The Project Gutenberg eBook of A Traviata: Operetta buffa em 1 acto em verso

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Title: A Traviata: Operetta buffa em 1 acto em verso

Author: Nicolau T. Leroy

Release date: May 5, 2008 [eBook #25336]

Language: Portuguese

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A TRAVIATA: OPERETTA BUFFA EM 1 ACTO EM VERSO ***

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BIBLIOTHECA DRAMATICA POPULAR

N.º 148

N. T. LEROY
A TRAVIATA
OPERETTA BUFFA EM 1 ACTO
EM VERSO
MUSICA DE G. VERDI

Representada com grande successo em diversos theatros de Lisboa, Porto, Ilhas e Brasil

LIVRARIA POPULAR
DE
FRANCISCO FRANCO

(casa fundada em 1890)

60, Travessa de S. Domingos, 60

LISBOA

PERSONAGENS

  TRAVIATA
  GERMANO
  ALFREDO
  FERNANDO
  GASTÃO
  EDUARDO
  ANSELMO
  CREADO
  Varios convidados

ACTO UNICO

Salão rico. Duas portas ao fundo deixando ver um jardim. Portas lateraes. Um sophá e cadeiras. Varios rapazes encasacados estão conversando e bebendo. Um criado de libré distribue vinho sobre uma bandeja.

SCENA I

Anselmo repimpado no sophá com toda a sem cerimonia, Eduardo e
Gastão

Côro

N.º1

(Musica)

  P'ra estar na afinação,}
  é beber; toca a beber } bis
      p'ra correr }
    melhor a funcção. }

Eduardo

(Fallado) Pois é verdade, rapaz, a noite vae ser excellente!

Gastão

É tal qual como tu dizes, Menu, Champagne pr'as bellas,

Eduardo

Camarões, lagosta, perdizes.

Anselmo

Antes as iscas com ellas, que nunca me sabem mal!

Gastão

Oh! menino! isso não vale, é contra toda a etiqueta, fallar aqui em calão!

Eduardo

É verdade, tens rasão, é preciso seriedade!

Anselmo

Seriedade?! Ora bollas! se ha cerimonia, adeusinho, eu vim pr'a rir, beber vinho, até ir pr'a casa… em maca.

Gastão

Mas… ouve cá, meu tontinho, não é por nós que fallamos, repara que estás de casaca, luva branca…

Anselmo

Ah! É verdade, é pela dama que esperamos, que devemos ter cautella com as palavras mal sonantes!

Gastão

Não tarda ahi o Fernando e com certeza vem com a bella, vamos-nos pois preparando!

Eduardo

Eil-o que chega!

Gastão

Attenção! Façamos á nossa bella a devida recepção, digna d'um diplomata!

SCENA II

Os mesmos e Fernando

Fernando (entrando)

Não se incommodem, rapazes, já não vem a Traviata!

Todos

Já não vem?

Fernando

Não tenho a culpa!

Gastão

Bem me fio agora n'essa!

Fernando

Acreditem! Não virá!

Anselmo

Pois has de pagar a multa de nos pregar essa peça, a partida… é indecente!

Todos

Venha a bella, venha a bella!

Fernando

Esta agora não é má! Endoudeceu esta gente. Hei de obrigar Traviata a cumprir o que promette, trazendo-a aqui p'la arreata ou no bolço do collete? Porém nada perderão, tudo será compensado!

Todos

O que é? O que é então?

Fernando

Pr'a gente rir um bocado apresentar-lhes vou já, um caloiro que sahiu com licença do papá, vão ver o que é engraçado, typo assim nunca se viu… Não imaginam! Que atado! É a innocencia em pessoa. Se falla faz-se córado, se fuma logo se enjôa, não bebe vinho… e estou certo que não viu mulheres de perto!

Todos (rindo)

Ah! ah! ah! ah!

(O creado entra e apresenta um bilhete a Fernando.)

Fernando

Eil-o que chega! Ahi está! (Ao creado) Mande entrar! (Creado sáe).

SCENA III

Os mesmos e Alfredo

Alfredo (muito acanhado)

Boas noites, meus senhores!

