou. Deixou-te uma carta urgente e não lhe respondeste! Foi o que êle me asseverou, e até um pouco ressentido... Aparece-lhe! Escreve-lhe... E adeus!

Com efeito, havia uma semana que Frederico não ia a casa. Branca retinha-o, no seu leito de amante, uma parte da noite e uma parte do dia, porque só muito tarde, às vezes de madrugada, lhe batia à porta, de regresso das estúrdias ou das bancas de tavolagem com a roupa em desalinho, o olhar vago e ardendo dum brilho especial, numa secreta e áspera revolta contra si próprio. Ficava tôda a manhã deitado, dormindo com as mãos fechadas junto da cara, a pele humedecida por uma transpiração álgida, agitado de sonhos pavorosos. Quando o sol ia já [221] muito alto, entrando no quarto em feixes de raios difusos e rutilantes e inundando móveis, cortinados e tapêtes com a sua dourada cabelugem que faíscava, lampejava nos espelhos, Branca acordava-o, sacudindo-o com fôrça, chamando-lhe dorminhoco, tirando a roupa da cama, entre gargalhadas. Frederico espreguiçava-se, bocejava. Ela, de robe-de-chambre de sêda, cabelos soltos e despenteados caindo-lhe pelas costas, um ar petulante e vicioso que punha uma desagradável mácula na sua meiguice mas que a tornava mais picante, aninhava-se nas tapeçarias que alcatifavam o soalho, rolava a cabeça na beira do leito com lentidões de gata amimada, ria-se da moleza de Frederico, fazendo-lhe momices que êle repelia, enfastiado. Sempre que despertava dos seus desvairos sensuais, sentia um desgôsto muito fundo pela miséria moral em que ia resvalando rápidamente, sem coragem para romper com torpezas o reentrar numa existência honesta. Branca amuava, dizia-lhe que êle já a não amava, que estava morto por desfazer-se dela, falava em morrer.

―Mas, vê lá! Se me queres deixar, confessa-o francamente!―acrescentava.

Frederico irritava-se, chamava-lhe douda, saltava do leito, tomava banho, vestia-se, reconciliando-se com Branca; e, então, volvidas horas de repouso que êle aproveitava para ler os jornais, para folhear revistas estrangeiras ilustradas, almoçavam muito juntos na pequenina sala de jantar que as jarras de flores aromatizavam, o papel claro das paredes alegrava e a que os mobiliários caros davam confôrto, elegância e beleza ornamental. Pelos aparadores scintilavam pratas e reluziam porcelanas; de [222] grandes pratos cheios de fruta madura exalavam-se arômas aperitivos; os cristais irisavam-se à luz; e Frederico achava então um certo enlêvo naquela vida comum, parecia-lhe que tinha um lar, uma companheira solícita, que possuia no mundo uma alma para quem a sua personalidade não era estranha. Muitas vezes, jantava mesmo com Branca, saindo à noite para as suas vadiagens, que se prolongavam até horas mortas. Seis dias seguidos assim foram deslizando, sem que êle se lembrasse, sequer, de ir a sua casa. E por isso Nuno o não encontrara, por isso não tivera, mais cedo, notícias do imprevisto regresso do amigo ao Pôrto―regresso de que só por acaso havia sido informado...

Enquanto caminhava pelas ruas já desertas e cheias de sombra, perdia-se em suposições. Nuno dissera-lhe que passaria o inverno na aldeia, quando se separaram, e voltara a afirmar-lhe, em carta, êsse propósito. Que facto, grave certamente, o teria feito mudar de tenções? Aborrecimento da monotonia rural, da solidão rústica? Saudades da animação, da sociabilidade citadinas? Não! Nuno não era mundano, abominava as exibições, os convívios banais. Taciturno, misantropo, já na sua mocidade só estava bem com uma ou duas amizades mais íntimas à sua roda. Depois que se casara, meteu-se dentro da sua vivenda e da sua felicidade, sequestrou-se de todo, gostosamente, às curiosidades indiscretas da rua e das salas. Que razão forte, que motivo imperioso, o teriam, pois, desalojado da solitude campestre, obrígando-o a refugiar-se no Pôrto?

―E se Júlia adoeceu?―monologou Frederico, invadido por um sobressalto repentino.

[223] Uma comoção dolorosa apoderou-se de todo o seu ser; sentia um fundo mal-estar interior, uma angústia que o atordoava, que lhe apertava o coração, que o constrangia. Com efeito, aí estava a explicação da volta de Nuno ao Pôrto. Não podia ser outra! Naquele momento, a mulher que êle amava com infinita doçura, sofreria, queimada pela febre, ir-se-ia fanando na sua beleza viçosa, na gentileza do seu encanto supremo, enquanto Nuno, apreensivo, assistindo transido a uma dor que não podia sarar, nem ao menos tinha ao seu lado alguêm que o confortasse, que lhe desse esperança.

―Com certeza que Júlia está doente!―pensava Frederico.

Um relógio dava, ao longe, duas horas. Era-lhe impossível correr a casa de Nuno, bater-lhe à porta, alarmar tôda a vivenda, para saber o que havia; mas êle tinha-lhe escrito e, naturalmente, nessa carta, contava-lhe tudo. Então, dominou-o, espicaçou-o o desejo de chegar de-pressa à sua habitação, que ficava ainda distante. Acelerou o passo. Ao dobrar duma esquina, um vulto de mulher sumido dentro do chaile cruzado no seio, saindo repentinamente da sombra, disse-lhe em voz baixa e ofegante qualquer coisa que não entendeu. Tirou do bôlso uma moeda de prata e meteu-a numa lívida e magra mão que para êle se estendia com um gesto rapace de garra. Mais adiante, um polícia embuçado no seu capote fumava encostado a um candeeiro. Sôbre as casarias pairava uma ligeira névoa. A cidade dormia profundamente...

Uma tipóia surgiu, rolando lentamente na calçada. Frederico fez um sinal ao cocheiro, que esticou as rédeas e se endireitou na boleia, exclamando:

[224] ―Pronto, meu patrão!...

Os cavalos, extenuados e de cabeças pendentes, estacaram. Frederico abriu a portinhola, entrou de salto.

―Para onde quere que o leve?―perguntou ainda o cocheiro.

Indicou o bairro e o número do prédio em que residia e o carro partiu logo, mais velozmente, ao estalar sêco do chicote. As ferraduras dos cavalos, batendo violentamente nas pedras, levantavam faúlhas de lume que scintilavam um momento para em seguida se apagarem. Devorado de impaciência, Frederico, de quando em quando, espreitava através das vidraças e apenas via ruas esgueirando-se na sombra, fileiras monótonas de casas, algumas ainda com luzes agonizando por detrás de stores descidos nas janelas dos segundos andares.

―Como é triste uma grande cidade erma a horas avançadas da noite! E essa tristeza envelhece a gente!―meditava.

E o maldito carro sem chegar ao fim daquela corrida que o estava atormentando! Batia nos vidros da frente, com os nós dos dedos para que o cocheiro fizesse galopar os cavalos mais apressadamente. Parecia-lhe que já há muito tempo rolava, aos solavancos, dentro daquela caixa fechada e sem ar, através do burgo solitário, e isto excitava-lhe os nervos... Por fim, o carro deteve-se de repente. Frederico, olhando para fóra, reconheceu o seu retiro, a sua vivenda; saltou para o passeio, deu uma gorda gorgeta ao cocheiro que tirou o chapéu agradecendo, sacou do bôlso um mólho de chaves niqueladas, abriu a porta e sumiu-se na treva. Depois, raspando um fósforo, [225] subiu ligeiramente a escada, procurando não fazer barulho para não despertar o criado que dormia, entrou no seu escritório, acendeu o gás que ardeu num leque de luz dentro da tulipa de cristal, sibilando em surdina, e olhou para cima da larga mesa de pau preto em que escrevia. Lá estava a carta de Nuno, efectivamente. Logo a reconheceu pela letra que negrejava no enveloppe―uma letra de traços finos e firmes em que se denunciava alguma coisa do carácter do amigo―a sua franqueza, a sua energia, a sua vontade sem hesitações. Rasgou o sobrescrito com frenesi, como se êle representasse um forte obstáculo com o poder de lhe demorar ainda durante muito tempo o conhecimento duma verdade que queria saber imediatamente e logo encetou a leitura. Nuno, como pensara, dizia-lhe o motivo do seu regresso à cidade, informava-o, com pormenores, da doença do filho, já curado, do susto que tiveram, êle e Júlia, na aldeia, quando julgaram a criança atacada de difteria e da sua viagem por um hostil, bravio dia de chuva açoutando em bátegas o automóvel. Terminava, pedindo-lhe que o fôsse ver, que lhe désse ao menos notícias suas.

«―O Porto―escrevia Nuno irónicamente―é uma terra tam pequena que tôda a gente se conhece uma à outra. Pois bem; há três dias que te procuro por praças e cafés, logares onde se dá à língua, no boletim mundano dos jornais, e―parece impossível!―ainda te não encontrei, como se tu fôsses la Belle au bois da lenda e se da lenda e se tornasse necessário penetrar numa vasta floresta encantada para chegar junto de ti! Aparece. Tanto eu como Júlia, que está mais nutrida, que lucrou imenso com a sua permanência[226] na aldeia, gostaríamos de ver-te por esta casa que é tua.»

Acabando de ler a carta, Frederico respirou. Júlia não estava doente, não ocorrera na existência, tam calma, tam feliz, tam igual do marido, nenhuma fatalidade irremediável, nenhum perigo ameaçava criaturas a quem a sua alma era dedicada. Fez-se a paz no seu sobressalto emotivo. Dobrou a larga fôlha de papel que Nuno para êle escrevera e atirou-a para cima da mesa, sentando-se numa poltrona estofada em que o seu corpo molemente se enterrou; e por muito tempo entregou-se a um longo scismar. Branca, que naquele momento o estaria esperando com um chaile de lã pelas costas, estirada num fôfo divan da sala em que passava os seus serões, lendo romances sentimentais ou conversando com Amélia, sua criada de quarto e sua confidente, esqueceu-lhe completamente. A sua recordação estava cheia da imagem de Júlia, da sua beleza, da sua bondade, da sua maravilhosa graça de mulher, que queria adorar com uma emoção purificada de desejos inferiores, venerar como um crente, no ardor do seu misticismo, venera as coisas de Deus e que afinal amava, para seu tormento e sua angústia, com um amor lúbrico que lhe acendia a febre no sangue, que lhe toldava a lucidez do espírito, que maculava de crápula os puros lirismos da sua paixão a princípio casta e que depois, pelas solicitações carnais que não pudera conter, se transformou em criminosa. Como era que essa mulher, em vez de o tocar com o alvor da sua santidade, de tudo o que nela havia de superior, de elíseo, de admirável, de astral, só lhe comunicava uma estranha volúpia que o alucinava?

[227] ―A culpa não é dela, com certeza, mas da impureza da minha organização!―monologava.

