The Project Gutenberg eBook of Garatujas

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Title: Garatujas

Author: Joaquim de Melo Freitas

Release date: February 15, 2007 [eBook #20582]
Most recently updated: January 1, 2021

Language: Portuguese

Original publication: Aveiro: Imprensa Nacional Rua de José Estevam, 1883

Credits: Produced by Pedro Saborano (Transcrito a partir das imagens
disponibilizadas pela Biblioteca Digital da Ria-BibRia)

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Produced by Pedro Saborano (Transcrito a partir das imagens

disponibilizadas pela Biblioteca Digital da Ria-BibRia)

*GARATUJAS*

por

*Mello Freitas*

Bacharel formado em direito, Socio correspondente da Sociedade de
Geographia de Lisboa, Socio fundador da Associação dos Jornalistas e
Escriptores portugueses e mais nada.

      Tem versos naturaes, parecem prosa!
          Bocage (Sonetos).

AVEIRO

IMPRENSA COMMERCIAL
Rua de José Estevam.

1883

* * * * *

*Voz no deserto.*

João de Deus é incontestavelmente o nosso primeiro lyrico.

Homem que acredita em Deus para não ser um João "Ninguem" que, nas vesperas d'uma epedemia, caiou d'alto abaixo a povoação inteira de Messines, e que no remanso d'alma inventou com affecto um methodo racional de leitura para alegria e allivio das creanças, qual outro mais apaixonado, de maior delicadeza e tão mavioso?

Atraz d'elle grasnou por largo espaço de tempo um rancho de patos n'uma vozeria medonha imitando-lhe a belleza das rimas, e a estructura da phrase.

A "Morte de D. João" de Guerra Junqueiro produziu de subito um cataclysmo como se se rasgassem as entranhas da terra e uma cratera se abrisse vomitando a lava em rolos de fumo. Todos se julgaram n'esse instante com direito a molharem o pincel nas côres iriadas de tão esplendida palheta, esboçaram por isso com as mesmas tintas os perniciosos fructos do lupanar, cantaram o mercurio, a copahiba e a syphilis, esfalfaram as pluraes dos adjectivos, evocaram a desditosa Ophelia, obrigaram Christo a marchar em todas as linhas das suas estrophes, e finalmente prenderam a cotovia entre alexandrinos caudalosos com os epithetos mais extravagantes bebidos na leitura da opulenta prosa de Flaubert, Zola, e Daudet.

Na esteira phosphorescente do sublime trecho de Soares Passos—"O firmamento"—muitos outros gonfaloneiros da poesia scientifica tem actualmente interrogado o mysterio e a duvida, hasteando um labaro de perguntas mais causticas do que um emplasto de mostarda, pimenta e cantharidas.

O plagiato é o grande affluente, que assopra as vagas empoladas da litteratura.

Vou por certo, estuando e redemoinhando, entre os cachões d'aquelles que não inventam, mas imitam, e hoje que os maiores poetas do nosso paiz arfam dentro de encadernações luxuosas, e gemem em papel velino, no bello typo renascença as suas endechas mais subtis e trascendentes, para me affastar d'elles, e lhes não manchar a chlamyde guerreira, se obedecesse aos impulsos do meu merecimento devia gravar o escalracho dos meus sonetos, carregados de lepra, na casca doente dos platanos ou imprimil-os, quando muito, em papel pardo. Esta confidencia é talvez esteril, mas urgente.

31 de dezembro de 1882.

*Mello Freitas*

*No Passeio Publico*

      A charanga transuda uma gavotte:
      Dois caturras discutem acirrados,
      E com bengalas corneas d'estoque
      Vibram politica em medonhos brados;

      Um coronel solemne, um D. Quichotte
      Exige a continencia d'uns soldados,
      E trauteando a polka da Mascotte
      Giram damas a passos alquebrados;

      As lorettes com artes de raposa
      Perseguem os alferes; conjecturo
      Que não seja talvez p'ra boa cousa.

      Finalmente um burguez, nedio, maduro
      Ri do estado inter'ssante de sua esposa
      Porque se julga o pae do nascituro.

*Forget me not.*

(não me esqueças)

      Não te esqueço, florinha humilde e bella
      Que tornas a campina um firmamento,
      Innocente, sublime bagatella,
      Joia viva, risonho monumento.

      Não sei que poesia encontro n'ella,
      Que instilla em roda ethereo, vago alento
      Tão breve, tão discreta, tão singela,
      Qual pyrilampo, o nitido portento.