Fernando

Viva lá, meu caro Alfredo, permitta-me que o apresente aos meus amigos. (Apresenta-o)

Alfredo

Tenho medo que incommode!

Fernando

                Essa é boa!
  (Vendo a atrapalhação de Alfredo).
  Mas o que tem? O que é isso?

Alfredo (balbuciando)

Eu… eu… eu… Não foi nada, é que sou muito nervoso e quando cheguei á escada, foi-me bem difficultoso, resolver-me a vir aqui!

Gastão

Mas que foi? Que aconteceu?

Alfredo

Não foi nada. Assim gue entrei uma mulher, uma sereia, de tal fórma me enleia com o seu magico olhar, que ainda tremendo estou sinto tudo a palpitar.

N.º2

(Musica)

Linda como uma rosa, bella e vaporosa, vestida de setim, tim, tim, tim, tim, tal qual um seraphim

Seu olhar de ternura, sua gentil figura, fez-me tal commoção, que ali logo fiquei em adoração.

E o seu rosto lindo me mostrava sorrindo.

Linda como uma rosa, bella e vaporosa, vestida de setim, tim, tim, tim, tim, tal qual um seraphim.

Fernando

(Fallado) Porque ficou a tremer? As mulheres não teem peçonha!

Alfredo

É que eu tive vergonha e se o papá viesse a saber!

Todos (rindo)

O papá! Ah! ah! ah! ah!

Alfredo

Ai, Jesus! Que gritaria! (Tapando os ouvidos).

SCENA IV

Os mesmos e Traviata

Traviata (entra espaventosamente, seguida do creado, tira a capa e a mantilha, ficando decotada, etc., trajo de baile).

Cá estou eu!

Todos
              Viva Traviata!

Traviata

Tardei mas sempre appareci!

Alfredo (vendo Traviata, á parte)

Ella! A tal!

Traviata (vendo Alfredo, á parte)

              Não me enganei,
  Apaixonei-me afinal!

Fernando (a Traviata)

Sempre te has de demorar, a rasão… não te pergunto!

Traviata

Tem paciencia. Fui deitar umas bixas n'um defuncto. Venho tarde, sim, convenho, mas bem sabem que não tenho, nem tempo pr'a me coçar.

N.º 3

(Musica)

Sempre em pandegas e na orgia não descanço um só momento, quer de noite quer de dia é giro, giro qual catavento.

  São passeios, jantares, caçadas
  soirées, theatros e toiradas.

  Sempre em pandigas e na orgia
  quer de noite quer de dia.

Ah! que pagode! ah! que frescata! é a vida cá da Traviata!

Côro

Ah! que pagode! ah! que frescata! é a vida cá da Traviata!

Alfredo (áparte)

(Fallado) É linda! Linda de lei!

Traviata (referindo-se a Alfredo)

Quem é aquelle cavalheiro? não me é desconhecido.

Alfredo (áparte)

Oh! meu Deus! Eil-a comigo.

Fernando

Ah! Traviata. Perdôa, esqueceu-me de apresentar este nosso bom amigo, um rapaz exemplar! (Apresenta Alfredo).

Traviata

Meu senhor!

Alfredo (atrapalhado, gaguejando)

Mi… mi… minha senhó-nhó-nho-ra! (Áparte) Como é bellá! É adorável!

Fernando (a Alfredo, baixo)

Vamos! Seja mais amavel.

Alfredo (áparte)

Oh! meu Deus! Se eu podesse sumir-me pelo chão abaixo!

Anselmo (áparte)

Dava um doce a quem dissesse se elle é femea ou se é macho!

Gastão

Tenho a palavra, proponho, que á formosa Traviata, um brinde aqui já se faça.

Todos

Bravo, bravo! Apoiado! (Todos tomam os copos).

Anselmo

Venha de lá a morraça!

Fernando

Está dito então. É p'ra já, hip! hip! hip!

Todos

Hurrah!

Traviata

Tal gentileza reclama o dever de agradecer, eu porém já tenho fama de ser muito caprichosa, (tira uma rosa do peito) e quero offerecer esta rosa, a quem o brinde fizer!