E ali estava ela no Pôrto, perto dêle, chamando-o para junto de si com uma voz de amizade que Frederico, no seu delírio voluptuoso, julgava carregada do fluido magnético da atracção voluptuosa. Um espírito oculto e maléfico impelia-o para Júlia, incitava-o a loucuras, a infâmias. Aterrado com a própria consciência―em que germinava a flor vermelha dum impulso mau―fugiu-lhe, afastou-se dela, para a esquecer. Em vão. O destino enigmático aproximava-os novamente, e desta vez com a particularidade de se conhecerem de perto, de não serem estranhos a um afecto que em Júlia era digno e enternecido e que nêle degenerara em sensualidade animal; de haverem vivido sob o mesmo teto, de se terem confessado as suas simpatias e as suas predilecções, de se fazerem mútuas confidências em que notavam, rindo, um gôsto idêntico, uma inteligência que tinha pontos de contacto, modos de ver em que havia semelhança. Iria a casa de Nuno? Não iria? Flutuava entre estas duas hipóteses, sem se decidir. Tinha mêdo...

―Deve ser já muito tarde!―pensou.

Viu as horas. Eram quatro. De fóra não vinha o menor rumor. Tôda a vida parecia suspensa, perdida no silêncio e na treva nocturna. Então, novamente se lembrou de Branca, mas esta lembrança súbita inspirou-lhe uma repugnância secreta. A lubricidade excitante que essa mulher acordara nas profundidades do seu ser, apagava-se repentinamente como uma brasa sob a água e dela nada ficava―nem memória afável nem doce recordação. Júlia apoderava-se outra vez dêle, com o mesmo império, com a mesma intensidade, [228]impregnava-se da sua substância nervosa, do seu sangue, da sua carne, dominava-o. Não tinha pensamento, nem desejo, nem aspirações que não fôssem para ela: e a exaltação que o sacudia era por tal forma enérgica e absorvente que Nuno ou lhe esquecia e lhe aparecia inteiramente desligado da espôsa, como se fôssem duas personalidades sem nada de comum, inteiramente separadas moral e corpóreamente uma da outra. Era-lhe necessário empregar um grande esfôrço para os associar de novo, para entrar na realidade das coisas, para compreender com nitidez que Nuno era o seu amigo, o seu sincero camarada e que, em vez de traí-lo, lhe devia comovidos respeitos, lealdades fervorosas.

Êste fenómeno psíquico decidiu-o. Não! Não iria mais a sua casa, enquanto não pudesse estar diante de Júlia com a serenidade com que estaria diante duma irmã. Desculpar-se-ia, inventaria uma piedosa mentira com que pudesse justificar-se, cometeria mesmo grosserias, contanto que a sua dignidade de homem consciente ficasse intacta―ainda que para isso tivesse de romper abertamente com Nuno. Saíria do Pôrto sem delongas, para Lisboa, para o estrangeiro, para tôda a parte onde se soubesse longe de Júlia, embora a tivesse sempre presente na sua saùdade e na infinita sêde de amor do seu coração. De Branca fugiria tambêm com a alegria com que se quebram cadeias tirânicas e se recupera uma liberdade durante muito tempo perdida. O seu sentimento, agora divinizado pela sagrada lembrança da mulher mais que tudo amada, tornava-lhe insuportável a presença da impura, que apenas lhe apagava as ardentes solicitações da animalidade carnal e que lhe [229] não apaziguava as inquietações da alma, que acelerava a vibração da sua febre voluptuosa sem lhe fazer ascender no espírito uma pura, ideal aspiração.

Oh! de-certo que ela choraria, que o ameaçaria com suicidar-se, com provocar clamorosos escândalos: mas enxugar-lhe-ia as lágrimas com um farto punhado de ouro que a tranqùilizasse no seu desespêro artificial. De resto, nada lhe devia, a não ser a ternura de algumas horas, uma ternura que ela costumava vender a todos os homens e que Frederico tambêm comprara, pagando-a por excessivo preço. Tinha-a encontrado numa ceia com amigos, simpatizara com ela―porque a sua beleza e a sua desdita o impressionaram e o comoveram―levara-a para casa, pedira-lhe não inspirações mas luxúrias que o atordoassem. Reconhecido pela relativa tranqùilidade que Branca comunicara à sua dôr, indemnizou-a generosamente. Não podia ir mais longe. Bem sabia que ela empregava todos os recursos e toda a sciência da sua coquetterie para lhe agradar com mais intensidade, para se tornar mais desejada―não movida por impulsos amorosos mas por cálculos. Era amável; mostrava, mesmo, nas suas relações com Frederico, delicadezas que eram meramente superficiais. Por debaixo delas traía-se sempre a indiferença ou a secura, o automatismo, a inconsciência. A castidade das emoções que iluminariam a sua paixão primitiva não podia mais renovar-se em Branca. Nos seus carinhos balbuciados havia qualquer coisa de convencional, de estudado; nos seus beijos havia frio. Era apenas um corpo sem alma―um lindo corpo, certamente,―que se entregava por dinheiro. E, nos primeiros tempos, [230] a posse dêsse corpo chegou a interessá-lo por determinadas afinidades físicas.

Mas agora, Júlia ressurgia; os cuidados de que era alimentada a adoração que lhe consagrava reclamavam todo o seu ser; uma luz nova o alumiava, invadia-o a tortura dum amor sem finalidade, que lhe era amargo mas em que tambêm os seus sentidos encontravam uma particular doçura. Sentia-se renascer, não para uma vida nobre de esperanças, de júbilos futuros, de graças aurorizantes, mas para preocupações e para comoções que lhe eram, conjuntamente, deleitosas e aflitivas. A sua excitação sensual arrefecia, extinguia-se―e por isso Branca desaparecia das suas impulsividades orgânicas. Na sua intimidade moral e afectiva resplandecia apenas a imagem aliciante do único amor sério da sua existência de homem apaixonado e consciente: e Júlia assumia aos seus olhos o esplendor de certas figuras maravilhosas e místicas, que andam nas lendas sagradas com um fulgor de ouro à volta da fronte. Queria entregar-se inteiramente à veneração silenciosa e oculta dessa mulher, devotar-se-lhe―mas de longe, procurando evitar que esta devoção, êste culto, se transformassem em crime. Era a fatalidade! Estava, portanto, decidido. Iria a casa de Branca, pela última vez, trocaria com ela o derradeiro beijo, deixar-lhe-ia, delicadamente, sôbre o leito, um enveloppe fechado. Depois, escreveria a Nuno uma longa carta e seguidamente partiria ainda não sabia para onde. Esta ideia calmou-o um pouco: mas em breve, tudo o que na sua natureza havia de tímido, de indeciso, de incaracterístico, imprimiu-lhe um rumo diferente aos pensamentos. Não! Não romperia com Branca asim de repente. Dir-lhe-ia que era forçado [231]a sair do Pôrto por alguns meses, por causa de negócios que se prendiam com a administração da sua fortuna, mas que voltaria logo que isso lhe fôsse possível e que então, como dois noivos, realizariam essa prometida viagem à Europa. Só de longe lhe comunicaria a resolução duma ruptura inevitável, poupando-se por esta forma ao espectáculo, doloroso para a sua sensibilidade doentia, de prantos, de soluços sufocados, de recriminações sem fim.

Com Nuno, usaria do mesmo processo, servir-se-ia de igual subterfúgio. Havia de dizer-lhe que apenas em Lisboa, em Madrid, em Paris, recebera a sua carta―que lhe fôra mandada por Bernardo―e que por isso não pudera correr, como a sua alma desejava, a dar-lhe um abraço. Anunciar-lhe-ia até um breve regresso, para que êle se tranqùilizasse e não procurasse saber da sua vida e das suas aventuras. Dêste modo, sofreria menos!...

Já pelas frinchas da janelas se filtrava uma fresca e pura claridade matutina, quando uma quebreira o invadiu, serenando as suas violentas agitações. As pálpebras, pesadas de sonolência, cerravam-se-lhe; uma doce lassidão prostrava-o. Levantou-se na ponta das botas, foi buscar ao quarto um couvre-pieds e deitou-se, mesmo vestido, sôbre a chaise-longue que estava na sala, no ângulo formado por duas paredes, para repousar por algumas horas. Lentamente adormeceu, perdendo a noção das coisas que o rodeavam, da sua própria situação equívoca. Só acordou quando Bernardo, entrando no escritório com o sol já alto, abriu uma persiana, por onde a luz festiva e clara entrou a jôrros. Frederico sentou-se indolentemente, esfregando os olhos, bocejando com fôrça, chamando [232] a atenção do criado, que se voltou espavorido no receio de que um desconhecido tivesse entrado em casa, para roubar.

―Sim, sou eu, homem! Que diabo de espanto é êsse!―exclamou êle para Bernardo que o contemplava, intrigado.

―Crédo, patrão! Que mêdo me meteu! Até pensei que eram ladrões. Estava tam longe de o saber por ca!... E não admira! Não o senti entrar.

―Vim tarde, com efeito... Olha, desce à cozinha e diz à criada que me faça o almôço para o meio-dia. Por agora, quero uma chávena de café... Mas bem forte.

―Então, o senhor hoje almoça?

―Pois é claro que almoço―atalhou, rabujento...

―Está bem!

Enquanto Bernardo cumpria as ordens, Frederico ergueu-se, entrou no quarto de vestir para mudar a roupa, que estava amachucada e cheia de vincos, para lavar-se... Que desordem, a da sua existência! Como é que êle se emmaranhara em tanto tumulto, enxovalhando-se, perdendo a noção da decência, do alinho exterior, da rectidão moral, de tudo quanto pode nobilitar o ser consciente! Ai! dêle que não conseguira encontrar uma actividade útil e um ideal dignificador, derivava todo o mal―considerava Frederico, enquanto banhava, regalado, a fronte em água fria. Não acusava ninguêm. O culpado era êle, exclusivamente êle e da sua culpa amargamente se arrependia. Estaria ainda a tempo de recomeçar uma experiência, de regenerar-se? Não haveria na sua alma, no seu sentimento, estragos irremediáveis? Consultava-se, [233] analizava-se minuciosamente e notava em si uma ausência de coragem, uma falta de incentivos renovadores, que o apavoravam. Com a face branca da espuma do sabonete, que exalava um leve arôma de narcisos em flor, levantou um instante a cabeça diante do espêlho e teve a noção lúgubre de que estava vélho e morto para todos os actos elevados. E como tudo, igualmente, envelhecia e morria à sua roda, sem um lampejo de beleza, numa desolação que mais ennegrecia o seu desconsôlo... Remergulhou, furiosamente, na água: e, depois, enxugando as mãos e a cara a uma toalha felpuda bem sêca, maldizia-se por não ter sabido construir uma outra vida nobre e fecunda, por se haver deixado arrastar sem reacções, ao sabor das correntes do acaso ou do destino... Mas agora, implacávelmente, reagiria, limpar-se-ia de impurezas, tentaria ganhar o tempo perdido, trabalhando sem repouso para rejuvenescer-se, para ressuscitar, para se emancipar duma apatia amolecedora. A resolução anterior fortalecia-lhe o coração. Apegava-se a ela com desespêro. Mais algumas horas, que lhe eram necessárias para pôr em ordem vários papeis, para dar algumas instruções aos criados, para escrever a Branca, para arranjar as malas, e uma outra existência se iniciaria para êle... A esta ideia, avivou-se-lhe o sofrimento interior. Ia afastar-se, talvez para sempre, de Júlia, que era a sua saùdade, a sua doçura e a sua dor. Idealizava-a mais uma vez. Ela tinha o encanto altivo unido a uma simplicidade encantadora. A palidez espiritual das suas faces e a meiguice dos seus olhos boiando numa luz que brilhava, tocavam-lhe a alma. A sua bôca apaixonada, que a mentira nunca maculara, tinha a dupla sedução do silêncio e da palavra―como [234]as mulheres cantadas em sonetos de ouro por Dante Rossetti. E deixava-a, porque no coração de Júlia, transbordante dum outro amor, não cabia o seu, que era um intruso...

