The Project Gutenberg eBook of Surpreza

This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook.

Title: Surpreza

Author: Miguel J. T. Mascarenhas

Release date: April 29, 2008 [eBook #25241]
Most recently updated: January 3, 2021

Language: Portuguese

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK SURPREZA ***

Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images

of public domain material from Google Book Search)

SURPREZA

SURPREZA

ENTRE-ACTO

ORIGINAL
DE
MIGUEL J. T. MASCARENHAS

PORTO

Typographia Lusitana

84—Rua das Flores—84

1873.

PERSONAGENS

Laura, costureira.

Alfredo, tenente.

João, camarada d'Alfredo.

Arthur, menino de 9 annos, irmão de Laura.

Ill.^mo e Ex.^mo Gaspar Lobo de Sousa Machado e Couros.

Meu bom amigo: duas horas,—rigorosamente duas horas—uma que furtei a um auto de «pinhora», e outra a um «dito» de «embargo» quando «escrivão» na Beira, deram em «conclusão» o «Entre-acto» que de lá te offertei. Disse-te que fôra applaudido, e não menti: applausos serranos em theatrinho aldeão.

Porque foi que me lembrei de «ajuntar» o teu nome ao meu thesouro litterario da serra?…

De certo presentimento de que tu havias de ser, como effectivamente succedeu, um dos mais poderosos auxiliares para finalisar o meu desterro.

É esta a primeira occasião que tenho de publicar o escripto que te dediquei, e não a perco: vai «appenso» do meu unico livro, e provo-te, d'este modo, a existencia em mim de um sentimento, mixto de orgulho e gratidão, que tu sabes comprehender e desculpar.

Porto, 15 de Setembro de 1873.

teu dedicado e obrigadissimo amigo,

Miguel J. T. Mascarenhas.

SURPREZA

* * * * *

ENTRE-ACTO

Uma saleta pobre, com um fogareiro de barro, mesa e ferro de engommar, um cesto de costura que deve conter uma caixinha, etc.

SCENA I

LAURA E ARTHUR

(Laura, canta e engomma, e Arthur trata do fogão)

Laura (cantando):

    Ai! mundo!! mundo!… como és tyranno!
    És deshumano p'ra mulher cahida…
    Ai! misera orphã sem um tecto amigo,
    Sem um abrigo que te dê guarida!…

    Morrêr tão nova?!… acho cêdo ainda…
    Mulher, e linda… que horror! perdida!…
    Quando a purêsa no gosar fenece…
    Ai! desfalece todo o amor á vida!…

(Vendo que Arthur desmancha qualquer coisa no fogão):

Es um desastrado, Arthur; pois já tens idade para algum juiso… Estás a fazer onze annos… (Vae compor o fogão, e Arthur espreitar á porta).

Arthur (voltando, com receio e meiguice):

Desculpa, Laurinha, minha querida irmã, desculpa, que me pareceu ouvir a voz do snr. tenente, e tu bem sabes quanto eu gósto d'elle…

Laura (enleiada):

A voz do snr. Alfredo!… Ainda não são as horas do costume… (dirige-se á mesa, em quanto Arthur faz qualquer traquinice pela casa, e fica um pouco pensativa): Arthur tem razão… A pobre criança parece que adivinha os favores que devemos ao snr. tenente… se não fôra aquella boa alma, teriamos, eu e meu irmão, succumbido… (trabalhando, e fallando, etc.) Não sei bem, se é só gratidão o que eu sinto… Os poucos dias que deixo de vêl-o, é como se me faltasse o ar que respiro!… se Elle é tão bom, tão caritativo!… E nunca lhe ouvi uma palavra atrevida, nunca lhe vi um gesto menos respeitôso!… Elle… que podia abusar… que… (pousando o ferro): Meu Deus! E se elle fosse meu pae?!… Quem sabe?… Achei-me tão nova desamparada no mundo, e com este meu irmãosinho nos braços…

Arthur (vindo ao pé da irmã):

Ó Laura, tu que estás ahi a resmungar?… Não estejas triste, não?…
Se estás assim por minha causa, eu prometto de nunca mais fazer tolices…
Deixas-me tu ir para a porta da rua esperar o snr. tenente, deixas?…

Laura (ameigando-o):

Pois vae, vae, mas não te ajuntes com os garotos, ouviste?