Fernando

Faço eu!

Gastão

Ou eu!

Anselmo

Ou eu!

Traviata

Peço perdão por esta vez, decerto não é cortez, nem formal esta exigencia; quem o brinde vae fazer (A Alfredo) espero que seja vocencia!

Todos

Alfredo!!!

Traviata

Espero que o meu pedido não seja desattendido!

Alfredo (áparte)

Oh! meu rico pae do ceu!

Traviata (áparte)

Então! Peço-lhe eu!

Fernando (baixo a Alfredo)

Não recuse; a deferencia no ridiculo não cahe.

Alfredo (a Traviata)

Para agradar a vocencia, vae mal, mas emfim… vae!

N.º4

(Musica)

Á bella mais bella das bellas que eu vi, com prazer, com prazer eu brindo aqui. O jubilo e a minha alegria é tal que até julgo estar na mansão celestial.

Ao sentir tão doce sensação, á musa eu peço que, sem demora, me dê, sim, me dê a inspiração para brindar a esta senhora.

Bebamos, bebamos pois em louvor da rainha da formosura e do amor.

Côro

Sim, da rainha da formosura e do amor. (Bis)

Traviata

A quem tão gentilmente um brinde me fez, responder vou, já responder, pois me cabe agora a ves. Na mão tenho a taça, e ao divino licor peço agora que seja o meu inspirador.

Minh'alma se sente enleiada de commoção e de alegria. Quizera brindar, bem inspirada, a quem dedico a minha sympathia.

Bebamos, bebamos pois em louvor de tão amavel e sympathico senhor.

Côro

De tão amável e sympathico senhor. (Bis).

Todos

(Fallado) Bravo, bravo, bravo! (Applaudem)

Traviata (a Alfredo)

Agradeço-lhe o improviso, e creia que sympathiso deveras com o seu talento! (Dá-lhe a rosa e aperta-lhe a mão).

Alfredo (áparte)

Oh! que aperto de mão, senti-o no coração! (Ouve-se uma valsa. Sol e dó).

Fernando (ao fundo)

Chega n'este momento a orchestra ao jardim, vamos, amigos, depressa, eis a valsa que começa! Vem, Traviata?

Traviata

Vou, sim! (A Alfredo) Então! Não quer vir dançar?

Alfredo

Faz-me ter dôres de cabeça, eu prefiro antes ficar!

Traviata

É um pedido que faço, ao menos dê-me o seu braço!

Alfredo

N'esse caso… eu obedeço!

Anselmo (ao fundo, para Traviata)

Mas então que historia é essa? Tu estás lá ou és de gesso? (Traviata sáe pelo braço de Alfredo. Sahem todos).

SCENA V

Germano, só, (entrando muito atrapalhado)

Onde está o meu Alfredo? Onde está o meu menino? Eu ando com tanto medo que elle se perca, coitadinho! Pediu-me esta tarde licença p'ra sahir a passeio, e como é creança não pensa, quem sabe lá se no meio de tanta rapaziada se metteu n'alguma alhada? Já me disseram que aqui é casa de brincadeira, onde vem gente estragada… e pelo que me disse a porteira, o pequeno entrou pr'a cá! Quem m'o affirma? Quem sabe se elle se vae aqui perder, porque afinal tem a edade em que é preciso… prazer! Onde elle cahiu! Desgraçado! Que tormento! Que impaciencia! Hei de tel-o amarrado, pr'a que não perca a innocencia! Vou por ahi dentro procural-o, e olarépes! que hei de achal-o! (Sáe).

SCENA VI

Traviata e Alfredo, depois Germano

Traviata (pelo braço de Alfredo)

É verdade, caro Alfredo, eu não sei porque motivo ao ver-me comsigo aqui, já me parece que vivo no paraiso, no ceu..

Alfredo

É tal qual como eu, desde o momento em que a vi!

Traviata

Falle, sinto prazer, em ouvir a sua voz!

Alfredo (áparte)

Santo Deus! Isto é atroz, eu não sei que hei de dizer!