      N'essa titilação fosforescente,
      Lagrima-esmalte da urze tão subtil,
      Abrandas as escarpas da torrente

      Mensageira do lascivo mez de abril
      Quem te não ama, o coração não sente
      Miniatura com petalas d'anil!

*Vendetta*

      Juraste a minha perdição, ingrata,
      A quem adóro como adóro a vida
      Casta flôr, flôr de neve estremecida,
      Que sorris, quando o teu olhar me mata.

      Gravei no peito aquella rubra data
      Em que te vi, amor! qual na avenida
      Se entalha na fiel casca endurcida
      O nome da huri, que nos maltracta

      E, apesar de seres tão bella e mansa,
      Folgas que a desventura me persiga
      Dilacerado de cruel esp'rança.

      Seja assim! É atroz minha vingança,
      Pois que amôr e odio tanto me castiga,
      Cada vez te amo mais, dôce inimiga.

*Desditosa cecem!*

      Pobre flôr, que se estiola
      Na vertente da montanha,
      Ninguem aqui te consola
      Fria sombra te acompanha.

      Commoção que te desola!
      Uma peçonhenta aranha
      Sobre a nitida corolla
      A sua rede emmaranha!

      Quem te lançou no degredo
      D'este acerbo pavimento
      Para te olvidar tão cêdo?

      —A meus paes fugi mesquinha
      Fugi nas azas do vento
      Triste sorte foi a minha!…

*O Marquez de Pombal*

      Le Roi Faineant cerrará os olhos
      E partira entre nuvens para o ceu
      Surge, depois, na côrte um escarceu
      Que brame da vingança nos escolhos

      D'altas vagas de bronze nos refolhos
      Poz a Intriga um galeão como trofeu
      A effigie de Pombal tinha em labeu
      Jaz na poeira, no olvido, e nos abrolhos.

      Então a Inveja alastra a baba escura
      Qual serpente, que as roscas ennovela
      E a empreza do ministro transfigura.

      Entretanto o Marquez com amargura
      Diz fitando a grosseira caravella:
      —Lá te vaes Portugal agora á véla.

*Abandonado!*

      Uma fita prendi côr de saphira
      No leve, tenue pé d'uma andorinha;
      Este anno regressou a pobresinha
      E junto ao ninho seu constante gira.

      Quando o sol no horisonte se retira
      Esvoaça em redor de mim sósinha;
      Tambem esta alma, soffrega, mesquinha
      Por ti enfeitiçada geme, expira.

      Ella na espuma branca, qual arminho
      Foge no mar á raiva dos açores
      Não perdendo a lembrança do seu ninho

      Só tu na primavera dos amores,
      Como vibora occulta em rosmaninho,
      De mim te olvidas na estação das flôres.

*Garibaldi*

(Fallecido a 1 de junho de 1882.)

      É morto o condottiere, o paladino
      Soldado da rasão e da justiça
      Forasteiro, que o sangue desperdiça
      Nas refregas do tragico destino.

      Genio do bem, suave e peregrino
      Estatua de luz e amor toda massiça
      A cujo aspecto a multidao submissa
      Se agrupa em alvoroço repentino,

      Guerrilheiro da America indomavel
      Espada de Dijon, e da Marsalla,
      De Napoles e Roma inconsolavel!

      O solitario de Caprera é morto,
      E, quando o heroe no tumulo resvala,
      Um calafrio gela o mundo absorto.

*Imprecação*

      Para que te amava eu? Corpo d'espuma
      Cruel enlevo de labios setinosos
      Onde bailam desejos luminosos
      Estrella, que de luz o ceu perfuma.

      Para que te amava eu? Que densa bruma
      Me offusca de saudade em tons nervosos
      Desfolhando com gritos lacrimosos
      As petalas d'amôr uma por uma?

      Para que te amava eu? oh! praza aos ceus
      Que em quanto o sol girar pelo universo
      Naufragues da paixão nos escarceus.

      E porque soffro na tristeza immerso,
      Pallido goivo ao pé dos mausoleus,
      Oxalá que o amôr te seja adverso!

*O terremoto*

      Com fragor açoitando a vaga escura,
      O temporal irado, espumacento
      Cavalga um perfido corcel—o vento—
      Que solta gargalhadas de bravura.

      Treme a terra, e com horrida figura,
      Como Athlante, sacóde o turvo argento;
      Nos gonzos oscillando o pavimento,
      Dançam torres no assomo da loucura.

      Vae o fogo alastrando o aureo manto,
      As ruinas trucidam fugitivos,
      Que sangrentos se abraçam convulsivos!

