The Project Gutenberg eBook of Novelas do Minho

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Title: Novelas do Minho

Author: Camilo Castelo Branco

Release date: May 9, 2007 [eBook #21406]
Most recently updated: January 2, 2021

Language: Portuguese

Original publication: Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira Livraria Editora Rua Augusta, 50, 52 e 54 Officinas Typographica e de Encadernação Movidas a vapor Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.º, 1903

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OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO

Novellas do Minho

Volume I

SEGUNDA EDIÇÃO

LISBOA Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA LIVRARIA-EDITORA Rua Augusta, 50, 52 e 54 1903

OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO

EDIÇÃO POPULAR
XVII
NOVELLAS DO MINHO

VOLUMES PUBLICADOS

I—Coisas espantosas.
II—As tres irmans.
III—A engeitada.
IV—Doze casamentos felizes.
V—O esqueleto.
VI—O bem e o mal.
VII—O senhor do Paço de Ninães.
VIII—Anathema.
IX—A mulher fatal.
X—Cavar em ruinas
XI }
    } Correspondencia epistolar.
XII }
XIII—Divindade de Jesus.
XIV—A doida do Candal.
XV—Duas horas de leitura.
XVI—Fanny.
XVII }
XVIII } Novellas do Minho.
XIX }

CAMILLO CASTELLO BRANCO

NOVELLAS DO MINHO

SEGUNDA EDIÇÃO

LISBOA Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA LIVRARIA EDITORA Rua Augusta, 50, 52 e 54 1903

LISBOA Officinas Typographica e de Encadernação Movidas a vapor Rua dos Correeiros, 70 e 72, 1.^o 1903

I

GRACEJOS QUE MATAM

     Isto de querer ter graça e de fazer rir os outros anda por boa
     gente no dia de hoje.

     Theatro de Manoel de Figueiredo. Censores do theatro, T. VI, pag.
     36

Ao Dr. Thomaz de Carvalho

*GRACEJOS QUE MATAM*

Ordinariamente, chamam-se á franceza—espirituosos—uns sugeitos dotados de genio motejador, applaudidos com a gargalhada, e aborrecidos áquelles mesmos que os applaudem. São os caricaturistas da graciosidade.

O «espirituoso», á moderna, abrange os variados officios que, antes da nacionalisação d'aquelle extrangeirismo, pertenciam parcialmente aos seguintes personagens, uns de caza, outros importados:

Chocarreiro—tregeiteador—arlequim—palhaço—proxinella—polichinello— —maninêllo—truão—jogral—goliardo—histrião—farcista—farçola—végete— —bobo—pierrot—momo—bufão—folião, etc.

Esta riqueza de synonimia denota que o bobo medieval bracejou na peninsula iberica vergonteas e enxertias em tanta copia que foi preciso dar nome ás especies.

Ora, o «espirituoso» tem de todas. A antiga jogralidade, que era mestér vil, acendrada nos secretos crizoes do progresso social, chegou a nós afidalgada em «espirito», e com o fôro maior de faculdade poderosa, caustica, implacavel.

Ainda assim o estreme espirito portuguez, por mais que o afiem e agucem, é sempre rombo e lerdo: não se emancipa da velha escola das farças: é chalaça.

Ha poucos mezes, falleceu em Lisboa um «espirituoso» que andou trinta ou quarenta annos a passear a sua reputação entre o Chiado e o Rocio. As gazetas, ao mesmo passo que nos inculcavam o defunto como pessoa que vivêra aventurosamente uns setenta annos tingidos com primoroso pincel, descontavam n'estes defeitos a sua immensa graça, e reproduziram nova edição melhorada das suas anecdotas.

Averiguado o «espirito» do homem em coisas burlescas de que fez mercancia na feira politica, liquida-se, quando muito, um folião que desbragava a penna e desembestava asselvajadamente o insulto. Por este, que não deixou nome sobre-vivente para vinte quatro horas—nem o terá aqui—orça a maioria dos jograes que tenho visto, nos ultimos trinta annos, esburgar o osso da facção que lhes alquilla o engenho detrahidor, e acabarem antes da geração que os galardoou com a moeda falsa das rizadas.

O satyrico de sala e botequim é mais funesto e menos trivial que o politico; mais funesto por que vulnéra melindres—coisa que o callôso peito da politica não tem nem finge; menos trivial, porque o chiste de Sterne, de Byron, de Voltaire, do padre Isla, de Heine e Boerne não apégou aqui, nem se adelgaça á feição da nossa indole, bem accentuada nas chocarrices plebeas de Gil Vicente e Antonio José.

É mais funesto, repito; por que me occorre hoje, regressando das Caldas de Vizella, uma historia funestissima de que só eu posso lembrar me. Duas chalaças terçadas entre dois amigos, cavaram sepulturas de vidas e honras. Se as novellas podessem ensinar alguma coisa, corrigindo aleijões da alma, eu pediria aos gracejadores que lessem isto; e, nas occasiões em que a lingua lhes descabe na bocca, engrossada pela opilação da dicacidade, a refreassem com os dentes.

* * * * *

Era em 1851.

Apresso me a declarar que, no tocante a nomes e localidades, desfigurei tudo, salvo generalidades vagas e o logar em que principia a narrativa. O que menos monta na exactidão da historia é o que ahi se illide. Nomear pessoas e terras seria denunciar inutilmente um crime. O criminoso está diante do Juiz inappellavel, e seus filhos innocentes respeitam-lhe a memoria.

Era, pois, em 1851, aos 15 de junho, nas Caldas de Vizella.

Entre os salgueiros que enverdecem uma ilhêta acima da ponte, que hoje chamam «velha», á hora de sesta, emboscaram-se sete pessoas que preferiam aquelle frescor acre do arvoredo, golpeado por meandros do rio, ao cheiro sulphuroso e até sulphydrico da «Lameira».

O grupo compunha-se de pessoas de diversas procedencias:

D. Helena da Penha, chamada na sua terra a Morgada velha. Cincoenta e tantos annos, viuva do capitão-mór de Athey, educada em convento, murmurando da educação e dos costumes do claustro, d'onde sahira com incertos conhecimentos do cathecismo, e alguma instrucção em bisca sueca, e no Feliz independente do padre Theodoro d'Almeida. Excellente senhora que se conteve viuva desde os trinta e dois annos viçosos e temperados sanguinamente para não dar padrasto á filha unica.

D. Irene, a Morgada nova, vinte e sete annos, galante, mais menina que a sua idade, cheia de denguices, amimada, acriançando-se em tregeitos e dizeres, descompondo os artificios pueris com uns ares de desgarro e desinvoltura—em bom sentido, aliás.

Decerto já observou, leitor, em senhoras de provincia um desembaraço bronco, um remecherem-se e bacharellarem despropositadamente,—desaires resultantes de lhes haverem dito que o pejo e o acanhamento são indicios de educação aldeã. Estes despêjos improvisados sem delicadeza nem natural, quando topam diversa sociedade em praias ou caldas, dão-lhes ares do que não são, e abrem margem a suspeitas indecorosas; por que ellas, com taes artes, conseguem desornar-se dos commedimentos do pudor.

D. Irene era assim. Depois veremos o que ella era mais compridamente.

Direi agora dos cinco sugeitos do grupo.

O abbade de Santa Eulalia, passante da meia idade, pagão em litteratura, mestre de latim no seu concelho de Cabeceiras. Citava Virgilio apropositadamente. Quando alguem se dizia regalado com a frescura do salgueiral, declamava um trecho das Églogas em que havia sálices. Ao sentar-se na corcova do tronco retorcido de um amieiro, exclamava sempre, sibilando as delicias do meio-grosso: sub tegmine. Tinha rheumatismo e contava muitos cazos milagrosos d'aquellas aguas, e outros cazos de amores que alli passaram, quando elle acompanhava sua mãe, no tempo em que as senhoras de Cabeceiras de Basto por la faziam (dizia elle) o seu S. Miguel d'amor. Em cavaco de homens, gretava-lhe a indole, e declarava-se o personagem ou protogonista dos cazos attribuidos a terceira pessoa em prezença das morgadas. Honestava com citações de Ovidio (Ars amandi-passim) a lubricidade dos peccados da sua juventude: e dizia com uncção de velhaco: Delicta juventutis meoe, suspirando. Ás vezes, encontrando senhoras sertanejas de Basto, acotovelava o companheiro de passeio, e murmurava: «Aqui vem uma das taes»—Uma das taes vinha a ser uma das suas amadas, de 1825, a sylphide que elle havia ensinado a dançar o minuete e a gavota com outras prendas, e não dava agora, no pizar coixo e na gordura fôfa, o minimo vislumbre de ter sido sylphidica e bastante leveira para o gingar picado da gavota. «Está como eu» dizia o abbade.

……………………….. Mudado como eu, como ella, Que a vejo sem conhecêl-a!…

Cantava Garrett de uma das suas estrellas cadentes. O abbade, ao menos, conhecia-as, embora enrocadas em tecido adiposo, e remoçava-as na sua imaginação saudosa, alindando-as com o colorido escarlate da paixão. Bom e discreto conversador, se a materia obrigava á seriedade: philosopho ecletico, alegre, rijo de estomago, cabralista por amor da ordem, e herege, por que negava que o Espirito-Santo concorresse ao Concilio Tridentino. Em sciencias ecclesiasticas, ignorantissimo por livre vontade e voto deliberado. Eis o abbade de Santa Eulalia.

Alvaro de Abreu, da estirpe dos Abreus de Regalados, filho segundo da caza e Honra de S. Gens, em Refojos de Basto, bacharel em direito, vinte e nove annos, compacto de carnes, barbaçudo, cara plebea, esbatida nas proeminencias malares, testa descantoada e pilosa até aos arcos das sobrancelhas. Annel de ouro com armas: em campo vermelho cinco azas de ouro sanguineas nas cortaduras postas em sautor; timbre, uma aza identica. As mesmas armas na cigarreira de prata, e nos botões dos punhos, e na amethysta dos berloques antigos, pendentes em châtelaine do coz das calças. Tinha cavallo, e lacaio fardado de azul com guarnições escarlates, botas de picaria com prateleira e espora amarella encorreada de branco. Era intelligente como a maioria dos bachareis formados, e talvez mais. Em Coimbra, dado que não versejasse, era da roda do Couto Monteiro, do Luiz de Bessa Correia, do João de Lemos, do brazileiro Gonçalves Dias, do Lima poeta e de Evaristo Basto. Recitava sentimentalmente ás morgadas os soláos dos irmãos Serpas; e as parodias do Bessa e Couto Monteiro.

      Cabula minha pachorrenta e gorda
      Quem d'entre as folhas te espremeu dos livros!

Ou então, o cazo da castellan que desafogava saudades

…………………… tangendo no mandolim, e a chorar dizia assim: «ó fado que foste fado, ó fado que já não és!

Cito de memoria, pouco fiel n'estas coisas conspicuas.

Da convivencia d'aquelles rapazes ficou lhe um verniz epigrammatico. Flagellava os padres do seu sitio com chalaças, era mais fino nos remoques ao cirurgião, e fizera mudar de terra o boticario, com quem se inimisára inexoravelmente desde que elle, por causa d'umas eleições municipaes, solemnisadas a arrocho, o doestou, no Periodico dos Pobres, de atheu e carbonario. Ainda havia carbonarios e atheus n'aquelle tempo. Hoje ha mais fé… e petroleo.

Alvaro d'Abreu tinha a saude athletica e vermelha que eu desejo aos meus leitores. Viera a Caldas porque ali namorara, no anno anterior, a morgada nova, sua prima em quarto gráo; visitou-a em Athey nas festas de Natal e Paschoa, e combinou então encontrarem-se em Vizella.

Outro:

João Pacheco, do Arco de Baulhe, morgado de Valle-Escuro. Um gentil rapaz de vinte e quatro annos, educado em Lisboa, onde tinha nascido, quando seu pae commandava uma brigada realista. Era orfão desde 1832. Aos vinte annos emancipara-se, e retirou se para a provincia, onde possuia fartos bens e tias solteiras que muito lhe queriam, e o indemnisaram dos mimos que não gosara na infancia.

Asseveravam-lhe as tias que elle descendia de Duarte Pacheco Pereira—o Achilles lusitano

—Que morreu no hospital…—atalhava o moço.

—A infamia a quem toca…—emendava a sr.^a D. Izabel Pacheco, freira benedictina bastante instruida.

E, abrindo os Lusiadas, apontada dois versos em que Luiz de Camões vingava Duarte Pacheco da injuriosa ingratidão de D. Manuel:

Isto fazem os reis cuja vontade
Manda mais que a justiça e que a verdade

João Pacheco sorria-se.

A freira azedava com o desdem do sobrinho, e repetia-lhe a ode pyndarica de Antonio Diniz, consagrada a seu avô. Era, porém, quasi ridiculo o enthusiasmo antigo da filha de S. Bento, declamando com teatral gesticulação a farfalhuda estrophe:

                  Cem paráos torveados
      D'onde por bocas mil brota Mavorte
                  Entre horrorosos brados,
      Em fogo, em fumo, em sangue envolta a morte,
      Zargunchos, frechas, que em choveiros vôam;
      Elephantas bramindo a terra atrôam;
      Neptuno da batalha ao som horrendo
                  No fundo mar se espanta;

Nos eixos muda a terra está tremendo,
Mas nada o grande coração quebranta.

—O que eu collijo d'esses versos—dizia o soda transportada senhora—é que o bravo Duarte Pacheco espatifou muito indio, fez espadanar muito sangue de povos que defendiam o seu lar, e nunca vieram aqui attacar o nosso. Ora, a providencia castigou o Achilles lusitano, baixando o a tragar na barra dos desvalidos a miseria do rei de Calecut, arrojado por elle do throno á indigencia.

Com poucos mais traços, está bosquejado o perfil ideal de João Pacheco.
Completal-o-hão os successos occorrentes n'esta historia.

A sexta pessoa do grupo, que povoava o cinceiral do Vizella, era um dos Saint-Preux portuenses, o modelo acabado da belleza varonil, já passante dos trinta e cinco annos, cançado, mas fingindo que amava sempre porque era deveras querido. Não sei se elle, á imitação do marselhez Luiz Gauffredi, pactuara com o diabo dar-lhe a alma em troca das mulheres que soprasse; o que sei é que as damas que elle quiz, sopradas ou não, amaram-no.[1] Parte d'essas estava nas Caldas a abrir o appetite enfarado ou a diluir os empaches da nutrição rija. As meninas anemicas e chloroticas dos trovistas da cidade, em 1851, pertenciam ainda á embryologia; assim como os bardos, que actualmente lhes receitam boi e vinho do Porto, fermentavam no ventre da Idea… com i grande.

José de Almeida, o Don Juan do Porto, bem que reconhecesse os amavios corporeos da morgada de Athey, chegara á idade em que o espirito, ganhando entojo ás carnalidades, entra a namorar-se da belleza moral. Almeida zombava dos tregeitos, do palavriado, das relamborias denguices de Irene. Quem o attrahia áquelle grupo era João Pacheco; e quem attrahia João Pacheco era o abbade de Santa Eulalia com o engôdo das anecdotas, com a sympathia das bôas tolices, e a prodigiosa arte de exorcisar a tentação do suicidio das pessoas que penam em Vizella quinze dias de junho. José de Almeida me dizia a mim…

A mim?… a um homem muito diverso que ha vinte e quatro annos tinha o meu nome, e esse tal era o ultimo do grupo.

* * * * *

Dizia João Pacheco a José de Almeida uma vez:

—Este Abreu, se não tivesse cartas de bacharel, seria um homem regular; porém, como não advoga, nem faz leis, nem as interpreta, quer á força mostrar que a formatura lhe deu alguma distincção. Faz espirito. Traz sempre comsigo as pilherias requentadas que forrageou em Coimbra, e não perde lanço de as desfechar contra o abbade ou contra mim, se D. Irene lh'as pode victoriar com o sorriso parvoeirão. Eu já lhe disse que os seus gracejos incommodavam o abbade e me não lisongeavam a mim. Se não se emendar, um dia jogo-lhe um remoque desagradavel, e amordaço-o na presença da menina.

Isto dissera João Pacheco n'aquelle dia em que o grupo, á hora da sesta, se embrenhou no salgueiral.

N'esta occasião, Alvaro d'Abreu refinara no sestro da mordacidade. O coração tem crises de embriaguez e sobre-excitações sanguineas que refluem ás bossas craneanas. A morgada naturalmente deixara-se apertar suavemente nas pôlpas do antebraço e correspondera á pressão voluptuosa. O bacharel, a meu ver, esponjava as suas chalaças da abundancia do coração. Eu tambem tive dóze na sua liberalidade. Estava eu a intalhar um M na casca de um amieiro. Era inicial de uma das cinco Marias que eu amava.

—Esse M, disse elle galhofando, pode significar uma celebrada exclamação vociferada por Cambronne em Waterloo.

Prove a exclamação historica—interveio José de Almeida, vingando-me com aquelle riso percuciente d'elle.

Todos perceberam, salvante as damas, que não conheciam os aromas da historia de França.

—Que horas são?—perguntou enfastiada a morgada Irene.

—Cinco—responderam todos, abrindo os relogios, excepto João Pacheco.

—Singular caso!—disse elle—tenho este relogio ha doze annos: é a primeira vez que pára, tendo corda. Se o ar sulphurico de Vizella tiver sobre o dono a influencia que tem sobre o relogio, serei obrigado a parar; e parar, diz não sei quem, é morrer.

—Mas é que tu precizas de corda…—remoqueou Alvaro.

—De corda precizo; de carrasco é que não, contando comtigo—redarguiu Pacheco.

—Apanhe aquelle pião á unha, sr. doutor!—exclamou o abbade de Santa
Eulalia.

As duas morgadas riram-se com bastante intelligencia; e o José de Almeida, golphando tres novêllos de fumo da pipa do cachimbo turco, regougou:

—Bem boa! bem boa! essa vou escrevel-a…

E tirou a carteira.

Alvaro de Abreu enfiou. As damas fitavam-no de modo que o esporeavam a desforrar-se. O rizo vingativo do abbade torturava o; e, por fim, o silencio de todos era um commum vexame: sentia-se mortificada a gente.

D. Helena da Penha ergueu-se do seu frouxel de junco e relva, dizendo:

—Vamos dar um passeio na ponte.

* * * * *

Todos se debruçaram no parapeito da ponte, menos Alvaro de Abreu, que se retirou á entrada, pretextando o que quer que fosse.

—O doutor ficou entupido!—disse o abbade—Foi uma embarrilação bem merecida… Onde se dão ahi se apanham. Cuidava elle que todos nós eramos espolinhadoiro do seu espirito!… Sempre com o dedo no gatilho da graçola! Uma graça atura-se; mas estar sempre com o dente mordaz arreganhado, isso é proprio dos botequins, em camaradagem de estudantes e banaboias.

—Tem razão, sr. abbade—obtemperou D. Helena—mas, a fallar o que é verdade, o sr. Pacheco respondeu muito forte.

—Acceito a reprehensão de v. ex.^a—volveu urbanamente o cavalheiro—mas peço licença para não me arrepender. Quem me considera talhado para a corda, não se offenda se eu o reputo digno de exercitar o instrumento da forca.

D. Irene exclamou:

—Credo!

Era a expressão espontanea do horror á palavra forca.

E, espivitando a lingua, continuou saracoteando se:

—Não gosto d'essas coisas… Estou nervosa… O Alvaro ia pallido e tremulo… Vejam lá se fazem algum desaguizado por causa d'uma graça… Vamos embora, mamã! Estou muito nervosa… veja…

E offerecia o pulso ao abbade.

—Tem febre?—perguntou a mãe alvoraçada ao abbade.

—Está agitadinha,—confirmou o abbade, envesgando para nós os olhos zarolhos de velhacaria—Quer palpar, sr. João Pacheco?

—Não percebo de pulso—disse o convidado.

—Com licença…—interveio José de Almeida—Eu vejo—E, tateando o pulso de Irene com o relogio aberto, disse:—Cem pulsações por minuto. Isto não é febre… é amor, minha senhora…

—Boa!—disse a menina retirando a mão—o sr. Almeida tem lembranças! O amor sente-se no coração, não é no pulso.

—O pulso é o denunciante do coração—retrucou o portuense.—O amor é o sangue mais apressado.

—Faltava-me ouvir essa!—notou D. Helena jubilosa por ver que a menina já sorria.

—Em boa sciencia é aquillo que diz o sr. Almeida—confirmou o abbade—Effectivamente, o amor accelera a circulação do sangue.

—Aqui tem o voto de pessoa experiente—disse Almeida.

—Está feito…—assentiu o abbade dando á cabeça trez ligeiras demonstrações de consentimento.

—É muito prendado não tem duvida…—volveu ironicamente a viuva do capitão-mór de Athey.—Ora, tenham juizo!

—Que remedio, senão tel-o, minha senhora!—redarguiu o clerigo pagão—satyro velho não topa dryadas nas florestas.

—Quê?!—perguntou a senhora que desconhecia os escandalos mythologicos.

—Queria eu dizer, excellentissima senhora! que o juizo em mim, velho de cincoenta annos, não se recommenda, lastima-se.

—Como estás, menina?—perguntou D. Irene á filha.

—Sobresaltada… Tenho medo de alguma desordem… O primo Alvaro tem tão máo genio…

E fez varias visagens.

—Agradeço a sua compaixão, minha senhora—occorreu João Pacheco;—mas peço-lhe que empregue a sua sensibilidade mais opportunamente.

* * * * *

Ao impardecer da tarde, José de Almeida foi procurado na pharmacia da Lameira, onde então florescia um boticario que parecia immortal pelas sandices originaes—e ninguem já hoje se lembra d'elle! Este paiz não é para ninguem; desenganêmo-nos.

Era João Pacheco a chamal-o de parte para lhe dizer:

—Acabo de ser procurado por dois sugeitos de Braga, que se dizem padrinhos do desafio a que sou reptado por parte do Abreu. Respondi-lhes que eu enviaria pessoa com quem se entendessem.

—Estou ás tuas ordens—condescendeu promptamente Almeida, que era padrinho vitalicio de todos os duellos d'aquelle tempo na sua briosa cidade.—Que arma escolhes? sabre? florete? pistola?…

—Mais devagar—atalhou o morgado de Val-Escuro—O Abreu não joga arma nenhuma. O meu mestre de tiro foi o marquez de Niza; de sabre foi o Chico Bellas, e de florete o Petit. Sei pouco; mas sei mais que Alvaro. Se lhe acceito o duello, vou seguro da minha superioridade, e, pouco mais ou menos, não sahirei do campo com a consciencia mais tranquilla que um homicida. Vai tu, se me queres obsequiar, dizer isto aos padrinhos.

José de Almeida voltou á noite.

—O Abreu teima em bater se—disse elle—Quer duello de morte, pistolas carregadas e desfechadas á ponta de lenço.

—Vai declarar aos padrinhos que acceito—deliberou serenamente João
Pacheco.

—Estás doido?!

—Faze o que te digo.

—Escolhe outra testemunha, em quanto eu vou avisar o regedor—returquiu sorrindo José de Almeida—eu cuidei que eras um rapaz valente e prudente. Não te batias, ha pouco, por que as tuas vantagens repugnavam ao cavalheirismo; e acceitas o combate, dada a igualdade que pode dar-se entre dois assassinos estupidamente ferozes!

Pacheco ria-se: e Almeida discorria rasoavelmente.

—Faze o que te digo—repetiu o morgado—Pois tu, creança, persuades-te que o Abreu deseja bater-se em taes condições? Os covardes tem fantasias d'essas em quanto o desafio procede nas incruentas conferencias dos parlamentarios. Assevera tu ao Alvaro que eu acceitei o combate á ponta de lenço; e espera o desfêcho.

—Mas suppõe que elle sustenta a palavra!…

—Sustentarei a minha;—e, batendo-lhe no hombro, accrescentou:—Vai socegado. O homem tem mais amor á vida que á honra. Ouviste? Se elle propozer o duello á ponta… de lingua, declara loque não acceito.

Os bracharenses, ouvindo a resposta do Almeida, ficaram embaçados e atonitos. O mais cordato, com o louvavel intento de economisar sangue illustre, ponderou que era uma desgraça matarem-se dois cavalheiros da primeira nobreza do Minho, e aventou o seguinte:

—Se João Pacheco lhe desse uma satisfação na presença das pessoas que ouviram a injuria…

—Satisfação… como?—inquiriu o Almeido—Dizer-lhe que não o reputa carrasco? A emenda é peor que o soneto. Não proponho isso. Deixal-os matarem-se! Morrem gloriosamente. Tanto faz morrer de calculos na bexiga como de uma bala no coração. João Pacheco já teve em Lisboa e Madrid quatro duellos de morte, e está vivo.

—Parece-me isso extraordinario!—observou maravilhado o braguez, suppondo que no duello de morte era obrigatorio morrer.

—Não ha nada extraordinario. O estylo estatuido no Codigo da Honra é que as pistolas, uma sevada de polvora e pelouro, e a outra simplesmente de polvora, sejam sorteadas. Pacheco teve sempre a sorte por si. Mas o nosso caso é outro. Morrem ambos irremediavelmente.

—E nós? que hade ser de nós?—atalhou sobresaltado o filho da outr'ora circumspecta Braga.

—Nós?—respondeu Almeida—praticaremos a rara virtude de nos não matarmos. Os senhores fogem para a sua terra e eu para a minha. É o que legisla o Codigo da Honra. As testemunhas não podendo depôr ácerca da honra dos afilhados mortos, safam-se a unhas de cavallo. O restante da tragedia pertence ao coveiro.

Um dos padrinhos fez menção de lavar as mãos e disse:

—Eu cá da mim…

—É Pilatos n'este negocio?—perguntou o portuense.

—E dois—respondeu tambem o outro, recordando e recitando tres passagens pezadas de um livro do conselheiro Rodrigues de Bastos a respeito de desafios.

—Em que ficamos?—rematou José de Almeida—deixe lá o sermão.

—Vamos fallar com o Abreu: e ou elle desiste de se bater, ou nós declinamos a missão.

—Pois não se demorem, que João Pacheco já está escrevendo as suas disposições testamentarias.

* * * * *

Com quanto a bravura não fosse o predicado mais proeminente do amador de Irene, deu-se n'elle um phenomeno de heroismo que pertence aos milagres do amor. A nova, que os pallidos agentes lhe levaram, apenas o desfalleceu por instantes. A imagem da prima foi-lhe como a visão de Pallas aos guerreiros da Grecia de Homero, acoroçoando-lhe alentos sobre naturaes á sua indole.

—Pois morreremos!—exclamou elle com ar de Leonidas no desfiladeiro das
Thermopylas.

—Resolves então morrer?—perguntou um dos padrinhos.

—Que remedio?!

—Arranja outras testemunhas…—intimou o segundo padrinho—Nós temos deliberado abrir mão d'esta asneira. Se te batesses por um motivo serio, verbi gratia, se o Pacheco te deshonrasse uma irmã ou coisa semelhante, ou te chamasse algum nome injurioso, ladrão, verbi gratia, então estariamos ao teu lado, e até seriamos os primeiros a defender-te com as armas na mão; ora agora matar-se um homem a troco de uma chalaça que não vale dois caracoes, isso é a bestialidade maior que pode praticar um homem, se não está doido furioso! Lá que tu, verbi gratia

—Não dês mais razões—atalhou Alvaro de Abreu—Procurarei outros padrinhos…

Altercaram até ás dez e meia da noite. Um dos dois bracharenses, que argumentava valentemente com o recheio do verbi gratia, repetiu as sans doutrinas do conselheiro Rodrigues de Bastos, peorando-as na linguagem. O certo foi que a pertinacia do sensato amigo vingou abalar o animo renitente do Abreu, a ponto de lhe incutir por um lado da alma o raciocinio e pelo outro lado o medo.

Entretanto, no quartel do morgado de Val-Escuro occorriam cazos notaveis. José de Almeida, encontrando ás onze horas da noite o abbade de Santa Eulalia, que vinha de fazer a partida de voltarete á morgada de Athey, disse-lhe ao ouvido:

—Os homens matam-se amanhã ao romper da aurora. O sol quando nascer… verá dois cadaveres.

O abbade não duvidou. A catadura do portuense tinha os assombros da catastrophe.

—Jesus, santo nome!—exclamou o padre—Eu vou avisar o regedor, se me dá licença; e quer dê quer não, o meu dever é evitar tal desgraça.

—Não evita nada, abbade. O regedor só pode prendêl-os no conflicto de transgredirem a lei. Quem sabe o logar onde elles vão matar-se!?

O abbade apertou o passo, retrocedendo para caza de D. Helena. Entrou offegante e roxo. Assoprava as palavras e embebia no lenço vermelho as bagas de suor que lhe bolhavam na testa. Referiu o que soubera de José de Almeida. Irene, que estava ceando bifes de cebolada, foi logo atacada de hysterismo, e a mãe arrotava nas ancias spasmodicas do flato. Outro padre que ali estava, capellão e administrador da casa de Athey, pegou a declamar contra a relaxação do paiz, desde 33 para cá.

—Sr.^a morgada!—alvitrou o abbade atalhando a objurgatoria politica do outro—aqui perto de nós mora o sr. João Pacheco. Se v. ex.^a quer, vamos lá. É impossivel que este cavalheiro resista ás reflexões de uma senhora que elle tanto venera!…

—É já—assentiu D. Helena cobrindo-se com o chale, e recommendando ao capellão que fizesse companhia á menina.

Quando entraram, havia conferencia entre os padrinhos de Alvaro e José de Almeida. João Pacheco, segundo o estylo, não era prezente; mas, contra o estylo, em taes andanças, estava a dormir. Foi chamado para receber a visita da sr.^a morgada. Espertou estrouvinhado, e foi á salêta onde a senhora dialogava anciadamente com Almeida e com os outros, á cerca do desafio. O portuense havia já annunciado que as condições mortiferas do duello estavam modificadas. Abreu, coagido pelos padrinhos, prescindira de morrer, e propunha o combate nos termos communs.

Afim de applacar as agonias flatulentas da viuva, Pacheco asseverou-lhe que não haveria ferimento de perigo. Quanto a recuzar-se ao desafio, consoante a dama rogava, allegou que a sua dignidade lh'o prohibia. Redarguiu a consternada senhora que ia pedir a seu primo Alvaro que desistisse do duello.

—Se elle desistir—observou Pacheco—tem v. ex.^a conseguido o seu bom intento; mas colloca o seu parente em má posição perante os cavalheiros em quem confiou a desafronta da sua imaginaria deshonra. Vá descançada, minha senhora. O seu futuro genro não soffrerá mutilação de especie alguma. O nosso combate será um simulacro de esgrima, uma especie de gymnastica de sala com espadas sem ponta nem gume.

* * * * *

Ao repontar da manhã, atravessamos o Vizella por umas alpondras sobre as quaes se encurvam hoje os arcos da Ponta nova. Trinavam ainda os rouxinoes nas margens frondosas do rio, e ao longe assobiavam melros e grasnavam as pêgas nos pinheiraes. A corrente murmurosa trapejava nas franças dos amieiros debruçados á flôr da agua. D'ahi ladeamos o banho do Mourisco, á volta do qual estavam umas mulheres aldeans espulgando-se nos seios com um despejo digno da innocencia da Arcadia. Os homens respectivos escodeavam as callosidades calcáneas ou attarracavam tachas nos tamancos. Depois subimos uma charneca declivosa por onde hoje se alarga e complana a estrada de Penafiel, e entramos em uma encosta de tojeiras e sargaçaes. Carregamos á esquerda, fraldejando o outeiro por sobre o bravío, e emboscamo-nos por boiças de carvalheiras até encontrarmos uma clareira chan e menos accidentada.

—É aqui—disse Almeida aos padrinhos de Alvaro.

Os combatentes despiram as quinzenas e os colletes.

Os pulsos de Alvaro negrejavam cabelludos e quadrados, de uns que o povo diz que tem só uma cana, como signal de rijeza inquebrantavel: os dedos eram pennugentos e trigueiros, com as unhas sujas. As mãos de João Pacheco eram magras, translucidas e depauperadas do bom sangue que tinge a epiderme. O que me deu a mim alento e esperança na victoria de Pacheco, foi o sereno e risonho aspeito do moço, e a confiança na arte que neutralisa os impetos da força.

Rompeu o combate á voz de João de Almeida. Alvaro de Abreu—cazo singular!—fechou os olhos, e floreou a espada em sarilho tal que o adversario lhe cedeu terreno, aparando-lhe uns botes, e esquivando o embate dos outros. Eu seguia anciado aquelle vertiginoso redemoinho do aço que lampejava, e o tinído asperrimo das laminas. João Pacheco bradou:

—Páre la!

Alvaro estacou, provavelmente cuidando que o adversario estava ferido.

—Este homem—disse o outro ás testemunhas—fêcha os olhos, não se defende, e eu involuntariamente posso matal-o!

—Se me permitte uma reflexão,—interpoz-se Almeida dirigindo se a Alvaro de Abreu—o sr. está enganado com o seu systema de esgrimir ás cegas. Como hade ver a espada do seu contendor?

—Não sei jogar espada—respondeu elle—Faço o que sei e posso.

—Vejo que pode: mas o que sabe é perigoso—contestou Almeida—V. S.^a era ja cadaver, se o quizesse o sr. Pacheco. Bata como quizer, mas veja o que faz: abra os olhos.

—Parece-me acertado—obtemperou um braguez com assentimento do outro.

Recuaram ao ponto designado no terreno. Rompeu Alvaro no mesmo estylo de pancada de cego, mas com os olhos coruscantes e esbugalhados. João Pacheco fez-lhe um golpe dos primorosos da arte, o coup de manchette, no antebraço, sobre os tendões que inserem no pulso, com dexteridade e limpeza dignas das artes bem fazejas. Estava desarmado o possante Abreu. O discipulo do Chico Bellas honrára o mestre.[2]

* * * * *

João Pacheco almoçou com José de Almeida para, em seguida, se recolher á sua casa do Arco. Percebia-se-lhe um aborrecimento penoso do successo. Confessou que tinha vergonha de ter ferido um homem que desconhecia o jogo das armas e fechava covardemente os olhos. Retirava-se para evitar o espectaculo em que havia de exhibir se logo que a triste façanha se divulgasse.

Acompanhamol-o até Guimarães. Aqui nos disse elle:

—Não vos admireis, se um dia vos constar que fui assassinado á traição. O rancor do Abreu hade respirar seja por onde fôr. Na familia antepassada deste homem ha crimes que dariam materia para um romance sanguinario. Os proprios parentes dizem que o pae de Alvaro matára o irmão para lhe succeder no vinculo, e matára um cunhado para administrar e desfalcar a caza da irmã. Era capitão-mór e amordaçava as suspeitas. Este filho herdou-lhe a indole; mas, aquecido ao sol de outra civilisação e mais cultivado que o pai, supura-lhe a peçonha na lingua. Não o temo a elle; mas devo acautelar-me dos facinorosos que acoita em sua casa, como se prevalecessem ao novo systema as antigas Honras dos paços senhoriaes.

Quando voltamos de Guimarães, Alvaro de Abreu passeava na estrada, de braço ao peito, com as primas e com o abbade de St.^a Eulalia.

—Iamos agora mesmo visital-o, sr. Abreu—disse José de Almeida—Ainda bem que o encontramos excellentemente disposto.

—Estou bom—respondeu seccamente.

—Fêl-a bonita o sr. Pacheco!…—invectivou D. Helena.

—Ainda hade topar quem lhe abata as basofias…—accrescentou a filha, chibatando com o guarda sol um festão de madre-sylva.

—Minhas senhoras—contrariou solemnemente José de Almeida—o sr. João
Pacheco procedeu com extremado cavalheirismo.

—Muito cavalheiro! pois não!—replicou D. Irene sarcasticamente com uns esgares lôrpas.

—Com toda a certeza, muito cavalheiro—insistiu o portuense.—Aqui está o sr. Alvaro de Abreu que me não desmente.

O invocado respondeu grunhindo:

Hum.

E Almeida proseguiu:

—Se V. Ex.^{as}, minhas senhoras, não negassem a honradez generosissima de João Pacheco, eu teria a conscienciosa obrigação de appellidar infame quem lh'a duvidasse. Assim, pedindo venia a V. Ex.^{as} para não dar pezo á sua opinião em materias tão alheias do seu juizo, sustento que é um biltre quem negar o cavalheirismo de João Pacheco na pendencia que teve esta manhã com o sr. Alvaro de Abreu.

E, fitando-o, esperava resposta, que não logrou.

—Acabou-se!—interveio o abbade—com aguas passadas não móem moinhos…

—Diz bem, sr. abbade—applaudiu a morgada velha.—Não se falle mais n'isso.

—O que eu sei—ajunctou Irene—é que, no anno passado, gosamos em Vizella dois mezes deliciosos; e este anno veio aquelle sr. Pacheco lá de Lisboa perturbar a nossa alegria com as suas prendas de jogador de espada.