Traviata

É um bem consolador, tudo acredito, prometto. (Assôa o)

Alfredo (áparte)

D'esta feita me derreto, nunca senti tal calor!

N.º 5

(Musica)

Então! então! por que rasão fica a olhar p'ra mim, cataplim, como um toleirão, rataplão?

Alfredo (áparte)

  Ai, ai, ai, ai,
  se o pae, se o pae
  vem dar commigo aqui,
  firoli,
  faz-me decerto em pó,
  trolóró!

Traviata

Sem medo póde responder; diga-me, oh! sim, o que quizer.

Alfredo

  Deixe-me confessal-o,
  senão rebento e estallo.
  Sim, é de amor que meu peito palpita.
  Como eu te adoro, oh cara bonita!
  Mysterioso, mysterioso isto é.
  O amor me torna ditoso,
  oh sim, ditoso! Olari, olaré!
  Ah! Traviata! (3 vezes)
  Traviata!

(Alfredo cahe aos pés de Traviata. Germano entra e surprehende-os).

Germano

(Fallado) Ah! que vejo?! Que desgraça!

Alfredo

O papá! Oh! que carraça! (Levanta-se e raspa-se).

SCENA VII

Germano e Traviata

Germano (com furia) Peça a Deus, minha senhora, que suspenda o meu furor. Mulher fatal, peccadora, sem coração, nem pudor, atrever-se a enfeitiçar o meu querido Alfredinho, uma joia, um anjinho, mais puro que uma donzella… (convicto) pois tem palmito e capella.

Traviata

Que atrevimento é esse? Quem é o senhor? Diga já! Sou mulher, sou caprichosa, e deu-me isso na telha; e emquanto eu não fôr velha e tiver cara com geito, julgo que estou no direito de seduzir quem me apraz.

Germano

Descarada como sete! É necessario que entenda que é um crime que commette.

Traviata

Alto lá. Pare Suspenda esse ar tão arrogante… (Atira-lhe o chapéu ao chão) tire fóra esse penante e a ser delicado aprenda. Tome cautella em si, e tenha o respeito devido, mas se quer riscar commigo… (Mãos nas ancas, desafiando á fadista. Dá-lhe pançada). Vamos, salte p'r'aqui.

Germano (áparte)

É uma mulher nunca vista, demais a mais é fadista. (Alto, humildemente) Tem razão. Devo pedir que me não roube o rapaz… elle, coitadinho, é capaz de se matar p'ra servir.

N.º 6

(Musica)

Lindo e gentil como uma flôr, mais innocente, nada, não ha; não conhece outro amor que o amor de seu papá.

  Todos os meus ternos carinhos
  sempre sempre lhe consagrei,
  em confeitos e bolinhos
  bons patacos eu gastei.

  Quer de noite quer de dia,
  sempre n'elle estou a pensar,
  e toda a minha mania
  é que m'o querem roubar.

Se me perde o maganão, quanto me fará soffrer… Oh céos! Então! quero morrer…| bis.

Traviata

(Fallado) Suas magoas reconheço, e por isso eu obedeço. (Tira do bolso um cartão de visita e um lapis). E por este meu cartão, elle saberá bem depressa que não será meu amante; n'elle lhe peço que me esqueça, que afogue essa paixão, sem ficar por isso triste, que me perdôe esta affronta, e que emfim faça de conta que esta mulher não existe.

Germano (contente)

Oh! meu Deus! Se tal fizer, não é mulher, é um anjinho.

Traviata

Vou tudo isso aqui escrever: Volta-te lá, ó Zézinho. (Vira Germano de costas e escreve apoiando-se nas ditas).

N.º 6 (bis)

(Musica)

Alfredo (dentro)

  Sim, é de amor que meu peito palpita
  Sim, eu te adoro, oh cara bonita!
  Mysterioso, mysterioso isto é!
  O amor me torna ditoso
  oh! sim, ditoso; olaré! olaré!

Germano

(Fallado) Elle ahi vem. Por quem é, retire-se, p'ra que a não veja; quero pregar lhe um sermão que o vou deixar a zinir, e se não me quizer ouvir, dou-lhe tamanha cerveja que vae de trombas ao chão.