Mas Frederico, que ainda momentos antes se julgava com tanta energia para a separação, começava a vacilar. Como poderia viver sem ela e longe dela? Que novas formas de tortura atingiria o seu padecimento? A tristeza e o desespêro, que já o pungiam, davam-lhe a medida exacta da paixão que por Júlia sentia.

Acabou de vestir-se mais deprimido, mais acabrunhado, e voltou ao escritório, murmurando entre dentes:

―Embora! Não retrocederei!...

Bernardo bateu à porta, perguntando se poderia entrar.

―Entra!―ordenou Frederico.

O criado entrou, trazendo uma chávena de café, quente e aromático, numa bandeja de prata, que pousou em cima da mesa, informando:

―Está lá em baixo uma senhora ainda nova.

―Uma senhora?

―Sim, patrão. Uma senhora, que chegou de automóvel. Diz que lhe quere falar sem demora. É um caso urgente.

―E porque lhe não afirmaste que eu não estava?―gritou Frederico, irritado, na suspeita de que Branca o procurasse.

―Pois eu afirmei, meu senhor...

―E então?

―Então, ela duvidou das minhas palavras, asseverou que bem sabia que o senhor estava, que [235] era escusado eu negar. E falava alto, parecia agastada... Diz que é um momento...

―Olha que estopada!―bradou Frederico. Bem! Passa-me o café, e manda-a entrar para a sala de visitas... Lá irei ter daqui a pouco.

Que audácia! Não faltava mais nada senão essa criatura―flor do vício―a agarrar-se com ansiedade aos seus braços, a colar-se ao seu corpo, a manchá-lo com uma nódoa, a fazer scenas públicas da sua paixão, como se Frederico lhe devesse reparações, como se de si tivesse partido o lôgro que a despenhou para sempre no lôdo e na desgraça! Com que direito vinha ela procurá-lo a casa, denunciá-lo à criadagem como seu amante, sair dum automóvel à sua porta, em pleno dia, diante de tôda a vizinhança rindo sarcásticamente? E que lhe quereria? Talvez pretendesse queixar-se pelo abandôno duma noite, lamentar-se, mostrar as suas lágrimas e os seus ciúmes. Ah! não! Isso, não lho permitiria...

Tomou à pressa o resto do café que esfriava na chávena de porcelana fina, acendeu um cigarro, soprou algumas baforadas de fumo e encaminhou-se para a sala de visitas. Logo de entrada reconheceu Branca, que se sentara numa cadeira sem mesmo erguer o espêsso véu preto que lhe cobria o rosto. Com as mãos esquecidas no regaço, estava pensativa. O seio arfava-lhe apressadamente.

―Então, que loucura é esta? Para que vieste aqui?―interrogou Frederico, de mau humor.

―Ah! és tu!...―respondeu ela.

Ergueu nervosamente o véu, dirígiu-se para êle de braços abertos. Tinha os olhos vermelhos de chorar.

―Pensei que te não tornava a ver, que me tinhas [236]fugido, que estavas fatigado de mim. Porque não apareceste ontem, como de costume?―interrogou ela.

Falava sacudidamente, muito excitada. O seu rosto pálido rosava-se duma ponta de sangue mais vivo.

―Não apareci porque não pude.

―E porque não pudeste? Dize! Tiveste outros amores, outras mulheres? Não sou já nada para ti, então?... Responde!... Mas responde!...

Frederico deteve-se um momento a considerá-la com um olhar mau, de rosto sombrio e contraído. Branca teve mêdo e acudiu logo, para se desculpar da sua impertinência:

―Não repares nas minhas palavras, que eu não sei o que digo. Não dormi nada em tôda a noite. Só chorei! Se conhecesses os meus tormentos, até tinhas pena... Mas, porque não apareceste, Frederico?

Outra vez a impertinência! Aquele inquérito exaltava-o, enchia-o de cólera. Tinha vontade de conclui-lo repentinamente, pondo Branca fóra de sua casa, com imprecações duras e empurrões brutais. E, azedado por uma súbita fúria, atalhou:

―Se tu me vens com êsses ares de que eu sou uma coisa que te pertence e de que tenho de dar-te conta dos meus menores actos, não te respondo... Que tal está a petulância? Não apareci porque não quis. E olha! Nunca mais apareço... Acabou tudo entre nós! Tudo, entendes?

Atirou violentamente a metade do cigarro que ainda ardia entre os seus dedos para um cinzeiro, e começou a pessear excitado, des Atirou violentamente a metade do cigarro que ainda ardia entre os seus dedos para um cinzeiro, e começou a pessear excitado, desvairado pela irritação sempre crescente. Branca abateu-se sôbre o sofá, [237] vencida, ofendida, soluçante, abafando o chôro no seu lenço de rendas.

―Agora temos prantos!... É escusado. Não me comoves!

Mas olhou-a novamente, viu-a enrodilhada, ennovelada, destroçada sôbre o sofá, emmudecida na sua dôr, teve dó daquele pobre corpo frágil, daquele coração que todos calcavam, comoveu-se. Aproximou-se dela, impressionado, chamou-a carinhosamente:

―Branca!

Ela fitou-o na humildade dum olhar que implorava e que as lágrimas tomavam mais brilhante, murmurando:

―Eu vim aqui porque me parecias diferente dos outros, porque me trataste com alguma bondade, porque julguei que tinhas piedade de mim. Bem sei que nada me deves, que não tenho direito de ser exigente e de meter-me nos segredos da tua vida... Mas que queres? Costumaste-me mal. Pensei que não me empurrasses com violência... Desculpa-me!... Eu vou já embora. Deixa-me sossegar um instante...

―E quem é que te empurra?―exclamou êle, comovido. Escuta... Eu é que te peço perdão da minha brutalidade... Mas, minha filha tu ignoras as minhas crises íntimas, os desgostos que me enfurecem. Fui arrebatado, é certo. Mas, se soubesses a razão do meu arrebatamento, absolvias-me.

Branca enxugou os olhos, levantou-se vagarosamente do sofá, foi para êle com um sorriso dolorido e risonho, já esperançada.

―O quê? Pois não me repeles? Queres então um pouco a uma mulher como eu, que se devota [238] como os cães e que todos enxotam, queres? Então, que Deus te pague!... Mas que tens? Que desgostos são êsses em que falas? Oh! se não podes dizê-los, guarda-os para ti só, que eu não fico ressentida...

―Pois é o diabo, filha... Maçadas...

Gaguejava, sem saber o que havia de dizer, muito confuso, temendo que ela descobrisse as suas mentiras, incapaz duma atitude resoluta.

―Até estava agora para ir a tua casa, dizer-te tudo, explicar-te tudo...

E de repente, o subterfúgio que procurava iluminou-se-lhe na inteligência. Concluiu, perturbado e contente:

―Tenho de sair do Porto, hoje, infalivelmente.

―E demoras-te?

―Algumas semanas. Imagina! Ontem à noite, inesperadamente, recebi um telegrama de Lisboa chamando-me a tôda a pressa para junto duma tia minha que está a morrer!...

―Ah! então!...

―Pensa na minha angústia! Esta tia, é a única pessoa que me resta duma família que se extingue... E nem sequer posso levar-te comigo... Bem vês! É caso de gravidade... Mas volto. Volto logo que seja possível, para a continuação do nosso amor.

―Se eu pudesse acompanhar-te, Frederico!―exclamou ela resignada.

―Mas não podes. Como queres tu?...

―Não! Estou doida, efectivamente... Mas não me deixas?... Não estás zangado comigo?

―Zangado, eu? Que ideia... Espera um momento.

Foi dentro, ao escritório, abriu o cofre, tirou um [239] maço de notas, felicitando-se pelo ardil encontrado, satisfeito na sua covardia por cortar com Branca mais suavemente do que pensava; e, reentrando na sala meteu-lhe o dinheiro na saquinha de mão, murmurando:

―Leva! Podes ter precisão dêle, enquanto eu não regresso...

―Mas!...

―Nada de recusas. Ordeno eu. E agora vai, e sê-me fiel. Mandar-te hei noticias minhas. Dá-me um beijo e adeus!

Quando Branca desceu a escada e entrou apressadamente no automóvel, que largou numa corrida vertiginosa, Frederico soltou um suspiro de alívio...



X


Dois, três vagarosos meses decorreram com uma lentidão cruel para Frederico, que sentia por vezes a impressão do tempo se ter imobilizado, de tudo cair à sua volta numa inêrcia que o apavorava, inspirando-lhe um terror mais forte pela vida, exaurindo-o totalmente de vontade. Saíra do Pôrto na intenção de partir para o estrangeiro, de se demorar por lá, em cidades ruidosas ou sossegados logarejos onde encontrasse algum repouso, até que o seu amor impuro se lhe apagasse no coração como se apaga uma luz que muito tempo espalhou claridade; mas, desde que chegara a Lisboa, encontrou-se mais só, mais desalentado e mais inquieto, arrependendo-se amargamente de haver deixado a rua em que vivia, a casa em que nascera, perseguido por um mêdo absurdo e quáse infantil, por uma cobardia deplorável, e por uma fraqueza de alma que o envergonhava...

[242] As sensações sucediam-se-lhe com rapidez assombrosa no sentimento. Na capital, parecia-lhe que entrara numa região de imensa solitude―uma solitude que o oprimia, que lhe constrangia, apertava o coração. Como se tinha enganado! Imaginava que a distracção das viagens lhe curaria ou, pelo menos, atenuaria o extraordinário mal que tanto o fazia sofrer:―e agora nítidamente via que, quanto mais se afastasse de Júlia, mais êsse mal se agravaria. A doença estava inteiramente dentro de si:―na sua imaginação, nos seus nervos, na sua sensibilidade, no seu sangue! A dor que o atormentava nada mais era do que um dos variados aspectos do padecimento humano, a eterna miséria dos sêres conscientes. Provinha das tiranias implacáveis da carne, da animalidade, da tristeza infinita dos destinos, das fatalidades a que ninguêm pode eximir-se! Fugir para onde? Esconder-se em que sítio? A sua tortura permanente havia de acompanhá-lo para tôda a parte, como certas enfermidades que não perdoam e que sem descanso, noite e dia, devoram o organismo de que se apoderam...