José de Almeida sorriu-se com o mais caracteristico gesto de mofa, abaixou a cabeça sem se descobrir, e retirou-se sacudindo a calça com o chicote de baleia.

Montado no cavallo de que apeara, quando avistou o grupo, disse-me rubro de colera:

—Aquella mulher fez-me acreditar que é possivel dar-se um pontapé na parte posterior do merinaque de uma senhora.

* * * * *

Quando, por fins de junho, sahimos de Vizella, mexericava-se que um rapaz do Porto, oriundo de familia ingleza, e celebrado por vinte e sete fraques que estadeava com os respectivos coletes, fôra visto, á claridade da lua cheia, cochixar com Irene, elle no quinchôso e ella no muro do quintal.

Em fins de julho, José de Almeida, no encalço d'uma liteira portadora de certo objecto amado, voltou a Vizella, e observou uns aleijões psycologicos na enfermidade chronica, chamada o sexo pelas senhoras de Basto.

A saber:

Irene, admittida aos saráos e passeios das illustres familias da Torre da Marca, Machados Pindellas, Guedes da Costa, Alentem, Infias e Paço de Sousa, ouvira motejar de Alvaro, á conta do desafio, por causa das grutescas arremettidas de esgrima pelo systema obsoleto da cabra cega. Alguns fidalgos, ás vezes, no meio das salas, sem se resguardarem da morgadinha, fechavam os olhos e terçavam as bengalas com attitudes farcistas. As gargalhadas atroavam, e Irene disfarçava o despeito, perguntando ás visinhas que brinquedo era aquelle. Afinal teve uma sincera amiga que lhe explicou o libretto d'aquellas pantomimas, mettendo a rizo o Abreu.

Coincidiu então a chegada do sujeito dos vinte e sete fraques a Vizella, galhardeando em prendas de sala, e savoir vivre com mulheres, mui distinctamente. De feito, Jacques Smith, educado em Londres, enfarinhado nos ademanes francezes, enfronhado em vaidades de fidalgo que tinha os ossos do seu patriarcha saxonio na Palestina, elegante e quasi intelligente, formava de tudo isto, reunido aos vinte e sete fraques e respectivos coletes, uma personalidade capaz de sensibilisar damas no uso de caldas e amor.

A frescura montezinha da filha do capitão-mór de Athey, a garridice um tanto canhestra, os seus saltos de ovelha espantadiça, e o fluido do olhar que ella derramava remirando-o de esconso, escandeceram Smith. Era atrevido como todos os sujeitos de cerebêllo grande, onde demora a bossa da amatividade. A lua cheia de junho e julho viu coisas que a poesia costuma idear nas varandas das Julietas, e que a prosa espreita em qualquer horta de couve gallega por entre festões de abobora-menina.

O bacharel Abreu não viu tanto como a casta lua; mas farejou. O rival tinha o prestigio que esmaga com a superioridade. O coração do homem trahido abysma-se a chorar na consciencia que diz: «Eu valho menos que o meu rival». Enfureceu-se, e vozeou rusticidades á prima, que lh'as escutou como quem as recebe impassivelmente com a condição de prejurar. Não se desculpou nem carpiu. Aborrecia-o, porque era irrisorio desde o duello, e porque estava perdida d'amor, fulminada por Jacques Smith, bom typo da perfeição viril, tirante as escrofulas cicatrizadas no pescoço.

Alvaro de Abreu foi para a sua aldeia. Jacques voltou em principios de agosto, com José de Almeida, para a praia da Foz.

Perguntando-lhe Almeida se a morgadinha de Athey passára á historia, respondeu:

—Pois então!

—Era uma rapariga fresca…—tornou o outro.

—Sim, fresca e indigesta como a melancia.

* * * * *

Em uma gazeta do Porto, de 15 de novembro do mesmo anno de 1851, lia-se esta correspondencia datada no Arco:

_Esta villa soffreu a perda irreparavel de um cavalheiro consummado em toda a extensão da palavra e representante de uma familia, talvez a mais illustre das provincias do norte, pois entre os seus avoengos se conta o grande e immortal Duarte Pacheco Pereira, por antonomasia o «Achilles lusitano», e o «Leão dos mares».

Hontem de manhã sahira o sr. João Pacheco a visitar uma sua prima em Refojos de Basto, onde passou o dia até ás 4 horas da tarde. O cavallo em que montava era um pôtro não educado ainda, e comprado nas manadas hespanholas que vieram à feira de S. Miguel. Os seus amigos, posto que João Pacheco fosse optimo cavalleiro, muitas vezes lhe observaram que os caminhos precipitosos destas aldeias eram improprios para ensinar pôtros. Fiado, porém, na destreza do pulso e firmeza de joelhos, o temerario cavalleiro rompia por esses algares e barrocaes com um denôdo digno de melhor emprego. Realizaram-se funestissimamente as previsões dos seus amigos.

Ao luzco-fuzco entrou pelo portão da caza de Val-Escuro o pôtro sem o cavalleiro, com as redeas e bridões despedaçados. O mesmo foi levantar-se na caza um clamor a que todos os visinhos acudiram. João Pacheco era extremosamente amado por trez tias, respeitaveis senhoras, que não viam outra coisa n'este mundo. Amigos e creados, sahimos todos pelo caminho de Refojos; e a meia legua de distancia, em um barrocal fundo e lamacento (espectaculo doloroso!) encontramos o cadaver de João Pacheco, de bruços, com as mãos submersas no lamaçal, e sem gotta de sangue que denunciasse o orgão ferido. Como era já escuro, e o cadaver só podia levantar se depois do exame judiciario, ali ficamos alguns amigos até ao dia guardando os despojos de tão nobre moço, desastradamente morto na flor da vida! O cirurgião examinou-o, e apenas lhe encontrou o craneo amolgado, sem extravasação de liquidos, excepto dois fios de sangue que derivavam do nariz. Presume-se com bom fundamento que o cavallo o cuspira contra uma rocha angulosa que forma um dos vallados da barroca; por que tambem na palma da mão direita mostra contusões resultantes de se amparar contra as escarpas do penhasco. Não pode attribuir-se esta catastrophe a outra causa que não seja a queda. Se fosse homicidio, seriam outros os vestigios de ferimentos; alem de que, João Pacheco era bem-quisto, honestissimo, respeitador da honra das familias, não obstante haver sido creado e educado em Lisboa. Alem de rico, era um gentil moço; pois não consta que deitasse a perder alguma d'essas centenas de moças pobres que se consideram felizes quando os fidalgos as levam á vereda da deshonra.

Nós, os seus amigos, choral-o-hemos em quanto as suas virtudes lembrarem como exemplo a filhos e a cidadãos. Que descance na perpetua morada da virtude o tão chorado mancebo; e peça ao Altissimo resignação para as suas inconsolaveis tias_!…

Quando li compungido esta correspondencia lembraram-me as palavras de Pacheco, na ultima hora em que o vi: Não vos admireis, se um dia vos constar que fui assassinado á traição. Communiquei a minha desconfiança a José de Almeida.

—Palpita-me que foi assassinado pelo Abreu!—concordou o meu amigo, e accrescentou:—Escrevo hoje ao abbade de St.^a Eulalia, citando-lhe as palavras de João Pacheco, e pedindo os pormenores do desastre.

O abbade respondeu que eram infundadas as nossas desconfianças: por quanto, no dia 11, em que João Pacheco perecêra, estava Alvaro de Abreu na feira de S. Martinho em Penafiel com elle abbade e com as senhoras morgadas de Athey; e que por signal n'esse dia perdêra o Abreu cento e tantas moedas de ouro ao monte, á vista de dezenas de pessoas que nunca o tinham visto jogar…

E rematava a carta d'este theor:

Os namorados fizeram as pazes. A pequena veio das Caldas muito coada de côres e com grandes… olheiras.—(ia a escrever «orelhas») Nos primeiros dias, enfanicava-se a cada passo, e dava uns ais romanticos como as damas de Basto de 1825. Infandum… renovare dolorem. Depois, a mãe, que tambem é matreira de 1825, escreveu ao Abreu dizendo-lhe que sua filha era victima da ingratidão d'elle. Aquella «lua cheia» de Vizella, de que V. S.^a me fallava, não foi ouvida a tal respeito. Ora o Abreu quer me parecer que sabia pouco menos que a referida Tetis, e que o janota luso-britannico de que reza a chronica escandalosa das thermas romanas no corrente anno, 1890, da era de Cezar. Porém como o patrimonio d'elle é magro, e as fazendas de Athey são de encher (e de fechar) o olho, V. S.^a verá que, a final, a morgadinha, embora não tenha que desatar a cinta virginal, apanha marido, parente, fidalgo e bacharel. Se, depois, as costellas lh'o pagarão, isso não é da minha conta. Lá se avenham; mas melhor será que elle se resigne, e feche os olhos como no duello, por quanto saco com honra e proveito é raro, ou não o ha, se o anexim é tão verdadeiro, quanto eu sou de V. S.^a amigo e venerador, Abbade Silva.

* * * * *

No anno seguinte, a floresta de amieiros do Vizella já não deu sombra e frescura a nenhum dos seus hospedes do anno anterior.

A José de Almeida e a mim figurou-se-nos que as frondas do salgueiral afestoavam um tumulo. Doeu-nos pungentissima a saudade de João Pacheco. Nunca mais alli voltámos.

Estavam nas Caldas a morgada velha e o abbade de Santa Eulalia.

Irene e seu marido Alvaro de Abreu esperavam-se mais tarde.

Esperava-os D. Helena; mas o abbade secretamente nos disse que D. Irene nem o marido tornariam a Vizella em dias de sua vida. Segredou-nos que a morgadinha, ao oitavo dia de cazada, tentara fugir para a mãe…

—Oh!—exclamou Almeida—ao oitavo dia! que lua de mel!

—A meu ver—piscou o abbade entortando a bocca disformemente—esta lua de mel recebia a luz reflexa d'aquell'outra lua-cheia aqui das Caldas, tão sua conhecida, sr. Almeida…

—Maganão! o abbade é o calendario de todas as luas que alumiam ha trinta annos os amores nocturnos de Vizella…

—O que o sr. não sabe é que o marido lhe bate ás cegas…

—Sim? Agora vejo que o homem, no duello, obedecia ao costume.

—E, quando sahe, fecha-a n'um quarto de cantaria que lá chamam a «torre,» e até dos creados a zela!

—Que amor, e que conceito ella lhe merece!—disse Almeida com a seccura ironica do seu genio quando as situações demandavam piedade.

—Eu vi-a ha quinze dias na egreja de Refojos. Que mudança! Está escaveirada, sem atavios, o desalinho da desgraça… Fez-me compaixão! O marido estava á beira d'ella; não pude se quer dizer-lhe que fugisse.

—Mas a mãe… assim a deixa desprotegida?

—A mãe definha-se; e não sabe tudo o que ella soffre, porque a filha não se queixa…

—Não intendo essa resignação!—objectou Almeida.

—Intendo-a eu. Irene era descompassadamente estupida a respeito de certas coizas…

—A respeito de todas, pensava eu—emendou o portuense.

—Cuidou que o matrimonio era o concerto de certos aleijões com que fôra d'aqui de Vizella.

—Fez do marido algebrista, percebo.

—É isso; mas o bacharel tem lá os seus Provarás

—De cacête, eim?

—E a mulher tem medo que o marido peça contas á sogra dos desatinos da filha.

—As meninas que em taes condições se casam, não temem as mães, abbade.
Casou ella livremente?

—Com toda a liberdade, e contra a vontade da mãe. Tanto assim que a velha, prevendo que o Abreu seria máo esposo, entregou-lhe simplesmente o que era do pai da noiva: setenta mil cruzados em propriedades. A casa vale o trezdobro. Foi velhacaria muito louvavel: por que dizia ella:—se o marido a maltratar, ameaço-o com a privação do meu dote, que é privilegiado e izento da meação da caza—É o que ella está ensaiando: já annunciou a venda de duas quintas. Veremos como elle se porta…

—Por essas duas quintas fechará o genro os olhos ao passado e ao futuro. Elle bem sabia que Irene o despresou pelo Jacques Smith. Que alentado canalha salpicado de brazões? Não posso despersuadir-me que foi elle o assassino do infeliz Pacheco…

—Juro que não foi: já o defendi.

—Então, mandou-o matar.

—Isso é uma hypothese sem nenhum fundamento. No cadaver de João Pacheco não havia signal de ferro, nem de tiro, nem contusões de pancadas. Foi queda do cavallo, que era bravo. Não dê vulto a essa suspeita aleivosa.

* * * * *

Joeirando as minhas reminiscencias de coisas relativas a Irene, referidas pelo abbade em cartas a José de Almeida, apuro o seguinte, na correnteza dos annos de 1853 a 1855:

Sem impedimento dos dissabores conjugaes, Irene deu á luz o seu primeiro filho, e, mediante o praso restricto para o phenomeno da geração, provou a sua fecundidade com segundo rapaz robusto. D'onde se deprehende que elle a não espancava incessantemente.

Irene vivia mais desopprimida desde que o marido reatara com uma raparigaça barrozan a mancebia interrompida pelo cazamento. Elle pernoitava fóra noites seguidas, e não soffria em caza a menor inquietação com ciumes.

Durante o primeiro anno, raro dia passava que a não atanazasse com perguntas cruamente tôrpes ácerca de Jacques Smith. Depois, parecia esquecido ou reconciliado, se não era antes o receio de que a mulher lhe fugisse e a sogra alienasse as quintas.

No meado de 1855, a morgada velha falleceu nos braços da filha, recommendando-lhe que recorresse nas suas afflicções ao abbade de Santa Eulalia. Desde este dia, recrudesceram em Alvaro de Abreu os desprezos, as injurias e até a diffamação da mulher. Aos seus parentes, que o arguiam de devasso, respondia que lhe era mister aturdir uma deshonra com outras: e, pondo em miudos a phraze amphibologica, delatava a fragilidade ante-matrimonial de sua mulher e parenta.

Apertada pelos insultos face a face, Irene disse-lhe um dia:

—Se eu tivesse um irmão que pegasse n'uma espada, vossê não me offenderia assim…

—Se vossê tivesse um irmão que pegasse d'uma espada, e me ferisse com ella, iria para onde foi um homem que uma vez me feriu…

Irene não percebeu o sentido latente da replica; mas referiu ao abbade a passagem, digna de ponderação.

—Quem sabe—dizia elle comsigo—se José de Almeida acertou quanto á morte de João Pacheco…

Os criminosos asilados sob as telhas de Alvaro de Abreu favoreciam a suspeita: entre outros somenos na tuba da fama, avultavam o José Pequeno da Lixa, e José do Telhado, que o neto dos senhores de Regalados sentava á sua meza, quando Irene ficava no quarto. Entrou em averiguações o abbade, e soube que os dois salteadores, quando João Pacheco morreu, estavam na caza dos Abreus de Refojos, jogando a esquineta com os creados.

Como quer que fosse, o abbade entrou-se de mêdo bem intendido, quando Irene lhe pediu que a protegesse e resgatasse da escravidão em que vivia.

—Este homem, se eu me intrometto nos disturbios de sua caza, é capaz de mandar um dos seus scelerados apunhalar-me!—conjecturava elle racionalmente.

Não obstante, indagava com cautella o modo de libertar Irene pelo divorcio, ou pela fuga para mosteiro ou casa de familia honesta. As familias honestas recuzavam-se a receber a esposa diffamada pelo marido; as menos honestas esquivavam-se a desavenças com Alvaro de Abreu, respeitando mais os hospedes que o hospedeiro. Os donos das casas endinheiradas dormiam tranquillamente, em quanto o amigo do José do Telhado e José Pequeno lhes não retirasse a sua estima.

E, n'aquelle tempo, havia governadores civis, administradores de concelho, regedores, cabos de policia, etc. Esta corporação de funccionarios não prendia ladrões: fazia deputados.

* * * * *

Irene instava com urgentes rogos. Dizia desatinos ao abbade. Traçava planos vulgares; mas de escandalo estrondoso. Fugiria para o Porto onde estava um homem que ella amava: iria pedir-lhe o amparo do amante ou a vingança do cavalheiro. Tinha lido o Palmeirim de Inglaterra; mas não conhecia o Cavalleiro da triste figura. O abbade recommendava-lhe juizo e paciencia: e cuidava mais fervorosamente em salval-a do amante que do marido. Fallava-lhe dos filhos. A commoção era mediocre. As mães que desafogam as suas angustias, ajoelhando á beira de um berço, estão salvas. Irene carecia da virtude redemptora das esposas, que fazem os seus anginhos intercessores com a justiça divina. Era criminosa. O marido cuspia-lhe uma injuria, e ella abaixava o rosto indelevelmente manchado. Um dos esteios da honra quebrara-o a moça solteira em Vizella: restava-lhe outro—o da sinceridade com o noivo aborrecido: quebrou-o tambem. Se a sorte lhe deparasse marido tão amante quanto generoso, a regeneração fal-a-hia o esquecimento do erro, e o segundo baptismo da alma seria a uncção das lagrimas nas faces cariciosas dos filhos. Havia uma chaga a cicatrizar na consciencia de Irene: não lh'a leniram com o balsamo do amor ou da caridade: exulceraram-lh'a a ferroadas de inuteis vituperios. As mulheres assim, quando não se engolpham no tremedal, ou são feias como o peccado, ou predestinadas como santa Pelagia e santa Maria Egypsiaca.

O abbade de Santa Eulalia solicitou a protecção de um prelado, seu parente, a favor da desditosa Irene. Conseguiu-se a entrada da esposa fugitiva no convento de Santa Clara de Coimbra. O abbade avisou-a, guiando-a no passo da fuga. Irene deveria sahir para uma das suas quintas de Cerva, onde costumava ir no outomno, e fugir de lá com duas pessoas da confiança do abbade. Acceitou alegremente a proposta; porém, dias depois que se transferira á quinta d'onde devia fugir, com effeito fugiu: mas não eram confidentes do abbade as pessoas que lhe protegiam a retirada pela serra de Marão em direitura ao Porto.

A mulher de Alvaro de Abreu escondeu-se nos arrabaldes d'aquella cidade, no Bom-Successo, em uma casa-chalet, telhada e ladrilhada de asphalto negro á ingleza, com stores impenetraveis, e á volta um silencio sepulcral a ouvir—permitta se-me a expressão—os suspirosos murmurios que lá dentro se atabafavam nas alcatifas e nos cortinados.

Aquella casinha abarracada era o chalet de Jacques Smith, o homem dos vinte e sete fraques para quem a frescura da melancia era indigesta.

Não é natural que a esposa fugitiva fizesse por alli escala para o cubiculo de Santa Clara.

* * * * *

Avisado Alvaro de Abreu que sua mulher desapparecera da quinta de Cerva, deixando os filhos com recommendação ás amas que os entregassem ao pae, não se affligiu desesperadamente. Sabia que Irene suspirava pelo convento, e que o abbade, confidente d'ella, era o agente d'esse plano. Procurou o abbade na sua residencia, e perguntou-lhe, carranqueando, onde estava a doida.

—Não sei, sr. Abreu.

—Não mangue commigo, abbade… Em qual convento está Irene? O sr. tratou disso, foi a Braga, fallou ao deão, etc.

—Sem duvida; mas a sr.^a D. Irene, quando foi procurada para entrar no convento de Santa Clara de Coimbra, já tinha sahido da quinta.

—Não me conte lerias, abbade!—retorquiu sarcasticamente o bacharel—Eu estou a ler-lhe na alma. Irene vai requerer o divorcio, guiada pelos seus conselhos.

—Não é verdade, sr. Abreu—atalhou o abbade.

—Não me desminta. Que interesse tem o sr. pastor de almas em insinuar a desordem no seio de uma familia?

—Já disse a v. sr.^a…

—O sr. é tolo! Parece que não tem amôr á pelle… Repare no que lhe digo: se a justiça, a requerimento de Irene, me inquietar, quem paga as custas é o sr. abbade de Santa Eulalia. Fica avisado.

—Mas… sr. Abreu… juro-lhe pela sagrada hostia…

—Não me fio em hostias!… Padres! corja de marôtos! cuidam que estamos ainda nas trevas do absolutismo!… Fica avisado, entende-me?

E sahiu tinindo rijo com as esporas no pavimento e dando estalos com o chicote.

O abbade era uma congestão de pavor, com o espirito estrictamente necessario para cogitar em transferir-se a outra abbadia.

N'esses dias de sobresalto, escrevêra elle a José de Almeida, contando-lhe as suas colicas em linguagem piccaresca. Mais egoista que caritativo, dava ao diabo do inferno a tonta da Irene, e perguntava onde iria parar aquella extravagante.

Quanto a mim—aventava o solerte abbade—a mulher está ahi no Porto, sob a protecção da bandeira ingleza, em quanto eu cá estou debaixo do cacete portuguez do marido. Ella muitas vezes me disse que tinha ahi paladino. Procure-a v. s.^a; e, se tiver modo de lhe transmittir os meus cumprimentos pela bestialidade que fez, peça-lhe que não demande o marido, visto que as custas já eu fui citado para as pagar em moeda de costella. Entretanto, diligenceio escapulir-me d'aqui. Está vaga uma boa abbadia no Alto-Minho. Vou requerer a mudança, esperançado no valimento de v. s.^a. O deputado do circulo hade fazer-me guerra, porque eu laboro nas fileiras da Rainha e Carta, e votei contra elle; mas, repito, conto com v. s.^a e com o José Bernardo. Não me desconviria n'esta occasião um canonicato em Braga, e já m'o offereceram os srs. Cabraes em 1850: hoje torço a orelha… Ah! femeaço, femeaço! Quando a politica me agourava uma mitra, as mulheres far-me-hiam regeitar o chapeu de cardeal. Mulheres, peores que o diabo, diz o Ecclesiastes. Devia de estar velho quem disse isto… Finalmente, agora, em remate de cantiga, vem essa doida da Irene perturbar o meu repouso!… Quem me mandou a mim endireitar tuertos, se ella já estava retorcida!? etc.

José de Almeida, contando com a fatuidade de Jacques Smith, mostrou-lhe a carta do abbade, e perguntou-lhe se elle podia informal-o.

Smith riu á farta das graçolas do padre, encaracolou as guias do bigode, estirou trez vezes os braços com sacudida elegancia, assentou a gola do fraque decimo nono, fez meia volta sobre o tacões, enclavinhou os dedos alisando os vincos das luvas, e fallou d'esta arte:

—Eu te digo. É uma pobre rapariga. Deixei-a, como sabes. Escreveu-me sempre. Respondi-lhe de vez emquando. Quiz fugir á mãe. Pediu-me que a fosse esperar a Guimarães. Dissuadi-a de tal parvoice. Desesperou-se, quando soube que eu fôra para Pariz, e casou-se por despeito. Que estupidez! uma mulher com duzentos contos! Cheguei de Pariz, e encontrei uma carta de Irene, escripta na vespera do casamento. Era um adeus com raiva e lagrimas. Dizia que não lhe importavam as consequencias…—que se o marido a matasse, Deus me pediria contas. Compadeceu-me esta tolice! Passados dois annos, escreveu-me uma historia deploravel de dores intimas. É victima do amor que me teve. O marido mata-a lentamente, e atormenta-a com o meu nome. Respondi-lhe em nome supposto, com pezar, com dó, com saudade, queres que te diga? amando-a!… Caprichos do coração… Primeiramente, aconselhei-a a que se separasse do bruto; depois approvei o refugio do convento; por fim, quando ella me disse: «vou suicidar-me», fui buscal-a. Andei cavalheiramente?

—Com toda a certeza. A ter ella de se matar, fizeste bem. Salvaste-a da morte e das penas eternas que esperam os suicidas—applaudiu Almeida, casquinando frouxos de riso que eram uma satanica belleza na physionomia d'elle.

—Estás a gracejar?—volveu o outro com aprumo entre inglez e portuense.

—Pois tu fallas tão funebre que eu deva ouvir-te com as lagrimas nos olhos? Rio-me dos adverbios que eu e tu usamos n'estes cazos. Cavalheiramente! Fôste buscal-a cavalheiramente! E, se tivesses cazado com ella, na occasião em que a comparavas á melancia fresca e indigesta, com que adverbio celebrarias a tua acção?…

—Cazar!… por que não cazas tu?

—Isso é outra questão…

—É a mesma: por que não cazas tu com…

E recenceou meia duzia de nomes tão respeitaveis presentemente que só cada um de per si bastaria para desbotar o pudor das Porcias e Cornelias.

José de Almeida, em verdade, no terreno da morigeração, estava deslocado. Mudou sensatamente de rumo; e, voltando ao ponto, disse:

—Que queres que eu responda ao abbade?

—Dize-lhe que D. Irene está commigo; e que o diga ao marido, se isso convier á sua defeza. Quanto a demandas, que não se assuste o selvagem nem o abbade.

Fez uma pirueta congenial, acenou ao jockey, sentou-se de um pulo no coxim do mail-coach, e silvou a pita do pingalim na crina dos alasões, que sahiram corveteando.

—Ahi vai um perfeito feliz!—dizia a mocidade portuense verminada de invejas.

Seria um pouco mais feliz que um mendicante sadío, se não tivesse um aneurisma a arfar-lhe no coração. Compensações.

* * * * *

O abbade, recebendo a resposta do portuense, procurou Alvaro de Abreu, e disse-lhe:

—Lamento a desgraça de que não tenho a minima culpa. A sr.^a D. Irene está… onde a levou a fatalidade. Se V. S.^a me admitte um conselho, não se divulgue tal desgraça.

E, contando-lhe com melindrosos rodeios que D. Irene vivia com Jacques
Smith, offereceu-se para intervir no remedio d'este escandalo.

—Como?—interpellou Alvaro iradamente.

—Meditarei no modo de a encaminhar ao convento.

Abreu ringiu os dentes e rosnou:

—O senhor, se não fosse uma besta, seria um canalha que vem aqui avisar-me da infamia d'essa mulher!…

—Oh senhor!—exclamou o abbade conturbado do impeto do fidalgo—Pois eu venho participar-lhe…

—O que? que vem o sr. participar-me? que estou deshonrado? Ora ponha-se no meio da rua antes que o despeje pela janella! Quem perdeu, quem prostituiu essa devassa foram os seus conselhos…

O abbade limpava o suor, e gaguejava.

—Rua!—bradou Alvaro—e mude de terra, quando não… faço-o esfollar. Vossê teve quinhão nas devassidões da mãe: que lhe importa a devassidão da filha?

Era uma seva calumnia, propalada por Alvaro de Abreu, e acceite pela opinião publica. O abbade então chorou, ergueu a fronte com arrogancia, e bradou:

—O sr. infama as honradas cinzas de sua sogra! Eu não posso vingal-a, mas Deus nos vingará, a ella e a mim!

—Fora, hypocrita! rua!

O padre sahiu aturdido. Zuniam-lhe os ouvidos, e congestionava-se-lhe o sangue na cabeça.

E, desde esta hora,—dizia elle—nunca mais teve saude nem descanso. Apagou-se-lhe a clareza e serena satisfação da vida. Fechou a aula de latim. Insulou-se da convivencia dos amigos. Tinha cincoenta e seis annos. A philosophia socratica não bastava a robustecer-lh'os contra os abalos da religião de Jesus. Entrou-lhe no espirito a memoria severa do seu passado licencioso. Pezares, abafados pela duvida, exulceraram-se em remorsos. Era o assombro dos freguezes. O relampago da fé abrazara-o. Fez-se missionario, e, no pulpito, desentranhava a invencivel e penetrante eloquencia das lagrimas.

Acaso vi o nome d'esse padre na lista de missionarios que uma gazeta injuriava. Communiquei o espantoso achado a José de Almeida.

O meu amigo escreveu-lhe. Na volta do correio, a resposta dizia assim: O desgraçado, a quem escreveis, morreu. Subsiste um penitente a rogar-vos de mãos postas que, antes do inverno da vida, offereçais a Deus as vossas lagrimas em desconto das que fizeste chorar.

—Que celebreira!—disse Almeida.—Quem havia de esperar isto d'um padre tão patusco!

E mais nada.—Celebreira! Que desabrimento com umas ingentes dôres, dobradamente deploraveis, se são quimeras!

Eu, de mim, comprehendi aquella transformação, porque decifrara os segredos d'ella em minha alma. Aos vinte e um annos estudara eu theologia, com o proposito de ir missionar entre os vituperados da loucura da Cruz. Recahi, propellido pela zombaria do mundo; mas aprendi a não zombar.

* * * * *

Por aquelle tempo, um cavalheiro de Basto, o sr. Paulino Teixeira Botelho, murava um terreno lavradio que nos annos anteriores fazia parte da feira de S. Miguel, em Refojos. A politica de campanario introduzira a sua garra n'esta contenda de propriedade. O povo, acirrado pelos adversarios politicos do sr. Paulino Teixeira, ameaçara derribar o muro e invadir a propriedade a ferro e fogo. O proprietario, forte do seu direito, e bravo de seu natural, acceitou a luva, aguerrilhou creados e cazeiros, e avisou as authoridades que tomaria sobre si o desempenho dos deveres que incumbiam aos fiscaes da segurança publica.

Os amotinados eram, pela maior parte, jornaleiros, soldados com baixa, a ralé infima das aldeias, poucos lavradores e alguns cazeiros de cazas afidalgadas. Entre estes, sobrepujavam na investida e na bravura da excitação um Manoel Fialho, que havia sido lacaio de Alvaro de Abreu, e áquelle tempo era seu feitor em duas quintas nas margens do Tamega. Fôra elle quem arremettera primeiro ao muro, e aperrara um bacamarte ao peito de um creado da casa aggredida.

Rompeu a espingardaria, menos trovejada que o alarido da multidão. As balas zuniam na ramagem dos castanhaes. Milhares de pessoas, de envolta com o gado espavorido, despejavam a feira. O povo inerme açodava com o alarido os combatentes. Dos de fora, alguns cahiam feridos, outros baqueavam sob os muros derruidos.

O mais pimpão, Manoel Fialho, cahira atravessado por um pelouro do peito ás costas. Acudiram a levantal-o do chão lamacento alguns dos seus sequases.

—Quero confessar-me!—rouquejava elle.—Levem-me onde esteja um padre!… depressa que morro!

Olharam em redor, e viram um sacerdote que, de mãos postas, sem receio das balas que lhe sibilavam perto, pedia ao povo que se retirasse.

—Além está o sr. abbade de Santa Eulalia!—exclamou um dos amparadores do agonisante.

Outro correu a dar lhe parte de que estava alli um feitor do fidalgo de
Refojos mortalmente ferido que se queria confessar.

—Trazei-m'o depressa, eu o espero n'esta primeira casa…—disse o abbade.

O moribundo, nos braços de dois homens, entrou para um quarto onde o esperava o confessor. A confissão e a vida duraram-lhe dez minutos.

* * * * *

Alvaro de Abreu, quando, ao fim da tarde, lhe disseram que Manuel Fialho, antes de expirar, pedira um confessor, e morrera nos braços do abbade de Santa Eulalia, accusou nas alterações de côr e fixidez dos olhos alvoroço afflictivo.

Os dois filhinhos, conduzidos pela dispenseira, iam beijar a mão do pae para se deitarem. Alvaro quedou-se entre elles, prostrado em uma cadeira, abstrahido, emquanto as creanças lhe contavam a batalha da feira, imitando a troada dos tiros com a bocca, e a estrategia com umas manobras infantilmente graciosas. A dispenseira, cuidando que o pae se entretinha com os pequenos, retirou-se admirada. Era raro deter-se Alvaro cinco minutos com os filhos; e, quando elles se demoravam, afastava-os desabridamente.

N'este comenos, annunciou-se o abbade de Santa Eulalia.

Abreu levantou-se de golpe, fincou na cabeça os dedos engriphados, e resmoneou:

—É certo…

O creado, que dera o annuncio, esperava a resposta.

—Que entre!… e leva estas creanças…—disse Alvaro.

O creado foi á sala de espera, e fez signal ao abbade que entrasse pela porta da direita.

—Deixe ir commigo os meninos—disse o abbade, tomando-lh'os cada um em sua mão.

As creanças, pondo no rosto caricioso do velho os seus grandes olhos, iam alegremente, saltando sobre um pé, e floreando as suas espingardas de cana fabricadas expressamente para darem aos creados um simulacro do tiroteio d'aquelle dia.

—Com licença. Louvado seja nosso Senhor Jesus Christo—saudou o abbade á entrada da sala introduzindo as creanças.

—Entre!—disse o fidalgo.

O missionario, entrado á salla, fechou a porta, e disse:

—As creanças podem entrar por que são anjos, e não entendem as nossas palavras. Em nome d'ellas, tenho de pedir: e ellas pedirão commigo.

Alvaro de Abreu escutava-o em pé, immovel, hirto. O abbade mal o divisava na quasi escuridão da vasta quadra, assombrada de castanheiros seculares.

—Sr. Alvaro de Abreu,—proseguiu o abbade com a voz tremente—ouvi de confissão, em artigo de morte, Manuel Fialho, o homem que matou João Pacheco, com a pancada de um mangual na cabeça, e á traição, na Barroca das duas fontes, ao anoitecer do dia 11 de novembro de 1851. Este homem só comprehendeu e temeu a justiça divina quando se sentiu varado por uma bala. Eu venho rogar a V. S.^a que comprehenda e tema a justiça divina manifestada na morte violenta de seu creado Manuel Fialho, homicida do innocente João Pacheco. Não lhe direi que se tema da justiça humana, por que o unico homem que podia accusal-o é morto; e eu não o accusarei na terra; porém, se Deus chamar a minha alma a depôr no tribunal divino, direi que de mãos postas e na presença de seus filhinhos, lhe pedi que se curvasse pela contricção e pela penitencia aos pés de Jesus Christo misericordioso.

E ajoelhou aos pés de Alvaro com as creancinhas adiante de si.

—Levante-se, sr. abbade!—balbuciou o marido de Irene, erguendo-o nos braços—Eu sou um miseravel, sou indigno da sua estima… Perdoe-me as injustiças que lhe fiz…

—Não tenho que perdoar… Adeus, anjinhos—disse o padre beijando as creanças—Ide ver-me algumas vezes á residencia, que eu vos ensinarei a orar a Deus por vosso pae e… por vossa mãe.

—A mamã? onde está?—perguntou o menino mais velho que tinha quatro annos.

O abbade passou o canhão da batina pelos olhos, e sahiu.

A voz lamentosa do padre soou no dezerto, as lagrimas cahiram sobre o penhasco esteril.

Alvaro desdava as roscas da serpente do remorso sem grande esforço: era atheu. Bazofiára sempre de racionalista; mas da sua razão era excluido Deus. Acreditava, tal qual vez, nas vantagens sociaes da virtude, e nos perigos do crime; mas para alem da torrente negra da morte não acceitava se quer a discussão absurda.

Apalpava-o agora duramente a desgraça. Havia um homem que podia accusal-o de assassino covarde; tinha uma esposa adultera que passeava ao grande sol das praias e das praças o seu escandalo; rareavam á volta d'elle os cavalheiros considerados; acanalhavam-no os scelerados que se acolhiam ás suas quintas; as authoridades judiciarias, açuladas pela imprensa, aguilhoavam os regedores a assaltarem-lhe as cazas. Perderam-lhe o respeito, e até nos periodicos o amalgamavam com os hospedes, invocando os manes dos condes de Regalados.

Convulsionavam-no phrenesis, exasperos que ninguem mitigava com o amor ou com os linimentos da amisade. Os risos das creanças irritavam-lhe a mysantropia. Era-lhe impossivel a quietação, e baldado o paliativo das deleitações brutaes.

Deliberou viajar. Não podia vender quintas sem o consenso da mulher. Hypothecou-as com enormes uzuras. Embolçou dinheiro á farta para demoradas viagens, e sahiu, entregando os filhos a uma cunhada, esposa do irmão morgado.

Desde 1857 a 1861 triumphou a vida nas principaes cidades da Europa. Conheceu todos os salões e todos os antros. Viu a devassidão no espavento das pompas do Louvre, onde as duquezas apresilhavam diamantes nos bicos dos peitos, e remirou-se nos grandes espelhos dos bordeis em que as mulheres, nuas como as bacantes, se espreguiçavam sobre diwans, com os seios aljofrados de perolas, e os cabellos aromatisados de grinaldas de jasmim. Em Veneza, Milão, Pariz, Londres, Madrid, em todas as cidades capitaes comprava um daumont, dois cavallos, e uma mulher das mais cotadas: ás vezes, comprava duas mulheres e quatro cavallos. Chamavam-lhe conde, por que nos seus trens fizera pintar a corôa dos Abreus, condes do Pico de Regalados.

D. Irene viajava simultaneamente com Jacques Smith. Uma vez, no Prado, em Madrid, o phaetont de Smith perpassou pelo break de Alvaro que boleava. Refestelavam-se nos coxins duas francezas do café-concerto. Jacques acotovellou Irene, e disse-lhe risonho:

—Aos pares, hein? e tu a imaginal-o a semear calondros em Basto…

Irene chorava.