Traviata

Faça-se o sacrificio.

Germano (agradecido)

São os ossos do officio. Que o bom Deus nada lhe negue. (Áparte, com gosto) P'r'o diabo que a carregue.

SCENA VIII

Germano e Alfredo

Alfredo (entrando)

Traviata! Traviata! Onde iria? Onde estará?! (A Germano, sem o reconhecer) Viu por aqui a Traviata? (Reconhecendo-o) Oh! co'a breca! é o papá.

Germano

Sim, sou eu: é o pae velho, que te quer dar um conselho.

Alfredo

Um conselho? Oh! que massada!

Germano

Olha! a occasião é azada. Se de teu pae és amigo, anda p'ra casa commigo…

Alfredo

Eu p'ra casa? Não vae nada.

Germano

Anda, meu filho, obedece…

Alfredo

Já vejo que o papá esquece que quando entra a teimar, o seu Nini faz chorar… (Choraminga). Se fosse amigo não teimava. Sabe que mais? Vá á fava. (Sahe)

SCENA IX

Germano, Traviata, depois Fernando

Traviata (entrando)

  Santo Deus! O que é isto?
  Que gestos! que borborinbo!

Germano (áparte)

Ella outra vez! Não resisto: vou tratar de me safar, p'ra não lhe quebrar o focinho. (Sahe)

Fernando

  Então assim nos assusta,
  Traviata? Que faz aqui?
  Todos andam em busca,
  todos perguntam por si.

Traviata

Como lhes sou obrigada! (Senta-se no sophá). Porém estava fatigada, e vim descançar um pouco.

Fernando (senta-se ao seu lado)

Agora, que estamos sós, vou dizer-te com franqueza o que ha muito te occultava: essa tua linda voz e deslumbrante belleza, sempre, sempre me inspirava um amor sincero, crê; e p'ra prova d'esse amor e que te sou affeiçoado, aqui te offereço esta flor, (tira a flor da lapella e colloca-a no cabello de Traviata) que te ponho no toucado: e visto que não recusaste estas amorosas fallas, vamos girar pelas sallas, fazer ferro a quem nos vê.

Traviata (áparte)

Oh! quando Alfredo souber vae de dor, oh! sim morrer! (Sahe pelo braço de Fernando).

SCENA X

Alfredo

(Depois de espreitar)

Ainda bem! Já cá não está! Nunca vi um pae assim; anda sempte atraz de mim; mas creio que homem sou já, e que não parece mal eu andar por aqui sósinho. Na verdade, é tão bomzinho a gente andar á vontade. E Traviata como é linda! Que meiguices! que bondade! Cada beijo é uma braza que ella me põe na bochecha; e diz que nunca me deixa e quer levar-me p'ra casa. (O creado entra e apresenta-lhe um cartão de visita, e sahe). O que é? É para mim. (Examinando o cartão) É d'ella! É o seu cartão; já lhe senti o seu perfume. (Lendo) Mas que vejo?! uma traição! «Não acceito o seu amor; julguei que era rico e nobre: não insista por favor, não sou amante p'ra pobre.»

(Colerico) Alma vil! Mulher ingrata! Ah! perfida Traviata! A côrte de um rico acceita, e o amor d'um pobre engeita. Pois bem, toma sentido, a teus pés me vou matar e salpicar-te o vestido com o sangue que espirrar. Tenho um rival que é ricaço: pois verás o que lhe faço; tão depressa eu logre vel-o hei de logo ali estendel-o. Julga-me talvez um urso; pois póde ter a certeza que me ha de ouvir um discurso que nem do Rei da Madureza! Ah! como a vingança consola! Como é bom desabafar! Degredado irei p'r'Angola, mas morrer sem me vingar, isso… hom'essa pistarola!

N.º 7

(Musica)

Oh! cruel oh! cruel vingança eu quero já, sim, eu quero já tirar, e sem mais, e sem mais tardança no sangue d'ella me quero afogar.