Arthur (indo aos saltos):

Não junto… só hei de vêr como elles jogam o peão…

SCENA II

LAURA (só)

Laura (largando de engommar, e pegando na costura):

Muito penosa é a vida dos que vivem só para o trabalho… E o lucro que as mulheres tiram d'elle, não chega para matar a fome… se não fôra o meu protector pagar-me a renda da casa, ter-me-ia outra vez reduzido á penuria extrema, e… matava-me, para fugir á deshonra… (pausa) Horrorisa-me a idéa da vida que passam essas infelizes mal encaminhadas… O mundo não vê na mulher pobre mais do que um estimulo para os seus brutaes appetites!… Nova, como ainda sou, já por minha desgraça conheci isto; mas a Providencia, pela mão do sr. tenente, salvou-me do suicidio…

SCENA III

ARTHUR E LAURA

Arthur (entrando a correr):

Ó Laura, deram-me esta carta para te entregar… (dá a carta, e volta para a porta da rua).

SCENA IV

LAURA (só)

Laura

É d'Elle!… Estará doente, meu Deus!… (abre a carta, e lê): «Menina Laura.—É hoje mais um dos poucos dias em que me vejo obrigado a faltar-lhe com a minha visita á hora do costume… Peço-lhe que não lance esta falta na conta de esquecimento, por que a tenho sempre presente no pensamento e no coração. Até mais logo. Seu muito amigo, Alfredo.» (Declamando): Felizmente, é só algum estorvo da vida militar, e ainda hoje terei o prazer de vêl-o. (Deixa a carta no cesto da costura).

SCENA V

LAURA E JOÃO

João (trazendo, n'um taboleiro, alguma roupa branca):

(Fallando de fóra): Dá licença, menina?

Laura

Alguma obra, talvez… Entre, quem é?

João (entrando):

Ora, guarde Deus aqui tudo, e vivam os homens de guerra, e as meninas engommadeiras… (reparando em Laura): Palavra de honra, que a menina merece ainda bem a continencia… (mudança de tom): Desculpe-me estes geitos de tarimba, e estas graçolas já improprias dos meus annos, menina, que não ha mal nenhum n'isto. Cá o velho 38, ha muito que esqueceu as graças do matrimonio… (com tristeza): Ha bastantes annos, que perdi a minha boa Antonia, Deus lhe falle n'alma, e um filho, ou dous, quê… (pausa: resignando-se): Deixêmos tristezas, que não pagam dividas, e vamos ao que serve… Olhe, menina, trago-lhe aqui estas camisas para engommar. O meu tenente tinha por engommadeira uma pobre velhinha, que mais lhe estragava do que engommava as camisas, mas que elle ainda assim conservava, por que é o melhor dos tenentes… Vae, se não quando, a velha adoece, e eu vou hoje procurar uma camisa engommada para dar ao meu tenente, e… vistel-a?… nem eu!… Indaguei onde haveria uma engommadeira boa, e disseram-me que perguntasse pela menina Laura, n'esta rua. Chego á porta d'esta casa, vejo uns rapasitos a jogar o peão…

Laura (interrompendo-o):

Disseram-lhe que era aqui, e entrou… Pois, sr., eu farei por substituir a velhinha o melhor que possa.

João

Faça alto!… Substituir a velha, é que não, por que tinha de ir lá para casa, e apesar do tenente ser… o melhor dos tenentes, é ainda novo, e… o lume ao pé da estopa

Laura (interrompendo-o):

Quem, como eu, foi em criança abandonada com um irmãosinho pequeno nos debeis braços, e soube até hoje sustentar-se virtuosa, preferindo perder a vida a perder a honra, parece que não poderia têr grande receio do seu tenente…

João

Então, guarda dentro… Já aqui não está quem fallou… Visto que a menina é assim arisca, muda o caso de figura… Ora, diga-me: poderei saber a sua historia?… Eu sou curioso como um soldado vadio em dia de pré; e como deixei tudo arrumado em casa, e o tenente está para o quartel, posso, sem receio, demorar-me.