—Por que choras?

—Por meus filhos que não tem pae, nem mãe, e hão de ficar pobres.

Alvaro avistára a mulher, cravara-lhe os olhos indecisos, reconheceu-a, e não tenho a certeza se lá no intimo de sua pessoa lhe chamou descarada.

É natural que sim.

O honesto era elle.

* * * * *

Em 1862, um padre que administrava as quintas de Alvaro de Abreu não achou uzurario que lhe adiantasse mais dois contos de réis que o fidalgo pedia com urgencia. Um legitimista minhôto que visitara D. Miguel na Allemanha propalou que vira Alvaro de Abreu em Florença muito doente, descarnado, tossindo, com o peito retrahido, as gengives brancas e as orelhas seccas. Os uzurarios enfiaram de pavor. Se elle morresse, a viuva e os orphãos, alegando lesão enormissima e illegallidade dos contractos, levantar-se-hiam com os rendimentos hypothecados das propriedades. Alvaro esperava em Londres a lettra. O padre-mordomo enviou-lhe algum dinheiro, desculpando os capitalistas com o boato da sua infermidade.

Resolveu repatriar-se, a fim de restabelecer-se no Minho. A sua doença era o corollario da libertinagem: a cachexia. Os medicos francezes aconselharam-lhe as aguas mineraes de Cauterets nos Pyrineus. Mudou de rumo. Era-lhe grata a esperança de voltar á patria restabelecido e gordo para desmentir o legitimista. Bebeu as aguas sulphuricas de Cauterets, consummou o esphacelamento dos intestinos baixos, e morreu medicinalmente. Alem de um titular portuguez que lhe assistiu na morte, e enviou a Portugal a noticia, ninguem, por affecto ou caridade, lhe humedecêra os beiços na derradeira febre. Contou o titular a José de Almeida que o tal Abreu tinha um pasmo de olhos horrendo quando agonisava.

Veria o espectro de João Pacheco?

* * * * *

O abbade de Santa Eulalia rezava uma missa por alma de Alvaro de Abreu, quando D. Irene, trajada de luto rigoroso, entrou na casa de Refojos, onde esperava encontrar os filhos. Disse-lhe o mordomo que os meninos, por direcção do abbade, estavam a educar no collegio de Landim, oito leguas distante. Escreveu ao missionario, pedindo-lhe que lhe levasse a sua amisade e o seu perdão. O velho, que ella não vira nos ultimos nove annos, era tão acabado, tão decomposto que Irene chorava, comparando-o ao festivo e juvenil abbade que radiava alegria na casa de Athey.

—Afinal…—murmurou o padre.

—Aqui estou…—soluçou Irene.

—Quer vêr seus filhos?

—Sim…

—Vou mandal-os buscar. Cuidei d'elles, porque sua cunhada não podia soffrêl-os; e as creancinhas amavam-me… É preciso, minha senhora, salvar o que poder d'esta casa por amor d'estes meninos. Com ordem e economia, se Deus me der vida, tudo se fará.

Irene apressava o inventario, resgatava as vendas illicitas, annullava hypothecas, afanava-se em liquidar o que devia pertencer-lhe na meação do casal e dos rendimentos absorvidos na totalidade pelo marido.

Observara-lhe o abbade que um tamanho apuro de contas iria, sem ella querer, cercear o patrimonio dos filhos.

—Se V. Ex.^a—accrescentava elle—tenciona reduzir as suas despezas ao viver aldeão, sobra-lhe tanto do que percebe da sua metade que talvez possa deixar intactos os rendimentos dos orfãos.

—Tenciono ir viver no Porto…—explicou ella.

—Ah!—exclamou o abbade—com que então, minha senhora… ainda não?

Ainda não?… o quê?

—Nem o grito da consciencia? nem o grito do exemplo? Nem a presença de dois filhos? Bemdito seja Deus!

Este dialogo constrangido foi cortado por um servo que entregava a correspondencia.

—Não veio carta?—perguntou ella agitada.

—Não, minha senhora, veio sómente esta folha.

Era o Commercio do Porto. D. Irene atirou-o sobre uma jardineira com enfado, e encostou a face á palma da mão, carregando o sobr'olho.

O abbade chamára o menino mais novo, que tinha oito annos, e disse lhe:

—Vem cá, Manoel Philippe, lê-me aqui as noticias d'este jornal; quero que tua mãe veja que lês correctamente.

E deu-lhe o jornal aberto. A mãe parecia estranha ou aborrecida.

O menino procurou a secção de noticias, e leu:

OBITUARIO. Hontem, pelas sete horas da manhã, desappareceu do numero dos vivos um dos mais estimados e gentis cavalheiros d'esta cidade. Uma aneurisma no coração arrebentou fulminantemente o sr. Jacques Smith, que

Irene levantou-se arrebatada, bradando:

—Que é? que é?

E, pegando no jornal que tremia nas mãos do menino assustado, leu as primeiras linhas que ouvira lêr, premiu o coração asfixiado pela angustia, rolou nas orbitas os olhos torvos sob a palpebra convulsa, e cahiu sem alentos.

—Porque foi?!—perguntou afflicto o menino ao abbade—Ella morre?

—Não, Manoel Philippe. Isto não ha de ser nada. Tua mamã conhecia esta pessoa que morreu, e…. teve pena.

Depois, dobrou o Commercio do Porto, e metteu-o na algibeira da batina para que o filho de D. Irene d'Abreu nunca mais tornasse a lêr o nome de Jacques Smith.

* * * * *

Em 1871, Manuel Philippe de Abreu e seu irmão Jeronymo de Abreu e Lima, ambos terceiranistas da universidade, vieram ás Caldas de Vizella, com sua mãe, a sr.^a D. Irene. Esta illustre e respeitada fidalga de Athey não contava ainda cincoenta annos, e estava hemiplegica—metade do corpo paralytico. Era transportada em cadeira de rodas ao Banho da bomba forte. Uma vez quiz ir até á Ponte-velha, que não vira desde 1851. Defronte da ilhêta onde em 15 de junho d'aquelle anno Alvaro de Abreu e João Pacheco trocaram os fataes gracejos, mandou parar a cadeira. Quedou-se longo tempo absorvida na contemplação do salgueiral; depois, enxugou duas lagrimas. Que lagrimas, ó leitor! Os filhos perguntaram-lhe por que chorava; e ella, estrangulada pelos soluços, contorcia-se, pedindo-lhes que a tirassem d'ali, que sentia já o frio da morte.

Levaram-na apressadamente para o quartel em uma das casas situadas no local chamado o Medico. Ao nascer do sol do seguinte dia dobravam a finados sinos de S. João das Caldas. A fidalga de Athey expirara nos braços dos seus dois filhos.

Perguntei ao capellão d'esta senhora se ainda era vivo o abbade de Santa
Eulalia, muito affeiçoado á senhora fallecida.

—Não, sr. Esse santo morreu ha trez annos: a paixão da fidalga foi tamanha que cahiu na cama; e, quando se quiz erguer, estava leza. Os meninos ainda choram por elle.

CONCLUSÃO

Das sete pessoas que, em junho de 1851, sestiaram no cinseiral do
Vizella, vive sómente uma, que sou eu.

O conselheiro José de Almeida expirou, no inverno passado, na Casa da saude do medico Ferreira, do Porto.

Na derradeira vasca do longo paroxismo, circumvagou os olhos baços á volta de seu leito. Era irmão, era esposo e era pai. Não viu a irmã, nem a esposa, nem o filho. Finara-se no desamparo e desamor dos indigentes a quem a caridade dos hospitaes empresta um catre ainda quente de outro cadaver. A sua existência havia sido um continuado festim: o que houve formidavelmente serio na sua vida, foi a morte. Morrem assim os que não radicaram, em annos vigorosos, a santa amizade no coração da familia.

José de Almeida não podia ter uma desvellada amiga, porque, nos seus annos de gentilissima juventude, espesinhára as mulheres que o adoravam com aquella cegueira mysteriosa das paixões absurdas; e, já na sasão glacial da vida, esposara uma que o acalcanhou com o desprezo d'elle e de sua propria infamia, quando lhe viu a epiderme arrugada e o bigode branco.

A sociedade recebera-o e bajulara-o quando odios e invejas lhe denegriam o nome, aureolado de aventuras amorosas. Á beira do seu leito de infermidade esqualida, e do seu ataude sotterrado na vala commum, eram seis os restantes dos seus centenares de amigos.

A noite era de outubro. O nordeste assobiava nas gradarias dos tumulos, e ramalhava os cyprestes gotejantes do zimbro da tarde.

Nos camarotes tepidos do theatro lyrico, fallava-se do defunto; e algumas senhoras idosas, refluindo vinte annos na corrente da sua vida remançosa, olhavam para a cadeira onde então José de Almeida se assentava. E algumas d'essas, voltando o rosto, escondiam as lagrimas rebeldes, para não serem vistas dos maridos e das filhas.

E perdoaram-lhe.

S. Miguel de Seide, 26 de agosto de 1875.

II

O COMMENDADOR

É tão fatalmente séria a vida que o soffrêl-a, sem misturar a tragedia com a comedia, seria impossivel.

H. Heine, Reisebilder.

A D. Antonio da Costa

Em testemunho da regalada leitura que v. ex.^a me deu com o seu MINHO, lhe offereço uma das novellas de cá. O Minho tem o romanesco da arvore e o romance da familia. A paizagem suggeriu-lhe, meu caro poeta, as prozas floridas do ridente livro. O seu estylo tem a macia luz do luar das noites estivas, e o cadencioso murmurio das ribeiras onde o ceu estrellado se espêlha.

O Minho lucra muito, visto assim de passagem, na imperial de uma diligencia, lá muito no galarim do tejadilho, onde as moscas não se álem a ferretoar-nos a testa e a sevandijar nos os beiços convulsos de lyrismo.

Viu v. ex.^a perfeitamente o Minho por fóra: as verduras ondulando nas pradarias, os jôrros de agua espumando na espalda dos outeiros, os fragoêdos ás cavalleiras dos milharaes, a amendoeira a florejar ao lado do pinheiral bravio, as ruinas do paço senhorial com os seus tapetes de ortigas e guadalmecins de musgo ao pé da chaminé escarlate e verde do negreiro a golphar rôllos turbinosos de fumo indicativo de pannellas grandes e gallinhas gordas, lardeadas de chouriços. Simultaneamente, ouviu v. ex.^a o som da buzina pastoril resonando a sua longa toada nas gargantas da serra; viu os espantadiços rebanhos alcandorados nos espinhaços dos montes, e os rafeiros á ourela das estradas com os focinhos nas patas dianteiras, orelhas fitas e olhar arrogante. Reparou de certo na pachôrra estoica do boi sevado, que parece estar contemplando em si mesmo a metempsycose em futuro cidadão de Londres mediante o processo do bife. Tudo isto, que é a fórma objectiva do Minho romantico, viu v. ex.^a a fóra o mais que aformosea o seu livro, os encarecimentos, as lisonjas, as feitiçarias da arte com que v. ex.^a disputa primores á natureza.

Mas o que D. Antonio da Costa não teve tempo de ver e apalpar foi o miôlo, a medula, as entranhas romanticas do Minho; quero dizer—os costumes, o viver que por aqui palpita no povoado d'estes arvoredos onde assobia o melro e a philomella trilla.

Ah! meu amigo! Romances, tecidos de cazos candidos e innocentes, apenas os fazem por aqui os passaros em abril quando urdem e afôfam os seus ninhos. O restante dos animaes não oviparos vista-m'os v. ex.^a no Catarro ou no estabelecimento da famosa senhora Cecilia Fernandes, da Travessa de Santa Justa, que eu lh'os farei representar ao vivo no proprio coração do Minho—entre Fafião e S. João do Kalendario—as scenas contemporaneas da fina Baixa e peores.

A peste, que infeccionou os costumes d'estas aldeias, não sei decidir se veio das cidades para aqui, se foi d'aqui para lá. Sá de Miranda considerou isto tudo estragado quando viu

correr pardáos Por Cabeceiras de Basto.

Imagine v. ex.^a o que terá feito o esmeril do progresso a descodear e a brunir este gentio ha tres seculos! Não faz idea, meu amigo! Até a photographia, abarracada nas cabeças dos concelhos, tem feito collaborar o sol e o clorureto de prata na relaxação dos costumes. Os «conversados» permutam retratos, e beijam-se reciprocamente em papel-cartão, aguçando o instincto da natureza bruta. Verdade é que os pastores minhotos, ha trezentos annos, já traziam ao pescoço os retratos das pastoras pintados em madeira, como se deprehende d'estes versos de Diogo Bernardes, o rouxinol do Lima.

      Pendurei n'um salgueiro a minha lyra
      Ouvil-a ao som do vento é uma magua,
      Em logar de tanger geme e suspira.
      Marilia que pintada n'uma tabua
      Aqui no seio trago
, tambem chora;
      Seus olhos dão-me fogo, e os meus dão-lhe agua.

Não obstante, o fôgo, que acendrava a paixão nos peitos d'aquelles Bieitos e Melibeus das eclogas, era uma especie de lume sacro que velava a virgindade… dos retratos pintados em tabua. Por quanto, deve v. ex.^a lembrar-se que os pegureiros do Minho taes fornalhas faúlavam do peito que os visinhos iam lá prover-se de lume para cozinhar a ceia, como se collige das lastimas d'este pastor do canoro Bernardes:

      A viva chamma, aquelle intenso ardor
      Que brando sinto já pelo costume,
      De noite de si dá tal resplandor
      Que mil pastores vem a buscar lume.[3]

É verdadeiro e bonito. Os mestres da vernaculidade mandam que a gente leia isto, e mais os outros lyricos seiscentistas—caldeirada de favas classicas com as quaes o intendimento se opila e encrua; mas a lingua cresce.

Como quer que seja, entre os retratos em tabua quaes os pintava S. Lucas, e o retrato em photographia aperfeiçoado por Fox Talbot, mede a distancia que ethnologicamente sepára as Nizes e Filis de Diogo Bernardes d'estas Joannas e Thomazias que hão de florejar nas Novellas do Minho.

Ouço dizer que a via-ferrea, sulcando o seio virginal d'esta provincia, afugentou com o estridor das suas azas os pardaes, a mala-posta e a Probidade.

É possivel. Os caixeiros do Porto, sadíos e sanguineos, com as suas luvas amarellas, e todo o verniz, que lhes coube em sorte, nos pés, entraram Minho dentro, e derramaram a dissolvente chalaça nas aldeias. Por outro lado, a raça turdetana de Braga fechou pelo norte a barreira á innocencia espavorida. A cidade santa de nossos pais e dos conegos, a esposa de Fr. Bartholomeu dos Martyres, Braga despeitorou-se, desnalgou-se, sofraldou as saias e mostrou a liga sobre o joelho desde que um jornal da terra lhe chamou segunda Pariz. Eu não reparo na desproporção do confronto, quando alli me vejo no Café-Faria, a sentir-me arquejar em uma das arterias do grande corpo da civilisação chamada Europa, como lindamente diz o sr. Vaz de Freitas na sua Guia do Viajante em Braga, por seis vintens. Tudo me leva á persuasão de que me acho na segunda Pariz, quando a Guia me assevera com exactidão, ainda não contraditada pela inveja, que Braga encerra nos seus muros sete procuradores de cauzas, e que ahi (pag. 28) os barbeiros superabundam. Fazia-se ainda pelos modos uma terceira Pariz com a superfluidade dos barbeiros!

A cathegoria modesta, em que o jornalista afidalgou a sua terra, justifica-se principalmente nas estalagens. Ahi, é ahi onde o viajante se sente saturado de Pariz, a ponto de, cuidando que accorda alvoroçado pelas campainhas electricas do Grande Hotel no Boulevard des Capucines, acha-se em Braga, no hotel-Aveirense, largo dos Penêdos. Avantajam se ainda ás hospedarias parisienses, no ponto de vista zoologico, os hoteis da princeza do Minho. Os forasteiros dados a pesquizas de anatomia comparada, podem, mediante uma gratificação rasoavel, passar as suas noites em vigilias uteis estudando insectos sem queixos e sem azas, de membros articulados, consoante a classificação de Cuvier. Ali se lhes offerecem exemplares em barda da pulga braguez (Pulex bracharensis). Convencer-se-ha que as seis pernas d'este parazita são deseguaes, o que assim se faz mister para o salto. Não duvidará que elle tem o bico alongado com duas cerdas, e guarnecido na baze de dois palpos escamosos. Se reparar bem nas pulgas maiores, dissipará suspeitas de que tem azas que realmente não tem as do Hotel Leão d'ouro nem as do Hotel-transmontano. Encontram-se n'estes dois estabelecimentos larvas das mesmas, cylindricas e sem pernas. O olho armado póde observal-as a mudarem-se em nymphas, que não são exactamente umas de quem cantava Garret:

      As nymphas invoquei do Tejo ameno
      Que em mim creassem novo engenho ardente,
      Etc.

Cam. C. IV.

Nem as outras de quem dizia o épico:

      Caem as nymphas, lançam das secretas
      Entranhas ardentissimos suspiros…

Lus. Cant. IX.

Verdade é que o accessorio das secretas, ínclusas no verso de Camões,
deixa suppor que elle quizesse fallar das nymphas dos hoteis de Braga.
Que estude o caso o sr. visconde de Juromenha, e não o desampare a
Academia Real das Sciencias.

Nos hoteis de Braga, finalmente, dão-se as mãos o espavento das modernas industrias, as refinações da decoração, a obra prima de marcenaria e vidraria,—um luxo levantino, como em recamaras de Nababos—e sobre tudo a hygiene expansiva de saude a dar cambalhotas na brancura virginal dos lençoes; e á mistura com tudo isto resalta não sei que de archeologico n'aquelles quartos! A gente, quando vae deitar-se, imagina que n'aquella mesma cama dormiu na noite passada S. Pedro de Rates ou Gonçalo Mendes da Maya.

Por fora das estalagens ainda ha proeminentissimas feições de Pariz em Braga. O Jardim, por exemplo. V. ex.^a já esteve no jardim? Impressionaram-no com certeza uns rumores, «ora suffocados, ora estrepitosos» que ali se escutam nos domingos de tarde? Tambem a mim. Não pôde soletrar em sons articulados aquelle confuso borburinho? Nem eu. Quem explica o phenomeno, trivial nos Champs-Elysées e no parc de Monceau, é o já citado sr. Vaz de Freitas na sua Guia do viajante em Braga, por seis vintens, pag. 41. A coisa é isto: O chilrear das creanças, o divanear das poetizas, o queixume somnolento dos poetas, a conversação pezada e metalica dos proprietarios, todos estes murmurios vagos ou alegres, suffocados ou estrepitosos (hîc) enfundem uma vida nova e excepcional ao passeio, que o tornam attrahente ou deleitoso. Theophilo Gauthier, o Benvenuto Celline da proza franceza, não rendilharia com tão subtis filigrannas de phrase a explicação dos ruidos babylonicos do Luxemburg. D'onde se colhe que Braga tem poetizas que exhibem delirantemente os seus devaneios no jardim, ao mesmo tempo que os poetas se queixam somnolentos. Pariz, tal qual. Note v. ex.^a o contraste no sexo d'estas pessoas que bebem na Castalia: ellas divaneam, apostrophando a gritos o arrebol da tarde e a brisa que cicia e se perfuma nas cilindras; elles, cabeceando marasmados pelo opio do narguillé, queixam-se somnolentos, por que não os deixam dormir as poetisas. São homens gastos, estafados, roués. Sahiram do café-Faria intoxicados do absyntho de Espronceda, de Nerval, de Larra e de Mussét. Entraram no jardim com o cerebro anesthesiado, querem dormir; e ellas, á imitação do femeaço da Thracia, projectam escalavrar aquelles Orpheus dorminhôcos, Marcyas que ellas, filhas de Apollo, querem esfolar. Segundo Pariz.

Ahi vê v. ex.^a a rasão dos «estrepitos» explicada na Guia. Pareciam outra coisa peor.

Eu, afora isto, conheço outras analogias entre Braga e Pariz, que estudei, sem subsidio—intendamo-nos. Ha tres mezes senti-me ali adoecer da nevropatia, que é molestia endemica dos grandes centros de população, onde os deleites requintam, e o fluido nervoso se desperdiça—o que succede em Londres, em Braga, em New-York, em Pariz, quando a gente desconhece as leis da relatividade dos prazeres, como diz o professor escossez Bain. Confiando nos anti hystericos, fui comprar á botica do sr. Pipa, na rua do Souto, um frasco de capsulas de ether-sulphurico, e preparava-me para pagal-as com 300 rs. (um fr. e 50 cent.)—prêço corrente no Porto—quando o praticante da pharmacia me mandou intender o preço da droga com mais cinco tostões, e mostrou-me que o signal arithmetico de um franco estava emendado em dois. Ainda assim, observei-lhe que dois francos cambiados em moeda portugueza eram quatrocentos réis. O interlocutor refutou triumphantemente a minha objecção, allegando que em Braga dois francos eram oito tostões.

Esta physionomia da botica bracharense dá feições á terra, não da 2.^a, mas da 1.^a Pariz. A 2.^a é a outra que os geographos ignaros nos inculcam 1.^a. Corrija-se.

Dou de barato que as referidas poetisas do jardim consumam capsulas de sulphur copíosamente nas suas etherisações, e que os poetas somnolentos se despertem com ellas, não querendo usar economicamente das cocegas; deve-se talvez ás condições especiaes das musas bracharenses o preço superlativo dos anti-spasmodicos: assim mesmo, Pariz 2.^a não pode arbitrariamente dobrar o valor da moeda de Pariz 1.^a, nos generos que importa, ao mesmo passo que, no valor legal da moeda franceza, exporta para França os seus chapeus, os seus cavaquinhos e as suas frigideiras.

Aqui tem, pois, D. Antonio da Costa, o foco do progresso que esparge raios de luz para as aldeias septentrionaes do Minho, em quanto o Porto alastra no sul os caixeiros contaminadores, que levam comsigo a corrupção dos romances e as tentações do cabello unctuoso com a risca ao meio da cabeça, lasciva como o dorso d'um gato d'Angora.

É n'este meio que eu me abalanço a esgaratujar novéllas. Ha treze annos que apéguei por esse Minho, em cata do balsamo dos pinheiraes e das fragrancias das almas innocentes. Diziam-me que a rusticidade era o derradeiro baluarte da pureza, e que os lavradores do Minho, nivellados com os saloios da Extremadura, eram os candidos pastores da Arcadia comparados aos malandrins de Gomorrha. Um dos meus estudos, no intuito de me habilitar para o confronto do saloio com o minhoto—da raça sarracena com a gallega—É a historinha que lhe dedico meu nobre amigo.

De Coimbra, aos 15 de outubro de 1875.

O COMMENDADOR

PRIMEIRA PARTE

Seis de janeiro de 1832. Manhã chuvosa e frigidissima. O zimbro rufava nas frestas envidraçadas da egreja de Santa Maria de Abbade. Ringiam as carvalheiras varejadas pelo norte. Ao arraiar do dia, a devota dos Tres Reis Magos, a tia Bernabé, tecedeira,—viuva do operario Bernabé, que lhe deixára o nome e uma cabana com sua horta—ergueu-se, foi á residencia parochial pedir a chave da egreja; e, sobraçando a bassoura de giesta para barrer o chão, e a almotolia para prover as lampadas, entrou no adro. Ao passar em frente da porta principal, ajoelhou, persignou-se e orou. N'este momento, ouviu o vagir convulso e rispido de criança. Voltou o rosto para o lado d'onde lhe parecia sahir aquelle chôro. Não viu alguem. Espantou se.

—Jesus! santo nome de Jesus! Isto é coisa ruim!—exclamou ella, pousando no degráo da porta a vazilha e a bassoura.

E o chorar de criança cessou.

A tia Bernabé debruçou-se na parede baixa que murava o adro, e viu entre as grossas raizes de uma oliveira secular um embrulho de baêta azul donde sahiu um vagido. Saltou a parede, agachou-se á raiz da arvore, e pegou da criança, aconchegando-a do calor do peito e bafejando-a no rosto azulado do frio. A baêta estava ensopada da chuva que escorria da ramaria da oliveira. Tirou-lh'a apressadamente, involveu o menino no avental, e agasalhou-o entre o seio e o farto jaqué de picotilho. Depois, desandou para a residencia, e mandou dizer ao abbade que topára no adro uma creança, que parecia estar a despedir.

—Pois que quer ella então?—perguntou o abbade, expondo uma parte do nariz e metade do olho esquerdo á frialdade do ar—Que tenho eu com isso? Que a leve a Barcellos. Aqui não ha roda de engeitados.

A criada do abbade deu o recado.

—Torne lá, sr.^a Joanna—replicou a tia Bernabé friccionando os pés álgidos do recem-nascido com a barra da sua saia de saragôça—e diga ao sr. padre que este menino, se morrer sem baptismo, é um anjinho do ceo que se perde. O sr. abbade hade saber isto melhor que eu…

A creada repetiu a replica, e ajunctou:

—A tia Bernabé diz bem.—Salte d'ahi p'ra fóra, seu calaceiro!—E deu lhe uma sonora palmada na nádega esquerda.—Um rapaz de vinte e sete annos está ahi enteiriçado como um velho! Upa!

—Está quieta, Joanna, olha que me fazes vento!

E ella puxou-lhe pelo pé direito, que excedia o volume de tres pés; e elle, com o outro, despedido á tôa, sacou-lhe do baixo ventre um som tympanico de ôdre cheio.

—T'arrenego!—bradou ella, recuando com as mãos postas na parte molestada.—Vossê atira? Tem má mânha!

—Cheguei-te?—volveu elle risonho, embiocando-se na felpuda coberta, e encostando-se á almofada de chita que estofava o espaldar do leito.

—Que brincadeira!—queixou-se a moçoila arrufada—podia-me matar com o couce, se me dá aqui no coração!…

E punha a mão no estomago.

—Isso não é nada, rapariga!… Olha se amúas!

—Nada, não é!… não que a barriga é minha…

—Pois tu com este frio de mil diabos, vens-me mexer na roupa, e de mais a mais puxaste-me pelo pé do joanete que tem a frieira aberta!…

—Então dissesse-o…—tornou ella com semblante ageitado á reconciliação—Salte d'ahi!… vá baptisar o engeitado; que, se elle morre sem baptismo, verá que ingranzeu se levanta na freguezia. Bem basta o que já dizem…

—Calça-me as meias de lã; mas tem cuidado que não se despegue o emplasto da frieira.

E, em quanto a môça com geitosa meiguice lhe encanudava nas pernas cerdosas as grossas meias alisando-lh'as ao correr da tibia, resmungava elle:

—Quem seria a grande bebeda que engeitou a cria?

—Isso hade ser de fóra da freguezia…

—Tambem me parece… Cá não me consta… E vem-m'a cá pôr no adro!… ah bom estadulho!…

—Fica uma coisa pela outra. As de cá tambem as levam ás outras freguezias, quando acontece—disse Joanna.

E nomeou varias ovelhas fecundas e tinhosas, em quanto o pastor lavava a cara no alguidar vermelho que a raparigaça lhe chegava, com a toalha no hombro.

Ao pegar da toalha, sacudindo a cara e assoprando ruidosamente com a sensação do frio, o abbade apertou a pôlpa da espadua á moça com ternura felina. Este carinho confirmou as pazes. Joanna arregaçou os beiços ridentissimos até ás orelhas, e mostrou-lhe nos dentes de brilhante esmalte que o seu amor infinito resistira á prova do couce.

A tia Bernabé affligida, porque o menino soluçando-se esverdeava, chamou outra vez Joanna com encarecidos rogos.

—O sr. abbade está já vestido—disse a môça sahindo á janella.—Passe vossê por casa do tio Izidro da Fonte, e diga-lhe que vá p'ra egreja, e deite agua na pia.

* * * * *

O padre sahiu de casa carrancudo e bocejando. De cada vez que escancarava as mandibulas, traçava no envazamento da boca tres cruzes com o dedo pollegar.

A tecedeira, que o esperava no adro, abeirou-se d'elle mostrando-lhe a cara roixa da criança. O padre olhou-a de esconso, e perguntou:

—É macho ou fêmea?

—É um menino—respondeu a viuva.

—Accenda um d'aquelles côtos—disse o abbade ao Isidro, apontando para os sordidos castiçaes de chumbo d'um altar—A pia tem agua?

—Vem ahi o meu rapaz com o cantaro.

—Vossês são os padrinhos? O rapaz hade chamar-se Izidro, ou então põe-se-lhe o nome do santo de hoje—observou o abbade, boquejando e benzendo a bocca, no limiar da porta travessa onde a mulher esperava, segundo o ritual.

—Hoje é dia dos Santos Reis—disse ella.

—É verdade—confirmou o padre, e scismou se Reis seria nome ou apellido. Não se lembrava de ter estudado esta especie.

—Os santos Reis Magos eram tres—proseguiu a tia Bernabé.

—Bem sei—acudiu o padre.

—Um chamava-se S. Belchior, outro S. Gaspar, outro S. Balthazar—explanou a devota dos magos orientaes:—o menino póde chamar-se Belchior, se o sr. abbade quizer.

—Eu quero tudo que vossês quizerem. Vamos a isto, que está um frio de rachar—E, recolhendo-se á sacristia, esfregava as mãos, bufando-as com os gazes do estomago ainda perfumados do vinho da ceia.

—Meu rico anginho, irá elle morrer na agua fria?—lamentava a boa creatura bafejando-lhe as duas faces.

O abbade enfiou a sobrepeliz, revestiu a estola, mandou chegar o engeitado ao baptisterio, fez um resumo do latim ceremonial, e disse:

—Vão-se á vida.

—Vou-me d'aqui ás Lagôas a vêr se a Thereza do Eido me dá o peito a este anginho, até vêr se arranjo que algum lavrador me faça esmola de um bocado de leite de cabra—disse a tia Bernabé.

—Então vossê não o leva á roda?—perguntou o abbade esbugalhando o espanto nos olhos.

—Ágora levo eu á roda o meu engeitadinho! Já que Deus me não deu filhos…

—E tem muito que lhe dar vossê?

—Em quanto eu poder fiar uma meada e tecer uma teia, dou-lhe eu o meu caldo e o meu pão; depois, quando eu não poder, dá-m'o elle. Casa e dois palmos de horta, graças a Deus, tenho eu, e não na devo a ninguem… O peor é que o pequeno, se lhe não acudo, morre de fome… Ai! meu Deus! ha cadellas mais amoraveis que algumas mães…

—Ande lá… metta-se em trabalhos…—concluiu o abbade, safando-se com os cabeções do capote apanhados na testa.

* * * * *

A criança vingou, espigou e sahiu robusta e menos mal encarada. Entre os sete e onze annos apprendia a ler, e nas horas vagas enchia as canellas do fiado ou dobava meadas.

Belchior Bernabé, (assignava-se assim com satisfação da mãe adoptiva) deparado a algum romancista imaginoso, daria trela ao esvoaçar alto da phantasia, quanto á sua origem. A mãe poderia ser uma fidalga de Famalicão ou de Santo Thyrso. O pai, com toda a verosimilhança, poderia phantasiar-se algum dos generaes do exercito realista ou liberal que, por aquelle tempo, manobraram n'essas paragens. Com estes dois elementos, a fidalga e o general, qualquer mediano talento, aproveitando o accessorio das batalhas, compunha um romance de maus costumes, pelo que respeitaria ao engeitado, e um livro historico, pelo que interessaria á historia da restauração da Carta Constitucional e do systema representativo. Feito isto, o pequeno lucrava muito, sabendo nós que sua mãe era uma devassa recatada que, por noite desabrida de janeiro, o mandou expor entre as raizes de uma arvore, em que os sevados fossavam luras com o focinho, e o não devoraram n'aquella madrugada porque estavam ainda cerrados nas suas possilgas. Com tanto que esta mãe desnaturada engeitasse o filho, em respeito ao brazão e ao credito, a creança ser-nos-hia mais sympathica, as linhas de fina casta extremal-o hiam entre as caras boçaes da plebe, a auréola de nascimento mysterioso banhal-o-hia então da luz de um melancolico romance. Assim é; mas eu não sei quem fossem os pais de Belchior Bernabé. O rapaz, segundo ouvi dizer aos que o viram criança e adulto, era feio, espêsso de cara, achamboado de pernas. Ninguem lhe farejava o pai nem a mãe pela semelhança do rosto: parecia-se com todas as mulheres e com todos os homens d'aquellas freguezias, onde as caras são achatadas sem ressalto de protuberancia, ou angulosas como as pêras de sete cotovellos.

É maravilhoso este capricho physiologico! A terra da Maya é um alfôbre de moças bonitas, com os seios altos e alvos como pombas no ninho; os quadris elasticos e boleados tem saliencias que vos levam captivo, e vos levarão doido se lhes virdes as lisas columnas em que a hera do verso de Camões lembra sempre…

Desejos que como hera se enrolavam.

E lembra sempre este verso e os outros convisinhos[4] por serem os Lusiadas um poema que se lê nas escholas, e se encontra no açafate de costura das educandas, que poderam subtrahir-se á morigeração pestilencial dos lazaristas.

Transpostos os limites da Maya, a primeira mulher que se vos depára na primeira freguezia do concelho de Famalicão, é feia e suja até ao asco, escanelada, escalavrada no peito, veste-se a frizar com a desgraça da sua má figura. E d'ahi até Braga, se vos apraz, podereis inhalar em todo seu perfume a pura flor da castidade. Se ha terra onde possam ermar e defecar-se de sensualismo santos tentadiços, é ali. Cada mulher é uma figa benta de que fogem os tres inimigos da alma, principalmente o ultimo.

* * * * *

Belchior, ahi por maio, mez das flores, da brotoeja e d'outras fatalidades especificas, começou a amar. Tinha desenove annos, carnadura rubra, hombros largos, assobiava como um melro, tangia cavaquinho, e amava a Maria Ruiva, filha do Silvestre Ruivo, o maior lavrador da freguezia. Este amor resguardava-se como um delicto, e por isso mesmo se escandecia e refinava até á quinta essencia da paixão que está paredes meias do desastre. O engeitado, se se affoitasse a alardear preferencias nas attenções de Maria Ruiva, seria espancado pelos rivaes ou por algum dos tres padres tios da cachopa. Eram tres clerigos afamados por façanhas de estudantes em Braga. Haviam militado nas guerrilhas da uzurpação; terçaram de novo as armas em 1846, na carnificina de Braga; recolheram a casa depois da morte de Mac-Donald, e diziam missas a oito vintens para não se descassarem no officio.

Uma noite, quando um dos padres recolhia, enxergou um vulto esbatido no escuro do murthal que formava o tapume da eira de sua casa, e lobrigou por entre a sebe o alvejar de uma saia a fugir. Cresceu sobre o vulto com o páo em programma de bordoada, e ouviu o estalido do pêrro de pistola. Susteve a pancada, e perguntou:

—Quem está ahi?

—Sou o Belchior Bernabé.

—Que fazes ahi?

—Nada, sr. padre João.

—Porque te escondestes?

—Não faço mal a ninguem, sr. padre João.

—Mas engatilhaste uma arma de fogo!—e acercou-se d'elle arremetendo.—Que queres tu d'esta casa, engeitado? Servem-te as minhas sobrinhas…?—e atirou lhe um epitheto, que definia a natureza da mãe incognita.

—Sr. padre João, olhe que, se me bate, eu, bem me custa, mas… atiro-lhe. Siga o seu caminho, e deixe estar quem está quêdo e manso.

Padre João Ruivo sobraçou o marmeleiro ferrado, e murmurou:

—Tomo-te á minha conta, bréjeiro!

E passou ávante.

Ao apontar do sol, esporeou a egua para Famalicão, demorou-se com a authoridade administrativa, com os membros da commissão districtal, com o regedor, e sahiu alegre. Ao outro dia, na porta da egreja de Santa Maria d'Abbade, lia-se Belchior Bernabé, engeitado, entre os mancêbos apurados para o recrutamento.

E, entretanto, Silvestre, o pai de Maria, chamou ao sobrado da tulha trez filhas que tinha, e disse:

—Qual foi uma de vossês que esteve esta noite na eira a conversar para o quinchôso com o engeitado da Bernabé?

Duas responderam logo ao mesmo tempo:

—Eu não!—e accrescentaram:

—Cega eu seja d'ambos os olhos!

—Quebradas tenha eu as pernas!

—Má raios me partam!

A terceira, Maria, abaixou a cabeça, levou o avental de estopa aos olhos, e chorou.

—Foste tu?—exclamou o pai; e, pegando de um engaço, ia cravar-lhe os dentes na cabeça, quando as duas filhas lhe ferraram do pulso. O pai, homem possante de quarenta annos, sacudiu-se a custo das prezas das valentes raparigas, largando-lhes o engaço, e esmurraçou a outra com tamanho impeto de raiva que Maria cahiu atordoada.

Em seguida voltou-se para as duas filhas, e disse:

—Esta mulher fica fechada aqui, entendem vossês? Se quizerem, tragam-lhe o caldo; se não, que morra para ahi, que a levem os diabos!