  Estou raivoso, furioso, irado,
  já não vejo senão tudo encarnado!
  Ah!
  Oh! cruel, oh! cruel vingança,
  etc.
  (Fallado) P'ra sermões eu já não presto;
  quem quizer que acabe o resto. (Sahe).
  (A orchestra acaba o trecho).

SCENA XI

Fernando e Traviata

(Entram de braço dado).

Traviata

Por quem é, deixe-me só; bem vê que estou fatigada.

Fernando

Quer tomar alguma cousa?

Traviata

Não, agora não vae nada. Já lhe disse, estou doente: não me seja impertinente. (Senta-se com mau humor).

Fernando

Pois, minha querida, as amantes que para amor nos mostrar, teem de se contrafazer, não as posso tolerar; prestam sempre máu serviço. Vou deixal-a só por isso. Amiguinhos como d'antes, ao seu dispor cá me tem, servil-a-hei com prazer, em negocios de amor, porém, assim não me venhas vêr. (Sahe).

SCENA XII

Traviata, só

  (Sentimental—estende a massa no exaggero)
  Oh! Diogenes! oh! Platão!
  oh! vós que como a neve
  tinheis frio o coração!
  (Entra o creado e offerece-lhe uma pucara com agua.—Ao creado, com máu
  modo
)
  Vá p'ro diabo que o leve,
  não me tire a inspiração! (Creado sahe).
  (Sentimental)
  Oh! amar assim como eu amo,
  ninguem o faz, acredito.
  (Outro tom) Mas se assim vou, emphtysico
  e nem trez dias mais duro,
  e se eu a canella estico,
  lá me levam para o guano
  e vou parar ao Valle Escuro.

(Ouve-se um «sol-e-dó» que passa:—Sentimental) Esta musica! Que harmonia! Que doces recordações, que saudades me provoca, como minh'alma enleia! (Outro tom) E se eu fosse p'ra rapioca com aquelles grandes ratões, não era uma boa ideia? (Sentimental) Mas não! Eu amo o Alfredo, e sinto que vou morrer.

N.º 8

(Musica)

Adeus vou dizer ao mundo, pois a morte eu sinto que já me suffoca; adeus ceias no Dafundo e as bellas noites de rapioca.

Não farei mais a Avenida mui repimpada no meu carrinho, ao som da guitarra querida não cantarei mais o fadinho. Não! não! não!

Oh! meu Deus! que secca! que mundo tão vil! Lá me leva a breca! estico o pernil! (Cahe desfallecida sobre o sophá).

SCENA XIII

Traviata e Alfredo

Alfredo (trazendo um embrulho, áparte)

(Fallado) Lá está ella, a scelerada! Quando tão attribulada minha pobre alma está, vejo-a toda repimpada no seu fofinho sophá.

Traviata (meiga)

És tu, Alfredo?

Alfredo (avança com passos tragicos;—rispido)

Socegue, não tenha medo; é bem pouco o que lhe quero. Ha alguem que foi preferido e a quem deu o coração. Sou pobre mas nunca fico a dever o que utiliso; por isso pagar preciso, tal qual como paga o rico. Elle já lhe deu essa flor que no seu, cabello vejo, e eu quero, pagar-lhe o beijo que me deu com tanto ardor. Meus caprichos levo a cabo, tenho essa má qualidade. Não lhe dou flores, pois me gabo de dar prenda delicada e de mais utilidade. (Tira do embrulho uma grande cabeça de nabo, e offerece-o a Traviata) Mande-o metter na panella, faça-o guizar p'la creada, e verá que é cousa bella. Póde fazer feijoada com o bello chispe de porco. Apezar de não ter nada, por miserias não me enforco; p'ra amarrotar meus rivaes, mil sacrificios faço. Diga agora quem deu mais, se fui eu ou o ricaço.. Tratou me tal qual um mouro, porque amor me não tem. No adeus não haja choro. Viva! passe muito bem! (Sahe com pano tragico).

SCENA XIII (bis)

Traviata, só

(Erguendo-se) Já se foi! Que infeliz sou! Oh! que atroz condemnação! (Referindo-se ao nabo) Isto apenas me deixou p'ra minha consolação. Valham-me as Chagas de Christo! mata-me aquelle cachorro: a esta dor não resisto, d'esta feita é que eu morro!