Laura (offerecendo cadeira ao soldado):

A minha historia, conta-se em poucas palavras: teria completado dez annos de idade, quando morreu minha santa mãe. A infeliz, chorava todos os dias a ausencia de meu pae, que, dizia ella, fôra com o general conde das Antas para a expedição de Hespanha…

João (interrompendo-a, visivelmente alterado):

Para a expedição de Hespanha, diz a menina?!…

Laura

Sim, senhor. O que tem isso de extraordinario?…

João (forcejando por tranquilisar-se):

Diz bem… o que tem isso de extraordinario?… É que… Queira continuar, menina, queira continuar…

Laura

A falta de recursos em que viviamos, fez com que a minha pobre mãe morrêsse quasi á mingoa de pão e de tratamento… (movimento em João, etc.) Eu, mal podia então avaliar a desgraça que vinha sobre mim… Quando vi minha mãe morta, chorei muito, gritei, clamei por soccorro e, como ninguem acudisse, sahi de casa com meu irmão ao collo, continuando a gritar pelas ruas, até que uma caridósa mulher me recolheu no seu pobre albergue…

SCENA VI

OS MESMOS, E ARTHUR

Arthur (correndo):

(Traz pendente do pescoço de modo visivel uma medalha de cobre).—Ó Laura, perguntaram-me por ti lá em baixo. Eu estava a vêr jogar o peão… (reparando no soldado): Ah! cá está o senhor que perguntou por ti…

João

(Repara na medalha, levanta-se repentinamente, examina-a etc.) Esta medalha!!…

Laura

É uma reliquia, que minha santa mãe dizia ter vindo de Roma, e que lançou ao pescoço de meu irmão, pouco antes de morrer…

João (excitadissimo):

Menina!… por alma de sua mãe lhe peço, que me diga se conserva alguma carta que seu pae escrevêsse!…

Laura

Conservo. Tenho-a aqui no meu cesto de costura, n'esta caixinha, para nunca me separar d'ella… Olhe, aqui a tem.

João

(Desdobra a carta todo trémulo, etc, e diz como em delirio): Antonia!… Cá está… é a mesma… foi escripta em cima de um tambor antes de entrar em fôgo… E Ella cá a morrer de fome!… e meus filhos!… (grito dolorôso): Ah!… (cae sem sentidos na cadeira).

Laura (correndo a elle):

Que é isto, meu Deus!… Elle morre!… Se viésse o sr. tenente… (afflicta): Nunca fui a sua casa, mas vou agora… Não posso estar aqui só com este homem assim… (entra nos bastidores, e sae de capote: Arthur segue-a sempre): Ainda sem sentidos!… (apanha a carta do pae, que este deve ter deixado cahir, e guarda-a): Vamos, Arthur, vamos depressa… (sahem).

SCENA VII

JOÃO (só)

João

(Como accordando, etc.) Que sonho tão mau!… Só tive um igual quando fui mortalmente ferido, para salvar a vida ao meu tenente… Mas onde estou eu?!… Ah!… sim, estou em casa da engommadeira, que se chama Laura, que era tambem o nome de minha filha… E a historia d'estas crianças?!… E a carta?!… (Procura a carta, e pega na que é do tenente): Eil-a aqui!… Não é, pois, sonho, meu Deos?!… É certo que tenho dous filhos?!… Laura, minha querida filha!… (pausa): Sahiu… foi, talvez, chamar algum medico… É preciso tranquillisar-me, para o receber como um homem que é soldado… Estas fraquezas excessivas, não ficam bem a um militar, praticadas diante de um estranho… Vou lêr a carta que escrevi á minha pobre Antonia, quando pensava que ainda a abraçaria muitas vezes… (abre a carta, principia a lêr, e fica como fulminado): «Menina Laura!!…» Que é isto?!!… Estarei eu louco?!!… (acaba de lêr para elle: gargalhada terrivel): Ah!… ah!… ah!… ah… Então, não queria eu achar uma filha virtuósa, depois de dôze annos de desamparo?!… Impossivel!… (pausa): Em vez da ventura domestica para o resto dos meus dias, deparo com a deshonra ao cabo de trinta annos de serviço!… Bravo militar!… enche-te de orgulho com as tuas feridas!… a paga d'ellas, foi deixarem-te morrêr a mulher á fome!… e a condecoração, é a deshonra da filha!!… (mudança de tom): Mas ha aqui um seductor, que ha de pagar com a vida a minha vergonha… Eu o juro, á face de Deus!… Occulto n'aquelle quarto, poderei surprehendêl-os, e vingar-me… Depois… um tiro na cabeça, e era uma vez o 38!… (entra precipitadamente no quarto).