E, sahindo, rodou a chave, e guardou-a na algibeira interior da véstia.

* * * * *

A tecedeira, quando Belchior, lavado em lagrimas, lhe disse que ia ser soldado, encostou o queixo ás mãos postas em supplica, relançou os olhos á imagem do Bom Jesus do Monte, deteve-se instantes, e disse serenamente:

—Não irás para soldado, meu filho. O tio Silvestre Ruivo já me offereceu dois centos por esta casa, com a condição de me deixar morrer n'ella. Vende-se a casa, ficas tu sem ella, mas onde quer se vive. Para soldado não vais, Belchior. Dás o dinheiro aos governos, como fazem os filhos dos lavradores ricos, e estás livre.

Belchior não cessava de chorar, e de vez em quando, por entre soluços, articulava palavras que a tecedeira, um tanto surda e de todo alheia dos amores do rapaz, não percebia.

Não chores, moço!—insistia a velha, repetindo o expediente de vender a casa; e Belchior, por fim, obrigado a explicar-se, rompeu n'esta exclamação:

—A Maria Ruiva está perdida e desgraçadinha!

—Credo!… tu que dizes, Belchior!?

O rapaz arrepellava-se; apanhava com as mãos a nuca, e batia com os cotovêllos um contra o outro. Atirava-se de trambulhão sobre uma grande caixa de castanho, e jogava de cabeça contra os joelhos com a pasmosa elasticidade da sua afflicção. Fazia aquillo porque não sabia as phrases que nós, os máos romancistas, costumamos emprestar a esta especie de sujeitos.

A tia Bernabé, ora lhe pegava na cabeça, ora nos braços, dizendo-lhe as mais carinhosas consolações. Por fim, o engeitado, erguendo-se de salto, e olhando em redor tão sinistramente quanto cabe na rubrica de um drama e na pupilla fulva do sr. Izidoro Sabino Ferreira na tragedia, disse com o esbofar das angustias vertiginosas:

—Assim com'ássim… mato-me!

Aqui foi um alto soluçar da tecedeira, um desentoado chôro que alvorotou a visinhança.

Belchior, assim que viu a casa a encher-se de gente, fugiu pela porta da cosinha, saltou vallados, emboscou-se n'uma seara de centeio, e ahi, estirado por terra sobre as louras gabellas, chorou copiosamente.

A tia Bernabé pedia entretanto aos visinhos que fossem atraz d'elle, porque o seu Belchior disséra que se matava.

O engeitado deixou-se trazer como um ebrio nos braços dos visinhos; e, chegando a casa, pediu que o deixassem deitar. Depois, ganhando animo—que é sempre certo, esgotadas as lagrimas—contou á tia Bernabé a sua curta historia com a Maria Ruiva, concluindo-a com uma revelação que irriçou os cabellos da velha.

* * * * *

N'essa mesma hora, a tecedeira sahiu cambaleando e encostada ás paredes, em demanda do abbade.

Era ainda o mesmo que baptisára Belchior. Envelhecera e engordára. Meditava depois de jantar no destino da sua alma, assim que o destino do corpo lhe parecera consummado. Joanna, a das sapatadas n'aquella anca de Hercules Farnesio, havia muito que cauterisava a consciencia chagada, cortando o cabello e cilhando os rins peccadores com a corda nodosa dos cilicios. O abbade tambem soffrêra um abalo rijo de contricção, a ponto de não substituir Joanna, e calçar as meias directa e pessoalmente. N'esta especie de amputação expontanea, não podendo crear processos de philosophia nova, como Pedro Abélard, comia ás suas horas e profanava com syllabadas o latim do missal. Promettia acabar bem.

A tia Bernabé referiu-lhe o que Belchior lhe confessára a respeito da
Maria Ruiva.

—Eu bem lhe disse a vossê, mulher, que se mettia em trabalhos, lembra-se?—recordou o abbade.

—Sim, senhor, lembra… mas então? Ainda me não arrependo, se o sr. abbade me fizer a caridade de fallar ao Silvestre, e dizer-lhe que o melhor é, já agora, deixar casar a rapariga.

—Vossê—atalhou o padre—vossê, Bernabé, deu-lhe volta o miolo! O Silvestre dar a filha ao engeitado!… Ora, mulher, peça a Deus juizo, e diga a esse tratante que se vá quanto antes sentar praça, antes que lhe deem cabo da pelle. Com que então!… O alma do diabo foi ás do cabo, eim?

A tecedeira ouviu-o com o rosto lavado em lagrimas; e elle, solphejando as palavras iracundas ao compasso do rufo que fazia com a caixa de prata sobre o braço da cadeira, proseguiu:

—Forte maroto! Atrever-se a conversal-a, já era muito: mas isso que vossê me diz, mulher, só na forca! E então… uma rapariga sem nota, que já foi pedida pelo Francisquinho das Lamelas, que colhe oitenta carros e vinte pipas, afora azeite!… E, vamos lá, era a melhor das irmãs, uma mocetona!… Com que então esse patife disse-lhe mesmo que ella… d'aqui a pouco… já não póde esconder o fructo do seu crime?

—Sim sr.—balbuciou a tia Bernabé.

—Isto só no inferno!—volveu o abbade, rebitando a ponta do nariz para dilatar a circumferencia das ventas sobranceiras á pitada—Isto só no inferno!…

—Valha-me Deus, sr. abbade!—replicou timidamente a tecedeira.—Então a religião de nosso Senhor Jesus Christo não dá remedio a estas desgraças, que tantas vezes acontecem? No melhor panno cae a nodoa. Logo que elles se casem, está tudo remediado, pois não está?…

—Está o quê?… Então uma rapariga de boa familia, que tem tres tios padres, e que é filha de um capitão de ordenanças, caza-se assim com um engeitado que vossê encontrou na bouça da egreja entre o mato?…

—É verdade; mas todos somos filhos de Deus,—argumentou a tia Bernabé, e mais longe iria na sua preleção de caridade ao pastor, quando uma visinha a chamou á porta da rezidencia para lhe dizer que Belchior estava prezo entre seis cabos de policia que o levavam para soldado, e elle a mandava chamar para se despedir.

Ainda desceu precipitadamente as escaleiras a tremula velhinha; mas, a poucos passos, cahiu de joelhos, amparou-se no vallo, e debruçou-se desmaiada.

Entretanto, o regedor ordenava aos cabos que levassem o prezo, visto que a tia Bernabé fôra levada sem accordo para a rezidencia. Belchior pediu que o deixassem ir lá despedir-se de sua mãe. O regedor voltou-lhe as costas, acenou aos cabos que marchassem.

* * * * *

Em Famalicão deram-lhe uma guia, e enviaram-no entre seis espingardas para Braga. Ao outro dia era soldado.

A tia Bernabé procurou-o no quartel do Populo n'esse mesmo dia. Quando o viu de cabeça tosquiada como cão morrinhoso, e colleira de couro preta, estonteou-se-lhe o juizo e esteve a pique de cahir. O recruta, chorando com ella nos braços, apiedou o commandante da guarda, que os mandou entrar na casa das tarimbas. D'ahi a duas horas, tocou a corneta a recruta. Belchior já não tinha nome. Era o 29.

—Salta d'ahi, 29!—bradou-lhe um anspeçada.

—Que é?—perguntou a tecedeira.

—Vou para o exercicio, minha mãe.

Ella viu-o marchar com os outros para o Campo do exercicio; e logo, a meio caminho do terreno das manobras, um furriel barbaçudo e de chibata, lhe assentou na parte sobrejacente ás pernas um pontapé instructivo. Diga-se verdade—era o primeiro.

A tecedeira, quando isto presenceou, sahiu do campo estrangulada por soluços, entrou na Sé, e orou largo tempo com o rosto no pavimento. Depois, levantou-se reanimada, e foi para a sua aldeia executar o que ficára convencionado com Belchior: vender a casa, e substituil-o.

Pregou annuncios na porta da egreja e nas arvores visinhas das estradas. O pai de Maria Ruiva muito queria compral-a para arredondar um campo com a horta e armar na casa terrea um estabulo de bois para embarque; porém, receando que o seu dinheiro servisse a resgatar o soldado, consultou os irmãos clerigos. Padre João foi a Braga mecher os pausinhos, disse elle; e, voltando, socegou o irmão:

—Compra a casa, que o engeitado as correias não as bota fóra do lombo.

O lavrador tinha offerecido duzentos mil réis, quando a tecedeira não pensava vender a casa onde nascera; mas agora, por terceira pessoa, mandou-lhe offerecer cento e quarenta.

A desventurada velha ia ceder, pensando que vinte moedas de ouro bastariam a resgatar o filho; n'este aperto, uma beata de freguezia distante, e confessada do abbade, lhe propoz a compra, a fim de passar a estação das penitencias ali á beira do seu director espiritual. Esta mulher, que era virtuosa, foi desde logo diffamada pelos padres Ruivos á conta do confessor que a dirigia; e o lavrador por sua parte enraivava-se sabendo que a Bernabé vendera a casa por duzentos mil réis. Padre João, conversando a tal respeito com o abbade, desfechou-lhe esta ironia entre duas pitadas:

—Quando se está assim gordo, sr. abbade, é preciso trazel-as para perto…

E o pastor, exulcerado na sua candura, cascalhou uns froixos de tosse de esgana, e gosmou:

—Se eu trouxesse para esta freguezia ovêlhas de fóra, talvez que o padre João me deixasse em paz as do meu rebanho…

Entendiam-se.

* * * * *

A tia Bernabé foi a Braga com o dinheiro e com um seu cunhado, que havia sido embarcadiço, e então era calafate em Villa do Conde. Por felicidade viera elle á terra ver os parentes; e, condoendo-se da paixão da cunhada, se offerecera a dar em Braga os passos necessarios á baixa de Belchior. O requerimento foi indeferido. O calafate andou por advogados que lhe escreviam replicas inuteis. Por fim, comprehendeu que o rapaz havia de gemer sob o pezo da vingança do lavrador. E como elle passara quarenta annos no mar e ahi ganhára odio ás miserias da terra, tanto que soube que o rancor era de padres e o crime do rapaz era de amores, voltou-se para a cunhada, e disse:

—O rapaz vai d'hoje a quinze dias para o Brazil. Tu pagas-lhe a passagem, e o resto fica por minha conta. D'aqui até Villa do Conde é desertor; assim que sahir a barra, é livre… olha… vês aquella andorinha? é livre como ella!

—E não hei de tornar a vél-o?!—atalhou ella chorando.

—Se não o tornares a vêr, que monta? Tens tu de fechar os olhos para sempre ou não? qual queres tu: vêl-o aqui soldado, ou saber que elle está no Brazil a manobrar a sua vida? Deixa-o ir. A rapariga, quando elle chegar a Pernambuco, já lhe não lembra; e, se enjoar, então, é como quem deita o coração pelas goelas fóra. Tu vens para Villa do Conde commigo. Tens que comer e uma enxerga onde durmas.

* * * * *

Em março de 1852, fez-se á vela de Villa do Conde a Barca Conceição.
Entre os passageiros ia o desertor. Chamava-se ahi Manuel José da Silva
Guimarães, e nunca mais ouviu proferir o seu nome.

Quando a policia deitava inculcas no concelho de Famalicão procurando a paragem da tia Bernabé, rendia ella a alma ao seu Creador em Villa do Conde. Vira desapparecer as vellas da barca Conceição, ajoelhada no terraço do Castello. Depois, quedára-se de bruços a chorar. Levaram-a nos braços a caza do cunhado. As lagrimas seccaram-se. Veío a febre e o delirio. Chamou, chamou por seu filho, até que Deus a chamou a ella. Não foi confessada nem ungida; mas morreu sancta por que vivera sanctamente. Achara aquelle engeitadinho, creara-o, amara-o, vendêra um cordão para o vestir geitosamente afim de o mandar á eschola, vendera as arrecadas para lhe comprar fato novo quando foi á primeira confissão, vendêra a casa e o thear e o leito onde morrêra sua mãe para o remir de soldado. Padeceu grandes angustias quando soube que o filho do seu coração era culpado na desgraça de uma rapariga honesta. Cuidou que o padre, o prégador da caridade e da igualdade dos servos de Jesus Christo, iria admoestar o lavrador abastado a conceder a filha para esposa do pobre. Esta sancta cegueira da christã é de crer que Deus lh'a perdoasse. Por fim, de virtude em virtude, e de dôr em dôr, logo que aos setenta annos de idade viu sumir-se para sempre o seu querido engeitado, pediu a Deus por elle, por si, e… morreu.

SEGUNDA PARTE

Vinte annos volvem-se tão depressa, que eu, n'este salto que o leitor vai dar, não me despenderei a encher-lhe de phrases o passadiço. O melhor é fechar os olhos e saltar.

Vinte annos! Que são vinte annos?

Nós, ainda hontem eramos rapazes, ó velhos! Este hontem gastou vinte annos a resvalar para hoje. Que se passou n'este lapso fugitivo de nossa vida entre a juventude e a velhice? Nada. Temos a nosso lado filhos homens, e netos que ámanhã serão homens: e, todavia, parece que ainda hontem com um raio de sol e com o perfume de uma roza compunhamos o sorriso da loira mãe d'estes homens, que está hoje velha! Ainda hontem eramos poetas pelo amor, affoitos pela aspiração, valentes pela mocidade. Que grandes coisas devem ter-se passado n'esse instante de vinte annos, em quanto esperavamos outras que nunca vieram! A scismar sempre com o futuro não o viamos passar. A final parou; e deixou-se conhecer porque marchava pesado, tardio e triste: era a velhice. Chegou de repente; escureceu-se-nos tudo como se as alegrias nos fulgissem do seio de um relampago. Esta treva foi instantanea, e gastou vinte annos a condensar-se. Que são vinte annos?

* * * * *

Em 1872, hospedou-se no hotel de Famalicão um brazileiro a quem os seus creados negros e brancos chamavam simplesmente o sr. commendador. Não viera recommendado a algum dos barões da terra. Enviára adiante a recommendação da parelha das orças, da caleche, dos lacaios. Representava quarenta annos florentissimos. Basto bigode, suissa ingleza, espesso cabello levantado em novêllos crespos que lhe escantavam a fronte. Espaduas amplas, á proporção das pernas que se moviam rijas e bazeadas em pés infalliveis como os alicerces das pyramides dos pharaós. Trajava a primor, de preto, com um ar de pessoa que passeava de tarde na estrada de Braga, com o intento de ir á noite a Covent-Gard, ao Royal Italian Opera. Fumava sempre uns charutos que vaporavam os aromas das recamaras das sultanas. Na meza, era de uma elegancia frugal que desmentia a procedencia. Olhava para o bife com um fastio tal e tamanha tristeza, que fazia lembrar Tertuliano, quando, meditando na metempsycose, olhava para o boi cozido, e dizia: «Estarei eu comendo meu avô?»

Com quanto nem elle nem creados declarassem os seus nomes e appellidos, os jornaes do Porto haviam annunciado a chegada do maior capitalista de Pellotas, o sr. Manoel José da Silva Guimarães.

Nada de bioquices com o leitor: ahi está Belchior Bernabé, o engeitado.

* * * * *

Ao terceiro dia de hospedagem em Famalicão, o commendador cavalgou, acompanhou-se do lacaio, e seguiu na direcção de S. Thiago d'Antas.

—Vai vêr a igreja que fizeram os moiros… Calculou outro commendador da terra, e assim o communicou a mais dois commendadores, attribuindo aos moiros a egreja dos cavalleiros de Rhodes.

—Hade ser isso—confirmou o mais correcto.—Este homem é magico. O Guimarães do hotel já lhe perguntou se era nascido cá no Minho, e elle respondeu…

—Que não tinha a certeza—concluiu o outro—Tem grande têlha!

—Hontem, na feira, estava elle a vêr vender duas juntas de bois para embarque. Quem nas vendia era o Silvestre Ruivo…

—Bem sei, o irmão d'aquelle padre João que morreu ha tres annos de apoplexia.

—É isso. O telhudo, que não falla com ninguem, poz-se a conversar com o Silvestre a respeito dos bois: depois levou-o á hospedaria, e deu-lhe de jantar. O Silvestre esteve depois commigo, e vinha espantado de vêr dois criados de casaca, bota de verniz, gravata branca e luvas, a servir á meza.—E em que fallaram vossês?—perguntei-lhe eu. Disse-me que o commendador lhe perguntára coisas e tal et coetera cá da provincia, e que ficára de ir a casa d'elle vêr a córte dos bois. Magico ou não? Olhem vossês! Vae ver os bois!

—Se fosse aqui ha dez annos atraz—disse o commendador Nunes—valia-lhe a pena de ir ver as bezerras… Vossê ainda conheceu as Ruivas, a Antonia e a Chica, ó sôr Leite?

—Ora, se conheci! Que fatias!…

—Que diriam vossês—volveu o sr. Nunes—se conhecessem a Maria que eu m'alembro de ver antes de ir em o Rio… Que pimpona! Apanhou a um engeitado…

—Já ouvi contar esse caso.

—Vossê não sabe nada, perdôe. O engeitado entrava em a escola do Zé Batata quando eu sahia já prompto. Depois, lá tive noticias no Rio que a moça dera em droga. Elle foi prezo para soldado e desertou; e ella nunca mais ninguem lhe poz o olho no lombo. Uns dizem que está n'um recolhimento de convertidas, outros dizem que está fechada, desde que isso foi… hade haver, João Nunes, hade haver, bons vinte annos…

—Isso é que é pai de fêbras!… fez muito bem!—applaudiu o mais devasso.

* * * * *

Entretanto, chegava o commendador Guimarães á porta do ex-capitão de ordenanças Silvestre Lopes, d'alcunha o Ruivo. Era esperado.

No patamal da escada que conduzia á vasta quadra chamada «a sala dos padres» estava o lavrador, entre tres clerigos venerandos por sua idade: devia contar qualquer d'elles bastantes annos sobre setenta.

O commendador deu as redeas do seu alazão ao lacaio, subiu prazenteiramente, apertando a mão a Silvestre, e cortejando os padres.

—V. ex.^a não se perdeu nos atalhos?—perguntou o lavrador.

—Quem tem bôca vai a Roma—respondeu o commendador; e referindo-se aos padres:

—São seus manos, sr. Lopes?

—Dois são; o outro é o sr. abbade.

O hospede encarou-o muito a fito, e perguntou:

—É abbade ha muitos annos n'esta freguezia?

—Vim para aqui parochiar em 1828, na idade de vinte e cinco annos; tenho setenta e seis: conte lá v. ex.^a.

—Está aqui ha quarenta e quatro annos feitos—accrescentou o padre
Bento Lopes.

—Justamente,—confirmou o clerigo que baptisára Belchior, o engeitado exposto na manhã de 6 de janeiro de 1833.

O commendador não via n'aquelle ancião um só traço do corpulento abbade.

Conversaram sobre a guerra do Paraguay, sobre a emigração dos minhotos, sobre o estado florescente da industria e agricultura portugueza. O lavrador, apoiando o commendador, encarecia a nossa prosperidade com este conciso, pezado e até certo ponto bicornio argumento:

—Vejam o dinheirame que dão os bois!

Estava a meza posta no sobrado immediato, e á cabeceira da meza a cadeira destinada ao hospede.

—V. ex.^a vem para aqui—disse o lavrador apontando lh'a com urbana homenagem.—Ninguem mais se sentou n'essa cadeira desde que morreu nosso irmão mais velho, padre João. Faz agora trez annos que morreu d'um estupor…

—De apoplexia—emendou o padre Hippolito.

—Tanto faz—replicou Silvestre.—Estava a dizer missa, e cahiu redondo no altar.

—É de crer que a sua alma estivesse preparada para esse trance—observou o commendador em tom compungido.

—Era bom padre—disse o abbade, talhando á faca os canudos flexuosos da sôpa de macarrão—isso era, coitado! Deus o tenha á sua vista!…

—Está aqui toda a sua familia, sr. Silvestre?—perguntou o hospede,—Se bem me recordo, disse-me na feira de Villa Nova que tinha filhos…

—Filhos, não, meu senhor. Tenho duas filhas.

—Trez…—emendou o abbade.

—Duas!—retorquiu desabridamente o lavrador coruscando-lhe os olhos irados.

—Ah! sim… duas… eu agora estava distrahido…—remediou o indiscreto.

E o commendador não perdia a minima expressão das quatro physionomias.

—Tenho duas filhas,—repetiu o pai de Maria.—Uma está casada fóra com um proprietario, já tem um filho em Braga para padre, e outro a doutorar-se em Coimbra. A outra está em casa. Não quiz cazar, e já está a caminhar para os trinte e sete annos. É a que governa a caza.

Este incidente passou. O commendador mostrava-se profundamente abstrahido. Comeu pouquissimo, e quasi nada disse. Apenas, terminado o supplicio da exposição do peru, do lombo de porco de vinho e alhos, da perna de vitella e do leitão, pediu licença para retirar-se, pretextando a precisão de estar cedo em Villa Nova.

O abbade acompanhou-o, porque o brazileiro mostrou desejo de ver umas sepulturas notaveis de que certo romance dava noticia, no adro da egreja de Santa Maria.[5]

Os outros padres quizeram ir tambem; mas o commendador dispensou-os com delicada violencia, promettendo voltar a vêl-os mais de espaço.

O abbade, mostradas as duas campas vasias, convidou o ricasso a subir á sua pobre rezidencia.

—Com muita satisfação, sr. abbade; sympathiso com v. s.^a, quero mesmo grangear a sua amisade.

—Ó excellentissimo senhor! que valho eu, pobre velho, e pobre abbade da mais pobre das abbadias!… Aqui gastei a vida, já agora quero que esta terra, onde dormem tantos que baptisei, tantos que casei, me coma tambem os ossos.

O padre estava lugubremente palavroso. Havia ali uma flôr de poesia elegiaca a entreabrir-se um pouco borrifada de mau vinho do Porto. Sentia-se expansivo.

Pensava o brazileiro em occasionar conversa ácerca do incidente, acontecido ao jantar, sobre se eram duas ou tres as filhas do Silvestre. Não foi preciso rodeios. O padre endireitou logo com o assumpto n'estes termos:

—O Silvestre é bom sujeito, bom parochiano, amiguinho dos seus interesses, isso sim; mas d'esse peccado, se o é, está o inferno cheio. Porém, excellentissimo senhor, tem este homem um modo de pensar a respeito da honra que se não conforma com a religião da caridade e do perdão. V. ex.^a havia de notar a ira com que elle disse que as suas filhas eram duas, quando eu, por descuido, disse que eram trez. Conheci logo que andei mal, e emendei contra a minha consciencia; mas em fim, eu estava a jantar em casa do homem, estava ali um cavalheiro respeitavel, a civilidade mandou-me tapar a boca…

—Sim… eu notei que v. s.^a, cedendo ao numero das duas, fel-o constrangidamente.

—Pois por isso mesmo que eu percebi que v. ex.^a notou, é que devo á minha posição de padre esclarecer a verdade diante do sr. commendador. Se quer ouvir a historia… mas v. ex.^a disse que tinha pressa…

—Não, senhor. Queira dizer. Tenho muito tempo…

O abbade sahiu á janella, e disse para fóra ao creado que fosse levar a egua pela fresca ao mato. Depois, fechando o trinco da porta da saleta, continuou, fazendo sentar o hospede em uma commoda cadeira de estôfo, e occupando elle outra de pregaria com espaldar de moscovia.

—O Silvestre não tem duas filhas, mas tres. A mais velha, que eu baptisei ha trinta e nove annos, chama-se Maria. Esta rapariga, aqui ha vinte annos, andou de amores com um engeitado que por aqui se creou em casa de uma santa creatura, que o encontrou no mato da egreja, pelo lado de fóra das campas que v. ex.^a viu ha pouco. O diabo do rapaz desviou-a do bom caminho e pôl-a na mais misera situação que em taes casos é possivel. Emfim, a rapariga sentia-se mãe, quando um dos padres que já lá está na presença de Deus, deu com elles em palestra de noite. D'ahi a dias, o Belchior (chamava-se assim o engeitado), foi d'aqui preso para Braga, e deitaram-lhe as correias ás costas. Passado pouco tempo, o soldado desertou, e foi para onde estivesse seguro. Agora fallemos da moça. O pai moêu-a bem moída de pancadaria, fechou-a no sobrado de uma tulha, e mandava-lhe dar todos os dias duas tijellas de caldo, dois pedaços de pão, e uma caneca d'agua. Dois ou tres mezes depois, appareceu-me aqui um calafate de Villa do Conde, que vinha a ser cunhado da tal Bernabé que creára o Belchior, e disse-me que sua cunhada morrera de saudades do desertor que não podia mais voltar á patria; e que, antes de expirar-lhe, pedira que viesse ter commigo, e me rogasse, pelo divino amor de Deus, que fizesse eu todas as diligencias por haver á mão o filho do seu Belchior, que elle calafate se encarregava de o levar para Villa do Conde. A fallar a verdade, era empreitada de costa arriba metter-me eu n'este delicado negocio com o Silvestre; mas pedi forças a Deus e fui-me ter com elle. Contei-lhe o estado da filha, e offereci-me para dar á creança, quando nascesse, o unico destino possivel em harmonia com os interesses da terra e os da divina religião da caridade de Jesus, que mandava chegarem-se a Elle as creancinhas. O homem ouviu, praguejou, berrou que ia matar a filha; e eu então, resolvido a tudo, disse-lhe sem temor que se elle matasse a filha iria eu accusal o de matador de duas vidas. O homem teve medo, e concluiu afinal que a creança me seria entregue; mas que a rapariga nunca mais veria sol nem lua… Estou massando o sr. commendador…

—Pelo amor de Deus! estou interessadissimo n'essa triste historia…

—Tristissima, excellentissimo senhor! Eis que nasce um rapaz, e quem assistiu ao nascimento e m'o trouxe foi uma viuva serva de Deus, minha confessada, que vivia aqui na casa que comprára á tal Bernabé. Fui eu que lhe pedi que merecesse a divina graça por esta obra de misericordia. Já cá estava então em caza de uns parentes o calafate á espera do filho de Belchior. Entreguei-lh'o, e lá foi o pequeno para Villa do Conde, depois que o baptisei com o nome de seu pai.

—E esse menino…—atalhou o commendador arrancando a pergunta das ancias que a debil vista do abbade não divisava.

—Eu lhe conto, meu senhor. Dois annos depois, morreu o calafate, e eis que a creada d'elle m'o remette para aqui, dizendo que o patrão assim lh'o ordenara, para que eu o entregasse ás irmãs e sobrinhas d'elle que moram ahi n'uma freguezia ao pé. Chamei as taes mulheres, mostrei-lhes a creancinha, dei-lhes o recado do calafate fallecido, e ellas responderam que não queriam saber de historias; que tomasse o avô e a mãe conta d'elle, que eram bem ricos. A serva de Deus que morava, como já disse a v. ex.^a, na casa que fôra da tia Bernabé, tomou conta do engeitadinho. Havia n'isto mysterio profundo! O pai fôra creado na mesma casa onde era creado o filho, ambos sem pai nem mãe! Desgraçadamente, quando o pequeno ia nos seis annos, morre a bemfeitora de morte repentina. Os parentes sacudiram d'ali o mocinho, e o Silvestre comprou a casa, botou-a abaixo, e fez uma córte de bois. Ali d'aquella janella póde v. ex.^a vêr a córte onde foi a casa das duas santas mulheres. É aquella que branqueja por entre aquelles dois carvalhos.

O commendador foi á janella, reconheceu os arredores da extincta casa da sua infancia, enxugou as lagrimas, voltando as costas ao abbade, e tornou a sentar-se em frente do ancião.

—Que havia eu de fazer-lhe?—proseguiu o abbade—trouxe para aqui o pequeno, e mandei-o á escola.

—Muito bem! muito bem!—exclamou arrebatado o brazileiro—muito bem, honrado homem!—e apertou-lhe a mão, levando-a aos labios.

O abbade retirando a mão humida de lagrimas, disse commovido:

—Fiz o meu dever, senhor! Oxalá que esta boa acção me seja descontada nas muitas ruins que tenho na minha vida…

—E depois, o pequeno…—atalhou pressurosamente o hospede.

—O pequeno, eu lhe digo… Agora tornemos a fallar da mãe… Trez annos e meio esteve fechada no tal carcere. Via apenas uma irmã que lhe levava o alimento. Depois, esteve em perigo de vida, e pediu um confessor. Fui eu o chamado á falta de outro. No acto da confissão, disse-lhe que o seu filho estava em minha casa, e que passava por ser meu parente. Outros, sr. commendador, diziam que elle era meu filho e da mulher que o amparára. Perdoei aos calumniadores, para que Deus me perdôe os escandalos que dei: era justo que me diffamassem porque eu dei azo a isso com os desatinos da minha mocidade. Maria, quando soube que tinha seu filho vivo, ganhou forças, quiz viver, e venceu a doença. Dizia-me ella: «se eu viver, hei de ter alguma coisa d'esta caza, e o que eu tiver será do meu filho; e, se eu morrer, ficará pobresinho de pedir.» De pedir não—disse eu—porque vou mandar-lhe ansinar um officio logo que elle chegue á idade de poder trabalhar. Perguntou-me então se eu sabia alguma coisa do Belchior. Fóra da confissão, respondi-lhe que o calafate muito em segredo me dissera que elle fôra para o Brazil. No primeiro anno, o calafate recebia a miudo cartas do Belchior, que o rapaz escrevia á mãe adoptiva, cuidando que ella estava viva. O calafate escrevia para lá que a Bernabé tinha morrido; e o rapaz a escrever sempre á Bernabé. A opinião do calafate era que o Belchior lá andasse pelos sertões onde nunca lhe chegavam as cartas idas de Portugal. Depois, o calafate morreu. O que se passou d'ahi em diante não sei. Foi isto o que eu contei a Maria. Por fim, espalhou-se por ahi que o Belchior tinha morrido; e eu aproveitei a noticia, quer fosse verdade quer não, a fim de vêr se o pai da pobre moça lhe dava alguma liberdade. Fallei n'isto ao Silvestre, e, em nome de Deus o fiz responsavel pela privação em que a tinha da missa e dos sacramentos. Tanto lhe bati á porta da consciencia dura, que consegui deixal-a confessar-se e ouvir missa uma vez de trez em trez mezes. Pouco e pouco, obtive que ella viesse á egreja de quatro em quatro semanas, e n'essas occasiões já ella sabia que o seu filho era o menino que me ajudava á missa. Uma vez entrou na sachristia, não estando mais ninguem na igreja; abraçou-se no filho e desfez-se em lagrimas. Deixei-a, coitadinha! mas depois pedi-lhe que não tornasse a fazer tal imprudencia, por que, se alguem a visse, não tornaria a sahir do seu carcere. O rapaz, quando fez quatorze annos, lia e escrevia correntemente. Mandei-lhe ensinar o officio que escolhesse: quiz ser carpinteiro, para o que tinha muita habilidade. Essa cadeira em que v. ex.^a está sentado fez-m'a elle. Veja que bonita peça! pois ainda não tinha dado um anno ao officio quando fabricou essa obra que parece feita no Porto!

—E está aqui n'esta freguezia o tal Belchior?—perguntou o brazileiro.

—Não, meu senhor, está trabalhando em Braga; mas vem aqui todos os mezes ver a mãe no dia em que ella se confessa.

—Todos os mezes?

—Sim, sr., na primeira segunda feira de cada mez. D'hoje a oito dias, se eu viver, hei de ouvil-a de confissão, e dou de jantar ao meu Belchior.

—D'hoje a oito dias? Que prazer v. s.^a me dava, sr. abbade, meu honrado e querido amigo, se me consentisse que eu contemplasse na sua igreja essa martyr a rever-se no seu pobre filho! Seria possivel?

—Pois não é?! appareça v. ex.^a na segunda feira ahi pelas seis horas da manhã, que é quando eu a confesso e lhe dou a communhão. Vê a a ella, e vê o rapaz que é ainda quem me ajuda á missa, e ministra o jarro da agua á mãe, depois que ella communga.

Eriçaram-se os cabellos ao commendador por uma especie de etherisação, mescla de enthusiasmo, de arroubamento e de tristeza. Apertou ao seio as cans do ancião, e beijou-o na fronte. O padre encarava-o com assombro, e elle murmurava:

—A sua historia arrebatou me!… Eu sou um homem que tenho a loucura da admiração pelas acções grandes. Se até hoje eu não acreditasse em Deus, cahiria de joelhos a seus pés, confessando-o!

—Quem é que não acredita em Deus, meu amigo?!—perguntou o velho enxugando as lagrimas.

* * * * *

A segunda feira aprazada raiou com todas as pompas e musicas e perfumes de uma aurora de julho. O commendador Guimarães chegara de Braga, por volta da meia noite, e ordenara ao escudeiro que o chamasse ás quatro horas da manhã. Superflua recommendação. Não dormira. Antes do alvorecer da manhã, chamara elle os creados, e mandara apparelhar os cavallos.

Ás cinco e meia da manhã estava elle encostado a uma das campas do adro de Sancta Maria de Abbade. A distancia, escarvavam os cavallos insoffridos na terra barrenta de um montado calvo. O sol verberava em uma das frestas da igreja. Os pardaes pipilavam na oliveira, n'aquella mesma que, trinta e nove annos antes, déra, nas suas raizes recurvas á flôr da terra, um berço empapado de chuva, áquelle homem que ali se sentia feliz até ao extremo em que as palpitações de jubilo laceram o coração como as farpas da agonia. As andorinhas chilreavam em redor da cornija da igreja, e, esvoaçando-se por longos circulos, cortavam de notas embaladas pelas ondas da luz o grande hymno, que na terra se completa com as lagrimas dos que podem choral-as de gratidão á divina providencia.

Elle, Belchior Bernabé, chorava essas lagrimas bemditas, contemplando a terra onde a tecedeira pobre se ajoelhára para o levantar regelado até ao peito, e resuscital-o com um milagre da caridade.

Ás cinco horas e trez quartos ouviu passos que soavam na trempe de ferro que forma o limiar do adro. Correu pressuroso ao cunhal da igreja, e viu uma mulher com um capote aconchegado da face, encaminhando-se para a porta transversal. Simultaneamente chegava, transpondo de salto a parêde, um rapaz de boa presença, vestido de azul, com o seu chapeo de felpo branco na mão. O commendador parou, encostado ao cunhal. A mãe e o filho abraçavam-se, quando deram tento d'aquelle homem estranho.

—Quem é?—perguntou Maria.

—É figurão!—disse elle—Eu vi aquelle homem em Braga com o sr. deão e entraram no paço do sr. arcebispo. Alli abaixo na bouça estão dois cavallos, e um creado de libré. Hão de ser d'elle…

—Queres tu ver que é um commendador que esteve em caza de teu avô faz hoje oito dias? Tua tia viu-o, e disse-me que elle era assim de bigode e suissas…

—Que estará elle a fazer aqui?

—Elle olha para nós?! perguntou a mãe olhando-o de travez por entre a fresta formada pelo capote em que se encapuzava.

—Não tira os olhos da gente… e parece que está assim a modo de quem quer perder os sentidos!

—Estará doente!… Ainda bem que ahi está o sr. abbade…

—E lá vai fallar com elle, minha mãe…

—Então é o mesmo que eu te dizia.

—Belchior!—chamou o abbade—pega lá a chave, e entrem que eu já vou.

O moço foi buscar a chave, beijou a mão ao padre, e abaixou a cabeça ao senhor desconhecido. O commendador, com os olhos cravados n'elle, movia-se n'um balanceado arfar de peito: era o esforço que punha em resistir aos impetos que o impulsionavam para o filho. O carpinteiro abriu a porta e entrou com a mãe na igreja, dizendo-lhe:

—Aquelle sujeito estava a olhar para mim de um modo que parecia querer fallar-me…

O brazileiro, depois que respondeu ao comprimento do abbade, perguntou-lhe:

—V. s.^a terá duvida em me ouvir de confissão…

—Com muito contentamento, sr. commendador. Quando quer v. ex.^a?

—Agora. Desejo receber a communhão juntamente com a sua confessada.

—Pois seja agora.

E dizia entre si o padre: «Este homem foi alumiado pela graça divina, e Deus nosso Senhor escolheu o mais peccador dos seus servos para instrumento da sua misericordia com outro peccador!»

Entravam no arco da egreja de passagem para a sacristia. O abbade curvou-se ao ouvido de Maria que fazia oração no altar do Sanctissimo, e disse-lhe:

—Demora te um pouquinho que eu vou confessar uma pessoa:—E, chamando Belchior:—Vae a caza, abre o segundo gavetão da commoda, e traze a toalha grande de rendas que está engomada, para ministrar a communhão áquelle senhor que vou confessar.

* * * * *

O Commendador sahiu da sacristia meia hora depois, e foi ajoelhar no primeiro degráo do altar-mór. Maria, como visse sahir o abbade e acenar-lhe para o confessionario, ergueu-se, passou rente do desconhecido, com os olhos no chão, e a gola do capote apanhada nas faces.