Pensando constantemente em Júlia, formara no espírito uma imagem dessa doce mulher muito mais viva do que a personalidade real. Dêste fenómeno derivava a sua excitação, o seu frenesi. Era essa imagem, precisamente, que nêle activava a luta entre a dignidade, a elevação moral e o desejo lúbrico, entre a noção do dever e o cego instinto. Considerando como absolutamente inútil para a sua paz―a paz de que tanto carecia―a vagabundagem pela Europa em que durante dias pensara, decidiu ficar em Portugal, conservar-se em Lisboa, envelhecer a um canto do seu país, respirando o mesmo ar que vivificava Júlia, [243]alumiar-se com a luz do sol que tambêm a iluminava a ela. Para a infinita melancolia do seu amor, havia um grande encanto nestas pequeninas coisas. Aquela adoração sem esperança comunícava, em todo o caso, a radiação da sua beleza intangível a tudo o que o cercava, penetrava-o de suavidade, tinha o condão misterioso de lhe ressuscitar na memória figuras queridas em que lhe era grato meditar. O vulto de Júlia andava íntimamente ligado, na sua recordação, às paìsagens rústicas que ambos tinham contemplado num mudo êxtase, a certas páginas de música que Frederico lhe ouvira tocar ao piano, aos plácidos serões na casa de campo onde vivera dias inefáveis, antes da tempestade emotiva em que agora se debatia. Lembrar-se dela era lembrar-se tambêm dos episódios ocorridos durante as horas iniciais duma paixão que começara, insidiosamente, por admirações comovidas de virtudes e de bondades que a ennobreciam e que, depois, sem saber por que secretas elaborações de sentimento, se transformara em delírio, em loucura. Fôsse para onde fôsse, havia de aguilhoá-lo a agitação que lhe não dava um minuto de tréguas, continuaria a queimá-lo a febre em que se gastava, se consumia, como os troncos secos se consomem numa fogueira. Afastar-se ainda mais para quê? Separava-o já de Júlia uma grande distância e nem por isso a sua angústia afrouxava. Não dispunha de coragem para atravessar a fronteira, correr nacionalidades estranhas, observar outros povos, outros costumes, outras civilizações. No seu presente estado de alma, nada veria, nada compreenderia. Em Lisboa, estava entre a sua gente, tinha relações, poderia conviver, procurando o esquecimento. [244]Foi-se deixando ficar, num dissolvente abatimento, sem formar projectos de vida futura, incapaz de resoluções, de actos enérgicos em que a sua vaga individualidade se afirmasse. Fechava-se dias inteiros no quarto do hotel em que se instalara, ruminando o seu tédio, folheando livros que se arrastavam indefinidamente por cima das mesas e das cadeiras, fumando. À noite, ia aos teatros, encontrando uma vez por outra algum conhecido com quem se entretinha em palestras sem interêsse. O seu gôsto era estar só, para relembrar, no silêncio, coisas que lhe eram inefáveis. Reentrar na sua paz antiga, sentir de novo a alegria de viver, seria a libertação: mas, para isso tinha de esquecer, e o esquecimento era-lhe impossível. Bastava o facto mais insignificante para lhe despertar na emotividade as sensações da sua primitiva ternura, para lhe dilatar amorosamente o coração. A depressão constante e progressiva da vontade que em si desfalecia levava-o a acusar-se duma fraqueza que o aviltava: mas não empregava esforços para reagir. Deixava-se governar dócilmente por uma atracção misteriosa.

Em certos momentos, julgava-se pueril. Com efeito, porque sofria êle tanto? Que crime havia praticado? Que falta grave era a sua, para que assim se entregasse passivamente a um desespêro que o devastava? Não poderia êle amar Júlia, a espôsa do seu maior amigo, sem se manchar de ignomínia, sem se envilecer? Talvez. Mas, se o corpo, a grosseira matéria de que era constituido, o empurravam para êsse amor, a sua alma, que era a essência, que representava a porção de divindade que cada homem digno traz dentro de si, opunha-se tenazmente. Êste antagonismo [245]entre a carne e o espírito que dentro dêle se fazia não era uma nítida prova da sua nobreza moral? Pecava pelos sentidos mas purificava-se pela razão. E o seu pecado todos o absolveriam. Experimentava alguma doçura em relembrar Júlia, porque não podia viver sem a recordação saùdosa dum amor de que só êle sabia e que representava o facto dominante da sua existência. Ninguêm conseguirá, fácilmente, desabituar-se da felicidade―e amando Júlia em segredo, considerava-se relativamente feliz. Na desolação duma existência sem outro ideal, essa adoração tinha a graça duma flor e mergulhava-o na beatitude dum quimérico sonho que lhe dava a ilusão da ventura. Mas não iria mais alêm, não ultrapassaria os limites estreitos em que a sua desgraçada paixão se confinara. Para que havia de atormentar-se com tam sombrio ardor?





A primavera veio, outra vez, cobrir os arvoredos de folhagens tenras e verdes, reflorir os jardins, tocar as paìsagens de maravilhosas tintas. A luz era já mais límpida e vibrante; o sol trespassava o azul da atmosfera como uma enorme flecha de ouro. Uma vida mais jovial renascia. Nuno, que contínuamente escrevia a Frederico, na ignorância das mentiras por êle inventadas para se afastar e do conflito moral e sentimental em que se debatia, anunciou-lhe, numa longa carta, o propósito em que estava de regressar à quinta novamente, ficando por lá a fortalecer e a renovar-se, entre a beleza rural e as coisas simples, até que o filho crescesse e o obrigasse a residir na cidade, [246]para lhe vigiar de perto a educação. Preparava tudo para uma longa ausência do Pôrto, onde só voltaria, em rápidas visitas, de fugida, quando negócios urgentes a isso o forçassem. E pedia-lhe que se não demorasse mais, que não prolongasse um afastamento inexplicável que justificava com pretextos sempre fúteis e que o intrigava.

―«Com efeito―acrescentava Nuno―eu e Júlia temos pensado muitas vezes que existe na tua vida um segrêdo. Qual? Não o sei nem quero sabê-lo, pois se na verdade me não iludo e tu o escondes, é porque me não julgas digno de o conhecer. Mas, seja como fôr, vem daí assistir, na aldeia, à ressurreição das flores e à aleluia da graça!...»

Esta carta despertou violentamente tôdas as ideias e reminiscências que existiam no seu cérebro. Outra vez viu iluminar-se-lhe diante dos olhos deslumbrados aquela tarde em que a beleza de Júlia pela primeira vez o impressionou vivamente, quando ela, debaixo da mosqueteira que vergava de corolas, se cobria das florações que caíam de alto como uma chuva loura e lhe evocavam docemente a lenda pagã de Júpiter, descendo num orvalho dourado sôbre o corpo branco de Danae. Outra vez recordava a angústia―que nunca mais deixou de pungi-lo―com que fizera a descoberta dum amor que devia morrer, porque era impuro; a noite de perturbação e de terror que se seguiu a esta revelação singular; a ansiedade com que, logo ao raiar da alvorada, fugiu para o Pôrto à procura duma serenidade, duma pacificação que nunca mais encontrou―recriminando-se pelo facto de haver-se abrigado sob um teto, que afectuosamente o acolhera, para manchar uma honra, [247] para trair uma amizade, para roubar uma ventura que a outro legítimamente pertencia, para violar no seu próprio santuário emoções castas, para cometer, na alucinação da sua luxúria, um sacrilégio. A intensidade da veneração consagrada a Júlia tornava-o excessivo na fúria com que se acusava: e as evocações eram por tal forma nítidas que o seu padecimento agravava-se, excitando-lhe a cobardia, aumentando-lhe o temor de voltar a aproximar-se duma mulher que, por muito respeitar, não queria tornar a ver. Sofria duplamente pela certeza evidente da sua paixão e pelo enfraquecimento duma dignidade que sentia escapar-se-lhe, deixando-o à mercê de impulsivos desatinos. A própria alma se lhe dissipava a esta recordação. Perdia a confiança em si mesmo. A sua situação surgia-lhe perante a consciência como um abismo―cheio de idêntica sombra, de idêntico mistério, de igual silêncio enigmático. Outrora, pensava que todos os homens podiam dominar-se, mesmo no confuso turbilhão das emoções desencadeadas, porque para isso dispunham da fôrça que deriva do raciocínio e da sua superioridade de conscientes; e agora, pretendendo exercer sobre si próprio êsse domínio, não o conseguia, por mais que o tentasse. E porquê? Porque a sua vontade não era íntegra e suficientemente enérgica? Porque as paixões eram mais fortes do que o carácter, tendo o poder de comunicar à razão, à inteligência, aos sentimento elevados, o seu fogo criminoso? Parecia-lhe que sim. E tambêm lhe parecia que apenas os homens que saíssem vencedores das lutas em que êle impotentemente sucumbia, deviam ser considerados os verdadeiros heróis...

Sucedesse, porêm, o que sucedesse, estava decidido [248]a nunca mais entrar em casa de Nuno. Ao cabo de pacientes e dolorosas análises, pressentia que, em face de Júlia, não se conteria, deixaria transparecer o seu drama oculto, se denunciaria. A fuga era a salvação! Mas regressaria ao Pôrto, certamente, agora que Nuno o informava da sua mudança para a aldeia onde ia instalar-se durante anos. Lisboa enfastiava-o já até à fadiga. Julgava-se estrangeiro dentro dessa cidade, entre uma população tam diversa da do norte, pela índole, pela origem, por diferenciações de casta. Tinha-se libertado definitivamente das complicações que a episódica e transitória ligação com Branca trouxera à sua atribulada existência. Rompera para sempre com ela, embora se separassem como amigos que, juntos, correram atrás duma ilusão irrealizável e de cujo encontro ficaria alguma coisa de doce. Como era um fraco de temperamento, um indeciso, pensou em prolongar com ela uma triste mentira que seria cómoda para o seu egoísmo e para a sua indecisão. Temeu, porêm, as futuras consequências dessa mentira e sentiu a necessidade do mostrar-se sincero. O mais leal, o mais concordante com uma bondade que o nobilitava era desenganá-la com uma franqueza resoluta:―e assim procedeu, penalizado com a lembrança das lágrimas que a sua deliberação provocaria. Mas era preciso! Branca aparecia-lhe como uma atroz mancha na sagrada brancura do seu único e verdadeiro amor. Não podia mais aceitar-lhe os beijos sem repugnância instintiva, sorrir às suas carícias sem um desejo muito fundo de repeli-la com rancor, com ódio. Perguntava mesmo como esta incompatibilidade carnal entre êle e a sua amante dalguns meses só agora se definia claramente, [249]sem encontrar uma explicação para êsse fenómeno...

Escreveu-lhe, de Lisboa, anunciando-lhe o fim duma aventura que tinha de acabar, pedindo-lhe que lhe não quisesse mal, que dêle conservasse uma lembrança afável:―e quando, perturbado, inquieto, imaginava que Branca não aceitaria a ruptura sem clamorosos escândalos, soube que ela se resignara inteiramente, procurando e encontrando logo outras ligações. Esta certeza desanuviou-o.