      —O que fazer?—inquire o rei em pranto,
      O ministro lhe diz com nobre espanto:
      —Sepultar mortos, e cuidar dos vivos.

*Entre palmeiras*

      Faiscam os jaezes dos Cavallos,
      Vibra o som dos clarins pela athmosphera;
      No dorso de elephantes reverbéra
      A seda e prata em crebros intervallos.

      Rodeado de innumeros vassallos
      Intrepido radjah de côr austera
      Busca o tigre e leão, onça e panthera
      Crusando as selvas, e galgando os vallos.

      No cerrado paul ondula a brenha
      E um leão de medonha, hirsuta juba
      Em furioso valor se desentranha.

      A raiva dos lebreus o estimula,
      Os dardos o trespassam, mas derruba
      O radjah, que nas vascas estrangula.

*Nostalgia*

      Nos estuarios alpestres do Brasil,
      Onde o sol inflammado resplandece,
      A cabilda dos negros desfallece
      Sob o látego torpe e mercantil.

      Nas areias matisa-se febril
      O ouro virgem, e no spatho permanece
      O diamante, que arisco se aborrece
      Entre o cascalho estupido, imbecil.

      O escravo, quando avista um diamante
      De dezesete carats quebra fôrro
      As algemas sorrindo triumphante.

      Que me valeu porém o descobrir-te
      Diamante sem rival?—Suspiro e môrro
      A teus pés almejando possuir-te.

*No confissionario*

      D'um frade libidino e bronzeado
      Ortego desenhou o rosto bento,
      Grave ausculta no sexto mandamento
      Uma joven do seculo passado;

      Fascinada respira o ar mesclado
      Das lascivas perguntas de convento,
      Que se aproveitam do veloz momento
      Galopando na senda do peccado.

      A pobre flôr arqueja palpitante
      Sob esse olhar, que vae como despil-a
      Mystico, corrompido e triumphante.

      E na cruz soffredor, agonisante,
      Mudo Christo de velha e tosca argila
      Pasma da habilidade do farçante!

*Boletim militar*

1814

      Vae rir-se desdenhosa a sombra de Pombal!
      Era doida a rainha. O principe regente
      Ostentando gentil a bochêcha eloquente
      Tinha bom appetite e ventre clerical,

      Mas logo que Junot açaima Portugal
      Embarca a toda a pressa e deixa a nossa gente,
      Panda véla o conduz ao Brasil florescente,
      E rapido imagina um plano theatral.

      Veloz como no monte a trepida gazella,
      É certo resguardava a insipida pessoa
      Adiposa e feliz para cingir a c'rôa,

      E da nação em prol tão lorpa se revela,
      Que nomeia coronel do exercito á cautela
      O Santo Thaumaturgo Antonio de Lisboa.

*Taborda*

      Taborda, altivo heroe da gargalhada,
      Que dominas no palco com bravura,
      Quando vier sobre ti a morte escura,
      Hade sentir-se humilde, deslumbrada.

      E rindo a vez primeira enthusiasmada,
      Desfranzindo a medonha catadura,
      Ao vêr-te e ouvir-te em alegria pura,
      Despedaça a féra clava ensanguentada.

      Como subjugas cauto a morte ingrata,
      Vences tambem risonho a dúctil alma
      D'esta multidão gélida, pacata.

      E Satan abysmado diz em calma:
      —Sim?!… Mais almas do que eu elle arrebata?
      Já Diabo não sou!… Leva-me a palma.—

*Antonio Pedro*

      Antonio Pedro, astro fulgurante
      Que cruzas do tablado a vasta senda
      Como guerreiro impavido da lenda,
      Que, em busca de proesas, vaga errante.

      Eil o cingindo as armas de diamante!
      Sem que o cansaço, ou vil temor o prenda,
      Cada vez mais se engolfa na contenda,
      Em prol da esquiva fama alti-sonante.

      Quando o veu do futuro descortino
      No alcáçar da justiça, que rebrilha
      Sabeis o que descubro, e vaticino?

      (Isto me pasma! transporta! e maravilha!)
      Votado a berço humilde p'lo destino
      Filho do povo,—a Gloria—te perfilha!

*Mysterioso abysmo*

Tepido sonho de luz corpo, que destila aroma sublime e claro axioma espargindo amor a flux!

Uma vertigem produz teu olhar, o seio, a côma, voluptuoso symptoma que a phantasia traduz.

Debil flôr, que o sol admira beijando com azedume as estrellas de saphira…

mas ninguem sequer presume que o meu coração expira na mortalha do ciume.