Belchior tinha vindo com a toalha de folhos encanudados que desdobrava e ageitava para o sagrado ministerio. Depois, entrou na sacristia com o galheteiro, renovou a agua e o vinho, dobrou e sacudiu a toalhinha de modo que a porção ainda não maculada servisse ao lavatorio. De vez em quando, sahia ao limiar da sacristia, e quedava-se a olhar para o commendador, que se conservava de joelhos, com a cabeça abaixada, amparando a fronte nas mãos erguidas.

O abbade sahiu do confessionario a manquejar trôpego, amparando-se á teia gradeada de um altar. O filho de Maria Ruiva foi dar-lhe o braço, e o ancião queixava-se de dores rheumaticas nos joelhos e nos rins. A confessada subiu até á capella-mór, e ajoelhou atraz do brazileiro, lendo actos de contricção e a ladainha.

O abbade começára a revestir-se para ir celebrar, quando o commendador se levantou, e de passagem para a sacristia, relançando os olhos a Maria, pôde ver-lhe o rosto alumiado pela restea refracta do sol que lampejava palpitante atravez da fresta, na superficie metalica de uns tocheiros doirados. Não a conheceria, se a encontrasse. Aquelle rosto havia sido purpurino, assetinado como as petalas das rosas humidas pelo rosciar das formosas madrugadas. Tivera as curvas boleadas e lizas da saude, da força, dos atritos do ar forte e do sol que enrubesce a epiderme e colóra o sangue.

Estava magra, angulosa e livida como as santas esculpturadas sob a inspiração do martyrio; mas esta maceração era a formosura divinal da alma, era a sanctificação da mulher aos olhos d'aquelle homem.

Entrou na sacristia, e com tremula voz disse ao padre:

—Sr. abbade, peço-lhe que antes de subir ao altar, chame aqui a sua confessada.

—Aqui?!—perguntou o abbade com espanto—Ella é muito acanhada…

Presumia que o commendador desejava simplesmente vêr de perto a mulher cuja desgraçada historia o commovêra.

—Não importa—volveu o brazileiro—é urgente que ella aqui venha antes que o sr. abbade nos dê a communhão.

—Sim?!—volveu o padre—Pois bem…

E, sahindo ao umbral da sacristia, chamou a filha de Silvestre.

Ella entrou com timidez e assombro. O filho, que suspendia ainda nas mãos as dobras da alva que o padre estava vestindo, largou-as, deixou pender os braços, e empedrou na expressão immovel da curiosidade.

N'este lance, o commendador apresentou ao abbade meia folha de papel sellado, e pediu-lhe que a lesse. O padre pediu a Belchior que lhe chegasse os oculos, pôl-os tremulamente, acercou-se de uma fresta, e, lendo primeiro a assignatura, disse:

—É a assignatura de sua eminencia o sr. arcebispo de Braga?…
Conheço-a…

Ergueu a vista ao alto da folha, e leu:

Concedemos ao abbade de Santa Maria d'esta nossa diocese, no concelho de Villa Nova de Famalicão, que possa, sem previa leitura de banhos, celebrar o sacramento do matrimonio entre os contrahentes de maior idade

Aqui, o abbade estacou, abriu demasiadamente os olhos, acertou os oculos na baze do nariz, premiu as palpebras com o dedo pollegar, repôz de novo os oculos, e disse ao filho de Maria:

—Ó rapaz, que nomes são estes que estão n'este papel?

O carpinteiro leu: entre os contrahentes de maior idade Belchior
Bernabé, filho de pais incognitos, e Maria Lopes, filha legitima de
Silvestre Lopes e

—Que é isto?—exclamou o abbade—Santo Deus! que é isto?

—Belchior Bernabé—disse o rapaz com o mais candido assombro—sou eu!…

—Belchior Bernabé é teu pai, meu filho!—exclamou o commendador, abraçando-o; e, ao mesmo tempo, encurvando o braço pelo collo de Maria, puxou-a para o peito, tocou-lhe com os labios ardentes como as lagrimas na face, e murmurou-lhe soluçante:—Aqui me tens, minha desgraçada Maria! aqui está o pobre engeitado!…

Ella expediu um grito estridente como o da alegria dos encarcerados, dos condemnados á eterna deshonra que viram inopinadamente golphar-lhes na treva a luz do ceo e a rehabilitação da honra. Queria reconhecel-o, tateando-lhe as faces; mas faltou-lhe a claridade dos olhos e a lucidez da rasão. Ella pedia luz, pedia a Deus que a não deixasse morrer, e desfallecia pendente do pescoço de Belchior.

* * * * *

A felicidade de Maria era santa: custára vinte annos de affrontas soffridas com paciencia, sem revolta contra a implacavel barbaridade do pai, nem contra a immobilidade das forças divinas. Esperara em Deus, esperara sempre. Dizia ella que sonhara aquillo mesmo—a vinda de Belchior, e a restauração da sua honra.

Contava-o ella ao abbade, e ao esposo, e ao filho, á porta do templo: e elle, o ancião, com as rugas da face luzentes de lagrimas, dizia:

—Fui eu quem vos baptisou, e quem vos casou, meus filhos. Agora, enterrai-me vós que eu não tenho ninguem.

* * * * *

Belchior Bernabé exigiu como dote de sua mulher o estabulo dos bois edificado sobre os alicerces da caza onde fôra recolhido e aquecido ao seio da tecedeira. Ali, onde foi cabana de candura e oração, está hoje um palacete com as mesmas coisas divinas, accrescentadas pela felicidade do amor. Vê-se de longe o palacio do commendador Belchior; e lá ao pé, no interior do palacio, as pompas da architectura e das decorações desapparecem deslumbradas pelo que ha de immortal nas obras humanas: a virtude. Lá está o abbade resignatario de Santa Maria entrevado: mas todas as manhãs é transferido da cama para a cadeira que lhe fez o seu Belchior Junior, aquelle rapaz, que não resiste á vocação de carpintejar, e está fabricando uma nova cadeira de rodas e molas para o seu velhinho.

FIM

III

O CEGO DE LANDIM

Ao Visconde de Ouguella

Sejamos amigos como foram nossos pais, e deixemos a nossos filhos o exemplo que recebemos

O CEGO DE LANDIM

I

Foi ha treze annos, em uma tarde calmosa de agosto, neste mesmo escriptorio, e n'aquelle canapé, que o cego de Landim esteve sentado. São inolvidaveis as feições do homem. Tinha cincoenta e cinco annos, rijos como raros homens de vida contrariada se gabam aos quarenta. Resumbrava-lhe no semblante anafado a paz e a saude da consciencia. Tinha as espaduas largas: cabia-lhe muito ar no peito; coração e pulmões aviventavam-se na amplidão da pleura elastica. Envidraçava as pupilas alvacentas com vidros esfumados, postos em grandes aros de ouro. Trajava de preto, a sobrecasaca abotoada, a calça justa, e a bota lustrosa; apertava na mão esquerda as luvas amarrotadas e apoiava a direita no castão de prata de uma bengala.

Eu não o conhecia quando me deram um bilhete de visita com este nome—ANTONIO JOSÉ PINTO MONTEIRO.

Em S. Miguel de Seide, uma visita, que se fizesse preceder do seu cartão, era a primeira.

—Quem é?—perguntei ao creado.

—É o cego de Landim.

—E esse cego quem é?

O interrogado, para me esclarecer superabundantemente, respondeu que era o CEGO, como se se tratasse de um cego por excellencia e de historica publicidade: Tobias, Homero, Milton, etc.

Mandei que o conduzissem ao meu escriptorio. Ouvi passos que subiam rapidos e seguros uns doze degráos: e, no patamar da escada, esta pergunta muito sacudida:

—Á esquerda ou á direita?

—Á esquerda—respondi, e fui recebel-o á entrada.

Estendeu-me firme dois dedos, e desfechou-me logo em estylo de presidente de camara municipal sertaneja ás pessoas reaes, uma allocução á minha immortalidade de romancista, lamentando que eu ainda não tivesse em Portugal uma estatua… equestre; parece-me que elle não disse estatua equestre. Achei-lhe rasão. Eu tambem já tinha lamentado aquillo mesmo; porém, cumpria-me regeitar modestamente a estatua, como o duque de Coimbra, agradecendo a virginal lembrança do sr. Pinto Monteiro.

—Tenho ouvido ler os seus livros immortaes—disse elle—Não os leio porque sou cego.

—Completamente?—perguntei, parecendo-me incompossivel a cegueira absoluta com a segurança da sua agilidade nos movimentos.

—Completamente cego, ha trinta e trez annos. Na flôr da idade, quando saudava as flôres da minha vigesima segunda primavera, ceguei.

—E resignou-se…

—Se me resignei!… Morri de dôr, e resuscitei em trevas eternas… O sol, nunca mais!

Pungia-me a compaixão. Disse-lhe consolações banaes; citei os mais luminosos cegos antigos e recentes. Nomeei-lhe o principe da lyra peninsular, Castilho, e elle atalhou:

—Castilho tem o genio que vê as coisas da terra e do ceu. Eu tenho as duas cegueiras do corpo e da alma.

Achei-o eloquentemente sobrio e áttico; figurou-se-me até litterato dos bons. Lembrei-me se elle vinha convidar-me para fundarmos um jornal em Landim, ou se viria pedir-me para o propôr socio correspondente da academia real das sciencias.

Discretiamos de parte a parte em variados assumptos, até que elle explicou as suas pretenções. Tinha um litigio pendente sobre a posse disputada de umas azenhas que lhe haviam custado tres contos de réis, e pedia a minha valiosa preponderancia afim de que os juizes de segunda instancia lhe fizessem justiça inteira.

Observei-lhe que a minha influencia poderia ser-lhe necessaria, se a justiça estivesse da parte do seu contendor; por quanto, quem não tem justiça é que pede.

—Apoiado!—interrompeu elle—A razão diz isso; mas acontece que o meu contendor pede porque não tem justiça; ora não vão os juizes cuidar que eu tenho mais confiança na lei do que n'elles…

Pareceu me sagaz, argucioso e um pouco germanico o cego.

Deu-me quatro memoriaes, accendeu o terceiro charuto, e ergueu-se. Acompanhei-o até ao portão, e vi-o cavalgar com garbo quasi marialva uma vistosa egua, passar as redeas falsas pelas outras com destreza, esporear e partir sósinho.

* * * * *

Ora, o cego perdeu a demanda das asenhas por que as asenhas não eram perfeitamente d'elle, e eu não podia pedir aos desembargadores que as tirassem ao dono e m'as dessem a mim para eu as dar ao cego.

Nunca mais o vi. Retirou-me a admiração e mais a estatua. E, cinco annos depois, morreu.

A historia dos homens descommunaes deve começar a escrever-se á lampada do seu tumulo. Á luz da vida tudo são miragens nas acções dos heroes e estrabismos na contemplação dos panegyristas. É tempo de bosquejar o perfil d'este homem esquecido, e quem quizer que o tire a vulto em marmore mais presistente. Pretendo desmentir os aleivosos que reputam Portugal um alfôbre de lyricos, romancistas salobros de amoríos de aldeia, porque não temos personagens bastantemente succulentos de quem se espremam romances em 4 volumes.

II

Nascera em Landim em 11 de dezembro de 1808.

1808! Os biographos portuguezes, se escrevem de pessoa nascida n'aquella data ou por perto, relatam-nos derramadamente a revolução franceza a começar em Luiz XVI, exhibem a guerra peninsular, e concluem o curso de historia moderna ligando fatidicamente á evolução social o nascimento d'aquelle sujeito.

No anno 1808, uma das muitas pessoas que nasceram sem pesarem um escropulo, pelo pezo velho, na balança dos lusos destinos, foi aquelle Antonio José Pinto Monteiro.

Seu pai barbeava em Landim com ferocidade impune. A espada de Affonso Henriques e as navalhas d'elle tem tradições sanguinarias. Ainda hoje, transcorridos setenta annos, os netos dos seus freguezes parece que herdaram a sensação dos gilvazes dos avós. Em Landim falla-se d'elle como de Torrequemada em Valhadolid. Aquelle barbeiro é uma lenda como a de Gerião, assassinado por Hercules, e a do monstro de Rhodes cantado por Schiller.

Antonio, o primogenito d'este esfolador, estudou primeiras lettras com rara esperteza. Aos onze annos, era prodigio em taboada e bastardinho. Aos doze, imitava firmas com perfeição despremiada, e vingava-se do menospreço em que o estado o esquecia, estabelecendo correspondencias entre pessoas que não se correspondiam, mediante as quaes, uma vez por outra, agenciava alguns pintos.

Como talentos taes não se atabafam muito tempo debaixo do alqueire, o rapaz soffreu algumas contuzões. Um monge benedictino de S. Tyrso compadeceu-se do moço, em tão verdes annos perdido, á conta da sua habilidade funesta: pagou-lhe passagem para o Brazil, porque sabia que os ares de Sancta Cruz são como os do Eden para refazer innocentes.

Empregou-se como caixeiro no Rio. Foi estimado nos primeiros trez annos. Estremava-se dos seus broncos patricios no dom da palavra, nas lerias aos freguezes, nos ardis licitos do balcão, nas ladroices consuetudinarias que affirmam a vocação pronunciada, as quaes, no calão da optica mercantil, se chamam: «lume no olho.» Nas horas feriadas, lia applicadamente e tangia violão. A sua especialidade litteraria era a eloquencia tribunicia. Estudara francez para ler Mirabeau e Danton. Enchera-se d'elles, e ensaiava republicas federalistas com os caixeiros, pedindo cabeças de reis a uns pobres parvajolas que suspiravam apenas por cabeças de gorazes.

Os patrões não farejaram um acabado Robespierre no caixeiro; mas, como desconhecessem a vantagem da apotheose dos girondinos em uma loja de molhados, expulsaram-no como republicano.

Pinto Monteiro intrommetteu-se na politica brazileira, iniciou-se na maçonaria em 1830, fez discursos vermelhos contra o imperador e escreveu clandestinamente. Esteve assim na fronteira do paiz promettido aos eternos Paturots. É indeterminavel o estadîo que elle ganharia, se um militar imperialista lhe não cortasse o rosto com um latego. Uma das tagantadas contundiu-lhe os olhos. Pinto Monteiro cegou.

III

Reagiu ao desastre com peito de ferro. Menos rija alma ingolphara-se na espessura da sua treva. Elle não. Pediu ao inferno luz emprestada para entrar na vareda das suas victimas. Accendeu interiormente, no carcere do seu espirito, a lampada do odio. A vingança leval-o-hia pela mão, como Malvina ao cego de Macpherson. Perdoa-me a comparação, ó bardo caledonio!—que eu já vi Marat comparado a Jesus Christo.

Quando lhe deram alta na barra da enfermaria, pediu o seu violão, sahiu ás praças, preludiou e cantou umas trovas com arpejo triste, ás portas dos argentarios e dos taverneiros. As trovas faziam saudades da patria, e a musica gemia as toadas dos lunduns do Minho. Os ouvintes contemplavam-no com dó e davam-lhe esmolas avultadas para regressar a Portugal, ao ninho seu. Tinha elle um moço: era portuguez ilheu, alguns annos mais novo. Levara-o a doença, a podridão do vicio á mesma enfermaria; e a penuria e o instincto vincularam-no ao cego. Chamava-se Amaro Fayal; mas os que lhe conheciam as prendas corrompiam-lhe o appellido, e chamavam-lhe o Amaro Faiante. Pessoas escassas de caridade indulgente diziam que a maldade do cego e os olhos do moço completavam dois refinados maraus.

Pinto Monteiro trajava limpamente, banqueteava-se á proporção, e dulcificava os confortos cazeiros com o amor de uma aventureira mal prosperada como tantas que o archipelago açoriano exportava consignadas aos Cressos da rua do Ouvidor, que pachalisavam nas chacaras da Tejuca. Creara uma sociedade nova. Acercara de si toda a vadiagem suspeita, os ratoneiros já marcados com o stigma da sentença, os mysteriosos, famintos sem occupação, negros e brancos, não topados ao acaso, mas inscriptos nos registros da policia, e afuroados pela sagacidade de Amaro Fayal. Tinha lido as Memorias de Vidocq,—o celebrado chefe de policia de Paris. Encantara-o a equidade do governo que elevara Vidocq, o ladrão famoso, áquella magistratura: por que elle, por espaço de vinte annos, exercitara o latrocinio e grangeara nas galés os amigos que depois entregava á grilheta.

Pinto Monteiro organisou a bohemia que, até áquelle anno, roubando sem methodo nem estatutos, exercitara a ladroeira d'um modo indigno de paiz em via de civilisação. Fez-se eleger presidente por unanimidade e nomeou seu secretario Amaro Fayal. Havia um proposito quasi heroico n'este feito, como logo veremos. Investido d'esta presidencia incompativel com as artes lyricas, depoz o violão, e, á semelhança do poeta latino, immudeceu os cantares, tacuit musa. Sentia-se no congresso uma alma nova, cheia de fomentos e apontada a rasgar horisontes dilatados.

Quem ouvisse discursar o presidente sociologicamente, ficaria em duvida se furtar era sciencia ou arte. Pinto Monteiro enxertava nas suas prelecções sobre a propriedade umas vergonteas que depois enverdeceram com estylo melhor nas theorias de Cabet. Os malandrins mais intelligentes, depois que o ouviram, desfizeram-se de escrupulos incommodos, e entre si assentiram que não eram ladrões, mas simplesmente desherdados pela sociedade madrasta, e victimas d'uma qualificação já obsoleta. A terminologia do livro 5.^o das Ordenações em um paiz joven, exhuberante, e que tem o sabiá e o côco, era uma anomalia.

D'esta arte organisada a quadrilha, sob a influencia auspiciosa de um cerebro pensante, os cidadãos eram roubados mais artisticamente; na empalmação dos relogios conhecia-se que havia ideas de physica, de mechanica, de equilibrio, de dynamica e sciencias correlativas. Os alumnos da reforma parecia collaborarem no Manual do prestidigitador de Roret, e abandonavam como archaismo aos poderes publicos a Arte de furtar de quem quer que seja.

A sociedade prosperava a olhos vistos, posto que o prezidente não tivesse olho nenhum:—N'esta independencia dos orgãos de relação prova a alma a sua immortalidade. Foi então que Pinto Monteiro e o secretario, munidos dos livros de registo e de toda a escripturação, se apresentaram ao chefe da policia Fortunato de Brito.

Eis aqui a reputação de um homem sacrificada á extirpação do crime. Os
Codros e os Curcios, na restauração da moral publica, fazem isto.

O chefe da policia conveio nas propostas de Pinto Monteiro, que estatuira conservar-se na confidencia dos ladrões e delatar a paragem dos roubos quando no descobril-os redundassem á policia creditos e interesses. O cego esclarecera Fortunato sobre a organisação do funccionalismo policial em Paris, ensinara-lhe alvitres ignorados, e promettia auxilial-o n'um ramo ainda mal cultivado no Brazil—a espionagem politica.

Surtiu os previstos resultados a perfidia. Os larapios mais soezes eram arrebanhados para a casa da correcção; mas os ladravazes mais ladinos poupava-os o presidente para não perturbar de improviso o equililibrio do cosmos. É necessario que haja escandalos, diz o Evangelho.

Como agente secreto de policia recebia do cofre do estado; como chefe da «Associação dos desherdados», auferia o seu quinhão do peculio commum, afora as forragens da presidencia, etc.

Este periodo da vida do cego durou cinco annos; as duas rendas sobejavam-lhe á fartura do passadio; principiou Monteiro a engrossar o peculio, quando a delator e agente ajuntou o estipendio de espião.

Voltando ás antigas camaradagens politicas, fallou nas sociedades secretas com exacerbada virulencia; e, victima do dispotismo militar, mostrava os olhos estoirados e baços com a dolente magestade do general Belizario, vencedor dos hunos.

Constou ao governo que Pinto Monteiro ousára pedir um Cromwell de quem elle cego fosse o Milton. A comparação seria modesta, se não fosse sanguinaria. O governo brazileiro, com a subtileza propria dos cerebros formados com tapioca e ananaz, intendeu que o pescoço do sr. D. Pedro II era ameaçado pelo cego com a tragedia de Carlos Stuart.

A Fortunato de Brito foi ordenado que vigiasse e processasse o sedicioso cego. Intalação! O chefe de policia foi explicar ao seu ministro que os discursos de Pinto Monteiro eram boízes armadas a passaros bisnáos de mais alta volateria. O conflicto remediou-se prescindindo o espião da oratoria, e attendendo sómente a seguir o rastilho das revoluções urdidas no Rio, para rebentarem nas provincias.

Como em meio de tanta lida ainda lhe sobrava tempo, Monteiro ensaiou por sua conta, e sem auxilio da malta, uma reversão de propriedade, termos adquados á sua qualidade de desherdado.

Havia morrido um carroceiro quando, avençado com o cego, experimentava a sua fortuna em aventuras de moeda falsa, mandando abrir os cunhos no Porto.

A cidade da Virgem tem tido filhos de raro engenho na gravura; mas os seus concidadãos, desamoraveis com as graças do buril, crearam á volta d'elles uma atmosphera fria de desalento, e no pedestal em que os sonhadores, como Morghen e Bartolozzi, entreviram a gloria a offerecer-lhes umas sopas de vaca, o menospreço publico poz-lhes a fome. Seria bonito para o martyrologio da arte que os honrados alumnos da Academia das bellas-artes se deixassem perecer de anemia; porém, as poderosas reacções do estomago impulsaram-nos a acceitar o unico lavor que se lhes offerecia: abrir cunhos de moeda. Este ramo das artes imitativas floriu no Porto como planta indigena, a termos de haver ali trabalhos excellentes e muito em conta. Já se conheciam os gravadores portuenses como hoje se conhecem os capellistas da rua de Cedofeita:—o primeiro barateiro, o rei dos barateiros, o barateiro sem competidor. Faziam-se notas a 5% quando a arte estava no berço, ainda timorata; depois, á medida que a prosperidade das emprezas internacionaes augmentava o pedido, os bons artistas davam de mão aos brazões dos sinetes, ás chapas dos portões e ás firmas dus anneis; e, rivalisando-se no primor e na barateza da obra, já davam um conto de notas falsas por dez mil reis sinceros.

Era este o preço da dezena de contos que o carroceiro mandara comprar por intermedio de Pinto Monteiro, e não chegara a receber, atalhado pela morte. Deixára, porém, segredado á viuva que se entendesse com o seu amigo Monteiro, quando lhe entregassem a encommenda.

Não sei se estas notas eram parte de uns tresentos contos que por esse tempo sahiram do Porto para o Brazil dentro da imagem do Senhor dos Passos. Não averiguei as profanações que se deram n'essa remessa; o que sei é que a viuva avisou o cego; e que, no mesmo dia do aviso, o chefe da policia colhia de sobresalto a viuva, escondendo o rolo das notas entre o guarda-infante e a parte subjacente que ella julgava intangivel aos contactos brutos dos esbirros.

Levada a interrogatorios, foi pronunciada; mas, desde que ella entrou no carcere, Pinto Monteiro, consternado até ás lagrimas, assistiu-lhe com a mais desvelada bemquerença, constituindo-se seu procurador.

Esta mulher herdara a independencia. Gemeu em ferros seis annos cumprindo a cummutação d'uma sentença que a condemnava a degredo para a Ilha de Fernando. Essa commutação custara-lhe o restante dos seus haveres, absorvidos pelo cego de Landim. Quando sahiu do carcere, e se viu roubada pelo amigo de seu marido, e reduzida a mendigar, denunciou ao chefe da policia a cumplicidade de Monteiro no negocio das notas. Fortunato de Brito conveio que o seu agente era infame maior da marca: mas fazia se mister que tivesse aquelle tamanho para dar pela barba á corpolencia da corrupção. O cego de Landim gosava a inviolabilidade de mal necessario.

A extorsão feita á viuva divulgou-se e acerbou os antigos odios contra Pinto Monteiro. De mais a mais, elle tinha offendido o espirito dos estatutos, que eram obra sua. Os consocios acharam irregular e menos honesto que o seu presidente levasse o egoismo á extremidade de reivindicar só para si direitos de propriedade commum. Toda a propriedade alheia era d'elles todos, pelos modos. Alguns d'estes, mais penetrantes, incutiram no phalansterio a suspeita de que o chefe tivesse intelligencias com a policia. Um mulato de grandes brios, notavel capoeira, e muito summario nos processos d'aquella especie, fez lampejar o aço da sua faca e declarou que ia anavalhar o redenho do cego.

Quando esta scena tumultuaria se passava na taverna do João Valverde, na rua do Catête, Pinto Monteiro e Amaro Fayal já estavam a bordo da galera Tentadora, que velejava para o Porto.

IV

Em setembro de 1840 appareceu em Landim Pinto Monteiro e o seu chamado guarda-livros. Acompanhava-os a açoriana, intitulada honorificamente esposa do cego. Era uma mulher desnalgada, sardenta, ruiva, alta e possante, com bretoejas rosaceas na testa, e um caracol de barba no queixo inferior. Galhardeava moírées, calçava botas verdes, e trazia uns merinaques que rugiam como as cavernas dos ventos.

Pinto Monteiro alugou casa em quanto reedificava outra sobre o casebre de seus pais. O guarda-livros dizia com certo resguardo que o patrão era muito rico. Convergiram logo das freguezias circumvisinhas bastantes cavalheiros a visital-o, uns porque haviam sido seus condiscipulos na escola, outros por parentesco não remoto.

O cego banqueteava os seus hospedes com iguarias incognitas apimentadas por cosinheiras negras. Os commensaes, gente saturada de vegetaes e milho, comiam á tripa fôrra, e levavam em si d'aquella mesa lauta raras indigestões, muitas saudades e copia de vinhos. O cego tinha uma irmã dez annos mais nova, que surgiu com bandós, dom e espartílhos d'entre um balão da cunhada. Fallou-se do casamento da moça, dotada pelo irmão com dez contos. Os morgados já corveteavam os seus pôtros por Landim, e de longes terras vinham propostas de casamento, por intermedio de padres e beatas. A rapariga, que eu conheci a encanecer na decadencia dos cincenta annos, devia ter sido uma trigueira sanguinea com as mordentes graças das sobrancelhas travadas, e negras como a pennugem do bigode.

Pinto Monteiro passava temporadas no Porto com Amaro Fayal. Era ali que elle cumpria a mensagem a que fôra enviado pelo chefe da policia fluminense. Viera, sob condições estipuladas, relacionar-se com os exportadores de moeda-falsa, e estatuir, de harmonia com os interessados, bazes organicas e auspiciosas para negocio menos precario. O resultado, previsto pelo cego e applaudido por Fortunato de Brito, era a policia conhecer no imperio brasileiro os cumplices dos agentes que residiam no Porto, e, de uma vez para sempre, abranger em rede varredoira os principaes.

Conseguira captar a confiança dos dois gravadores mais habilidosos e conhecidos alem-mar; mas um d'elles, Coutinho, o ancião que eu vi morrer na enfermaria da Relação em 1861, não delatou as pessoas com quem negociava, posto que o cego lhe garantisse uma velhice abastada nos confortos da honra. O outro artista, que morreu rico, apezar de se ter remido da cadeia á custa de dezenas de contos, tambem não denunciou os seus freguezes; mas convidou o cego a mercar-lhe au rabais uns cincoenta contos, resto da ultima edição.

E o cego comprou-os.

Em 1841, a hospedaria dilecta dos brazileiros de profissão (distingam-se assim dos brazileiros do Brazil) era a do Estanislau na Batalha. Ali havia a sem ceremonia do chinello de liga á meza-redonda; os collarinhos arregaçados deixavam arejar as pescoceiras rorejantes de suor, que se limpavam aos guardanapos; cada qual podia comer o arroz com a faca e o talharim com o garfo; a laranja era descascada á unha, e os caroços das azeitonas podiam ser cuspidos na meza, bem como as esquirolas do pernil do porco desentalladas a palito das luras dos queixaes. E era até de direito commum cada qual caçar de guet-apens a importuna mosca na cara e decapital-a publicamente. Estava-se ali á vontade, como nos jantares de Peleu e Patroclo, com um grande estridor de mastigação e arrôtos.

O cego hospedava-se no Estanislau, e dizia ao secretario:

—Estamos com a nossa gente, Amaro amigo.

A idade, a compostura e o palavriado, com a reputação de rico, deram-lhe na meza o logar mais auctorisado. Os brazileiros, vindos do Rio, conheciam aquella figura; alguns sabiam que o homem se tinha arranjado com expedientes mysteriosos; mas isto mesmo era qualidade meritoria e relevante no commensal. Rosnava-se de moeda-falsa; até alguem teve a ousadia de repetir o boato corrente ao guarda-livros. Amaro Fayal deu aos hombros, sorrindo, e disse:

—A moeda-falsa é commercio como qualquer outro, com vantagens em proporção dos riscos. Negocio execrando só conheço um: é o da escravatura. Ha tambem uns negocios que, depois de muitos annos de estafa, não deixam nada: esses chamam-se negocios tolos. Assevero lhes que a riqueza do sr. Pinto Monteiro não se fez com a escravaria.

Estava lançado o dardo. Esta franqueza deu margem a discussões, nas quaes o cego e o Fayal descobriram entre os contendores os menos escrupulosos. Volvidos alguns dias, Pinto Monteiro tinha vendido os cincoenta contos de notas a um brazileiro da Maya, e era encarregado de agenciar cem contos para outros que o primeiro alliciara. N'esta transação cobrára o cego percentagem, e pedira sociedade no quinto dos interesses, com a clausula de dirigir no imperio a circulação da moeda-papel. Pactuaram a viagem para julho d'aquelle anno. Pinto Monteiro convencionou acompanhal-os, a fim de liquidar o restante dos seus haveres, dar impulso ao negocio e vir depois descançar na patria.

Depois de uma demora de dois mezes, Pinto Monteiro recebeu no Porto a infausta nova de que a açoriana, captiva das negaças de um hespanhol operador da catarata, fugira com elle para a Galliza. Bacorejou-lhe ao cego que estava roubado, e o palpite funesto realisou-se.

A quantia devia ser valiosa, por que o trahido amante suspendeu as obras começadas e desfez contractos apalavrados de compras. Ficou na memoria dos contemporaneos a respeito da perfida, uma palavra do cego, significativa de sua indole:

—Se o hespanhol levasse a mulher e me não levasse o dinheiro, penhorava-me bastante. Como me tirou as cataratas do coração, pagou-se por suas mãos o patife!

A opinião publica de Landim irritou-se quando soube que a fugitiva era simplesmente manceba do cego. A moral exigia que elle fosse marido, para não se desvaliarem os quilates do escandalo.

V

No mez aprasado, Pinto Monteiro regressou ao Rio de Janeiro, acompanhado de sua irmã D. Anna das Neves. Embarcaram no Porto com elle os amigos e socios grangeados no hotel. O brazileiro da Maya, comprador dos cincoenta contos, levava algumas pipas de vinho verde, e uma d'estas vasilhas havia sido fabricada, conforme o modêlo que dera o cego, e sob a fiscalisação de Amaro Fayal. No reverso das quatro aduelas do bojo pregaram um quadrado de madeira com chanfradura onde invasasse o rebordo de um caixote de flandres; a pregagem do quadrado ficava occulta debaixo de quatro dos arcos de ferro. O caixote continha duzentos contos em notas brazileiras, e era estanhado nas juncturas de modo que o liquido as não penetrasse, atravez de uma grossa capa de chumbo.

Chegados ao Rio, a carregação entrou nos armazens da alfandega, e Pinto Moreira com a sua familia hospedou-se em casa de Fortunato de Brito. Ao apontar o dia seguinte, os passageiros delatados pelo cego eram prezos; a pipa despejada e desfeita; e o caixote das notas conduzido ao tribunal para se lavrar aucto. Os quatro portuguezes morreram no degredo, perdidos os haveres que já tinham adquirido honradamente. Pinto Monteiro recebeu dez contos de réis, os 5% estipulados e deduzidos da preza.

O leitor vai descobrindo que eu não estou escrevendo um romance. Consta me que, no Rio, os homens que já o eram ha trinta annos, recordam estes factos com algumas miudezas que não pude obter nem já agora inventarei. Os meus apontamentos são exactissimos no summario das excentricidades do cego; mas escassos dos pormenores que eu rigorosamente quizera não omittir.

Aqui me contam elles os amores da morena filha de Landim com o chefe da policia. Este episodio poderia ser o esmalte do meu livrinho, se em um chefe de policia coubessem scenas de amor brazileiro, morbidas e somnolentas, como tão languidamente as derrete o sr. J. d'Alencar. Em paiz de tanto passarinho, tantissimas flores a recenderem cheiros varios, cascatas e lagos, um ceo estrellado de bananas, uma linguagem a suspirar mimices de sutaque, com isto, e com uma rêde—ou duas por causa da moral—a bamboarem-se entre dois coqueiros, eu mettia n'ellas o chefe da policia e a irmã do cego, um sabiá por cima, um papagaio de um lado, um saguí do outro, e veriam que meigas moquenquices, que arrulhar de rôlas eu não estylava d'esta penna de ferro! Mas eu não sei se me acreditariam coisas tão perigrinas entre o virginal Fortunato, chefe da policia, e ella, a menina Neves que já havia colhido as boninas de vinte e nove primaveras nas florestas do seu Minho, onde a maroteira é pre-historica.

Amores e desventuras de peor natureza nos levam a outro incidente, e ahi veremos que Pinto Monteiro fareja todos os latibulos em que se acoite algum crime, e não consente que a corrupção do seculo XIX ponha pé em ramo verde no novo mundo.

Certa carioca, esposa de um João Tinoco, portuguez, fizera assassinar com veneno o marido por um escravo: mas com tal resguardo que o conjugicidio não escoou dos muros da chacara onde ella impunemente se dava ás delicias de Agrippina. Isto de chamar Agrippina á viuva de João Tinoco é excesso de erudição. Ella não tinha idéa nenhuma de ser posta em parallelo historico com a envenenadora de Claudio; o que ella queria era que a deixassem gostar as alegrias da viuvez de um marido que entrara em casa de seu pae como aguadeiro; e, exaltado a esposo, a quizera forçar a fidelidades incombinaveis com o clima, desenvolvendo de mais a mais um excedente de calorico na esposa com o atricto do murro portuguez de lei.

Tinoco tivera um caixeiro que expulsara quando lhe descobriu capacidade para o adulterio, segundo informações de um marçano que vira piscarem-se reciprocamente os olhos direitos á sinhá e o caixeiro. Eis o fio que conduz o cego até ao thalamo infamado e d'ahi á campa do inulto João Tinoco. O assassinado tinha irmãos abastados no Rio. Pinto Monteiro revela-lhes que seu mano morrera de morte violenta, e, coberto de lagrimas, não podendo mostrar os intestinos dilacerados de Tinoco, como Antonio a tunica de Cesar, põe as mãos convulsas no ventre, e exclama:

—Despedaçaram-lhe as entranhas as agonias do arsenico! etc.

Fez terror.

Rugem vingança os irmãos; o cego dá vulto ás difficuldades das provas judiciarias; franqueiam-lhe dinheiro sem conta, e um grande premio, se a prova se fizer.

Vejam os profundos segredos do ceu! Os crimes obscuros quasi nunca é a lampada da virtude que os descortina; são sempre os cerdos que fossam e tiram á tona dos lamaceiros as podridões submersas.

Pinto Monteiro fez surdir á flôr da terra as podridões de Tinoco, e a toxicologia declarou que o homem morrera envenenado pela massa de Frei Cosme. Não vá o leitor cuidar que entra na novella um frade que manipulava massas homicidas. Não, senhor. A massa de Frei Cosme é uma farinha saturada de arsenico.

A viuva não pôde defender-se, desde que a negra confessou que envenenára o amo em um timbal de borrachos, por ordem da senhora. Degradaram por toda a vida a ré convicta, privando-a dos bens herdados do esposo. Com a chacara preciosa foi galardoada a benemerita sollicitude de Pinto Monteiro—o vingador de Tinoco e da Moral, que eu sempre escreverei com o M maior que eu podér.

Fortunato de Brito, o chefe da policia, foi demittido por este tempo. Antonio José Pinto Monteiro resolveu repatriar-se. A denuncia dos moedeiros açulara-lhe muitos e poderosos mastins. A imprensa brazileira insultava a colonia portugueza pelo facto do crime e pelo facto do delator. A equidade foi estranha aos odios e injurias que golpearam Monteiro. Não lhe descontaram na perfidia as vantagens commerciaes que derivaram d'ella. Cessára o panico e o terror imminente de um cataclismo no credito e nas casas bancarias. A policia, allumiada pelo cego, sabia as veredas que em Portugal conduziam aos balancés. A gente honesta, e, o commercio honrado rejubilavam com a traição de Pinto Monteiro; mas, atidos ao velho proloquio onde não reluz faúla de philosophia pratica, execravam o homem que levara ás plagas do degredo os salteadores da probidade incauta.