SCENA XIV

Traviata, Germano e Alfredo

(Germano vem cobrindo Alfredo com o capote).

Alfredo

  Ah! papá! Eu amo-a tanto!
  Já não posso mais, bem vê!

Germano

Pois sim, filho. Entretanto vou tirar-te o cache-nez. (Descobre-o).

Alfredo (tomando a mão de Traviata)

Oh! meu Deus! Está inanimada!

Germano

Não te afflijas, querido filho. Desaperta-lhe o espartilho: talvez esteja agoniada.

Alfredo

Oh! não! Está fria de morte!

Germano (áparte)

Vamos lá que estou com sorte.

Alfredo (tragico, arrepellando-se)

Morrrrta! Morrrrta a minha Traviata!

Germano (imitando-o)

Vae torrrrta! Vae torrrrta se elle se mata!

Traviata (a Alfredo, com voz de moribunda)

Alfredo, dá-me a tua mão. Fica sendo meu amigo; eu mereço o teu perdão.

Germano (áparte, amollando o caso)

  Viva e forte como um mastro.
  Não tem fim aquelle canastro!

N.º 9

(Musica)

Alfredo

Traviata, minha querida, não chores assim, senão em seguida dou cabo de mim.

Vou trincar meio biffe de boa vitella, deito-me n'um esquife e estico a canella.

Alfredo e Germano

Morte d'uma figa, bem te vejo, olá! que dôres de barriga que eu tenho já!

Germano

Meu filhinho, ouve cá, não queiras morrer, senão teu papá quanto vae soffrer! Se morreres, não é asneira para o caminho levar trincadeira; não te esqueça o vinho!

Alfredo e Germano

Morte d'uma figa, bem te vejo, olá! que dôres de barriga que eu sinto já!

Traviata (com voz sumida)

(Fallado) Olha, escuta o que te digo. Já pouco posso fallar, mas quero aqui te jurar que hei de fazer-me leiga na celestial mansão, e… (Expira).

Alfredo (a Germano)

Não poude continuar.

Germano

Cá estou eu para acabar: Torradinhas com manteiga, por cima café limão.

Alfredo

Morreu! Eu já sinto a morte em mim. Chegue-me aquella cadeira: vou sentado p'ro outro mundo.

Germano (dando-lhe a cadeira—Alfredo senta-se—)

Oh! que desgosto profundo! Não, não morras, tem cautella; olha que fico sósinho!

Alfredo (moribundo)

Não, papá; quero ir com ella, p'ra me ensinar o caminho. Socegue, papá; lá p'r'o anno, por um systema moderno, para o céo e p'r'o inferno, vae haver americano. Adeus, meu querido papá.

Germano (abraçando-o)

Filho do coração!

Alfredo

Não se esqueça de ir por lá. (Expira).

Germano (simples)

Passa p'ra cá meio tostão. (Vendo que Alfredo morreu) O que vejo?! Já morreu! Morreu, sim, tenho a certeza. Ora vejam que despeza vou fazer p'ra ir ao céo. Eu não resisto a taes dores; não, não as posso soffrer. (Despe o casaco, estende-o no chão, e deita-se sobre elle, dizendo) Boas noutes, meus senhores: eu cá tambem vou morrer. Vae tudo assim de uma vez. É melhor e mais depressa. (Estica a canella).

Alfredo (levanta-se e diz)

Mas não façam morrer a peça, já que morremos os tres. (Torna a morrer sentado).

SCENA ULTIMA

(Todos os personagens, vestidos, de gato pingado, apparecem de tochas na mão).

Fernando (entoa)

De profundis Traviata!

Todos (idem)

Amen! (Ficam cabisbaixos).

Alfredo (resuscita, e toca no hombro de Traviata)

Oh! tu que fumas!

Traviata (resuscita)

Que é? Já estamos no céo?

Alfredo (alegremente)

Já. Vamos p'r'o pagode.

(Todos se erguem e todos dançam).

FIM