Um domingo, por acaso, passeando tristemente na Avenida da Liberdade, onde já floriam as olaias sob a doçura e o afago da luz primaveril, deparou, inesperadamente, o jovial Paiva, que descia o passeio em sentido oposto, fitando com enternecimento as belezas femininas que passavam na festa esplêndida do sol. Foi para êle cheio de contentamento, apertando-lhe efusivamente a mão, interrogando-o com afabilidade:

―Oh! scelerado!... Tu por aqui?

―Oh! admirável Frederico! Que feliz encontro!... É verdade, por aqui, nesta doce e morena Lisboa.

―E êsse Pôrto, êsse namôro?...

―O Pôrto, creio que está no mesmo sítio, com a sua monotonia, a sua tristeza de burgo histórico inamovível. Quanto ao idílio, findou como tudo finda:―Roma, Bizâncio, Cartago!...

E pousando a mão magra, em que fulgia a pedra fina dum anel, no ombro de Frederico, acrescentou, sorrindo:

Tout casse, tout lasse et tout passe! Os franceses teem razão.

[250] Deram uma larga volta, conversando, recordando episódios esquecidos, espairecendo. Paiva achava que as mulheres de Lisboa eram lindas e perturbantes, com uma graça, uma distinção, um ar encantador:

―Vê a elegância com que elas pisam, menino! E que corpos, que harmonia de formas, que ritmo! Sobretudo, que ritmo!...

―Tu vens obsceno do Pôrto, homem―comentou Frederico.

―Pois como diabo querias tu que eu viesse? Sim! Como querias?!...

Voltaram ao Rocio, entraram no Martinho, sentaram-se a uma mesa, pedindo cerveja; e então, Paiva informou Frederico do desfêcho grotesco do seu curto romance com Branca. Estava agora com um capitalista―o Luís Tavares―que há muito cobiçava a sua formusora, o seu encanto decadente.

―Um capitalista, hein?―perguntava Frederico, bebendo o seu bock.

―De-certo. Um capitalista... O Tavares... Tu conheces. Ora! Não conheces tu outra coisa.

―Com franqueza, não me ocorre... Mas estimo! Coitada da pequena. Tam bôa rapariga!... Um anjo.

―É gentil, da tua parte, esse desejo de fazê-la entrar nos córos celestes. Mas não vás mais longe, não a metas entre as Onze Mil Virgens...

Paiva, acendendo um charuto, deu mais esclarecimentos:

―É babadinho por Branca, o Tavares. Oferece-lhe quanto ela quere.

[251] ―Estás óptimamente informado!

―Foi Luísa que me contou tudo.

―É verdade:―ainda dura essa paixoneta?

―Não, caramba! Eu gosto da variedade. A igualdade assusta-me... Luísa tambêm se colocou―e entre a magistratura. Está por conta dum desembargador que, no seu doce regaço, esquece as leis, os códigos, pousa a severa espada da justiça e humaniza-se. Mas, é claro, encontrâmo-nos de vez em quando. Às vezes, por fantasia, por capricho―ela é caprichosa―sobe à minha trapeira romântica de boémio, como uma Musa... E narra-me, entre beijos, a crónica mundana dos amores envergonhados.

―Que progresso, o dessas damas! Uma com o capital, outra com a jurisprudência, ambas influindo, talvez, na vida nacional, governando-a como Aspásia governava Atenas!

―Meu rico! Ambas nos devem muito. Fomos nós que as ensinamos a ter linha. Praticamos uma acção meritória―acrescentava Paiva, cínicamente.

Frederico bateu as palmas, pagou a despesa. Levantaram-se, saíram.

―Queres tu hoje jantar comigo, ó Paiva magnífico? Ando tam só, tam desalentado!...

―Não posso. Muito que lidar, uma tia rica e vélha de quem sou o melhor dos sobrinhos e o mais necessitado dos herdeiros, outros casos de consciência. Jantar contigo era uma bela ideia. Mas não posso... Não sei mesmo quando poderei. Acho que tenho de seguir com minha adorável tia para o Alentejo, onde vamos visitar uns domínios territoriais que virão talvez a pertencer-me!...

Separaram-se. Paiva enfiou pela rua do Ouro, [252] soberbo de petulância, fitando insistentemente as mulheres que passavam, e Frederico, mais aborrecido e mais triste, reentrou no hotel, fechando-se no seu quarto e estirando-se num sofá, farto até à saciedade de Lisboa, onde nada o prendia, e ansioso pelo regresso ao Pôrto, donde tantas recordações o chamavam. O seu terror, a sua inquietação moral desvaneciam-se, pois que Nuno e Júlia iam partir―talvez mesmo já tivessem partido―para a aldeia. Fumando uns cigarros atrás dos outros, entregava-se com mais subtileza crítica à observação do caso singular que o trazia em alvorôço permanente, que de-certo derivava da exaltação nervosa, duma violenta paixão―mais lasciva do que espiritual―insatisfeita, das ásperas solicitações da carne bruta, da infinita miséria física do amor, de tudo o que faz do homem um animal vivendo pelo instinto grosseiro e não pelas finuras, pelas delicadezas da alma. A sua análise escolhia de preferência os sentimentos da intimidade moral, porque as imagens da vida exterior exasperavam-no. Começava a achar ridícula aquela desvairada fuga diante da mulher para quem um ardente desejo e uma invencível simpatia o impeliam e de quem a razão e a dignidade o afastavam, intimidando-o como se êle fosse uma criança, um irresponsável, e não dispusesse duma inteligência. Reconheceu, no entanto, que perdera a confiança em si mesmo, que era mais um autómato, dirigido por fôrças ocultas, do que um ser moral, governado por ideias e emoções próprias...

Levantou-se, caminhou para uma janela aberta, curvando-se um momento sôbre o peitoril. A população atulhava as ruas que o sol dourava; os carros [253] eléctricos desfilavam uns atrás dos outros, abarrotados de gente; pelos passeios erravam janotas ociosos, e oficiais do exército arrastavam espadas nas pedras. Era a scenografia de todos os dias, que já o fatigava; surpreendeu-se a apetecer, mais do que nunca, o isolamento da sua casa do Pôrto, longe de tôdas as curiosidades, como um cenobita, entre livros e entre recordações suaves. Com que prazer começou a fazer as malas, para abalar no dia seguinte, sem mesmo prevenir os criados da sua volta! E como foi consoladora para a sua saùdade a hora em que reentrou na vivenda pacífica e cheia de lembranças familiares que o enterneciam! Tinha a ilusão de que em tudo o que o rodeava havia uma parte da sua personalidade, alguma coisa do seu coração, uma beleza indecifrável que para êle se iluminava. Bernardo, que o recebeu com um riso satisfeito e que o achava mais magro, mais mirrado, pareceu-lhe um amigo venerável. As árvores do jardim, cobertas de fôlhas que o sol tocava de luz, ramalhavam alegremente à aragem, saùdando-o.

―Venho arrasado, Bernardo, arrasado!―disse êle para o criado.

―Pois assim, sempre nessas idas e vindas, nem pode medrar, meu senhor.

―Tens razão. Tu é que tens razão. Não posso medrar, dizes bem. Oh! mas agora, vais ver. Vou repousar, recuperar o perdido. Engordarei, não saírei de casa, como os gatos.

―Santo nome de Maria, com que o patrão se compara!...

―E então? Haverá porventura nada mais caseiro, mais apegado ao borralho, do que um gato?

[254] Nos primeiros tempos, com efeito, Frederico, todo ocupado no arrumo das suas coisas, passava os dias encerrado na habitação, saíndo apenas de noite, depois do jantar, quando a cidade começava a ficar deserta e êle não corria o perigo de encontros importunos. Dava longos passeios, como se pretendesse extenuar-se, acalmar a agitação permanente do seu espírito. Foi precisamente numa destas caminhadas nocturnas que uma vez, insensivelmente, se surpreendeu defronte da morada de Nuno, mergulhada em sombra e mudez. Parou a olhá-la como se quisesse lobrigar nas vidraças reflexos de luz interior que denunciasse a presença de sêres vivos. Não viu nada e êste facto comunicou-lhe alegria e tranqùilidade. Depois, como uma polícia se aproximasse a passos lentos, mirando-o com desconfiança, reencetou a marcha, murmurando:

―Bem! Já cá não está!

E sentia contentamento pela sua descoberta―um contentamento quáse infantil. A ausência de Júlia e de Nuno garantia-lhe uma quietude relativa. Isto animou-o. Absolutamente certo de que o amigo estava agora longe, começou a aparecer de dia, a freqùentar os centros de conversa, a mostrar-se. Reatou convivências durante muito tempo interrompidas, para se distrair, para atenuar a violência do seu mal, que, no entanto, ia crescendo com o desalento que o minava. Mas, uma tarde, ao descer os Clérigos, vago, alheado, viu-se inesperadamente diante dalguêm que gritava o seu nome, que para êle avançava, de braços estendidos, berrando:

―Ora ainda bem que te encontro. Que diabo tens tu feito? Por onde tens andado? Que mal te fiz eu? Dize!...

[255] Era Nuno! Frederico estacou, empalidecendo um pouco, muito comprometido, gaguejando desculpas, interrogando-o:

―Pois, estás no Pôrto?

―Justamente! Estou no Pôrto. Tive de vir aqui a tôda a pressa, buscar coisas que nos eram essenciais, a mim e a Júlia, ao nosso brando retiro.

―E ela como está, tua espôsa? E êsse querido herdeiro?―perguntou Frederico, já mais sereno.

―Magníficos. Gozam duma saúde de ferro.

―Como já te disse em carta, só em Lisboa tive conhecimento da doença de teu filho e tu tranqùilizavas-me...

Nuno contemplava-o com interêsse. Estava mais abatido, mais gasto, havia fundos vincos na sua face, cabelos brancos na sua cabeça, tristeza no seu rosto e era cansado o riso da sua bôca.

―Demoras-te por cá?―inquiriu Frederico.

―Não. Sigo daqui a horas, em automóvel. Ah! Já me esquecia dizer-te... Tenho agora automóvel na quinta, introduzi no meu viver pacato esta comodidade. E era preciso. Não estamos livres duma súbita doença, do imprevisto... E é verdade:―essa visita? Quando te resolves? A não ser que a nossa companhia te desgoste...

―Oh! Nuno! Pois acreditas?...

―Não afirmei nada. Exprimi apenas uma dúvida. E olha que, na realidade, tanto eu como Júlia te temos estranhado... Para que hei de esconder-te a nossa surprêsa?

―Tolices... E podes crer que não falto... Mas mais tarde. Ainda tenho prisões. Hei de ver...

[256] ―Não hás de ver nada. Quero saber o dia, a semana, ou então o motivo dessas hesitações...

―Bem! Por todo êste mês, contem comigo... Para onde vais?

―A Carlos Alberto, fazer umas encomendas. O meu automóvel deve lá estar. Acompanhas-me?

―Não posso. Desculpa. Coisas urgentes a resolver... Mas, espera-me em breves dias.

―Esperarei.

―E recomenda-me lá em casa... Beijos ao morgado.