SCENA VIII

LAURA E ARTHUR

Laura

Não tive coragem de ir a casa do snr. tenente: encontrei uma conhecida, por quem lhe mandei recado… (reparando): Mas onde está o meu doente?!…

SCENA IX

OS MESMOS, E ALFREDO

Alfredo (amavel):

Mais depressa ninguem obedesse ás ordens da sua dama… (aperta a mão a Laura): Como está o meu anjo de resignação, a linda escravasinha do trabalho?… (Logo que o tenente entra, Arthur fica polando de contente, pega-lhe na mão que elle tem livre, etc. Alfredo chega uma cadeira a Laura, e assenta-se tambem ao seu lado, collocando Arthur sobre os joelhos, que fica constantemente mechendo ora nas dragonas, ora nas mãos e no bigode do official).

Laura

(Pega na costura mas não trabalha): Estou muito triste, snr. tenente… Ia para casa de v. s.^a participar-lhe que um pobre velho, camarada de um senhor official, adoecêra n'esta casa, vindo trazer-me umas camisas para engommar. Deixei-o aqui parecendo morto, e, já no caminho, encontrei a pessoa por quem lhe mandei pedir que viesse, e voltei a casa com muito cuidado no infeliz camarada. Chego, pouco antes de v. s.^a, e não encontro o homem!…

Alfredo

Não se espante a Laurasinha com o acontecimento, que é o mais natural possivel. O homem tem fibras de soldado velho: accordou, viu-se bom, e só, e foi tratar da sua vida, ou da vida do official de quem é camarada… Deixêmos essas tristezas, que já passaram, e diga-me a minha querida protegida se ha por aqui abundancia de trabalho, e o dinheiro preciso para as suas pequeninas necessidades…

Laura

Não me falta cousa alguma, graças á sua valedôra protecção, sr. tenente…

Arthur

(Pondo a mão na cara do official): Deixe fallar minha irmã, sr. tenente, que não diz a verdade… (com ingenuidade infantil): Ha tres dias, que só comêmos caldinho…

Laura

Que estás tu a dizer, meu traquinas?…

Alfredo

Fizeste bem em fallar, Arthur… A innocencia não sabe guardar as conveniencias… Então, a má da sr.^a Laura, esqueceu-se de mim, não é verdade?!…

Laura (enleiada):

Eu… não queria ser mais pesada, a quem já devo tanto…

Alfredo (pondo o pequeno no chão):

Vae, Arthur, vae para a porta da rua, para os teus encantos, que eu preciso de ralhar muito a tua irmã, e não quero que tu oiças… (reparando nas luvas, que o pequeno lhe sujou): E já que me pozeste as luvas n'este bonito estado, pega n'ellas, e faze dous saquinhos, anda… (Arthur dá um beijo no tenente, recebe outro, e sahe muito contente.)