Esta victima ainda não estava inscripta no martyriologio dos grandes lapidarios da civilisação.

VI

Os meus informadores, que mais privaram na intimidade de Pinto Monteiro, dizem que elle, no segundo regresso a Portugal, trouxera, além de secretario, dois filhos, que deixára no Porto a educar no collegio da Lapa, e uma filha ainda muito na flôr da mocidade. Da mãe d'estes meninos, que pouco ha vivia ainda nos arrabaldes do Rio de Janeiro, não ha nada romanesco; mas bem póde ser que houvesse da parte d'ella um profundo sentimento de dó com muitissima abnegação de si mesma; e no coração do cego com certeza houve extremoso amor de pai. Os tigres sempre tem, e os homens costumam ter ás vezes este sancto instincto de amarem os filhos.

Vinte e tantos contos prefaziam os haveres de Pinto Monteiro. Concluiu as obras principiadas, comprou terras, e dirigiu pelo tacto as bemfeitorias que fez no predio que habitava. Ha duas horas que eu estive a reparar, por cima do muro do jardim, na graciosa vivenda que elle enchera de luz como se um beijo do sol de agosto podesse descondensar a algida escuridão de seus olhos. Ali passaram alegres dias os seus convivas sob os caramancheis das parreiras. O grande prazer de Monteiro era dar banquetes opiparos.

Ouvia lêr as Artes de cosinha, conhecia Brillat-Savarin, enchia-se do fino sentimento dos guisados; e, apontando a petuitaria aos vapores das cassarolas, marcava quando era sobejo o cravo ou escasso o colorau. Fazia pensar se a vista, voltando-se para o interior, penetrava nos refêgos membranaceos o ideal do estomago! Se um cego illustre deplorava o perdido paraiso, outro cego parecia tel-o encontrado na cosinha.

Elle, que na America posera o cauterio á ladroagem, á falsificação das notas e ao adulterio aggravado pelo homicidio, não sabia como amordaçar a maledicencia dos seus conterraneos, se não occupando-lhes as linguas no trabalho da deglutição. A cada injuria que lhe chegava aos ouvidos, mandava comprar dois leitões.

—Mano Antonio, dizem que tu entregaste os ladrões ao chefe da policia—dizia a menina Neves.

—Dizem? pois, visto que não os posso entregar a elles, compra um peru e dá-lh'o ámanhã com recheio.

—Mano Antonio, agora dizem que denunciaste os da moeda falsa.

—Compra anhos e capões; attasca essas linguas em podim de batata, embola-m'os com almondegas, deita-lhes aziar de ovos em fio, afoga-lhes os escrupulos em vinho de 1815, menina.

E, depois, tinha outra paixão que o deliciava: arranjar casamentos.

Florecem hoje em Landim alguns cazaes de pessoas ditosas que elle ajoujou, vencendo estorvos á custa de engenhosas intrigas, e até de liberalidades de suas abatidas posses.

A filha de um cabaneiro, que se creava por sua casa, era o passa-tempo do cego. Chamava-se a Narciza do «Bravo»,—alcunha paterna. Até aos treze annos andava vestida de rapaz, e media-se com os mais gaiatos a trepar á grimpa de um pinheiro, no assalto nocturno ás cerejeiras, em duellos á pedrada, no jogo do pao e no murro. Era virilmente bella, e bem feita; mas os meneios adquiridos nos trajos de rapaz desengraçavam-na vestida de mulher. Ella mesmo olhava para si com zanga e puxava a repellões as saias esfrangalhando-se. Pinto Monteiro dava tento destes phrenesis, ria-se muito, e contava-lhe casos de mulheres portuguezas que batalharam incognitas, cobrindo os seios com arnez de ferro.

Estava no plano do cego cazal-a. Narciza dizia-lhe que não pensasse em tal, porque a primeira pirraça que o marido lhe fizesse, favas contadas, esmurrava-lhe os focinhos. Este programma não assustou Pinto Monteiro, visto que os focinhos ameaçados eram os do marido.

A rapariga foi pretendida extra-matrimonialmente por varios devassos de Landim, S. Thryso, e terras circumjacentes. A virago tinha perrixil do que morde nas linguas já embotadas; mas tambem tinha mãos nervudas e uns dedos nodosos que se fechavam em forma de box, assim que os pimpões lhe cantavam desafinados.

Um d'estes era um forte lavrador de Sequeirô, o Custodio da Carvalha. Apaixonou-se com a resistencia, e fallou-lhe serio em casamento. Narciza contou a passagem ao cego, que batia as palmas com vehemente jubilo, exclamando:

—Ó moça, aproveita antes que o rapaz se arrependa! Olha que elle colhe trinta carros, e é um bonacheirão… E que tal o achas de figura?

—Eu sei cá!…

—Tu gostas d'elle ou não gostas?

—Como se nunca nos vissemos.

—Então, não o conhecias ha muito tempo já?

—Nunca o vi mais gordo.

—Mas queres cazar com elle ou não?

—Tanto se me dá como se me deu; mas o padrinho diga-lhe que, se se faz fino commigo, eu pinto ahi a manta, que elle não sabe de que freguezia é. Eu não ponho unhas em foicinha nem sachola, ouviu? Não fui creada na lavoira. Se elle pega a mandar-me sachar milho ou cegar herva, temo'las armadas.

—Caza, que tu amansarás…—dizia o cego.

E cazou.

Monteiro deu-lhe magnifico enxoval, cordão, cabaças, anneis, broche; vestiu-se de fino panno; foi padrinho do casamento, banqueteou os noivos com muitos convidados, chamou a musica de Paiva de Ruivães, e queimou dez duzias de bombas reaes.

O marido sentiu as fascinações que enchem de delicias o inferno dos corações escravos. Ella manietou-o sem violencia de mau genio, com as suas caricias de gata que desembainha as unhas brincando. Folia rija! Romagens, quantas havia no Minho; festanças com tres clarinetes e requinta todos os domingos na eira; a Cana verde e o Regadinho saltado pelas maiatas mais frandunas; brodios e vinho, fasta fora. Comprou egua de marca, vestiu-se de amazona, e ella ahi ia com o marido corcovado, somnambulo, a chotar na mula esparavonada atraz d'ella por essas feiras e romarias. Ás vezes, se os moleiros não despejavam depressa os caminhos atravancados com os seus jumentos carregados de foles, verberava-os com o chicotinho, e chamava-lhes canalhas. Em questões com os visinhos, por causa de regas ou invasões de gado, fazia ameaças sanguinarias. Carregava as espingardas do marido e atirava aos gaios com pontaria infallivel. Quando soube que as senhoras do Porto usavam collete e gravata á laia de homens, exultou, como quem vê triumphar a sua idéa, e quiz vestir calções e botas á Frederica.

O lavrador, já no cairel do abysmo, vendidas as melhores propriedades, quiz reagir. Viu que tinha pela frente um virago de fibras. Afroixou por medo e por amor. O pusillanime vergava ao prestigio da força. Narcisa offuscava-o com a rutilante belleza do demonio, disfarçado na lendaria Dama Pé de Cabra, e n'outras damas que o leitor conhece com pés chinezes.

Dobados dez annos de vertiginosa dissipação, o lavrador resvalou do idiotismo á sepultura, amando ainda a mulher que vendera um lençol para lhe comprar a ultima gallinha. E Narcisa, viuva aos vinte e oito annos, e ainda formosa, atirou com a honra ás goelas do dragão da miseria, e não chorou uma lagrima.

Havia uma amiga que lhe dizia palavras dolorosas, com sincero dó: era a irmã do cego. Pobre Neves! quem te predisséra o supplicio dos teus derradeiros annos, ligada ao destino da mulher que tu crearas com maternal ternura!…

VII

Entretanto, o padrinho de Narcisa não escarmentava no sestro de casamenteiro; é certo porém que similhantes casos assim funestos, não se repetiram nas suas operações matrimoniaes. Por esse tempo, casou elle a filha com diminuto dote, e abriu a carreira do sacerdocio a um filho, que outras vocações depois afastaram da egreja. Os seus teres, com judiciosa economia, seriam bastantes á decencia aldeã; porém, privar-se da mesa farta e franca, era privar-se de amigos que lhe festejassem as anecdotas. Pinto Monteiro, no dia em que falisse de auditorio, começaria a morrer no abafador silencio da cellula penitenciaria.

Empobrecia rapidamente: mas dava a perceber que a philosophia de Job é a ultima moeda com que o homem decahido compra a resignação e a gloria eterna, par dessus le marché dizia elle.

Amaro Fayal, confidente dos secretos desfalques do patrão, pensou em retirar-se para o Brazil, visto que não tinha secretaria para fiscalisar, nem desprendimento tamanho que acceitasse outra vez o officio de moço de cego.

É aqui o logar de repetir litteralmente uma accusação que todos os meus informadores, sem discrepancia, irrogam ao cego de Landim:

Um lavrador da Lamella, induzido por Pinto Monteiro, vendeu as suas herdades por alguns contos de réis, a fim de ir negociar no Brazil e centuplicar o seu dinheiro. Sahiu Monteiro com destino ao Rio, levando em sua companhia o lavrador. Passados dias, apparece em Landim o cego, fingindo-se doentissimo, e diz que o seu companheiro embarcara, e elle retrocedera forçado pela molestia. Ora, do lavrador nunca mais houve noticia; mas, no governo civil de Lisboa, fôra visado o passaporte de José Pereira da Lamella, e o mesmo nome inscripto na lista dos passageiros. Isto não obstante, o cego era accusado de haver matado em Lisboa o lavrador, não podendo roubal-o por maneira mais suave; e a certeza confirmou-se quando parentes que o Lamella tinha no Rio, perguntados a tal respeito, responderam que nunca viram tal homem, nem, depois de chamado pela imprensa de todas as provincias, apparecera. Asseveravam, porém, que um nome similhante se lia na lista dos passageiros desembarcados no Rio, no mesmo navio e mez em que de Portugal se informava que elle partira.

Seria mais natural suppor que José Pereira morrera obscuramente em alguma rossa; mas á calumnia pareceu mais romantico decidir que o cego o matára.

—Como presumem os senhores que o cego matasse o lavrador?—perguntei.

—Não sabemos; mas o mais provavel é que o atirasse ao rio quando o bote ia para bordo da galera.

Esta era e é a opinião corrente. Pelos modos, o cego, em pleno sol do Tejo, na presença dos barqueiros, alijou o passageiro ao rio, e fez remar para terra o bote com a bagagem do morto; depois, saltou no Caes das Columnas com a mala do dinheiro debaixo do braço, e ás apalpadellas lá se foi pacificamente caminho de Landim.

Corre parelhas em maldade e estupidez esta aleivosia, é certo; mas o lavrador, de feito, fôra assassinado em Lisboa.

Agora, posto que tardia, ahi vem a rehabilitação de Antonio José Pinto
Monteiro.

Quem induzira o lavrador da Lamella a vender as terras foi Amaro Fayal, offerecendo-lhe sociedade em negocio que rendia 200%. O Pereira da Lamella era calaceiro. O trabalho agricola pezava-lhe: as suas terras, avaliadas em cinco contos, rendiam escassamente o passadio grosseiro do lavrador minhoto. Calculou, firmado na prova mathematica das cifras de Amaro, que, ao fim de cinco annos, devia ter cinco contos dez vezes multiplicados. É claro: 200%—5 vezes 10—50 contos. Vendeu as terras e partiu com o ex-secretario do cego. Pinto Monteiro, sinceramente affeiçoado ao seu confidente de vinte annos de varia fortuna, acompanhou-o até ao Porto, e d'ali voltou para Landim algum tanto enfermo, e ás pessoas que lhe perguntavam pelo Pereira da Lamella respondia naturalmente que tinha embarcado. Dava-lhe, porém, que scismar não estar o nome de Amaro Fayal na lista dos passageiros.

O leitor já descobriu que o assassino do lavrador foi Amaro; que o passaporte do morto serviu para o matador; mas ignora os pormenores do crime, e eu tambem os não sei.

Passados annos, um correspondente de gazeta escrevera o essensial da calumnia que assacava o homicidio ao cego. O delegado de Villa Nova de Famalicão, Soares d'Azevedo, e advogado de Pinto Monteiro em diversas demandas, aconselhou-o que justificasse a sua innocencia n'este crime que lhe imputavam, porque deixal-o á calumnia e á revelia era arriscar-se a perder todos os seus pleitos. O cego, com a lucida intuição de quem tinha longa pratica de crimes tenebrosos, explicou a morte do lavrador, comprovando-a pelas circumstancias do passaporte, pela omissão do nome do homicida na lista dos desembarcados no Rio, e pela certeza que lhe deram de Amaro Fayal ter morrido poucos dias depois que chegára, no hospital, com o roubo ainda intacto, segundo vira na noticia dos espolios dos fallecidos. Replicou-lhe o delegado que semelhante justificação era insufficiente: o cego redarguiu que não tinha outra, nem essa mesma daria, se Amaro Fayal fosse vivo, por que no seu braço se amparara vinte annos, vinte annos vira pelos olhos d'elle, e mal remunerado o despedira, sem que o seu guarda-livros murmurasse da mesquinhez da paga.

VIII

Em 1858 o cego, escasso de posses, escorregava na ladeira da pobreza. Havia vendido ou hypothecado as terras. Perdera demandas valiosas: parece que em quasi todas influiu a sua má nota a desculpar a injustiça. Duas quintas lhe foram extorquidas com tão estranho desafôro, que é mister acceitar-se intervenção de jurisprudencia divina para que o homem as perdesse, pois é de crêr que as adquirisse com dinheiro deshonrado. Dizia elle que viera encontrar em Portugal especies de ladrões fleugmaticos e frios, que não topara nos climas quentes; e que o larapio luso-brasileiro era francamente analphabeto e lerdo, ao passo que o ladrão, extreme e puramente luso, era, por via de regra, além perverso, bacharel formado. Alludia a dois adversarios jurisconsultos que eu escondo á curiosidade do leitor, por que me sustém o pulso um quasi religioso respeito á memoria honesta de Paiva e Pona, e tambem de Pêgas.

Com as ultimas moedas, abriu Pinto Monteiro um botequim em Famalicão, faz hoje dezesete annos. A villa, n'esse tempo, estava na apojadura das suas prosperidades. Choviam ali brazileiros que nem maná nos areaes da Mesopotamia. Dos paúes alagadiços irrompiam casas de azulejos variegados. Villa Nova era o centro da locomoção do Minho, da mercancia agricola, da villegiatura dos portuenses; mas não tinha o «café»—a prova real da civilisação.

Pinto Monteiro contava com as leis do progresso; porém, Villa Nova que hoje, na extrema decadencia, tem tres «cafés» com dois limões sorvados e tres garrafas de licor de canella, em tempos florentissimos não sustentou o botequim do cego em que havia cognac, coraçáo, chartreuse, kermann e absintho. É porque, ha dezesete annos, o progresso material desconhecia a precisão dos «cafés», paragens d'uns ociosos que se putrificam, raça amollentada no sybaritismo da cerveja de quartola, com grandes orgias de cigarros de Xabregas.

O cego apenas vendia algum capilé aos vigarios encatarroados e orchatas aos adiposos. A ruina ia consummar-se e o botiquim fechar-se, quando chegou á villa, e se hospedou no hotel um brazileiro doente vindo do Rio com sua esposa. Pinto Monteiro conhecia de nome o enfermo.

Visitou-o e acompanhou-o nos desalentos da cachexia, animando-o ou distrahindo-o com a sua variada e jovial conversação. Alvino Azevedo affeiçoou-se-lhe a ponto de, chegado ao termo dos soffrimentos, lhe confiar sua mulher, pedindo-lhe que a protegesse e guiasse na administração dos seus haveres. A esposa do enfermo estava um pouco longe da idade em que as viuvas correm perigo, se as não vigiam: tinha setenta annos feitos, e já não conservava toda a frescura das suas dezoito primaveras nem os dentes completos. Os dons do espirito não eram transcendentes nem talvez bastantes para seduzirem outro marido: D. Joanna Tecla era idiota.

O cachetico expirou nos braços do cego, despedindo-se da esposa com uma olhadella cheia de saudades, e talvez de esperanças no paraizo de Mafoma; em que as mulheres velhas remoçam. Ella chorou copiosamente, e declarou que aquelle morto era o terceiro marido que lhe fugia para o ceo. Elles tinham tido razão em fugir todos.

D. Tecla passou para casa do cego com todo o resguardo da sua pudicicia, acompanhada pela mana Neves.

Passados os tres dias de nôjo, perguntou-lhe Pinto Monteiro se queria voltar ao Brazil, sua patria, ou ficar em Portugal, recebendo os rendimentos dos seus predios no Rio. A viuva respondeu que a sua posição era muito melindrosa; que uma senhora não podia ir sósinha para tão longe; que o mundo estava cheio de homens mal creados que mediam tudo pela mesma raza; que não queria sujeitar-se a algum desaguisado por essas terras de Christo; que em fim, não ia para o Brazil sem ter familia muito honesta com quem fosse.

—Mas então, minha senhora;—redarguiu o cego—quer, entretanto que não vai, viver sósinha em Villa Nova, ou dá nos o prazer da sua companhia? Seu defunto esposo encarregou-me de a dirigir; eu, porém, o que farei é conformar-me com a vontade da senhora, que já tem sufficiente idade para saber o que lhe convem.

—Não sei nada do mundo—acudiu Tecla—Estou muito verde. O senhor é que ha de guiar-me.

—Deus lhe dê melhor guia do que um cego, minha senhora;… mas ahi tem a minha mana que lhe será companheira e irmã.

No dia seguinte, Monteiro fechou o botiquim com um sorriso sarcastico, e o ar solemne e vingativo de quem fechava a porta que franqueára á civilisação de Villa Nova. Elle vociferou que os habitantes de Famalicão eram indignos do «Café», deu volta á chave, e foi caminho de Landim com a hospeda e a irmã.

IX

Os dois predios que a viuva possuia na rua da Quitanda valiam quarenta contos de réis fracos; as suas joias, dádivas de tres maridos, eram muitas e nem todas de pedras falsas. A idade da viuva animava um quarto marido, na hypothese de caber a esse quarto a vez de a ver fugir para o céo a ella. O certo é que andavam já dois empregados da fazenda e outros tantos da administração a expiarem o ensejo de lhe seduzirem a inexperiencia, quando a viram ir impertigada n'umas andilhas, caminho de Landim, a chotar, e a rir-se dos solavancos do macho.

Os pretendentes pegaram de gritar contra o cego, assacando-lhe o rapto e a coacção da viuva. O juiz de direito viu-se forçado a deferir ao requerimento de um curioso que pedia uma visita domiciliaria ao carcere privado de D. Joanna Tecla Alves. Effectivamente a hospeda de Pinto Monteiro foi interrogada em presença de testemuhas, se estava n'aquella casa por sua livre vontade, não coagida nem seduzida.

Respondeu que estava muito contente, e que podia estar onde quizesse.

O juiz concordou.

Algumas cartas amorosas em papel perfumado lhe enviou o mais galan dos funccionarios de Famalicão. Joanna Tecla relia as cartas com secretas delicias; mas, no exterior, fingia-se de uma isenção que faria envergonhar Arthemisa, viuva de Mausólo e as combustiveis viuvas do Malabar. Perguntava á sua amiga Neves quem era o tolo que lhe escrevia; e, rindo com a garridice arisca dos dezeseis annos, dizia que seria grande pagode mangar com elle, respondendo-lhe ás cartas.

A mana do cego segredava ao irmão:

—Olha que a velha é tola, mano Antonio; trata de cortar os voadouros á cegonha: senão, hasde vêl-a voar aos braços do quarto marido.

—O quarto marido heide ser eu!—disse o cego com uma visagem de martyr voluntario—Heide ser eu o quarto marido—repetiu elle, tragando um copo de rhum para ganhar alma—porque a ter de entrar n'esta casa o espectro da miseria, é melhor que entre Joanna Tecla. Não me lembra como se chamava um cego que dava graças a Deus porque não podia vêr um certo tyranno; eu tambem as dou, porque não posso vêr a minha noiva.—E enchia o copo esvasiado, mascava o charuto, e fazia com as duas pernas um curso de geometria—Sacrifico-me a ti e a meus filhos. Vou ser o bode expiatorio das minhas e vossas prodigalidades; mas levo a certeza de que ella ao menos me será esposa fiel—o que é raro antes dos setenta annos. O seu terceiro defuncto disse-me que Tecla era uma paz d'alma, bruta sim, mas boa. Emfim, mana, sonda-m'a; vê se lhe achas vontade de casar quarta vez.

—Tomára ella!—acudiu a irmã—Está sempre a dizer: «Isto de mulher sem homem é como peixe fóra de agua.» Põe papelotes todas as noites, e faz caracoes quando se ergue. Que quer isto dizer? Queres que eu lhe toque no casamento comtigo?

—Toca; que eu começo hoje a fazer-lhe a côrte.

Na tarde d'esse dia, passeava Monteiro, debaixo da parreira do seu quintal, pelo braço da viuva. As calhandras e os pintasilgos trilavam os seus requebros ás margens do rio Pele. As rãs coaxavam nas pôças, e as auras ciciavam na ramaria dos álamos. Era uma tarde de tirar amores do olho de uma couve lombarda.

Passeavam silenciosos, quando ao longe, no pinhal do mosteiro, cantou um cuco.

—Olhe o cuquinho a cantar!—disse ella com meiguice.

—Gosta de ouvir o cuco, sr.^a D. Tecla?—perguntou o cego.

—Eu gosto de toda a passarinhada—respondeu ella com as denguices infantis da Lili de Goethe.

—O cuco é passaro de máo agoiro!—tornou elle—Eu, com medo de tal ave, não quiz casar.

Tecla riu-se descompassadamente, provando que conhecia a línguagem symbolica da ave agoureira. E o cego, n'esta entreaberta de galhofa, beliscou-lhe a polpa do braço esquerdo.

—Ai!—exclamou ella—Isto que foi?!

—Não se ria assim das fraquezas do proximo, Joanninha!—respondeu o cego, dando ao beliscão o ar innocente de um gracejo familiar—Eu não quiz casar nunca porque o meu coração nunca sentíu ao perto nem ao longe a mulher digna d'elle. Cheguei aos cincoenta e dois annos, pode-se dizer, sem ouvir a este coração as palpitações que estou agora ouvindo. É a primeira vez…—e estreitava-lhe o braço contra o lado esquerdo com umas pressões trémulas—é a primeira vez que amo; porque é esta a primeira vez que encontro a mulher, a esposa digna da minha ternura. Que me responde, Tecla? não me responde, prenda adorada?—instava elle sacudindo-lhe a mão com transporte.

A viuva inclinou a face para o seio, deixou-se apertar com o indolente abandono de suas faculdades sensitivas, esteve impando como quem suspira a custo, e murmurou:

—De vagar se vai ao longe, sr. Monteiro.

X

Aquillo foi depressa. O fervor reciproco dos noivos, e o preceito do poeta pagão que manda não adiar os prazeres, abreviaram quanto possivel a identificação das duas almas. O reitor, que os recebeu, era um padre bom e jovial que até a estes noivos disse o que dizia a todos: «Eu espero o vosso primeiro filho d'aqui a nove mezes.» A noiva entreabriu á flor dos beiços um hypothetico sorriso de pudor; o cego, porém, ferido na infecundidade da esposa, disse, carregando o semblante:

—N'este acto, sr. reitor, são improprias as chalaças.

O padre, querendo emendar eruditamente a inadvertencia, respondeu:

—As santas escripturas fallam de Sára…

—Eu não sou Abrahão—replicou o cego, voltando-lhe as costas.

Reverdeceram os contentamentos da meza lauta e das intimas palestras ao fogão. D. Tecla Monteiro confessava que nunca tão felizes lhe derivaram os dias da existencia. O cego sentia se docemente ameigado e bem, com o rosto no regaço da esposa. Saboreava os santos aconchêgos da companheira canonica. Recendia-lhe o ninho dos seus amores licitos um patriarchismo anterior ao sacramento do matrimonio, é verdade, mas puro como os conubios de Jacob e Lia, de Ruth e Booz. Ella não o idolatrava com o maior phrenesi, mas aquecia-lhe no inverno os lençoes com botijas, e de manhã levava-lhe uma chavena de sagú, que pessoalmente cosinhava com todos os primores d'uma vocação especial para os mingáos.

Na venda das propriedades liquidára Monteiro menos do seu valor; mas ainda assim não desceu de vinte contos de réis o dote da esposa. Parte d'este capital empregou-o em uma quinta no Alto-Douro, outra parte na reincidencia de pleitos que havia perdido, e o restante nas opulencias da meza, e nas liberalidades com os renovados amigos. Do mesmo passo que a opinião publica encarecia a velhacaria do cego, formava-se uma confederação de sujeitos que lhe exploravam a perdularia generosidade. Emprestava facilmente dinheiro, e não negava esmola, nem se desculpava com a falta de cobres. «Tal desculpa seria boa,—dizia elle—se os mendigos se offendessem com as pratas.» E tambem dizia: «Ninguem dá esmolas mais ás escondidas do que eu, porque nem vejo as pessoas a quem as dou!» Triste gracejo proferido por um cego.

Pinto Monteiro, que tanto refinára em astucias, no ultimo quartel da vida, deixava-se enganar por qualquer velhaco montezinho. A quinta do Alto Douro, comprada por seis contos de réis, foi uma venda fraudulenta: a propriedade estava hypothecada á fazenda nacional, e o vendedor, apresentando titulos falsos, recebeu o dinheiro no Porto, e fugiu. Os convivas do cego rejubilavam a cada arremesso novo que a desfortuna lhe dava para a pobreza, e as pessoas contemplativas observavam ás incredulas que o enorme delinquente estava soffrendo retaliações providenciaes. É de crer que sim.

Lance admiravel! Pinto Monteiro mantinha serenidade socratica e imperterrita a cada lançada que lhe resvalava na rodella da philosophia. Se a irmã ou a esposa choravam, e elle dava tento d'isso, dizia-lhes: «É uma vergonha chorar quando a vida é tão curta! As dores são um sonho mau de que se acorda na sepultura.»

Ao sentir desfibrar-se-lhe a corda tenaz da paciencia, digna de um christão, emborcava garrafas de genebra, e fumava sempre até cair marasmado pelo alcool e pela nicotina; mas, se antes da prostração, se exaltava em desvarios de ebrio, as phrases refloreciam os raptos de eloquencia que aos vinte e cinco annos o arrebatavam nos clubs fluminenses. N'estas occasiões, projectava ir ao parlamento, e ensaiava discursos tão bonitos que pareciam ser decorados no «Diario das Camaras.» Ás vezes pedia á mulher e á irmã que lhe fizessem «ápartes» para o picarem. A boa de D. Tecla dava-lhe para se rir, ou pedia-lhe amorosamente que se deitasse—pedido que a gente não pode fazer a todos os oradores parlamentares.

N'estas intermittencias, quasi sempre risonhas, se passavam os dias e boa parte das noites n'aquella murmurosa casa de Landim. D. Tecla desmentira os viticinios que a deploravam, esbulhada do dote e abandonada á piedade do Azylo das velhas do Camarão. Não teve uma hora de tristeza esta senhora; nem se quer ligeira borrasca de ciume, em sete annos de casada, lhe nublou as suas alegrias de esposa leal. Ás setenta e seis primaveras seguiu-se um inverno rigoroso de catarraes e gota, com perturbações no apparelho digestivo, tympanites e colicas flatulentas. A morte arrebatou-a em dezembro de 1861 dos braços do marido que, pela primeira vez na sua vida, chorou.

XI

Sete annos de glacial solidão giaram sobre a alma de Pinto Monteiro. As portas da sua casa raro se abriam. Concordemente se disse que o cego estava pobre pela terceira vez. Era verdade: estava pobre—vendia o restante das joias da mulher.

Ás vezes entrava n'aquella casa a Narcisa do Bravo, sentava-se á mesa ainda abundante do padrinho, e matava a fome. A irmã do cego debulhava-se em pranto a confrontar aquella desgraçada de rosto empolado com esfoliações rubras á formosa noiva de Custodio da Carvalha, á gentil amazona por amor de quem alguns fidalgos de Guimarães terçaram as suas badines de caoutchouc na romaria de S. Torquato.

Sobre todas as famas repellentes, ganhara Narcisa, com legitimo direito, a de ladra, e ladra á mão armada. Os mais queixosos eram os que lhe colheram as flôres já outoniças da belleza, e a regeitaram com a brutalidade do tedio. Narcisa sahia-lhes de rosto nas concavidades das congostas escuras, e abocava-lhes á cara uma pistola de dois canos; e elles, com um fingido sorriso de piedade despresadora, atiravam-lhe a forçada esmola. Outras vezes, escalava as janellas das alcôvas conhecidas, e entroixava os bragaes como se inventariasse o espolio de um esposo fallecido. E temiam-na como a um scelerado disposto a vender cara a vida, por que ella deixava entrever a coronha da pistola entre os atacadores do collete escarlate, e, se sofraldava as saias, quando saltava as poldras dos ribeiros, mostrava a faca de ponta atravessada na liga. Os regedores das freguezias que ella frequentava tinham ordem de a capturarem; mas o mêdo, predicado pacifico d'estes magistrados, era a resalva de Narcisa.

O cego de Landim não ignorava a desastrosa sahida de sua afilhada; conselhos, n'aquella extremidade, eram perdidos; censuras, a si proprio as fazia o cego por que encetára a perdição d'aquella moça, tirando-a da arribana de seu pae, para a crear nas regalias da abundancia, sem vislumbres de religião, em plena liberdade de se viciar com as travessuras e gaiatices que lhe festejavam. Narciza era talvez uma das polés que torturaram o cego nas impenetraveis agonias dos seus ultimos seis annos.

Contava um rapazinho, creado de Pinto Monteiro, que ouvira, uma vez, sua ama dizer a Narciza que ia mandar vender dois cobertores porque não havia dinheiro em casa; e que Narciza lhe dissera que não vendesse os cobertores, por que ella ia vender a sua pistola por meia moeda. Não tenho outro lance generoso que possa referir de Narciza do Bravo.

Quando este caso passou, entrava Antonio José Pinto Monteiro nos paroxismos da morte. A 28 de novembro de 1868, pelas dez horas da manhã, disse á irmã que lhe accendesse um cigarro, e abrisse as janellas, que sentia grande calor e ancia. Sentou se no leito, e inspirou consoladoramente a columna de ar frigidissimo que lhe bateu no rosto, ao abrir da janella. Pediu uma chavena de café, e, emquanto a irmã o fazia, Narcisa veiu para a beira do padrinho.

—Quem é?—perguntou o cego.

—Sou eu, padrinho. Está melhor?

—Vou estar melhor, filha. Isto vai acabar. Quando eu morrer, faze companhia á minha pobre irmã…

Narcisa chorava, beijando a mão do cego, que se estorcia nas dôres da cystite. Ao cahir da noite, a prostração, a febre, os soluços, e o frio das extremidades diagnosticavam a gangrena. No 1.^o de dezembro, o cego de Landim expirou reclinado ao seio de Narciza, que se sentara no leito para o amparar nos derradeiros arrancos.

As suas ultimas palavras, no delirio que precedeu a morte, encerram toda a moralidade d'esta biographia:

—Eu tinha tres filhos que criei com tanto amor… Que é d'elles?…

E mais nada.

Os tres filhos do cego de Landim affrontar-se-hiam com o nome de seu pai? Para ter um peito amigo que o amparasse na agonia, foi mister que a sociedade remessasse para dentro da alcova do moribundo uma mulher perdida. Mas, lá ao longe, no Brazil, houve lagrimas saudosas no coração de uma filha. Pois quando é que Deus consentiu que uma filha as não chorasse… n'um epitaphio?

CONCLUSÃO

No cemiterio de Landim está uma sepultura com este letreiro:

AQUI JAZ ANTONIO JOSÉ PINTO MONTEIRO NASCEU A 11 DE DEZEMBRO DE 1808 FALLECEU A 1 DE DEZEMBRO DE 1868
TRIBUTO DE GRATIDÃO DE ETERNA SAUDADE QUE LHE DEDICA SUA INCONSOLAVEL FILHA GUILHERMINA

Anna das Neves ideara uma perspectiva de felicidades: viver os restantes annos em recatada pobreza, morrer mais desamparada que o irmão, e ser levada como quem remove um entulho ali para aquella sepultura onde se pulverisavam os ossos execrados do cego.

Estas felicidades não as gosa quem quer.

Um dia, a justiça, perseguindo Narcisa pelo roubo de uma coberta de fêlpo, soube que a Neves a mandara vender. A ordem de captura involveu-a como receptadora de roubos. Invadiram-lhe judicialmente a casa, e encontraram, para maior prova do crime, um açafate de maçãs camoezas, dois calondros e algumas batatas que Narcisa recolhera, de colheita aliás suspeitosa, nas lojas da casa da sua protectora. A irmã do cego foi capturada, e, sem fiança, encarcerada na lobrega enchovia de Famalicão. Dias depois davam-lhe a companhia de Narciza, que se entregara á prisão, arrojando a pistola, quando lhe disseram que a Neves estava preza. O juiz misericordioso condemnou-as a oito mezes de prisão, dado que os jurados as sobrecarregassem de crimes benemeritos de degredo perpetuo.

Cumprida a sentença, D. Anna das Neves Miquelina Monteiro vendeu a casa que o irmão comprára em nome d'ella. Com o producto d'essa venda transferiu-se, em 1872, ao Brazil, e levou comsigo Narcisa do Bravo. Parece que não tinha outros amores n'este mundo, e desejava expirar, como o irmão, nos braços d'ella.

E visto que não estamos dispostos a deixal-a morrer nos nossos braços, ó leitor, parece-me caridosa coisa que a não fulminemos com a nossa honrada raiva. Sou de opinião que sejamos inexoravelmente severos com os desgraçados e com as desgraçadas, quando elles e ellas repellirem a felicidade que lhes offerecermos.

S. Miguel de Seide—Julho de 1876.

IV

A MORGADA DE ROMARIZ

A

Francisco Teixeira de Queiroz

Auctor Da Comedia do Campo

POR
BENTO MORENO

Sauda com superior admiração e indelevel reconhecimento

Camillo Castello Branco.

A MORGADA DE ROMARIZ

I

Vi esta morgada, ha tres annos, em Braga, no theatro de S. Geraldo.
Estava em scena Santo Antonio, o thaumaturgo. A commoção era geral.
Tanto a morgada, como seu marido, o commendador Francisco José Alvarães,
choravam, ás vezes; e, outras vezes, riam se.

Era uma senhora de espavento, avermelhada, com as frescuras unctuosas e joviaes dos quarenta annos sadíos, seios altos e aflantes, pulsos roliços e averdugados pela compressão das pulseiras cravejadas de esmeraldas e rubis.

Riu-se a morgada quando aquelle Santo Antonio do seculo XIII recitou ás raparigas uma poesia madrigalêsca de Braz Martins,—bom homem que esteve quasi a regenerar o theatro nacional como elle deve ser. A poesia resava assim n'esta prosa innocente:

      Mimosa nasce a flor e vive ainda,
      Se arrancada não foi logo ao nascer;
      Assim a virgem nasce e vive pura,
      Se o vicio não trabalha p'ra perder
.

Et coetera, com a mesma uncção e musica.

A morgada sorrira-se para o marido; e elle, para mostrar que tambem percebera o chiste, formou um tubo com os beiços carregados de chalaças mudas, e disse com atticismo velhaco:

—Versalhada…

Ora, a morgada de Romariz, lagrimando com intelligencia na proza da oratoria, assim que algum personagem pegava de rimar, ria-se. Persuadira-se de que a missão dos versos era como a das cocegas. A natureza dera-lhe ao espirito aquelle feitio.

Remirei-a de esconso por sobre a espadua do esposo.

Ella bocejava nos entre-actos, até mostrar as campainhas; elle tosquenejava, e ás vezes, espriguiçando-se, grunhia:

—Estou massado.

—Podera…—obtemperava a esposa—a comedia bonita é… mas não ha nada como estar a gente na sua cama, Zézinho!

E dava tons lubricos ao diminutivo.

—Quem me lá dera…—volvia Alvarães deslocando as botas e dando folga e frescôr aos pés no aprazivel tunel dos canos.—O polimento estorcéga-me os calos…—queixava-se com azedume.—Comedias… Ora adeus! Patranhas…

—Modos de vida, homem…

E abriram juntos as boccas spasmodicas.

—Ao menos se eu viesse ceado…—dizia elle.

—Fizesses como eu…

—Não me cabia cá…—e batia com os dedos dobrados no alto ventre como se faz ás melancias suspeitas.

—Já agora hemos de vêr a scena da gloria que é o mais bonito…—opinava a esposa.

N'este comenos, visitou-os um meu conhecido de Famalicão. Ao erguer o panno, sahiu de lá, e entrou no meu camarote. Foi elle quem me disse o nome das duas pessoas, accrescentando:

—Ali, onde a vê, tem romance; dá materia para dois tomos…

—Picarescos? Não me servem… Eu quero philosophia: os meus leitores querem philosophia, percebe o senhor?