Despediram-se, seguindo em direcções opostas. Nuno, ágilmente, Frederico, mais acabrunhado. Santo Deus! O facto que tanto temera sempre, dera-se, afinal. E agora? Como poderia fugir mais uma vez, libertar-se, sem levantar suspeições? Como julgaria Nuno uma nova fuga, que já não poderia justificar honestamente? Era-lhe impossível prolongar por mais tempo uma tam cómoda mentira, continuar iludindo. A fatalidade empurrava-o, definitivamente, para o desconhecido e com uma fôrça a que não conseguiria resistir. O que iria acontecer? Que rudes formas de tortura adquiriria o seu desespêro? Vacilava, sem encontrar uma evasiva tam profundamente desejada.

Tudo o que no seu ser existia de tímido, de cobarde, de dúbio, despertava, exacerbando-lho o terror. Deambulando na rua, a largos passos, falava sòzinho, em voz alta e numa tal excitação que parava gente intrigada a observá-lo.

―Com certeza que não vou!―afirmava.

Mas se não fôsse, o que pensaria Nuno? Que desastrada ideia tivera em deixar Lisboa, em não [257] ter ido para o estrangeiro, para tôda a parte onde a vida lhe oferecesse um pouco de sossêgo! Para que voltara ao Pôrto? Recordava-se de haver lido em Dostoiewsky que os criminosos andam à roda do seu crime―de que não podem afastar-se―como as borboletas à roda da chama em que se queimam. Era êsse fenómeno psíquico que se dava com êle, naturalmente...

Cruzou com um carro que fugia na calçada. De dentro, uma graciosa cabeça de mulher inclinou-se, espreitando e sorrindo irónicamente. Frederico reconheceu Branca. Até aquela o desdenhava. Que vida, que miséria! Encontrava-se numa encruzilhada, completamente desnorteado. Que caminho tomaria? Apressou a marcha, aguilhoado por uma inquietação muito íntima e muito funda. Passavam-lhe na mente tentações tenebrosas. Únicamente de si próprio, duma instantânea fulguração de coragem, dependia a quietação perpétua. A solução pareceu-lhe bôa, por instantes; mas logo, raciocinando mais detidamente, monologou:

―Era a mesma coisa, a mesma denúncia... E, depois, sou um poltrão...

Nesta dúvida permanente, que tornava mais cruel o seu sofrimento, viveu Frederico todo o resto do mês, caído numa misantropia que o assustava, nos raros momentos em que lúcidamente podia reflectir. Tinha-se outra vez encerrado em casa, fechando a porta a tôdas as curiosidades importunas, e levava os dias num desespêro que apenas a imagem serena de Júlia a espaços lúarizava. A sua irresolução era maior, mais tormentosa a sua angústia. Sentia a necessidade duma fé religiosa que lhe iluminasse [258]o espírito árido, que o apaziguasse. Assaltava-o o receio de enlouquecer. Bernardo aterrava-se. com a fixidez do seu olhar em que brilhava alguma coisa de bizarro e de mau...





Um dia de manhã, o correio trouxe-lhe uma carta―a carta a tôdas as horas esperada. As mãos tremiam-lbe, quando lhe pegou. Rasgou o enveloppe, abriu-a e leu, com um rubor de vergonha na face, estas linhas sêcas e curtas de Nuno:

«Na verdade há uma razão secreta que te afasta desta casa, da minha amizade, da minha confiança. Desconheço-te e a tua atitude inexplicável preocupa-me. Existe entre nós um equívoco que não deve continuar por mais tempo e de que tu, francamente, me informarás. O teu procedimento, que me intriga, parece mais uma provocação do que outra coisa; e o nosso antigo afecto de tôda uma mocidade dá-me o direito de exigir-te explicações.»

A carta terminava com mais algumas palavras que a humanizavam, lhe atenuavam a rispidez. Então, tôdas as indecisões de Frederico se dissiparam. Efectivamente, reconhecia a sua culpa. Nuno tinha motivos para estar magoado, para o recriminar. Que homem era êle?―pensava Frederico, espreitando, espavorido, a consciência. Queria furtar a sua dignidade de amigo a atracções que a manchariam, e comprometia únicamente as suas afeições mais puras. E tudo isto porquê? Pelo temor absurdo de praticar uma acção vil. Mas, não dispunha êle duma inteligência capaz de compreender os eternos problemas [259] do Bem e do Mal e duma energia capaz de resistir às alucinações criminosas?

Chamou o criado na electrização duma vontade que o vitalizava, mandou encher uma grande mala de madeira, recoberta de couro, com roupa e calçado, ordenou que lhe fôssem buscar um automóvel, e sem pensar, sem calcular as conseqùências da sua carreira cega e vertiginosa para o amor e para a vergonha, ou para a libertação e para a morte, partiu. Ainda confiava numa coisa:―a sua timidez. Nunca teria a audácia de revelar a Júlia o seu segrêdo. Se ela o perscrutasse e o aceitasse sem cóleras fulgurantes, talvez a sua natureza imperfeita sucumbisse; mas, pura, como era, ignorando as torpezas do coração humano, nunca ela o adivinharia. A sua adoração continuaria, portanto, oculta, fazendo-o sofrer apenas a êle...

Volvidas horas duma impaciente correria por estradas que cortavam através de espraiadas veigas, de descampados, de terras de cultivo, de pinheirais rumorosos, Frederico parava diante do portão da quinta, tam seu conhecido, ao latir furioso dos cães de guarda. Já pelas grades pintadas de verde floriam as roseiras de trepar, e tôda a aldeia reverdecia, como numa festa, sob as aragens perfumadas e o ouro dum sol criador e maravilhoso de luz, descendo dum céu de esmalte azul. Nuno que estava à varanda olhando distraídamente as montanhas que ao longe se esfuminhavam, na vaga névoa, vendo deter-se um automóvel, desceu apressadamente ao jardim, sem esperar pelo criado e atirando uma saùdação amigável ao viajante, que sacudia a roupa empoeirada. Abraçaram―se com efusão. Frederico repreendeu-o:

[260] ―Que estúpida carta foi aquela, Nuno?

―Não foi estúpida, foi estimulante. Se me não zangasse sériamente, não vinhas. E olha que começava a não saber o que pensar... Mas vieste. Tudo se esclareceu. Esqueçamos êsse desagradável incidente...―explicava êle, dirigindo-se a casa.

Trémulo, transtornado, esforçando-se por conservar a tranqùilidade aparente, tôda superficial, Frederico acompanhava Nuno, que cruzava o jardim a passos largos. Ia tornar a ver Júlia perto de si. Há quanto tempo a não via! Quáse um ano―uma eternidade para quem ama como êle amava―tinha decorrido, desde que se separaram. A sua perturbação aumentava, o coração pulsava-lhe com violência, o sangue circulava-lhe apressadamente nas veias.

―Júlia, Júlia!―bradou Nuno, ao subir, com Frederico, a larga escadaria de pedra, sob as glicínias brancas e rôxas, que conduzia ao primeiro andar.

Ela apareceu logo, à porta de entrada, com o filho ao colo, muito risonha, muito còrada e afàvel.

―Cá está o pródigo!―zombou Nuno.

―Que volta ao calor das vélhas amizades, arrependido da sua prodigalidade―concluiu Frederico, apertando a mão que ela lhe estendia, aberta e leal, e beijando a criança com ternura, quáse com devoção.

―Pensei que nos tinha esquecido...

―Oh! minha senhora... E como pôde supôr...

Ergueu, a cabeça e fitou-a pela primeira vez mais demoradamente, muito perturbado, tentando sorrir. Ela encarou-o tambêm, satisfeita, com uma grande alegria no rosto. Os seus olhares cruzaram-se.

[261] ―Se lhe parece! Que devíamos pensar, então?... Mas perdoamos-lhe, pelo muito que o estimamos, não é verdade, Nuno?

Êle fez um gesto de assentimento, muito contente.

―Só por esta vez... Para a outra, não haverá perdões!―ameaçou Júlia.

Enleado, sem saber o que responder, Frederico refugiou-se todo na inocência do pequerrucho, que sorria enlevado, agitando as mãozinhas côr de rosa.

―E cá o figurão? Admirável, não é assim?―perguntou êle, tocando-lhe com a ponta do dedo levemente, afagando-o.

―Está excelente, agora. Mas inspirou-nos um susto!...

―Eu sei, eu sei. Nuno contou-me tudo.

―Oh! menino, deixa as expansões para logo―atalhou Nuno. Teremos muito tempo de tagarelar, durante esta deliciosa primavera. Porque deliberei não te deixar evadir daqui tam cedo. Agora és meu prisioneiro... Vai-te arranjar. O quarto é o mesmo do ano passado... Cá em casa nada mudou. Amamos as tradições.

Frederico aproveitou a ordem providencial do amigo, que vinha libertá-lo duma situação de momento a momento mais penosa para êle, exclamando:

―Então, se V. Ex.a dá licença, minha senhora...

―Pois não, pois não!...―declarou Júlia.

Entrou no quarto para onde os criados tinham já levado a mala, lavou-se e vestiu-se. O silêncio envolvente apaziguava-o, tranqùilizava a sua perturbação. Aquela casa, que a luz inundava, era feliz: e a felicidade foi sempre recolhida e pacífica. Mas, cheio de [262] desconsôlo, invadido por um desgôsto imenso, Frederico perguntava a si mesmo para que viera, porque não tinha resistido tenazmente às solicitações de Nuno. Que leviandade! E como, por irreflexão, havia concorrido para agravar o seu mal!





Os dias foram passando num desespêro cada vez maior para Frederico. O seu delírio atingia uma violência terrível de instante a instante. Surpreendia-se muitas vezes a contemplar Júlia em êxtase, quando à noite, ela, sentada ao piano, interpretava uma dessas páginas de música que parecem falar da aspiração irrealizada das almas para a beleza e para a ventura. A luz do candeeiro, que lembrava um hálito dourado, derramando-se no ambiente, batia-lhe em cheio na massa dos cabelos enrolados no alto da cabeça gentil, nos ombros, nos lóbulos das orelhas, onde fulguravam as pedrarias dos brincos. Frederico, sentado numa cadeira de braços, absorvia-se na sua graça, no seu encanto, idealizava-a, considerava como devia ser infinitamente doce o seu amor e setinosa a sua pele tam branca, opalizando-se na claridade difusa, enquanto Nuno, fumando um charuto, vagarosamente folheava um livro. No fundo do seu coração havia agora um inexplicável ressentimento, quáse ódio por aquele homem que tirânicamente se interpunha entre êle e a divina mulher da sua ardente paixão, em nome dum afecto a que a sociedade―e talvez a lealdade do seu carácter!―impunham obediência passiva. Como a influência desta adoração infindável se tornasse mais imperiosa e dominadora de [263] hora para hora, Frederico, temendo o irremediável, evitava tôdas as ocasiões de se encontrar só com Júlia. De dia, se Nuno descia à quinta, êle acompanhava-o, procurava interessar-se por coisas que não entendia, demorava por tôdas as formas o regresso à vivenda. O tempo estava esplêndido e a scenografia era, realmente, maravilhosa. Todos os arvoredos do parque agitavam no ar, brandamente, as ramarias cobertas de folhagens novas, que os pássaros vestiam de asas. As acácias douravam-se duma flor que, trespassada pela luz, dava a impressão duma espuma de ouro; altos castanheiros da Índia balouçavam pingentes de florescências brancas e rosadas. As fôlhas densas formavam um docel duma côr verde e tenra. Por vezes, flechas de sol, filtrando-se por entre os ramos, mosaicavam a areia fina do chão de manchas luminosas. Ao lado, o jardim enflorava, exalando-se em perfume. Mais para alêm do muro que circundava a vasta propriedade, ondulavam em galgões as dobras de terreno, espraiavam-se os campos cultivados, os ferregiais, os lameiros em que a erva crescia, branquejavam casais pequeninos donde aonde, verdejavam os pastos, subiam na atmosfera os campanários em que, aos domingos, os sinos, convocando os fiéis, espalhavam por todo o vale a música festiva e mística dos seus claros sons. E ao fundo, subia a mole colossal das serras, mais fecundas na base, mais áridas nos cimos, com a sua decoração de matagais cheirosos, de pinheirais, de rochedos cortados em escarpa.