SCENA X

ALFREDO E LAURA

Alfredo

Vou fallar-lhe muito seriamente, menina Laura… Quando eu, haverá nove annos, a encontrei casualmente n'um miseravel sotão quasi asfixiada, querendo tambem matar o pequenino Arthur, seu irmão,—fiz o que faria todo o homem, que ainda não tivesse a alma completamente estragada pelas convenções do mundo tôrpe. Ouvi a sua singela e muito infeliz historia, admirei a austéra virtude da sua boa indole, e protegi-a. Desde então até hoje, se a minha assiduidade junto da menina póde ser mal vista pelos perversos, é certo que as nossas consciencias estão tranquillas. Sua mãe, Laura, não teria mais cuidado pela conservação da sua virtude do que este… devasso militar, como talvez o mundo me chame… Podia dar-lhe todo o necessario, tiral-a ao trabalho pesado que exerce, cercal-a até de algum luxo; mas preferi velar apenas por que não entrasse em sua casa a miseria, deixando-lhe toda a gloria da sua honra pelo trabalho… Comprehenda-me bem, Laura. Um homem que assim procede, póde ter alguma coisa occulta no coração, mas de certo não merece o seu despreso… Fallo assim, para concluir por lhe dizer, que soffri muito ha pouco, que estou soffrendo ainda por ouvir da bocca de um innocente, que a menina occulta de mim as suas precisões, provando por tal fórma, que não confia no homem que ha nove annos a estima como um verdadeiro irmão!…

Laura

(Muito terna, beijando-lhe a mão): Não é isso, sr. Alfredo… Perdoe-me, se entendo mal, mas eu queria ser-lhe pesada o menos possivel… Pareceu-me comprehendêl-o… Devo-lhe, alem de tudo, o saber lêr nos livros que me dá, livros de certo escolhidos, por que só n'elles tenho aprendido rasgos de virtude e de heroismo… Não acredite que em mim exista um sentimento mau a seu respeito… seria crueldade imaginal-o sequer… Eu, não tenho no mundo outra affeição… É a v. s.^a que pertence toda a minha alma…

Alfredo (interrompendo-a):

Pela gratidão… Bem sei que a menina é um compendio de virtudes não vulgares.

Laura (muito enleiada):

Não é só a gratidão… Deixe-me dizer-lhe, o que ha muito mora no meu peito… v. s.^a é para mim mais que um irmão… já me lembrei se seria meu pae… É ainda novo, mas era possivel… Sei que o amo muito… creia-me… Se me faltasse, morria… (com força); Oh… juro-lhe que morria!…

Alfredo (contentamento suffocado):

Obrigado, Laura! Sabe lá o bem que me fez com o que acaba de confessar-me?! Tambem eu estou orfão de parentes e mais orfão ainda de crenças n'essa pervertida sociedade onde as minhas dragonas me dão entrada… Sonhei muitas vezes com a felicidade ao seu lado, Laura, mas temia de encontral-a suspeitósa das minhas intenções… Obrigado por me abrir o céu com as suas palavras… Attenda bem ao que lhe digo: estou a tocar nos quarenta annos. Esta idade, não deixa nutrir illusoes, mas ainda póde conservar bem vivo o coração… o meu—juro-lh'o sob palavra de cavalheiro—tem o mesmo calor dos vinte annos… Não posso, nem sei dizer-lhe mais… Peço-lhe pela memoria de sua mãe, que me diga com toda a força da sua convicção se não repugna á sua mocidade a juncção com a minha quasi velhice…

Laura (abraçando-o):

Repugnar-me, Alfredo?!!… (como que admirada da sua audacia, retirando os braços vagarosamente, etc.); Perdão, sr. tenente… O meu contentamento deu-me audacia, que ha uma hora julgaria loucura…

Alfredo (beijando-a na testa):

O amor nunca é audaz, minha querida Laura, é um sentimento nobilissimo, que faz desapparecer todas as distancias… (jubilôso): Seremos felizes, muito felizes!… Havemos de causar inveja aos mais felizes da terra!… Hei de…

SCENA XI

OS MESMOS, E JOÃO

João (terrivel de raiva concentrada):

Casar á franceza… não é verdade, meu tenente?!… (os dous separam-se, e João occupa o centro da scena, etc.):

Alfredo

O meu camarada!…

Laura

O homem doente!…

João (sempre ironico e terrivel):

O seu camarada, sim, meu tenente… aquelle soldado raso que aproveitou algumas cutiladas, para o salvar de uma infallivel morte… Era o dever do inferior… Agora, ao superior, cumpre-lhe pagar com a deshonra…

Alfredo (rispido):

Endoideceste, homem?!…

Laura

Que direitos são os seus, para estar com esses modos em minha casa?!…

João

Em sua casa, menina?… Por que não diz antes em nossa casa?… Era mais verdadeira, não occultando a parte do sr. tenente…