—É o que ella tem mais que dar.

—Ora essa!… O senhor sabe que ella tem isso? Queira apresentar-me…

—Deus me defenda… Eu disse á morgada que vossê era romancista…

—E ella que disse?

—Riu-se.

—Riu-se!? É boa… E o marido…

—O marido disse: Arreda!

II

Vejamos a philosophia que elles tem.

Melhor que uma estirada narrativa, desfigurada talvez pela imaginação do informador, li um processo que o sujeito me emprestou. Correra o pleito entre partes que litigavam em materia de casamento. Figurava uma donzella depositada judicialmente. O pai da nubente impugna, e allega que o pretendente a sua filha é um birbante de vilissima relé. O noivo, contrariando, expõe que o pai da sua futura e de origem tão canalha que, apezar de ser fidalgo da casa real, é filho de um salteador de estradas, como é publico e notorio, dizia o noivo, e accrescentava: «que não havia ainda vinte annos que o seu contendor exercitára o officio de fogueteiro em Villa Nova de Famalicão.» N'este conflicto, a depositada trancára o pleito vergonhoso acceitando outro marido que o pai lhe inculcou. A menina questionada era aquella morgada de Romariz, e o marido o commendador Alvarães.

Quanto a philosophia, este acontecimento pareceu-me assaz chôcho; eu pelo menos não lh'a encontrei, por mais que virasse do carnaz os personagens do processo. Louvei o procedimento da moça injuriada na pessoa do seu progenitor; mas o fermento de tal philosophia não me dava para levedar massa de cincoenta paginas. Abri mão do assumpto, e larguei-o ás imaginações florentissimas da minha patria. Porém, transcorridos dois annos, em um livro impresso em 1815, li uns nomes que tinha visto nos autos escandalosos. Examinei de novo o processo, e trasladei certas passagens que, alinhavadas a outras do referido livro, deram esta novella em que, por felicidade do leitor e minha, não ha philosophia nenhuma, que eu saiba.

III

Quando Villa Nova de Famalicão era um burgo de cem visinhos com um juiz pedaneo, sahiu d'ali para a côrte, em 1744, um rapaz de quinze annos, que principiára com seu pai officio de pedreiro. Assignava-se Antonio da Costa Araujo, escrevia limpamente e era esperto. Chamara-o a Lisboa um tio, mercador de pannos, estabelecido na Rua dos Escudeiros, que até ao terremoto de 1755 occupava parte do terreno hoje comprehendido na rua Augusta. Mathias da Costa Araujo, irmão do pedreiro, engraçou tanto com o sobrinho que, apezar dos poucos meios, mandou-o ás aulas dos jesuitas no pateo de Santo Antão, afim de o habilitar para clerigo, contra a propensão mercantil do moço. Mathias havia sido infeliz no commercio, e dizia que era máo modo de vida aquelle em que a prosperidade se desavinha da honra.

No 1.^o de novembro de 1755, o constrangido destino do estudante transtornou-lh'o a catastrophe em que seu tio pereceu debaixo da abobada da egreja de S. Julião, onde assistia ás missas dos fieis defuntos. Os seus medianos haveres armazenados devorou-lh'os todos o incendio. Ficou portanto em desamparo grande o estudante, e cuidou de amanhar sua vida, deixando arder sem saudade a grammatica latina do padre Alvares com os cartapacios correlativos.

Nicolau Jorge, mercador abastado, visinho e amigo do defuncto Mathias, condoido do sobrinho, chamou-o, ouviu-o discorrer a respeito da especie de mercadoria em que mais seguro negocio deveria tentar-se na crise do terremoto, e, applaudindo o, emprestou-lhe duzentas moedas de ouro. Leiloavam-se então, nas ruas e praças, fazendas avariadas por agua e fogo. Antonio da Costa Araujo arrematou por preço infimo fardos equivalentes ao seu avultado capital, pagando-os no mesmo acto com grande espanto do desembargador Torcilles, presidente das arrematações. Estabeleceu-se Costa Araujo no Campo de Santa Anna, e ganhou, no primeiro anno, com estas fazendas avariadas, doze mil crusados.[6] Volvidos seis annos, era um dos mercadores mais opulentos da côrte; morava no primeiro quarteirão da rua Augusta, á esquerda, indo do Rocio, e era geralmente conhecido pela alcunha de Joia. Tinha camarote effectivo na opera, banqueteava personagens de alta condição, recebia nos seus armazens a mais luzida sociedade de Lisboa com fidalga cortezia: chamava «joias» ás damas, e d'ahi lhe pegou a elle a alcunha desmaliciosa. Confluia ao seu balcão a flôr da cidade, por que ninguem o excedia na fina escolha dos atavios, no primor do gosto e em probidade de contractos. «Ali vinham—diz o coronel Francisco de Figueiredo—comprar-se os enxovaes para os grandes casamentos, o vestuario para todas as grandes funcções, de que houve muitas, entrando n'este numero os casamentos dos nossos soberanos, nascimentos de principes, os dias de annos de toda a real familia, e os trez dias das funcções da inauguração da estatua equestre do sr. rei D. José, o 1.^o de tão gloriosa memoria.»

Costa Araujo não compellia os devedores a pagarem-lhe judicialmente; que o infortunio dos que não podiam gosar a honra e o prazer da pontualidade fazia-lhe dó. Quiz o marquez de Pombal nobilital-o como fizera a outros commerciantes, mais para abater a fidalguia historica do que para levantar a burguezia industriosa. O Joia nunca pediu nem acceitou distincções. Foi toda a vida mercador, sempre ao balcão, ou encostado á hombreira da porta como hoje o não faria um caixeiro com a cabeça cheia de socialismo e oleo de amendoas dôces.

Á volta dos sessenta annos, Antonio da Costa Araujo enfermou de paralysia. Era solteiro. Chamou para sua companhia um irmão que tinha na terra natal, pedreiro como seu pae, e que nunca deixara de trabalhar, posto que o irmão rico lhe désse boa mezada, sem todavia lhe aconselhar officio menos grosseiro, por intender que são muitos os pedreiros felizes e pouquissimos os grandes do mundo que a inveja dos pequenos não perturbe.

O paralytico fez testamento em que repartiu o seu capital por diversos amigos, e deixou a seu irmão Bento da Costa tres mil peças de 7$500 réis.

Fallecido o Joia, appareceu em Famalicão Bento pedreiro, envergando um tabardo velho de briche, que exhibia com visagens consternadas, dizendo que não herdára outra cousa do irmão, o qual, tudo gastára e morrera pobre. O pedreiro, suppondo que o acreditavam, era boçal á proporção de avarento; faltava-lhe a velhaca finura que hoje em dia illustra os minhotos. Verdade é que não havia ainda gazetas que assoalhassem as verbas testamentarias; mas a noticia da herança de Bento chegára a Famalicão primeiro do que elle. Cincoenta e seis mil crusados e tanto! Quem poderia herdar secretamente riqueza tamanha n'um tempo em que bazofeava por Lisboa um argentario a quem chamavam O tresentos mil crusados, por que elle, vindo do Brazil, manifestára aquella colossal e quasi fabulosa quantia! Cem contos de réis, hoje em dia, é quasi uma vergonha possuil-os; e quem não fingir que tem essa somma quadruplicada, é um homem que, se souber governar-se com muito prumo, poderá talvez dispensar se de ser recolhido a um asylo de mendicidade.

O pedreiro era viuvo, vivia só, e tinha um filho soldado de artilheria do regimento do Porto, aquartelado em Valença. Quando a noticia chegou ao quartel, o rapaz, insano de alegria, desertou, confiado na herança. Entupiram-n'o, porém, o espanto e a consternação, quando encontrou o pai á orla da estrada a brocar uma penedia por conta de um lavrador. Recobrado do assombro, perguntou-lhe se não herdára tres mil peças de ouro. O velho poz os olhos espavoridos no céo, abanou a cabeça como os personagens da Iliada, desfechou contra o filho um esgar desabrido, e bradou:

—Tres mil peças!? tres mil diabos que te levem a ti e mais a quem levantou essa aleivosia! O que eu herdei foi um reguingote de saragoça já no fio. Se o queres, vai buscal-o, que elle lá está pendurado n'um gancho… Com que então, Joaquim, vinhas ao cheiro das peças?

—Vinha pedir-lhe, senhor pai—respondeu o moço com tristeza e respeito—que me livre de soldado, porque já não posso com o serviço. Estou doente, e preciso mudar de vida.

—Trabalha, faze como eu, que tambem não posso, e estou aqui a furar este calhau. Quizeste ser soldado… lá t'avém.

—Senhor pai, olhe que eu sahi da praça sem licença… sou desertor…

—Não me digas isso segunda vez, que te regeito esta broca á cabeça![7]

—Faz-me vossemecê uma esmola—replicou serenamente Joaquim—que eu antes quero a morte que as chibatadas… Sabe que mais, senhor pai?—proseguiu o desertor limpando o suor e as lagrimas—ou vossemecê me livra, ou eu vou juntar-me á quadrilha que anda na Terra Negra.

—Capaz d'isso és tu, alma do diabo! Sai-me da vista dos olhos que eu já te não enxergo, ladrão!

E, arrojando a broca e o maço pelo respaldo do penedo, sentou-se com os cotovellos fincados nas pernas, e scismou alguns segundos com a cara tapada pelas mãos esfoliadas e negras de terra.

O filho esperava, indeciso entre o odio e a compaixão. Se cogitava que o pai herdára as tres mil peças, e o deixava optar ente a chibata e a malta de ladrões, Joaquim sentia-se tremer de raiva; se, porém, a herança era uma invenção, o ar afflicto do velho sujo, roto e quebrado de trabalho, compungia-o.

N'esta vacillação, ergueu o pedreiro o rosto menos descomposto, e disse:

—Vai para casa que eu vou d'aqui fallar com teu padrinho… Ahi tens a chave; procura as peças e leva-as, que eu dou-t'as…

Esta zombeteira liberalidade incutiu logo em Francisco duvidas da herança. Entrou em casa e examinou toda aquella antiga e conhecida pobreza. Na lareira, entre cinzas, a panella de barro desbeiçada, e duas tijellas na trempe; o escabello corroido de caruncho, e a espaços espumado de gorduras lustrosas: o catre de bancos, e a enxerga rota e arripiada de palhiço: a candeia de ferro inganchada na parede; por baixo, pingada de sail, uma banca de pau santo com pés torneados, mas com as roscas esborcinadas, e gavetas de pinho em bruto com puxadores de corda. Sobre a miseria dos trastes, o lixo, a sordicia que o filho do pedreiro nunca assim vira, por que sua mãe ainda vivia, quando elle assentara praça. Aos pés da cama havia uma rima de cascabulho, grabatos de lenha, ferramentas quebradas, rodilhas e cacos. Em uma furquilha de quatro esgalhos pregada na trave mestra, pendia, coberto da fuligem da lareira, o albornoz poído que o irmão do Joia dizia ter herdado.

O desertor sentou-se na arca de pinho, contemplou aquella indigencia, e pensou comsigo:

—Acho que me mentiram… Meu pae não herdou nada… D'antes ainda n'esta casa havia uns lençoes lavados e pão á farta, quando recebiamos todos os mezes a moeda que o tio nos dava… E agora que ha de ser de mim?… Estou perdido!…

N'este comenos, assomou ao limiar da porta um visinho, que vira entrar o soldado.

—Estás por aqui, Joaquim Faisca?!—perguntou o Luiz Meirinho.

Convém saber que o filho de Bento ganhára alcunha de Faisca, desde que mostrou aos dezoito annos extraordinaria destreza em ferir lume no phosphoro dos ossos dos adversarios. O outro chamava-se o Meirinho, porque o havia sido do corregedor de Barcellos, e na opinião publica passára de quadrilheiro da justiça a capitão da quadrilha que infestava a Terra Negra. Continuava o officio, diziam alguns, ganhando na carreira dois postos de accesso.

—Vieste com licença?—perguntou o Luiz Meirinho.

—Não, senhor. Pedi-a, e não m'a deram—respondeu Joaquim, com o proposito de se acolher ao valimento do visinho, se o pai lhe não acudisse.—Eu estou doente do peito, e não posso com esta vida de soldado. Ouvi lá dizer que meu pae estava muito rico com a herança de meu tio. Desertei, cuidando que elle me livraria com dinheiro; mas agora mesmo o topei no Vinhal a quebrar pedra, e elle me disse que herdára um albornoz velho que ali está.

—E tu acreditaste?—atalhou o outro velhacamente.

—Á vista da miseria em que eu encontro esta casa…

—Pois fica sabendo que teu pae herdou tres mil peças. Sabes quanto fazem tres mil peças?… Cincoenta e seis mil e tantos crusados. Sabe toda a gente da villa que teu pae está riquissimo. Posso mostrar-te a copia do testamento. Teu pai é um miseravel, é a vergonha dos homens! Mata-se á fome, come duas tigellas de caldo por dia, e diz mal do irmão, porque lhe deixou um albornoz cossado, quando toda a gente sabe que o deixou rico…

—E o dinheiro?—acudiu Joaquim circumvagando os olhos pelos cantos da casa e da lareira.

—Dizem uns que o deixára em Lisboa a render, e outros querem que elle o tenha enterrado ahi n'esse chiqueiro; mas a minha opinião é que teu pae, se trouxe o dinheiro, não o tem em casa. Metteu-o debaixo d'alguma fraga ahi da serra por onde elle anda sempre a quebrar pedra.

—E que heide eu fazer, se elle me não livrar?—perguntou Joaquim.

—Eu sei lá, rapaz! Se o teu livramento depende do dinheiro de teu pai, não quizera eu estar-te na pelle! Levas as chibatadas da lei tão certo como eu quizera valer-te e não posso. Conheço-te desde rapazito, e nunca me hade esquecer que vai agora em dez annos, na romaria das Cruzes de Barcellos, me acudiste n'um aperto, e quebraste tres cabeças em quanto eu quebrei duas. Olha, Faisca, se te vires em apuros, procura-me; livrar-te de desertor, isso não posso eu; mas das chibatadas e da farda eu te livrarei…

—Como?

—Isso são contos largos… Ahi vem teu pai ao fundo da rua. Vou-me embora, que não posso encarar aquelle sordido avarento! Se eu soubesse que elle tinha o dinheiro no bucho, tirava-lh'o pelas guelas, e dava-t'o, rapaz!

IV

O pedreiro ainda vira o visinho a safar-se da sua testada.

—Que fazia aqui o Luiz Meirinho?—perguntou elle carranqueando.

—Nada: conversavamos…

—Eu cá á minha porta não quero coversas com ladrões, ouviste?

—Ladrões!… O Luiz não me consta… que…

—Passa tu na Terra Negra com dinheiro de modo que elle t'o bispe, e lá verás quem é o Meirinho. Hade haver tres annos que deixou o officio que rendia pouco; e, desde que não tem officio, comprou casa, tem cavalgadura, trata-se á regalona, come carne do açougue, e bebe do da companhia. E eu, que trabalho ha bons quarenta annos, custa-me a amanhar para uns feijões, e bebo agua da fonte.

—O sr. pai assim o quer…—atalhou Joaquim entre receoso e risonho—Perca o amor ás peças…

—E tu a dar-lhe!…—volveu iracundo o pedreiro—Já te disse que as procures!… Não herdei nada! não herdei nada!—e berrava convulsionado freneticamente, sacudindo os braços.

—Não grite assim que não faz mingua barregar!—atalhou o filho—A gente está conversando… ás boas… ein?

No aspecto do Faisca resumbravam sentimentos pouco filiaes. A ironia franzia-lhe os cantos dos beiços, ao mesmo tempo que a ira lhe avincava a testa. No ar com que se sentara na arca, dobrando o corpo e bamboando as pernas em gingações de tarimba, denotava quebra de respeito, e disposição a questionar faceiramente com o velho.

—Com que então…—proseguiu Joaquim—Vossemecê não herdou tres mil peças?

—Não!—bradou o pai—Não! com mil diabos (Deus me perdôe), não!

—E se eu lhe mostrar a copia do testamento…—volveu Joaquim esbolhando os olhos, abrindo a bocca, e pondo fóra a lingua em todo o seu comprimento—Que me diz vossemecê, sr. pai? se eu lhe mostrasse a copia do…

—Tu acho que vieste cá para dar cabo de mim!—interrompeu Bento, desentalando-se da sua afflicção por aquella estupida replica—Amaldiçoado sejas tu!…—E, com os dentes cerrados, e as mãos na cabeça, ia e vinha da lareira para a porta, considerando-se o mais desgraçado homem que Deus criara.

—Sr. pai!—continuou mansamente o filho—isto não vai a matar. Tome fôlego, e escute o seu Joaquim. Lembre-se que não tem outro filho a quem deixar os seus cincoenta e seis mil cruzados…

—Olha o diabo!—regougava o velho.

—O que eu lhe peço pouco monta. Livre-me de soldado, e dê-me alguma coisa para eu casar com a Rosa de S. Martinho. O pai d'ella decerto m'a dá, se eu levar mil crusados. Vou ser lavrador, terei saude e alegria, e nunca mais lhe peço nada, sr. pai.

Joaquim, desde que proferira o nome de Rosa de S. Martinho, mudára de tom e gestos. Os olhos imploravam, e a voz tinha as modulações do respeito. O seu amor de dez annos, golpeado de saudades, quebrara-lhe os pulsos. Se o pai n'aquelle instante abrisse no rosto uma tenue claridade de esperança, Joaquim acabaria a supplica de joelhos.

—Mil cruzados!—resmuneava o pedreiro—onde queres tu que eu os vá roubar?

Esta interrogação varreu do semblante do Faisca os signaes da boa reacção.

—Eu não quero que os vá roubar, valha-me Deus!—respondeu Joaquim—Mas, a fallar verdade, quem tem tres mil peças de seu tambem pode ser ladrão da felicidade de um filho que ainda lhe não custou seis vintens desde que pode trabalhar… Olhe, sr. pai, repare bem no que vou dizer-lhe… Eu para a Praça não torno. Sou desertor.

—Venho de casa de teu padrinho—acudiu o pai menos tôrvo—o sr. coronel Lobo da Igreja dá-te uma carta para o commandante, e diz que tudo se hade arranjar.

—Não torno para o quartel, já lhe disse. Estou doente, preciso mudar de vida.

—Que te leve a breca… Não quero saber de contos. Lá t'avem. Dinheiro não tenho; só se queres que eu venda a casa, e me vá depois pedir um eido nos palheiros dos lavradores á beira dos cães.

—Está bom—concluiu Joaquim erguendo-se e espreguiçando-se—vou ouvir a opinião do Luiz Meirinho, que d'um modo ou d'outro prometteu livrar-me da farda e da chibata…

—Vaes fallar com o Meirinho para isso, ó alma perdida?

—Pois então? Aquelle é amigo do seu amigo, e, se me fôr necessario dinheiro…

—Ensina-te a roubal-o…

—E elle que sabe onde o ha…—respondeu Joaquim bocejando, e fazendo tres signaes da cruz na bocca escancarada.

—Eu te deito a minha maldição!—bradou o velho com solemnidade bastante para a scena final d'um acto; porém insufficiente para abalar o 32 da 7.^a companhia do regimento de artilheria do Porto.

O Faisca sorriu, e murmurou:

—Vossemecê parece que tem mais maldições que pintos… Pois eu cá vou com a sua maldição, e depois… veremos se ella nos impece a ambos.

Bento, ao pular-lhe o coração em saltos de ruim presagio, ainda deu tres passos para chamar o filho, e avençar-se com elle mediante a quantia necessaria ao livramento; mas a imagem de um pote de ferro cheio de peças bateu-lhe rija no peito. Quedou-se como empedrado a olhar para a soleira da janella de peitoril, cujas portadas quatro travessas de castanho esfumado immobilisavam.

V

Poucos dias depois, o juiz de fóra de Barcellos incumbia ao ordinario do julgado de Vermuim a prisão do desertor Joaquim da Costa Araujo, d'alcunha o Faisca. A gente mais grada de Famalicão, convencida da riqueza do avarento sem entranhas, advogou a favor do infeliz moço, rodeando o pedreiro com rogos e até com insultos e ameaças. O pedreiro, assustado, foi ter-se com seu compadre o coronel Lobo da Igreja Velha; e, bem aconselhado pelo fidalgo, cujo credor era, deu o dinheiro necessario para abafar o processo militar, comprar a baixa e substituir a praça no regimento.

Em seguida, quando se viu esbulhado das economias que amealhara antes de herdar as trez mil peças, entrou-se de tamanha paixão—espicassaram-no tantas saudades do seu dinheiro, que morreria abafado, se não desafogasse no odio ao filho. As vinte e quatro moedas de oiro que lhe custara a liberdade de Joaquim, representavam fomes e sêdes, desconfortos de frio em noites de inverno, muitos suores em dias de estio no trabalho da serra a horas de sesta. E lembrava-se com bastante remorso que sua mulher padecera sem cirurgião e morrera sem botica, e fôra indigentemente enterrada, tudo isto assim desgraçado e infame, porque elle não quizera bolir n'aquellas vinte e quatro moedas.

No entanto, Joaquim, bem que muito grato ao pai, não se mostrou tão penhorado que prescindisse de o julgar obrigado a dar-lhe modo de vida. O velho mostrou-lhe um ferro de monte, um pico, um camartello, e disse-lhe:

—Se queres modo de vida, segue o meu. Anda d'ahi brocar uma fraga, e saberás quanto me custaram a ganhar as minhas vinte e quatro…—E, ficando entallado, esfregava os olhos debruados de rôxo com o encodeado canhão da jaqueta.

O filho não se compadecia d'aquellas lagrimas; antes se sentia bravejar de condição com remoques e até com odio á avareza do pai. Máo foi convencer-se Joaquim da herança, e suppor que o velho podia morrer sem testamento nem declaração do escondrijo do thesouro.

Debalde lhe espiava os movimentos, os olhares, as caminhadas no monte, afim de farejar a lota das tres mil peças. Bento d'Araujo ia frequentemente quebrar esteios de pedra nos penhascaes de Vermuim e vendia-os aos lavradores para especar parreiras. As desconfianças do filho seguiam o velho entre fragoedos, chamados o Castello; e o pai, que se julgou espreitado, alegrava-se secretamente, e não se mostrava offendido.

Entretanto, continuára Joaquim a sua velha affeição a Rosa de S. Martinho; e, confiando que a fama da riqueza do pedreiro seria bastante a que o abastado lavrador, esperançado na herança, lhe cedesse a filha, pediu-a affoitamente; mas o pai de Rosa tinha mediana confiança em sapatos de defuncto, e disse que só daria sua filha, se o noivo trouxesse mil cruzados em dinheiro ou terras. O moço namorado abriu de novo o seu peito ao pai, que parecia apertar os cordões da bolsa á medida que o coração do rapaz se abria. Joaquim, bem aconselhado pelo seu amor, soccorreu-se do padrinho, o coronel da Igreja Velha, pedindo-lhe que movesse o velho a dotal-o.

Era o fidalgo a unica pessoa que exercia influencia em Bento de Araujo, e tamanha que podera arrancar-lhe alguns mil crusados a juros, sob juramento de não dizer a alguem que lh'os devia. Mandou-o chamar, e aconselhou-o a que désse dote a Joaquim. Avultou lhe as funestas consequencias da sua teimosia em querer passar por pobre, quando toda a gente estava convencida do contrario; pintou-lhe os perigos em que elle punha o filho sem officio que o salvasse da camaradagem de vadios suspeitos com quem patuscava nas tavernas da Lagoncinha e outros logares infamados. A final, como o velho insistisse desaforadamente em dizer que não tinha senão o dinheiro que seu compadre lhe devia, o coronel rendeu o com esta honrada deliberação:

—Pois bem: tudo se arranja, querendo Deus e tu. Devo-te tres mil crusados; não t'os posso pagar, em quanto algum dos meus filhos não trouxer esposa com dote; mas irei tirar quatrocentos mil réis a juro em alguma Confraria, e esse dinheiro vaes tu dal-o a teu filho para casar com a rapariga, que é de boa gente, e hade ter dobrado ou mais do que elle tem.

As ultimas palavras de Bento, n'esta pendencia, definem cabalmente a sua natureza. Quando o compadre lhe disse:

—Tu virás de hoje a oito dias receber os quatrocentos mil réis para os dares ao teu Joaquim no acto da escriptura de casamento—Bento acudiu impetuosamente:

—Eu não quero vêr o meu dinheiro! Arranje v. s.^a cá isso, de modo que eu não veja o meu dinheiro!…

Elle sabia que, no acto da contagem dos mil crusados, seria capaz de agarrar a sacca e fugir com ella do escriptorio do tabellião.

Assim mesmo, o pedreiro, se tinha muitas maldades de avarento, possuia tambem algumas bellas qualidades de pae; e uma, digna de bastante memoria, é que, tendo elle em casa arsenico para matar os ratos, não o administrou ao filho.

VI

Joaquim de Araujo entrára na vida por má porta. Oito annos de caserna bastariam a degenerar-lhe as boas qualidades: mas, com certeza, o Faisca já tinha ganho esta alcunha á custa de turbulencias, quando assentou praça, e não se regenerára, como é de suppôr, no officio de soldado.

A sua nova posição de lavrador não lhe quadrava; a pesada rabiça do arado dava-lhe engulhos ao estomago, quando a sacudia do rêgo aberto para romper outro; o cabo da enxada empolava-lhe as mãos; de çafaras não sabia nada; ignorava todo o trafego da lavoira; e, em vez de aprender, como queriam a mulher e o sogro, ia bandarrear por feiras, quatro vezes por semana, na sua egua rabona, de pau de choupa debaixo da perna, mão direita á cinta, chapeu braguez na nuca, e besta travada que não havia outra d'aquella andadura.

Ás impertinencias do sogro respondia que não precisava labutar sujamente na terra, porque seu pai tinha o melhor de cincoenta mil crusados em peças; e aos queixumes da mulher amante e ciosa voltava as costas enfastiado. O lavrador de S. Martinho, a fim de se desfaser do genro, repartiu a casa por tres filhos, resalvou uma pequena reserva, deu em terras o dote estipulado a Rosa, e mandou-os viver onde quizessem.

A libertinagem do Faisca foi até onde os dois mil e tantos crusados da mulher chegaram; e, n'aquelle tempo, quem os desbaratasse em seis annos alcançava a reputação dos que em nossos dias derivam á miseria sobre ondas do ouro. Antes de conhecer as primeiras necessidades, Rosa morreu na flor da idade, deixando um filho de seis annos entregue ao avô, porque o marido havia muitos mezes que demorava pela Galliza, amaltado com jogadores de esquineta, seus antigos camaradas, uns com baixa, outros desertores.

O filho de Rosa breve tempo viveu da caridade do avô, que falleceu pouco depois. Quando Joaquim de Araujo voltou a S. Martinho por saber que estava viuvo, encontrou o menino de sete annos esfarrapado, sem amparo de parentes, a esmolar o pão e o gasalhado dos visinhos, por que seu pai não tinha casa propria, e todo o patrimonio de sua mãe estava vendido. Quem recolhera o rapazinho era um fogueteiro, o mais remoto e desprezado parente de sua mãe. O pequeno ajudava-o a afeiçoar as canas e encher os canudos para os foguetes com bastante geito e disposição para o officio. Perguntara-lhe o pai porque não fôra procurar o avô a Famalicão. O fogueteiro respondeu que lá fôra com elle quando a mãe morreu; mas que o avô dissera que estava tambem muito pobre, e apenas lhe déra estopa para umas calças, e um chapeu de Braga mais rapado que a escudela d'um cão. Lembrou-se Joaquim do padrinho; mas a morte cortara-lhe esse recurso. Foi ter-se com o filho successor na casa, a vêr se quereria protegel-o como seu pai. O fidalgo da Igreja recebeu-o com furiosas declamações contra o Bento pedreiro, a quem chamava ladrão, por que lhe pedia dois mil crusados e juros que o pai lhe ficara devendo.

N'este tempo, o irmão do honrado Joia já não podia trabalhar. Passava os dias sentado ao sol no degrau da porta, e dava alguns chorados vintens por semana a uma visinha que lhe levava as couves e a broa. N'esta situação o achou o filho, quando voltou da Corunha, trajando á castelhana, mas delatando na jaqueta safada e suja a miseria que o trazia á porta do pai. Pediu-lhe dinheiro com supplicante brandura, com muitos actos de arrependimento e promessas de reformação de costumes.

—Se poderes reformar os teus costumes, fazes bem; eu é que não posso desfazer-me em dinheiro—dizia o velho.—Tudo o que eu tinha estava na mão de teu padrinho: elle morreu, e o ladrão do filho não me paga.

—O que o padrinho lhe devia—disse Joaquim—são dois mil crusados; mas vossemecê herdou cincoenta e tantos…

—Não sei o que herdei—replicou o pedreiro—tudo o que eu tinha dei-o a guardar ao coronel, Deus lhe falle n'alma, e tudo lá ficou.

—O meu padrinho não era capaz de o roubar, senhor pai! Vossemecê está mettendo a sua alma nas mãos do diabo! Ha de morrer para ahi como um mendigo, e o seu dinheiro ha de ajudal-o a cahir nas profundas do inferno!…

No calor da discussão figurou-se ao velho que o filho seria capaz de praticar alguma violencia. Teve medo—o medo que devia ser-lhe uma agonia fulminante, se o goso de sentir-se rico não prevalecesse ás angustias de recear-se em perigo na presença do filho. Abriu com as mãos tremulas a arca, tirou um pé de meia, atado pelo calcanhar com uma guita, deu-o ao filho, e disse-lhe com voz cortada de soluços:

—É tudo quanto tenho. Recebi hontem esses vinte crusados novos dos esteios que vendi. Se queres dar-me metade, dá; se não queres, leva tudo.

Joaquim quedou-se alguns minutos a olhar para o pai com piedoso aspecto; e, depois de pensar na repartição dos pintos, ouvindo filialmente a consciencia e a razão, deliberou… não repartir nada. Sahiu com mais duas maldições tacitas, e foi relatar o caso ao Luiz Meirinho.

N'este tempo, o antigo aguazil do corregedor de Barcellos andava muito acautellado das justiças da comarca. A sua reputação de salteador de estradas estava feita; mas as provas que legalisassem a captura eram insufficientes. Os latrocinios de encruzilhada amiudavam-se na Terra-Negra, na Lagoncinha, e nas serras distantes do Ladario e Labruja. Algumas casas afamadas de dinheirosas eram assaltadas por quadrilhas que venciam pelo numero a resistencia; e, quando esses roubos estrondeavam, Luiz Meirinho e outros sujeitos da sua familiaridade nunca estavam em Famalicão ou nas aldeias circumvisinhas. Era sabido que as maltas se reuniam em um grupo de cabanas n'uma cafurna de pinheiros chamados os Ribeiraes, não longe da vetusta egreja dos templarios de S. Thiago de Antas. Ainda hoje estão em pé, mas ninguem as habita, essas choupanas execradas pela tradição de serem ahi enterrados os ladrões que voltavam mortalmente feridos dos seus assaltos.

Como quer que fosse, a maledicencia não calumniava Luiz Meirinho, nem elle por modestia escondeu do Faisca a superior cathegoria de capitão de ladrões a que o promovêra a voz publica.

Joaquim ouviu estas confidencias intimas sem pavor nem se quer estranheza. A esquineta era-lhe bastante iniciação para ser admittido aos mysterios da Terra-Negra. O Meirinho encareceu-lhe as vantagens, e desfez nos perigos do officio. Principiando pelo argumento mais insinuante a favor dos ladrões, offereceu-lhe de uma grande sacca dinheiro que elle affiançava ter adquirido sem escandalo nem effusão de sangue. Uma das suas regras de bem-viver era (dizia elle ao Faisca) matar sómente em ultima necessidade: talvez a «justa defeza» que a lei indulta. Romulo, o salteador que fundou Roma, não exhibia idéas mais benignas.

A grangearia de um bravo para a jolda foi facil. O Faisca, em uma das proximas noutes, foi apresentado na estalagem da Lagoncinha aos seus irmãos d'armas, e achou-se em melhor sociedade do que elle previra. Condecoravam a cáfila alguns sujeitos que pareciam andar n'aquella vida aventurosa por amor das impressões rijas: eram artistas, como hoje diriamos. Filhos segundos de casas honradas e coutadas desde os reis da primeira dynastia, recrutas foragidos, desertores, jornaleiros, individuos barbaçudos vindos de longes terras, facinorosos escapulidos das cadeias ou dos degredos, gentes varias, como se vê mas todos alegres, chalaceadores, bem-quistos nas aldeias por onde residiam temporariamente, liberaes nas tavernas com conhecidos e desconhecidos, armados até aos dentes, e, segundo a excellente maxima do capitão, matando sómente em ultima necessidade. A malta, por espirito de imitação, chamava-se Companhia do olho vivo. Florecera outra, com egual denominação, na côrte, capitaneada por José Nicós Lisboa Corte Real. Quarenta annos antes haviam sido inforcados os mais graduados da companhia, salvante o capitão, por que era protegido pelo infante D. Antonio, tio de el-rei D. José I. Um dos mais novos d'essa horda de ladrões, que teve um periodo de esplendor, fugindo á perseguição, ainda funccionou na malta do Minho, á qual legou o saudoso nome da outra.

A «Companhia do olho vivo» não prosperou no anno em que o filho de Bento de Araujo se alistou. O terror afastára os passageiros dinheirosos do transito por serras infamadas, e os proprietarios das povoações sertanejas mudaram para as villas e cidades as suas residencias.

No programma de Luiz Meirinho estava desde muito inscripto Bento de Araujo; mas, como ainda ha pessoas de bem, ao capitão repugnava-lhe propor em conselho que se planeasse o expediente maís plausivel na exhumação das tres mil peças do pai do Faisca. Os socios mantinham entre si estes decoros, o que não succede em todas as companhias com estatutos legalisados.

Entretanto, como a necessidade apertava, e á noticia do Faisca chegara a má nova de que seu pai, acariciado por uns sobrinhos de Gondifellos, tratava de se passar para a companhia d'elles, o capitão, forte de rasões aconselhadas pela prudencia e applaudidas por Joaquim, poz em discussão a materia, quando ao modo de obrigar o pedreiro a confessar a lura do thesouro. O Faisca tirou a salvo, porém, que o haviam de dispensar de assistir ao assalto, por que, em fim, o homem… sempre era seu pai, e o sangue gritava. Ninguem se riu na assembléa da sentimentalidade d'aquelle filho: é que as ideias grandes e fundas abalam toda a casta de alma. Foi apoiado calorosamente Joaquim, e até abraçado por um socio de Felgueiras, processado por parricida.

VII

N'aquelle tempo, Famalicão, ás nove horas de uma noite de novembro, negrejava silenciosa e rodeada de pinheiraes e carvalheiras. Aquelles palacetes brazonados com seus titulares campeam hoje onde então rebalsavam extensos nateiros de lama, a espaços habitados por cabaneiros. A quadrilha de Luiz Meirinho podia manobrar sem temor e desassombradamente no centro da villa como nas Rodas do Marão.

Em uma d'essas noites, o chefe, com uma duzia de escolhidos, entrou na Congosta de Enxiras, onde morava Bento de Araujo. Elle, com mais dois, acercaram-se da porta; os outros, postaram se de atalaias nas extremidades da viella.

O pedreiro estava ainda sentado á lareira. Desde que lhe disseram que o filho pernoitava ás vezes em casa do Meirinho, velava até ser dia claro. O receio de ser assaltado era tamanho que já tres vezes, em noites tempestuosas, gritára á d'el-rei. Os visinhos, á primeira, acudiram vozeando das janellas com invulneravel intrepidez, e viram d'essa feita que um porco vadio, attrahido talvez pelo cheiro de possilga, foçava contra a porta de Bento. Depois, ainda que elle gritasse, ninguem se mexia, attribuindo a porco as aggressões incommodas ao avarento.

Foi o que aconteceu n'aquella noite de novembro. O pedreiro sentiu o abeirar-se gente da sua porta, e deu tento do raspar de ferro entre a hombreira e o batente. Gritou; mas parecia já gritar com os colmilhos apertados. A lingua da fechadura estalou, e a porta foi diante de dois possantes hombros tão rapidamente que os homens, como duas catapultas, entraram de roldão, e só pararam filando-se á garganta do velho empedrado. Por entre elles, e á luz do canhoto que flammejava, o pedreiro viu lampejar o aço de uma navalha, e ouviu, atravez dos lenços com que os hospedes cobriam as caras, uma voz disfarçada:

—Se grita, vossê morre aqui já. Se quer viver, entregue as tres mil peças que herdou, e ande depressa. Não nos conte lerias, nem faça lamurias. É decidir: o dinheiro ou a vida.

Bento erguera as mãos supplicantes, e pedira soluçante que o não matassem.

—Onde estão as tres mil peças?—perguntou o Meirinho.