―Que beleza!―murmurava Frederico, enlevado.

―Não é verdade?―inquiria Nuno. Onde é que tu encontras êstes espectáculos, esta poesia, na [264] cidade, em que tudo é tam pequenino, tam mesquinho, tam banal?

Depois, levava-o até ao fim da quinta, para que êle visse os grandes melhoramentos em que consumira a actividade de todo um estio. Nas terras de pão, as sementeiras eram prometedoras. Vigorosamente, os milhos miúdos «viam-se crescer»―como dizia o velho Mateus, agora mais feliz, bem instalado na sua granja que devia à generosidade do senhor; os centeios e os trigais, impando de seiva, arrepiavam-se à ligeira aragem que sôbre êles corria, ágil como um sôpro, fazendo-os encrespar; ramadas e vinhedos lançavam pâmpanos; todo o vergel se estrelava de floração. E sobre aquela alegria da leiva fértil, caía a luz pura como uma bênção de Deus.

―Isto é uma verdadeira maravilha, Nuno!―exclamava Frederico, diante do caseiro que sorria, agradecido.

―O tio Mateus trata-me a propriedade com amor.

―Faz-se o que se pode... Mas o patrão é um santo!―dizia êle para Frederico.

―Oh, homem, olhe que só o Vaticano é que pode fazer canonizações. Santo, eu? Pecador, pecador...

―O que tem feito por mim e pela pobre doente e pelos filhos é mais do que de santo, pois não é? Ai! devo-lhe muito, devo-lhe muito.

―É verdade, e como está sua mulher?

―Na forma do costume, a infeliz.

―Alguma doença?―perguntava Frederico, condoído.

―Uma paralisia... Coitada!

Muitas vezes, saíam para fóra da quinta, pela [265] porta que servia a parte alugada ao caseiro, davam grandes passeios através dos prados, internavam-se nos caminhos sulcados pelas rodas dos pesados carros de bois, coleando-se entre sebes já floridas, e só recolhiam quando se aproximavam as horas do jantar.

Era êste o momento mais doloroso para Frederico, que tinha de sofrer, diante de Júlia, o seu suplício atroz, ouvindo-lhe a voz de ouro, afagando-lhe com os olhos a beleza a que a maternidade e a certeza dum amor constante imprimiam mais serenidade e mais graça, desejando-a com febre e temendo-a, ao mesmo tempo, por êste desejo impuro que ela, sem querer, comunicava aos seus sentidos, à sua carne, à sua animalidade. Uma noite, durante o serão, a conversa entre os três animara-se. Discutia-se a incapacidade dos homens para saberem procurar a sua felicidade. Os que a encontravam não eram nunca orientados pela inteligência ou pela finura psicológica, mas pelo acaso, observava Frederico.

―Sai-lhes a ventura, como lhes poderia sair a sorte grande, num bilhete de lotaria...

―Essa agora!―atalhou Júlia. É então a inconsciência que preside à vida consciente?

―E porque não?―afirmava Frederico. A humanidade é ainda tam imperfeita!...

―Oh! menino, concede ao menos alguma sagacidade ao instinto, que poucas vezes se engana.

―Engana-se quáse sempre, porque está submetido a influências nefastas.

―É levares muito longe a tua furiosa vontade de negar... Mas, aí tens tu as mulheres, por exemplo. São duma argúcia!... Sobretudo em questões de sentimento.

[266] ―Pobres delas!―riu Frederico.

―Pobres porquê?―perguntou Júlia, interessada.

―Porque nunca verão claramente as almas. A sua análise não ultrapassa as exterioridades―insinuou com intenção Frederico, em voz apressada e viva.

Júlia olhou-o demoradamente, enquanto Nuno comentava:

―São opiniões, pontos de vista.

Sob o olhar penetrante de Júlia, Frederico baixou a cabeça, perturbado e arrependido de ter ido tam longe, arrebatado por um impulso que não pudera dominar. A fixidez da vista dessa doce mulher cravada nêle inquietava-o. Que queria ela dizer, comunicar? Ter-se-ia denunciado? Adivinharia Júlia, há muito, por uma dessas intuições que certas criaturas possuem, o segrêdo que êle trazia escondido no coração? Atarantado, acrescentou, como se quisesse desculpar-se, furtar-se àquela espécie de interrogatório mudo:

―É claro, há excepções. Falei dum modo genérico...

E sorrindo lívidamente, com os lábios muito brancos, uma imperceptível tremura nas mãos, disse ainda, voltando-se para Júlia:

―Não pense V. Ex.a que eu envolvi tôdas as mulheres na minha afirmativa...

―Eu fui uma das exceptuadas?―interrogou ela alegremente. É uma amabilidade de amigo.

O incidente esqueceu, a palestra derivou para outros assuntos que iam surgindo, mas Frederico não pôde recuperar a sua serenidade de espírito. Estava doido, ia perdendo a noção das conveniências e, [267] se permanecesse por mais tempo naquela casa, perto de Júlia, vergado à tirania da sua fascinação, viria a praticar loucuras. Não via, não ouvia, deixava muitas vezes sem resposta perguntas de Nuno, que tinha de o chamar à realidade, exclamando:

―Que diabo de abstracção é essa?

E foi, na verdade, um grande alívio para êle o instante em que Júlia se levantou, sorrindo de fadiga, despedindo-se e dirigindo-se ao seu quarto. Êle e Nuno ficaram ainda no gabinete, à volta da luz. Havia luar e uma claridade branca batia em cheio nos vidros da janela. Fóra, tudo adormecia em sossêgo, na pacificação nocturna. Quebrando a cinza do charuto no cinzeiro, Nuno sorria enlevado, e o amigo, surpreendendo-lhe o sorriso, disse:

―Em que coisas alegres pensas?

―Na minha felicidade. Imagina...

Calou-se, como se se arrependesse, de repente, duma revelação que ia fazer.

―Imagino o quê?

―Não sabes nada? Não vês nada?... Bem dizias tu, há pouco, que os homens são rombos de compreensão, teem embotada a ponta da subtileza.

Frederico observava-o, intrigado, batendo sôbre a mesa com os nós dos dedos.

―Tu és um amigo, um irmão. Não és, nesta casa, uma pessoa estranha. Pertences à família. Pode, portanto, dizer-se-te tudo... Júlia está outra vez grávida! Assim mo revelou esta manhã... Vou ter outro filho... Talvez uma filha, para a felicidade ser completa...

Grávida! Júlia estava grávida! Que horror! E como essa certeza brutal o amachucava, o transtornava. [268]A garganta constrangia-se-lhe. Fazia esforços para falar, e não conseguia articular as palavras.

―Mas não me dizes nada, não me felicitas, não me abraças por esta ternura que me envolve e que eu agradeço ao meu doce destino?...

―Ah! de-certo que és bem feliz!...―exclamou Frederico, por fim.

―Não é verdade?―interrogava Nuno, com a face banhada de riso e de satisfação.

―Um amimado da sorte!...

Retiraram, por fim, da sala. Um criado veio apagar a luz e arrumar os móveis.

A noite tempestuosa que Frederico passou! Que terror e que desalento geravam, para a sua alma pávida de espanto, as sombrias larvas do delírio? E que futuro entrevia, sem um ideal, sem um sentimento mais puro que lhe enchessem a vida e lhe dessem esperança e coragem! Tôda a doçura que sonhara findava repentinamente como uma flor que se desfolhasse ao vento. Compreendia ágora nítidamente que falhara na existência. Na hora de agonia que atravessava, tôdas as dúvidas se esclareciam para a sua inteligência conturbada. Nada ousaria tentar para fugir a uma condenação fatal, para reconquistar uma paz que perdera. A sua consciência era uma abjecção. Estava endemoninhado dum pensamento mau, que não podia arrancar dos sentidos como quem arranca o ferro duma ferida sangrenta e profunda; estava possesso do crime em que se envilecera e o espicaçava como um remorso. Para viver tranqùilo, seria necessário redimir-se da fúria cada vez mais ardente duma diabólica paixão insaciada.

Estendido sôbre o leito, arquejante, Frederico, [269] de vez em quando, insurgia-se contra o curso das suas meditações, contra si próprio; mas a sua revolta era inútil, não vingava desviar a atenção concentrada naquela absurda tortura. E que abismo de torpeza era o homem! Odiava Nuno fulgurantemente, desejava que tôdas as desgraças, todos os infortúnios, se abatessem sôbre a sua cabeça, que a amargura de tôdas as misérias o punisse implacavelmente. Com que vitorioso grito de triunfo êle lhe anunciara a gravidez de Júlia! E com que punhalada varara o seu coração! Essa nova maternidade sagrada da mulher que amava era uma suja mácula na santidade da sua adoração―mácula bestial. Nuno, fecundando-a entre ásperos beijos de luxúria e de fogo, na vibração suprema do seu organismo físico, poluira o sentimento que na sua alma abrira puro como uma flor virginal. O filho que viesse, que já fazia estremecer o ventre de Júlia, enxovalharia a mulher para quem a sua veneração subia como o incenso subia dum turíbulo, na nave dum templo. E fôra para assistir a esta vilania que o amigo o convidara para casa, arrancando-o irónicamente ao seu isolamento. Mas quem o impediria da vingança, procurando Júlia, revelando-lhe aquele doloroso segrêdo que trazia dentro de si e que o sufocava?...

A esta ideia, que por um momento lhe pareceu justa, encolheu-se, espavorido.

―Que canalha! Que canalha eu sou!―murmurava.

Não, que pavor! Júlia devia ignorar tudo. Era em saber guardar o mal que o atormentava, que residia a beleza real do seu sacrifício. E com que direito criminava êle aquela doce união conjugal em que tudo [270] era graça, constância, virtude, pureza? Para que havia de espalhar a lama no caminho de Júlia e de Nuno, tam dignos um do outro e da ventura, pela sua bondade, pela sua abnegação, pela sua lealdade? Confessar-lhe um amor criminoso, que seria repelido sem piedade, era dar a conhecer os aspectos mais torpes da sua alma, que não hesitava em traír o amigo, disputando-lhe a espôsa, o tálamo, em ultrajá-lo, ofendê-lo, humilhá-lo na dignidade do sêr consciente.