Alfredo (com imperio):

Nem mais uma palavra, soldado!… Vá immediatamente para casa, e lá ajustaremos contas…

João (cada vez mais furiôso):

Hei de ir para casa, meu tenente… para uma casa que se fez logo que eu nasci, e que tem uns oito palmos de comprido… mas antes de me levarem para lá, quero contar-lhe em poucas palavras toda a minha vida… Fui casado á face da egreja, meu tenente… Minha mulher morreu de fome, em quanto eu batalhava pela liberdade da Peninsula… Ficaram-me dous filhos, que julguei mortos… não morrêram, por desgraça minha… Esta mulher, que hade partilhar, se nâo partilhou já, da infamia dos seus amores… é minha filha!… (Laura, toda trémula, etc. prostra-se de joelhos): Agora, sr. tenente, (no auge da colera): vou com estas mãos arrancar uma vida, que já conservei á custa da minha!… (Faz acção de arremetter contra o tenente e Laura arrasta-se de joelhos para os pés do pae, que não faz caso d'ella. Alfredo, toma repentinamente attitude militar, e brada em voz de commando):

Alfredo

Perfilado, 38!… Perfilado!… (Lucta de gestos de João, entre a raiva e o dever militar, vencendo este por fim, e perfilando-se. Isto deve demorar-se, até o Arthur dizer o—áparte—da scena seguinte. Logo que João se perfila, toca a orchestra em surdina até ao fim)

SCENA XII

OS MESMOS, E ARTHUR

Arthur

(Entra, correndo, pelo fundo, e, vendo a irmã de joelhos e a chorar, toma o outro lado da scena, ajoelha tambem, pega na reliquia que traz ao pescoço, beija-a, e diz á parte): Diz minha irmã, que a nossa mãe a ensinou a beijar esta reliquia quando tivesse afflicçòes… e como ella chora é por que soffre… (conserva-se de joelhos observando a scena).

Alfredo (muito grave):

O soldado que levanta a mão contra o seu superior, é fuzilado… Salvou-me uma vez a vida, devo salvar hoje a sua… Vou alcançar-lhe baixa com data de hontem (Pausa). Pergunte na minha ausencia a sua filha, o que eu tenho sido para ella… (a Laura, que ajuda a levantar-se): Senhora Laura… perdoe-me este acontecimento de que fui causa involuntaria… e adeus!… (Laura affoga-se em soluços, e Alfredo, tendo dado alguns passos ao fundo, fica olhando para ella indeciso).

Arthur

(Levanta-se, corre ao tenente, pega-lhe na mão, e chama-o á scena): Então o meu amiguinho vê minha irmã a chorar, e quer deixal-a?!…

Alfredo (beijando o pequeno):

Menina Laura… Peça a seu pae que a deixe casar com o tenente Alfredo…

João

(Tem sempre estado perfilado, e move-se repentinamente): Pois isso é sério, meu tenente?!…

Alfredo

Já me viu faltar a um juramento, João?

João (rapido):

Nunca!

Alfredo (solemne):

Juro-lhe pela cruz da minha espada, que dentro em oito dias hei de ser seu genro á face da egreja.

João

(Louco de contentamento, abraçando o tenente pelos joelhos, etc.): Isto é que se chama uma surpreza, que póde fazer morrer de alegria!… (Indo buscar Laura): Anda, minha querida filha, amor do meu coração, retrato vivo de tua santa mãe, anda abraçar o teu anjo, o nosso anjo salvador!… (Os tres formam grupo, etc.):

Arthur

(Salta a uma cadeira, colloca-se entre os hombros do pae e os do tenente, e diz para a irmã): Ó Laura, qual d'estes senhores é o nosso pae?…

João

(Apertando-o contra o peito e beijando-o): Somos ambos, meu filho, e tudo aqui respira alegria e felicidade!…

Arthur

Pois beijem todos esta reliquia, que foi a que fez o milagre… (Sorriem-se todos, beijam a medalha, e affagam o pequeno. Rompe a orchestra.)

CAHE O PANNO.