—As tres mil peças?!—gaguejou o velho como tolamente espantado de que lhe perguntassem por tres mil peças não tendo elle de seu tres moedas de seis vintens.

—Mate-se este diabo!—accrescentou o Meirinho—e vamos levantar o soalho.

—Eu não tenho aqui o dinheiro, meus senhores…—acudiu o pedreiro desfeito em lagrimas.

—Então, onde o tem vossê?

—Enterrei-o debaixo de uma fraga…

—Perto d'aqui? Avie-se.

—Não, senhor, muito perto não é. São tres quartos de legua… em
Vermuim.

—Bem—concluiu o capitão.—Salte para diante de nós, e venha desenterrar o dinheiro. Mexa-se!

O homem sentiu certos alivios n'esta mudança de situação como se expor a vida, salvando o dinheiro, lhe fosse uma consideravel melhoría de fortuna.

A malta, precedida do velho, embrenhou-se nos matos, atravessou o outeiro que toca nas faldas da serra de Vermuim, e por S. Cosme do Valle trepou ao espinhaço de penhascos que lá chamam o castello.

—Vossê não vá afflicto—dizia-lhe o Meirinho—por que hade ter o seu quinhão com que pode viver regaladamente. O necessario não se lhe tira; nós o que queremos é o que lhe sobeja. Somos honrados ou não, seu velhote?

E dava-lhe palmadas nos hombros.

—Sim, senhor—dizia o Bento, e recolhia-se a scismar na situação perigosa em que se via, e no modo de a esconjurar.

—Ande depressinha—tornava o chefe empurrando-o brandamente.

—Será bom ajudal-o com alguns pontapés—alvitrava outro, receando que a manhã lhes viesse tolher a empreza.

Chegados ao cabeço da serra, espigado de rochas, disse o Meirinho:

—Cá estamos. Onde é a fraga?

—Não enxergo bem… Só quando fôr dia é que eu conheço o sitio—respondeu Bento.

—Temol-as arranjadas…—tornou o Meirinho com um sorriso agoureiro de más coisas.—Ó Freiamunde, petisca lume, e faze ahi um archote de codêços para este tio ver onde está o arame.

—Parece-me que o melhor seria alumial-o com a luz da polvora…—observou Freiamunde, bebendo alguns tragos de aguardente de uma cabaça que trazia a tiracollo.—Quer lá, capitão? Se lhe parece, dou dois goles ao velho como se faz aos perús…

—Tio Bento—insistiu Luiz Meirinho—vossê acha a pedra ou não acha? O dinheiro ficará enterrado; mas vossê tambem fica de papo ao ar á espera que o enterrem. Veja lá no que ficamos; lembre-se que está tratando com homens de palavra.

No entretanto, um da companhia petiscara fogo, e communicara o lume da mecha á manada de fetos sêccos apanhados de baixo de uma rocha que figurava um dolmen.

—Ali tem luz que farte—disse Luiz.—Veja lá agora qual é a pedra, tio
Bento.

—Parece-me que é aquella…—respondeu elle a tiritar, já convencido de que estava chegado ás ultimas.

—Parece-lhe ou é?—insistiu raivoso o Meirinho.—Ande. Mostre lá o sitio. Ó Zé Landim, se fôr preciso desenterrar o morto serve-te da tua faca. Patrão, estamos ás suas ordens, diga onde quer que se cave; a cova ha de fazer-se ou para sahir o dinheiro ou para entrar vossê.

Bento cahira sobre os joelhos como ferido de subita apoplexia, e começou a gaguejar uns sons inintelligiveis.

—Este alma de dez diabos que está a mastigar?—disse Freiamunde.

N'este momento, o pai de Joaquim cahiu de borco, batendo com a face na pedra; e, quando dois homens o levantaram de repellão e o viram á luz dos fetos, estava morto.

Este incidente nem levemente impressionou aquelles homens fortes. Ninguem fez a minima reflexão ácerca do lance em theatro tão lugubre. Os mais preoccupados bebiam aguardente a froixo, dizendo que o homem morrera de frio. Nem uma ideia philosophica, nem sequer um dito elegiaco! Luiz Meirinho discorreu brevemente sobre a certeza de que o morto os tirára de casa para os desviar do logar onde tinha o dinheiro. Decidiu que se aproveitasse o restante da noite, indo a casa revolver a terra quanto se podesse; e, no caso de lá não apparecer o dinheiro, viriam na seguinte noite escavar debaixo da rocha, no castello.

Assim se fez. Bento de Araujo ficou deitado de costas sobre uma moita de codeços, com os braços hirtos e abertos em cruz, os punhos cerrados, e os olhos envidraçados de lagrimas. Ao alvorecer do dia, uma nuvem pardacenta, que ondolava pela crista da serra, rasgou-se em saraivada glacial, que lhe batia no rosto e saltava pelo peito nú e descarnado. Chovera e nevara depois, durante muitos dias. Nenhum pastor subira com o rebanho áquellas cumiadas, sempre escondidas na negridão da nevoa, e perigosas se o lobo uiva faminto.

Quando o tempo estiou, quem denunciára o cadaver já disforme no rosto fôra uma revoada de corvos que crucitavam pairando sobre os restos do seu banquete disputado ás feras.

VIII

Contava-se assim o caso em Famalicão.

Que o Bento de Araujo, receando os ladrões seus visinhos, desenterrara as suas riquezas que tinha debaixo da lareira, e indo escondel-as nos montados de Vermuim, em uma noite de grande invernia, morrera tolhido pelo frio e traspassado da neve. Fundavam-se os d'esta versão em que a pedra da lareira estava deslocada, e no seu logar uma cova funda; e debaixo dos bancos da cama outra escavação, e no entulho uns cacos de panella, onde com certeza estava porção do thesouro, e a outra porção debaixo da lareira.

Outro boato:

Que a malta da Terra-Negra assaltára o pedreiro, roubara-o, matara-o, e levara o cadaver ao castello de Vermuim. Não se dava a rasão d'este sahimento a tres quartos de legua; mas tambem não era necessaria a logica para explicar tal coisa.

A versão, porém, mais popular e que tinha o suffragio das pessoas mais rasoaveis, era que o Joaquim assassinára o pai na serra, quando o velho voltava do seu trabalho de brocar pedra; e, depois, deixando-o morto, viera a casa desenterrar o dinheiro. Em confirmação do boato, allegava-se o facto de elle ter apparecido em Famalicão a procurar o pai, e a indagar dos visinhos se tinham dado conta do arrombamento da casa—isto no dia em que o pai já estava morto.

A voz publica forçou a auctoridade a prender o Faisca; mas, na noite seguinte á da prisão, algumas duzias de homens armados arrombaram a cadeia de Famalicão, e tiraram de ferros o innocente.

Esta fuga completou a ruina de Joaquim de Araujo. Acreditou-se geralmente no roubo e no parricidio. As aldeias do julgado de Vermuim, com Famalicão á frente, deram montaria á quadrilha da Terra-Negra, com o reforço militar de Guimarães e Braga. A malta dispersou, mortos alguns dos mais audazes; e os dispersos engrossaram, na Povoa de Lanhoso, a celebrada quadrilha que tem a sua historia em um livro dignamente esquecido.[8]

O filho de Bento pedreiro morreu em 1809 no Carvalho-d'Este, defendendo a patria da invasão franceza commandada por Soult. Bateu se com o heroismo do suicida, ao cabo de desoito annos de salteador, arrostando a todos os perigos, mas fugindo a que o filassem vivo, por que tinha grande horror á forca. Afinal, inscreveram-no entre os valorosos defensores da nossa autonomia, e o seu cadaver foi mais acatado que o do general Bernardim Freire, assassinado por outros patriotas da laia do Faisca.

IX

Hão de lebrar-se que Joaquim de Araujo tinha um filho, que aprendera em
S. Martinho do Valle o officio de fogueteiro com o parente de sua mãe.

Aos vinte e seis annos, quando seu pae acabou, estava elle ainda na
companhia do velho bemfeitor e mestre, ganhando alegremente o seu pão.
Fallecido o parente, alguem lhe disse que elle tinha em Villa Nova de
Famalicão a casa, boa ou má, de seu avô, que ninguem lhe podia disputar.

Facilmente se habilitou herdeiro de Bento de Araujo e tomou posse do casebre, deshabitado desde 1790. Ás vezes os mendigos, nas noites quentes, levantavam a aldraba, que era um cavaco de castanho, e albergavam-se no sobrado podre, contando casos horrendos que ali passaram—o parricidio e o roubo. As covas estavam ainda abertas, e o desentulho em monticulos de redor.

Silvestre de S. Martinho, o filho do Faisca, não usava dos paternos appellidos: do pai aproveitára sómente a casa, transigindo com a honra o necessario sem prejuizo seu.

Apossado da casa, deu-lhe um geito para poder habital-a, e pendurou meia duzia de foguetes e bombas reaes á porta. Era habilidoso, principalmente para as bonecas de polvora. Gabava-se de haver inventado o barbeiro a amolar navalhas na roda, e levára á perfeição da indecencia a velha que despedia contra a cara combustivel do barbeiro um repucho de chispas pela parte posterior, tudo com uma graça portugueza que era um estoirar de riso o arraial!

Corria-lhe bem a vida, e já tinha casado com uma rapariga dura e trabalhadeira, quando o descuido de um aprendiz, na ausencia dos patrões, deixou pegar o lume em um feixe de bombas. Houve explosão que sacudiu em estilhas o tecto da casa, e abrasou todas as madeiras. Quando Silvestre voltou com a mulher da romagem da Santa Eufemia, nas terras da Maya, encontrou quatro paredes denegridas, e o interior da casa a fumegar, cheio da brilhante claridade da lua. O aprendiz, carbonizado, estava já na cova.

Tiveram compaixão do pobre fogueteiro os villanovenses. Diziam-lhe que contruisse uma cabana com as esmolas que lhe iam tirar pela freguezia; mas que a fizesse n'outra parte, por que n'aquella casa, onde um filho matára seu pai para o roubar, pezava a maldição de Deus. Um visinho comprava-lhe o terreno da casa amaldiçoada para accrescentar á sua; mas deixava-lhe a pedra que era boa para o fogueteiro edificar n'outra parte. Silvestre acceitou, convencido de que o sangue de seu avô funestára para sempre aquelle theatro do grande crime.

Recebido o terreno de esmola, principiou Silvestre a demolir as paredes da casa queimada. Fazia elle este serviço, com ajuda da mulher, em quanto o carreteiro ia carreando a pedra.

Ás tres da tarde de um sabbado, o carreteiro, consoante o costume, despegara do serviço; mas Silvestre e a mulher continuaram a desfazer o ultimo lance de parede que lhe restava, com o fim de na proxima segunda feira acabarem o trabalho da demolição. Observára o fogueteiro que este lado da parede quadrilatera era mais grossa um palmo que os outros que formavam o recinto, reintrando para o interior o excedente da grossura. Estava coberta de pasta de barro e caleada como as outras. Divisava-se ainda no barro gretado o risco traçado pelo atrito de qualquer corpo que se encostára á cal ainda fresca.

Por esta raspadura, conjecturou Silvestre que ali devia estar o banco da cama do avô, até porque ouvira dizer que parte do thesouro estivera enterrado debaixo da cama; e elle, quando tomara posse da casa, ainda vira a cova aberta, dois palmos distante d'aquella parede.

—A pedra aqui é mais larga—disse o fogueteiro á mulher.

—Agora é!—emendou ella—o que a faz parecer mais larga é a camada de barro; se não, olha.

E começou a picar ao longo da parede com a extremidade aguda da alavanca, e o barro, esboroando-se e desacamando a pedaços, deixava descobrir a superficie da pedra que não era mais grossa que a outra.

—Dizes bem, é isso—approvou o marido.—Vamos apeando a parede por esse lado, que o barro elle se despegará.

E, dizendo, pegou d'outra alavanca e começou a derribar as capas da parede, em quanto a mulher, para não estar com as mãos debaixo dos braços, ia descaliçar a camada barrenta. Quando atirava rijamente com a ponta da alavanca á parede, notou que o ferro batera e se cravara em páo.

—Aqui ha madeira—disse ella.

—É alguma cascaria que tinha mão no barro—explicou Silvestre.

A mulher repetiu os golpes em diversos pontos na circumferencia de dois palmos, e tirou sempre o mesmo som.

—Parece que bate em vão…—notou ella.

—O quê?!—acudiu o marido, descendo do andaime em que trabalhava.—Bate em vão! que dizes tu?!

—É o que te eu digo… Olha… Ouves?

—Ó mulher!—exclamou elle, cravando-lhe os olhos cheios de palpites que a lingua não ousava formular.

E como n'esse comenos passasse gente, e parasse a olhar para as ruinas, o fogueteiro fez um tregeito á mulher, que ella intendeu, calando-se.

—Ajunta a ferramenta, Maria, e vamos embora que já mal se enxerga—disse elle.

—Lá vai a casa do Bento pedreiro, Deus lhe falle n'alma!—disse o mais ancião dos curiosos.—Que dinheirão aqui esteve n'este pardieiro! Cincoenta e seis mil cruzados! Era o homem mais rico da villa e seu termo, e tanta necessidade passava aquelle alma do diabo, Deus lhe perdôe, para a final o dinheiro ser repartido pela quadrilha do Luiz Meirinho, que tambem o levou berzabum com duas balas que lhe metteram na barriga ali á ponte de S. Thiago!

—São fadarios, tio Simeão!…—disse Silvestre.

—Vossê podia a esta hora estar rico como um porco, se tivesse outra casta de pai…—tornou o velho.

—Assim é; mas não o quiz Deus. Desgraças…

—Ora faça vossê de conta que tinha achado ahi o dinheirame do seu avô!

—Ainda venho a tempo!…

—Pois sim; mas faça de conta que o topava! Vossê que fazia, ó sôr
Silvestre?

—Eu sei cá, tio Simeão!

—Foguetes é que vossê não fazia mais! aposto dobrado contra singelo!

—Não fallemos n'isso… Foguetes é que eu heide fazer toda a minha vida, e Deus me dê saude para os fazer.

—Amen; mas vossê, se se pilhava com as tres mil peças, mettia a villa toda n'um chinello, e pintava ahi o diabo a quatro!

—Está enganado! não pintava nada… Comprava uns bemzinhos, e havia de trabalhar n'elles, como trabalho nos foguetes.

—Vem d'ahi, homem—disse Maria já aborrecida das impertinentes perguntas do Simeão que, encostado á sachola, parecia jubilar nas pachorrentas hypotheses, e nas delicias de cossar uma perna com a outra alternadamente.

Simeão foi seu caminho com os outros; e o fogueteiro e a mulher seguiram para casa; mas, assim que as portas e janellas se fecharam na rua, ahi estavam elles outra vez sobre o cascalho, raspando com ferramentas pouco ruidosas a parede no espaço em que o som do vacuo respondia ao toque do ferro.

No termo de curta fadiga, tinham descoberto uma superficie liza de madeira, invasada na parede como a portada de um postigo. Facilmente desencaixilharam a tabua do invasamento de pedra, por que não tinha dobradiças nem outra firmeza além da que lhe dava a espessa camada de barro. Silvestre introduziu a mão, e topou um corpo frio.

—Que achas?—perguntou Maria offegante com as mãos postas.

—É uma panella de ferro…—balbuciou elle.—Ó mulher!… tem mão em mim, que não sei o que me dá pela cabeça!…

—Nossa Senhora!—exclamou ella—Nossa Senhora!…

E, em vez de ter mão no homem, metteu ambos os braços até achar a panella, em quanto Silvestre abria e fechava a bocca em tregeitos de tão estupida felicidade, que só a suprema desgraça os poderá fazer iguaes.

N'isto, a rija mocetona arrancava da lura o peso enorme de ouro; e, cahindo de cocoras com o pote no regaço, exclamou suffocada:

—Ai Jesus! que eu morro de alegria!…

Sivestre apertava o ventre com as mãos. Esta postura não é ridicula nem inverosimil para os que sabem que os intestinos quasi nunca são estranhos ás commoções grandes.

Aos primeiros assomos da seguinte aurora, a parede estava arrazada. Os visinhos ouviram o ruido da assolação, e cuidaram que a derribára um pegão de vento.

Mas, na proxima semana, a obra da casa nova parára. O fogueteiro dizia aos seus bemfeitores que ia mudar de terra, e talvez mudar de vida

X

Por esse tempo, um fidalgo da côrte de D. João VI mandou vender as suas vastas propriedades na provincia do Minho. Nos arrabaldes de Barcellos demorava a principal das quintas, que havia sido paço senhorial. Chamava-se a Honra de Romariz, e já fôra dote de D. Genébra Trocozende, no seculo XII, casada com D. Fafes Romarigues, filho de D. Egas, que gerara D. Fuas, e tão copiosa e compridamente se geraram uns dos outros que a final degeneraram na pessoa do fidalgo que mandou vender a casa solarenga, para cruzar ricamente uma dançarina sobre os leões rompantes do seu escudo.

Chamava-se Silvestre de S. Martinho o comprador, que contara na mesa do tabellião de Barcellos vinte e cinco mil cruzados em peças de 7$500 réis. Quantos casaes e leiras o filho de Joaquim Faisca poude comprar á volta da Honra de Romariz incorporou-as no cinto de muralha que foi alargando a termos de arredondar a mais vasta e formosa vivenda do coração do Minho.

Em 1826, quando Silvestre já desesperava da fecundidade da esposa, em annos bastante serodios, deu-lhe ella uma menina que se chamou Felizarda. Aos oito annos, a moça, filha unica, e conhecida pela morgadinha de Romariz, já bastante espigada e gorda, levava folgada infancia. Aos dezoito annos, compozeram-se-lhe as feições com proeminencias grandes, mas esbeltas. A fertilidade do peito dizia com a curva tumescente das espaduas. Felizarda tinha uns archejos de cansaço que lhe alindavam o carmim do bom sangue.

Um bacharel formado, que aspirava de longe os olores d'esta flôr de gira-sol, queixando-se da demora que ella posera em chegar a uma festividade de igreja, fez-lhe o seguinte improviso, depois de trabalhar tres dias a rima:

Eu, que sou fogo, não tardo, ella, que é gelo, é que tarda, Se eu, que amo, feliz ardo, Felizarda feliz arda.

Ella deu pulos a rir como se tivesse a critica de mad. Girardin.

Por esse tempo, 1846, Silvestre de S. Martinho estava muito rico, mas muitissimo aborrecido na diluente ociosidade de tantos annos. Ás vezes, mandava comprar polvora bombardeira, furava canudos, apertava-os com guita alcatroada, e fazia foguetes para se distrahir. Felizarda, bastante entretida com a arte, pedia á mãe que lhe ensinasse a fazer valverdes e bichinhas de rabear.

A sr.^a D. Maria, excellente matrona e mãe, não se enfastiava, como o esposo, por que moirejava sempre na casa e na quinta, fiava ou dobava nas noites grandes com as creadas á lareira, e envergonhava os servos calaceiros batendo as meadas no lavadouro, ou padejando as broas na cosinha.

Mas o marido que, tirante as diversões pyrotechnicas, não fazia nada, andava dispeptico e clorotico, quando teve de optar entre fogueteiro e politico.

Era no tempo da patulea. Silvestre manifestara-se progressista nas bellicosas eleições de 1845 em Barcellos, e sentiu-se invadido pela paixão sociologica por causa do canibalismo dos fuzilamentos de Alvarães. No anno seguinte, influiu no movimento de maio, e manteve-se nas idéas avançadas até outubro em que os agentes da junta do Porto lhe embargaram no Largo da Aguardente, duas cavalgaduras que iam á praia da Foz buscar a mulher e a filha. N'este conflicto, oscillou politicamente entre os irmãos Passos que amamentavam a republica nos seios dessorados da liberdade cachetica, e o padre Casimiro José Vieira, o Defensor das Cinco Chagas, que proclamava D. Miguel I no Bom Jesus do Monte.

Alliciaram-no ao seu partido alguns sectarios da realeza absoluta, que viam desde a ponte de Barcellos a politica europea, e traçavam com as bengallas no Campo das Cruzes as evoluções militares e triumphaes dos exercitos russos. Silvestre não subia n'estas comprehensões tão alto como os seus foguetes de tres respostas, mas intendia que, tendo as coisas de dar volta, não lhe seria máu adoptar o partido vencedor. Offereceu dinheiro ao doutor Candido de Anêlhe e ao advogado Francisco Jeronimo para se enviar á Lua.[9]

Á sua generosidade respondeu magnanimamente a assembléa realista, condecorando o com a commenda de S. Miguel da Ala. Elle já era Rosa cruz, graduado na hoje extincta viella da Neta, por José Passos. Abriu-se um pleito de liberalidades entre Silvestre e a cabeça visivel de el-rei absoluto. Boa porção das peças intactas do defunctissimo Joia passaram para o cinturão do aventureiro escocez Macdonnell, e depois para os burnaes dos soldados de caçadores que o espingardearam em Sabroso. Ó fados do dinheiro! Que estremeções não daria na cova o cadaver do Bento pedreiro, se os corvos e os lobos o não tivessem comido na serra!

Extinctas as facções politicas, Silvestre, por insinuações da mulher, entrou a desconfiar que era tolo, e que o sr. D. Miguel não o conhecia. Retirou-se da politica, cheio de desenganos, e ridiculo. Os funccionarios administrativos e judiciaes de Barcellos zombavam d'elle, e no Pereodico dos Pobres, um Amigo da verdade escreveu que o Silvestre de Romariz, no auge da sua dor, fabricava foguetes de lagrimas. Allusão perfurante que elle soletrou na folha.

A respeito de soletrar, a morgada recebia cartas de um amanuense da camara de Barcellos; mas só abriu sete que ajuntára quando uma costureira lh'as leu. Felizarda creara-se sem lettras, e vivia, a respeito de litteratura, como as raparigas gregas antes de Cadmo, filho de Agenor, introduzir na Grecia o alphabeto phenicio; mas, em compensação, tinha muita flôr nativa e fresca de acres aromas n'aquelle afflante seio, e folgava de ouvir trovas de chula e desafios de cantares em que ás vezes a phrase estava pedindo a intervenção da policia.

Direi do amanuense da camara municipal de Barcellos.

Era um sugeito que perlustrara as regiões da sciencia por toda a extensão do Manual Encyclopedico do sr. Emilio Achylles de Monteverde. Era author de charadas impressas. Só a Felizarda 6. Tinha este moço, José Hypolito de nome, immensa fé na briza, no paul, na junça, e no archanjo da poesia de 1840. Os duendes das suas visões nocturnas nas margens do Cavado sangravam-no. Era melancolico e magro como um galgo doente. A sua paixão grande, não fallando na falta de dinheiro, era Felizarda. Ganhava tres tostões na escrivaninha da camara, e devoravam-no aspirações a ter cavallo e carrinho. Entretanto, andava pelas casas a recitar a poesia de Palmeirim:

Que poeta que não era Da linda Ignez o cantor;

ou da Lua de Londres, o

É noite; o astro saudoso Rompe a custo o plumbeo ceo, etc.

E chorava quando os versos toavam funebres.

Felizarda não parecia talhada (sem calemburgo) para este homem; elle, porém, talhara-se para ella. Far-se-hia boi, como Jupiter, para arrebatal-a, bem que os seus instinctos volateis o levassem para cysne, se Felisarda tivesse, além dos proprios, os instinctos um tanto bestiaes de Leda.

Escreveu-lhe sete missivas profuzas e tristes como os sete peccados mortaes. A costureira que as leu debulhava-se em lagrimas, e decorava periodos para responder ás cartas de um furriel do 13 de infanteria. Felisarda ouvia aquellas coisas com a attenção de uma rã que imerge á flôr do lago os olhos espantadiços e escuta um rouxinol. Como as prosas levavam recheio de quadras, assim que a morgada dava tento da rima, espirrava um froixo de riso, tal qual como no lyrismo de Santo Antonio, no theatro de S. Geraldo. Tinha aquelle aleijão! Era—quem sabe?—a preexistencia d'esta enorme gargalhada que hoje atabafa os golphos da poesia subjectiva.

A costureira interpretou a, e respondeu, vestindo a ideia de Felizarda, com palavras innocentes, mas facinorosas em orthographia. O amanuense amava-a deveras: leu a carta, em que era chamado Bem da menina com V; e, dando os pezames ao seu Monteverde, fez votos de educar Felizarda nas quatro partes da grammatica, se um dia conjugassem o verbo amar, que só é verdadeiramente regular quando o matrimonio o defeca.

Trocaram-se cartas assiduas. Felizarda começava a ser um pouco séria, pouzeira e semsaborona. Amava. Entre a psyche e a outra abriram-se as valvulas de communicação. Tinha morbidezas de Ophelia e indigestões por falta de exercicio. Não sahia do mirante que olhava para o caminho do carro. José Hypolito passava por ali aos sabbados de tarde; e, se a solidão era absoluta, perguntava-lhe como passou. E Julieta, debruçada sobre o barandim do miradouro, com a face rubra e o seio ondulante, dizia-lhe que passou bem.

Nas cartas, fallou lhe em matrimonio, o amanuense. Ella respondeu que sim. José Hipolito, esporeado pelo amor, abalançou-se á interpreza de que os amigos o dissuadiam. Pediu-a ao pai, e arrependeu-se. Silvestre perguntou-lhe quem era e quanto tinha. Ouvida a resposta, disse gesticulando um esgar de desprezo:

—Ora adeus… O senhor, se não é tolo, parece-o.

Despediu-o apontando-lhe para a porta. Depois, chamou a filha e perguntou:

—Que diabo é isto? onde conheceste o pelintra que te veio pedir para mulher?

Ella contou ingenuamente o caso, mostrou as cartas, confessou quem lh'as lia, quem lhes respondia, e concluiu:

—Assim como assim, já agora quero casar com elle.

O pai expediu berros cortados de interjeições brutas. A filha fugiu, a soluçar, e não appareceu ao jantar nem á ceia.

E a mãe, a mulher laboriosa que nunca pensára nas soberbías implacaveis da riqueza, dizia ao marido:

—Se ella gosta do rapaz, deixa-a casar… Bem me prégava meu pai que não casasse comtigo porque tu eras filho de quem eras. E d'ahi? Casei e nunca me arrependi.

—Queres dizer na tua que dê a minha filha com oitenta mil cruzados a um troca-tintas que não tem casa nem leira nem…

—Tem-no ella, homem. A riqueza chega para os dois. Trata de saber se elle é bom rapaz; e, se fôr, deixa-a cazar que tem vinte annos.

XI

José Hipolito creára protectores esperançados no bom exito da tentativa. Os inimigos politicos de Silvestre de Romariz coadjuvaram-no a tiral a judicialmente.

O juiz prestou se a interrogar a morgada, visto que ella não podia requerer por seu pulso. Suppridas legalmente as formalidades, Felizarda foi depositada em Barcellos, no seio da familia Alvaraens.

Trava-se então a lucta nos tribunaes. O pretensor, mal dirigido pelo seu advogado, responde com retaliações pungentissimas a insultos que o argentario lhe dirige ao seu nascimento obscuro e á sua pobreza. A pugna passara a ser um assanhado pugilato dos dois causidicos.

Um dos membros da familia Alvarães era moço, chamava-se Jose Francisco, e estudava o quinto anno de latim a ver se aprendia o necessario para conego da collegiada barcellense. Tinha quatro reprovações conscienciosas em Braga; mas ao quinto anno já distinguia o verbo do complemento objectivo, e traduzia com poucos erros a Ladainha.

A familia Alvarães era antiga e abastada; contava muitos frades bernardos na prosapia, e um governador em uma praça da Azia, d'onde trouxera navios de especiarias que formaram o casco da riqueza. A casa tinha pedra d'armas, e uma liteira brazonada que antigamente ia a Alcobaça buscar os frades a rusticar nas pescarias do Cavado, e a encher as roscas da caluga balofas pela inercia do claustro.

José Francisco, o estudante, era sanguineo, nedio, com as maçãs do rosto vermelhas, e os olhos enfronhados nas palpebras somnolentas. Felizarda, a noiva depositada, pareceu-lhe bem, ao passo que o amanuense da camara lhe era um antipathico bandalho, desde que em plena praça o enxovalhára perguntando-lhe, no terceiro anno de latim, o accusativo de Asinus. Oppozera-se José Francisco á recepção da morgada para haver de casar com José Hypolito, filho do Manuel Colchoeiro; mas força maior obrigara os Alvarães a protegerem o amanuense.

Ás vezes, o futuro conego pasmava-se a contemplar Felizarda, e sentia em si as suaves dôres da natureza em parto do primeiro amor. Se ella, a morgada, olhava para elle a fito, produzia-lhe no rosto o effeito do sol que aponta em dia de calma—avermelhava-o até aos globulos das orelhas; e José cossava-se a disfarçar, ou esbofeteava as moscas que lhe passeavam sobre a epiderme oleosa, e faziam titilações incommodas nas fossas nazaes.

A morgada achava-o bonito, e dizia ás irmãs que era pena fazerem-no padre. José, quando soube isto, creou umas esperanças que o tresnoitavam, e tinha as sentimentalidades doloridas de Jocelin, e d'um ou outro clerigo de Barcellos que deixava vingar-se a natureza.

Procuràva José Francisco Alvarães modos de conversar com Silvestre de
Romariz, e contava-lhe o que a filha dizia a respeito do Hypolito.
Levava á depositada cartas do pai, e lia-lh'as ás escondidas da familia.
O amanuense suspeitara-o, e tratava de remover o deposito, allegando
subornos que a lei não facultava.

Ora, n'aquellas confidentes leituras, estabelecera se intimidade bastante entre a morgada e o interprete das lastimas de seu pai. D'uma vez que Felizarda enxugava as lagrimas, ouvindo ler o adeus que o pai enfermo lhe enviava, José Francisco, transportado n'um rapto inconsciente de enthusiasmo, pegou-lhe da mão e disse com ternissima meiguice:

—Não case contra vontade de seu pai… Tenha pena d'elle, que está tão acabadinho…

A morgada poz-se a torcer e a destorcer o seu lenço branco, e a lamber uma lagrima que lhe pruía no beiço superior; mas não respondeu.

Alvarães foi contar isto ao velho. Silvestre pegou do processo que o seu advogado lhe enviara, e disse-lhe:

—Faça-me o sr. Josésinho o favor de levar estes autos, e ler a minha filha o que o tal patife, que quer ser seu marido, aqui diz de seu pai; leia-lhe isto, e veja o que ella diz.

O leitor já sabe, por eu lh'o haver dito nas primeiras paginas d'este livrinho, que o indiscreto amanuense consentira que se escrevesse que o pai de Silvestre fôra salteador de estradas, e que o pai de Felizarda exercitara o baixo mester de fogueteiro em Famalicão.

Tudo isto era expendido na tréplica de José Hypolito com grande lardo de zombarias e sarcasmos em estylo piccaresco. A morgada ouviu ler as injurias entoadas com vehemencia por Jose Francisco, que as declamou como se estivesse traduzindo um periodo de Eutropio.

Concluida a leitura, Felizarda, antes que o leitor a interrogasse com os olhos, exclamou:

—Quero ir para casa de meu pai, e hade ser já. O Josésinho vai commigo.
Mande dizer a meu pai que me mande a burra.

José foi dar parte á familia da subita resolução da morgada; o depositario foi dar parte ao juiz, e o juiz respondeu que a lei não podia empecer á vontade da depositada. Quando estas altercações chegaram á noticia de José Hypolito, a filha de Silvestre ia já caminho de casa, acompanhada pelo estudante e pelas irmãs.

O pai e a mãe receberam-na nos braços, offegantes de jubilo, a pedir-lhes perdão da sua doudice. Silvestre abraçava José Francisco Alvarães, chamando-lhe o salvador da sua filha e da sua honra. A santa mãe de Felizarda olhava para o estudante com os olhos cheios de riso, e dizia:

—Não queira ser padre, sr. Josésinho… Olhe que o meu homem já disse que se vossa senhoria quizesse a nossa rapariga, que lh'a dava, e eu tambem.

José olhou estupefacto para o velho; Silvestre intendeu o espanto, e disse-lhe:

—Não olhe para mim, que eu não sou o que caso; olhe para a minha filha, e veja o que ella diz. Felizarda, queres casar com o sr. José Francisco?

—Se o pai quizer… tambem eu.—E escondeu o rosto no seio da mãe com umas visagens que pareciam de entremez; mas que eram da maior naturalidade.

As irmãs de José Francisco rodearam-na e beijaram-na soffregamente, em quanto o noivo, alumiado por aquelle improviso e inesperado lampejo de felicidade, achou no coração estas phrazes que balbuciou, abeirando-se da morgada:

—Se a menina casasse com o outro, eu acho que morria de paixão, e mais nunca lh'o disse.

CONCLUSÃO

Quando os vi em Braga, no theatro de S. Geraldo, estavam casados havia já vinte e cinco annos. Na casa de Romariz, durante essa temporada, apenas pezaram dias funestos, quando se fecharam as sepulturas de Silvestre e sua mulher.

José Francisco Alvareães era um modelo raro de continencia conjugal. Em Portugal só se conhecem dois exemplares: el-rei D. Affonso IV e elle. As diversões da vida, convencionalmente chamadas prazeres, não perturbaram a suave monotonia de Romaris. D. Felizarda apenas conhecia na arte dramatica o «Santo Antonio» de Braz Martins, e a «Degolação dos innocentes» por onde entrou na vida infame de Herodes. As noites de dezembro aligeiravam-se em Romariz a dormir. Ceavam e digeriam serenamente. Ao pé de um bom estomago coexistiu sempre uma boa alma. Acordavam alegres, para continuar as funcções animaes. Viviam para credito da physiologia: eram duas pessoas que se adoravam e faziam reciprocamente o seu chylo em um só orgão. Tinham um coração, um figado, e um pancreas para os dois. N'esta vida vegetal havia ternuras cupidineas como as das cylindras e acacias florecentes; e, quando extravasavam da orbita physiologica, jogavam a bisca de trez; mas ordinariamente entretinham-se mais com o burro.

De S. Miguel de Seide—julho de 1876.

FIM

Notas:

[1] Meu caro doutor Thomaz de Carvalho, lembra-se d'elle ha oito annos, no Hotel Gibraltar, já encanecido, mas tão galhardo velho que o invejavam os moços?

[2] «Chico Bellas» era D. Francisco de Castello Branco, irmão do conde de Pombeiro. Foi official de cavallaria, teve vida de amores aventurosa e altissima, morreu em 1862 cancerado, podre de embriaguez e de devassidão. Conheci-o, em 1861, idiota, a babar-se, e a pedir um pataco para genebra. Os seus nobilissimos parentes não poderam nada contra o destino d'este homem, que exercitara o magisterio na esgrima, na gineta e na galanteria bruta e… feliz!

[3] Ecloga III do Lima.

[4] Cant. 2.^o est. XXXVI.

[5] Alludia á novella intitulada o Senhor do Paço de Ninães.

[6] Vou condensando estas noticias colhidas em um livro do coronel Francisco de Figueiredo, escriptor coevo dos successos. É um tomo que fórma o 14.^o da obra intitulada Theatro de Manuel de Figueiredo. Este livro raro, malissimamente escripto, é precioso repositorio dos costumes portuguezes do decimo oitavo seculo. A proposito do negociante Araujo, informem-se os curiosos desde pag. 632 até 640.

[7] Em provincia nenhuma, salvante o Minho, ouvi ainda empregar este verbo regeitar (de rejicere) como quem diz arremessar. Arma que fere de arremesso, em bom portuguez, chamou-se antigamente regeito. O povo usa o verbo que é excellente e onomathopaico. Os minhotos, que fizeram exame de bachareis, e de instrucção primaria (o que é mais difficil), riem-se quando o gentio analphabeto diz: «regeitou-lhe uma pedra.»

[8] O Demonio do ouro.

[9] Os realistas usavam nas suas correspondencias termos convencionaes. Lua era o general em chefe Macdonnell. Este general, quando foi batido pelo conde de Casal em Braga, deixou ali um volumoso diccionario manuscripto, curiosamente elaborado pelos realistas de algum vulto lexicologico, com bastantes documentos que hoje estão esquecidos, e mais tarde a historia não saberá onde procural-os. N'este diccionario cryptographico os vocabulos mais engenhosamente disfarçados são estes:

Inimigos—BESTAS.

Inimigos em movimento—BESTAS DESINQUIETAS.

Inimigos em marcha contra nós—BESTAS DE JORNADA.

Os liberaes, se interceptassem a correspondencia, não suspeitariam decerto que os miguelistas chamassem aos seus adversarios—bestas.

Leia-se a carta dirigida ao cavalheiro José Hume, membro do parlamento sobre o ultimo debate havido na camara dos communs a respeito dos negocios de Portugal etc. Lisboa, 1847.

O traductor e annotador anonymo d'esta obra, a mais noticiosa que temos da revolução chamada da Maria da Fonte, foi Antonio Pereira dos Reis, notavel escriptor politico, fallecido em 1850.

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