De-certo que um dêles era de mais na vida―pensava Frederico. Mas quem? Nuno, que tam dedicado lhe fôra sempre, que lhe queria como a um irmão, na ignorância da serpe do desejo que se lhe enroscara no corpo e o despedaçava, o comprimia até à tortura, que confiadamente lhe abrira as portas do seu lar―que se fechavam para tôda a gente? Seria aquela a vítima que o seu egoísmo, a sua loucura sensual, escolheria? Estas interrogações passavam-lhe no cérebro como a fulguração dum sinistro relâmpago. Depois, recuperando a lucidez, podendo raciocinar com mais clareza, Frederico monologou:

―Eu, eu é que sou de mais!...

Ainda não tinha descido tanto no pântano em que se afogava que não visse, acima da sua perversidade, alguma coisa de sublime, de luminosamente grande. Que Nuno, continuasse a viver para o amor, para a felicidade, para o futuro. Que o seu sonho de ventura nunca se interrompesse! Êle desapareceria, já que lhe era honrosamente impossível amar Júlia sem incorrer no absoluto desprêzo de si próprio e sem traír um afecto mais santificado, e já que tambêm não conseguiria viver sem essa adoração. Morreria!...

Por um instante, na solitude nocturna que o rodeava, [271]pensou em matar-se ali mesmo, dando um tiro na cabeça. A detonação alarmaria tôda a casa, Júlia acudiria, aos gritos, pousaria, talvez, o primeiro e último beijo na sua fronte ainda morna e lívida, levaria para a cova o encanto, a revelação, o perfume dêsse beijo derradeiro que lhe aurorizaria a morte. Fechou, porêm, os olhos horrorizados. Êsse suicídio naquele logar, alêm de ser uma denúncia, depois da scena do serão, macularia com uma nódoa sangrenta a ternura infinita de Nuno e da espôsa―uma nódoa que nenhuma água, nenhum esquecimento, nenhum arôma purificaria, como a das mãos de Macbeth. Não! Viveria mais umas horas, umas horas apenas! Só o tempo de chegar ao Pôrto...

A luz da manhã veio surpreendê-lo ainda vestido, rolando-se no leito desmanchado, pálido, os cabelos revoltos. Abriu a janela vagarosamente. O ar vivo e balsâmico entrou a jorros. Aspirou-o com volúpia. Em baixo, passava o criado. Pediu-lhe que fôsse a Guimarães buscar um automóvel.

―E não te demores. É um caso de urgência.

Banhou o rosto em água fria, tirou da mala a pistola que meteu no bôlso das calças, e quando sentiu Nuno a pé, correu para êle em alvorôço. Ao passar pela porta do quarto de Júlia, fitou-a com um olhar em que ia todo o seu adeus, todo o seu desgraçado amor, todo o seu perdão. Dirigindo-se ao jardim, onde Nuno descera, como fazia sempre, para gozar o encanto idílico das manhãs, bradou de longe:

―Sabes? Tenho de ir já ao Pôrto.

―O quê? Estás doido! Não sais daqui, não te deixo.

[272] ―Se eu te digo que tenho de ir! Mandei até o Manuel a Guimarães, buscar um automóvel... Mas volto hoje mesmo. Nem levo a mala... Preciso de ir pagar umas letras que se vencem. É uma coisa séria, como vês!... Só esta noite me lembrei, de repente.

―Oh! Frederico!... Porque não recorreste a mim!... E não tinhas o meu automóvel?...

―Não me ocorreu... Mas é uma questão rápida.

―Nesse caso, vai...

Uma hora depois, o automóvel chegava e Frederico, impaciente, ao portão, despediu-se do Nuno, saltou para dentro, dizendo ao chauffeur:

―Larga e com velocidade.

Estava com pressa de pôr fim, por uma vez, àquele tormento que fôra a angústia pavorosa de todo um ano de sofrimento! Fechou os olhos. Não queria ver nada, para que um súbito arrependimento, um desmaio de coragem, o não prendessem à vida. Ia como numa embriaguez, concentrado na sua ideia fixa e fúnebre. O automóvel rolava, fugia no fio do vento. Era uma carreira para a morte, um paroxismo...

Quando mais tarde entrou em sua casa, pagou generosamente ao chauffeur, subiu a escada rápidamente. Bernardo acudira, perguntando-lhe se desejava alguma coisa.

―Nada, homem. Podes ir para baixo. Se eu precisar, chamarei.

Encerrou-se no seu escritório, sentou-se á escrivaninha e durante algum tempo esteve escrevendo. Admirava a sua serenidade em face daquele acto terrível e necessário que preparava. Seguidamente, fechou a carta e tocou a campaínha. O criado veio, ligeiro:

[273] ―Leva já esta carta ao correio. Mas não te demores.

E, quando ficou só, serenamente, como quem cumpre com honra um dever contraído, tirou a pistola do bôlso, encostou o cano à cabeça sem que um músculo da face se lhe enrugasse e desfechou. Um jacto de sangue brotou, salpicando o papel das paredes; um pedaço de massa encefálica fôra projectado violentamente contra a porta. Frederico caíu de bôrco no chão, sem um estremecimento, esvaziando-se de tôda a seiva da vida sobre o tapête...



Na manhã seguinte, Nuno, que passara a noite inquieto por aquela súbita fuga do amigo, não sabendo a que atribuí-la, recebia uma carta.

Reconhecendo no enveloppe a letra do Frederico, abriu-a nervosamente. Que teria acontecido, para êle escrever em vez de voltar, como prometera? Leu, apavorado, estas palavras sombrias, gravadas numa letra firme:

―«Nuno:―Vou matar-me, em plena consciência, e foi justamente para isso que deixei a tua companhia, a tua afeição, a tua nobre e grande alma. Nem a paz, a consolação imensa do teu lar tam belo, puderam reter-me por mais tempo num mundo em que sou um intruso. Não posso viver mais. A vida para mim é um suplício e por isso me liberto dela. O homem dispõe da força augusta que lhe permite aniquilar a obra de Deus.

Porque me mato? Porque há, realmente, na minha existência um segrêdo terrível, o segrêdo de que [274] um dia suspeitaste e que te não posso dizer, porque me não pertence inteiramente. Oh! não faças suposições inconsideradas! Julga-me com equidade. Não penses por um momento só que deixei, por um crime atroz e sem perdão, de ser digno do teu afecto. Morro em beleza espiritual... Mas o meu segredo tortura-me sem repouso e é-me impossível sofrer mais. Para que prolongar uma dôr incurável? Sou só, o meu acto, longamente meditado, não terá conseqùências e apenas fará padecer as poucas criaturas devotadas que me estimaram e que hão de curvar-se, em lágrimas, sôbre o meu túmulo.

Sê tu feliz, entre os teus, bom amigo! Que sempre à volta da tua vida tam pura e da tua bondade tam comovida, pousem a graça, o encanto e a doçura! Pensa em mim com um pouco de carinho e de mágoa. Afinal, amei-te e desapareço inteiramente merecedor da tua afeição―inteiramente merecedor dela, ouve bem! Um beijo para teu filho e outro para tua mulher―um beijo de irmão, o  beijo dum cadáver. Adeus!―Frederico!».

Ao concluir a leitura, Nuno ficou petrificado, no jardim, alheado de tudo, como se a inteligência inesperadamente lhe fugisse e êle se encontrasse num logar desconhecido. Estava branco, os dedos tremiam-lhe. Tinha a carta entre as mãos, e os seus olhos, por uma alucinação dos sentidos, viam nela manchas sangrentas... Depois, fundos soluços abalaram-no, chorou com desespêro, correndo para casa. Abriu nervosamente a porta do quarto. Júlia ainda estava no leito, com o filho que ria e galrava.

―Tu queres saber?―exclamou êle. Uma desgraça horrível, um pavor!

[275] ―Que foi, santo nome de Jesus?―exclamou Júlia, sentando-se na cama.

―Pois, foi uma fatalidade, filha! Frederico matou-se, ontem, no Pôrto.

―Matou-se?...―perguntou, num grito.

―Sim, matou! Aqui está a carta dêle, anunciando-me a sua resolução, a sua loucura. Pobre amigo! Antes de morrer, pensou em mim, pensou em nós!

―Oh! meu Deus!―murmurou ela, levando as mãos fechadas á cabeça. E porque foi, porque foi?...

―Não o diz... Olha! Lê tu! Eu nem serenidade tenho para nada.

Júlia leu, com os olhos vidrados de pranto, aquela carta para ela reveladora―só para ela!... Uma dúvida que por muito tempo a sobressaltou, esclareceu-se-lhe de repente no espírito. Admirou a grandeza de alma de Frederico―uma grandeza que se denunciava ainda no beijo supremo e sublimado que o seu cadáver lhe mandava da beira da sepultura. Mudamente entregou a carta a Nuno, e as lágrimas correram-lhe em fio dos olhos.

―E então? Que te parece? Que julgas?...

―Era um nobre coração!―exclamou ela, chorando sempre.

Nesse mesmo dia, Nuno partiu para o Pôrto, a assistir ao entêrro do homem que, diante da traição, optou pela morte, para não deixar de ser leal aos outros e a si próprio.


Miramar, 9 de novembro de 1916.





Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 53 pefil ... perfil
#pág. 56 Fredrico ... Frederico
#pág. 63 docorreu ... decorreu
#pág. 67 diza ... dizia
#pág. 67 fertiliade ... fertilidade
#pág. 76 apressadamnte ... apressadamente
#pág. 79 mulidão ... multidão
#pág. 81 ferragns ... ferragens
#pág. 81 pincípio ... princípio
#pág. 104 refractário e um desejo ... refractário a um desejo
#pág. 107 se se isso ... se isso
#pág. 112 miaginação ... imaginação
#pág. 141 vingindade ... virgindade
#pág. 143 picacado ... picado
#pág. 145 Nes e momento ... Nesse momento
#pág. 153 iutermináveis ... intermináveis
#pág. 155 Fredico ... Frederico
#pág. 156 stuação ... situação
#pág. 157 bejou-a ... beijou-a
#pág. 158 subtituía ... substituía
#pág. 159 tran formam ... transformam
#pág. 170 borrocais ... barrocais
#pág. 171 Beetheven ... Beethoven
#pág. 171 capazas ... capazes
#pág. 181 e de medicina ... o de medicina
#pág. 232 Bernado ... Bernardo
#pág. 232 uam ... uma
#pág. 232 irrmediáveis ... irremediáveis
#pág. 236 rapares ... repares
#pág. 238 úni- pessoa ... única pessoa
#pág. 241 rua a ... a rua
#pág. 244 No poderia ... Não poderia
#pág. 257 Banca ... Branca
#pág. 272 compaínha ... campaínha


A acentuação foi mantida de acordo com o original.







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work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


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     http://www.gutenberg.org

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including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
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