*Na floresta*

      Conversa nos abetos a bafagem,
      Nas franças range o vento compassado
      E á matilha esquivando-se um veado
      Pasma de vêr no bréjo a sua imagem.

      Que rumor tão subtil, que doce agrado,
      Poesia terna e perfida, selvagem,
      Em que os echos se arrastam na folhagem
      Entre doceis de musgo avelludado.

      Irrompem as gazellas nos aceiros
      E as cobras apparecem na giesta
      Quando as gralhas alagam os olmeiros.

      Triste como o silencio da floresta,
      Oiço dentro de mim uivos d'horror.
      Combatem dois leões—Ciume e Amor!

*O cão de bordo*

      A cerração é densa. O pobre hiate
      Sem leme desarvóra na refrega;
      Penetra na escotilha a onda céga,
      Alquebra-se o baixel no duro embate.

      A trovoada estala, a prôa abate;
      No escaler a maruja ao ceu se apéga,
      Este a vida infeliz surdo lhe nega,
      Que as lagrimas não bastam p'ra resgate!…

      Um cão hirsuto, magro, avermelhado,
      Com os olhos chorosos, flamejantes,
      Que brilham como negros diamantes

      Late com desespero, busca a nado,
      Mergulha entre os cadaveres boiantes,
      O dono encontra, e morre extenuado.

*No harem*

      No matiz do tapete auri-felpudo
      Haydé reclina as fórmas langorosas,
      Scismam d'inveja purpurina as rosas
      Admirando-lhe as faces de velludo.

      Modelo, que convida a obsceno estudo
      N'um desmaio entre gazes vaporosas
      P'las cassoulas de prata sumptuosas
      O ambar, o beijoim arde a miudo.

      Quando rompe nos ceus a madrugada
      Sentem-se beijos em lascivo espasmo
      Que illuminam a alcôva perfumada

      E um eunucho—decrepito sarcasmo!—
      Que a barbacã vigia na esplanada,
      Crê-se na terra um mero pleonasmo.

*Esculptura*

      Que bella estatua! Collo d'alabastro,
      Um riso de crystal, faces ardentes,
      Um adreço de perolas os dentes
      E os olhos chispam o fulgor d'um astro!

      De maus intentos o porvir alastro
      Porque passando desdenhosa sentes,
      Que intimidas com lividas correntes
      Quem doido beija o sulco do teu rastro.

      Paradoxo cruel! treva d'arminho,
      Idolo deslumbrante, ruim creança
      Que da ternura forjas sevo espinho!

      Quando te vejo occorre-me a lembrança,
      Flôr de gelo, sinistro rosmaninho,
      D'enforcar-me a sorrir na tua trança.

*Cavatina*

(Palavras ditas entre bastidores a uma corista)

      Tenho ideias com-fusas e geladas
      Sobre a escala do amor onde resplende
       n'esse vivo sol, que mais se accende
      Rallentando as promessas calculadas.

      A gamma dos suspiros não attende,
      É de mau tom possuir lindas manadas
      D'amantes, que se afinam nas ciladas
      Das pausas, que o desejo não entende.

      Algumas joias quiz com ar guapo
      E a compasso dos negros agiotas
      Outras requer n'um prodigo—dá capo.

      Morre-se—diz o adagio—d'alegria
      Portanto se eu pagasse em boas notas
      Expiravamos ambos d' … harmonia.

*No theatro anatomico*

      Sobre a meza de marmore luxuosa
      Descança scintillante formosura
      D'uma creança esbelta, uma pintura,
      Que parece dormir silenciosa.

      As alvas rômas, que a virtude espósa
      São como alegre ninho de candura;
      Tão fresca, tão sentida e melindrosa,
      Causa pena entregal-a á sepultura.

      Os estudantes em prodiga algarvia
      Retalhando o cadaver delicado
      Jogam chufas de sordida alegria.

      Mais tarde o esqueleto dissecado
      Assiste ás prelecções d'anatomia
      Á escuta com ar petrificado.

*Epitaphio*

      Meu coração aqui jaz, erma ruina
      Onde habita a ironia, o vil phantasma
      Golphão anachoreta entre o miasma
      Perseguido p'la brisa crystallina.

      O lyrio, o trevo ri junto á bonina,
      Só de raiva a minha alma abdica, pasma
      Porque a tristeza famulenta traz-m'a
      Nas duras garras d'ave de rapina.

      Meu coração aqui, sob esta alfombra
      Dos pallidos desdens, justos ciumes
      Adora morto e frio a tua sombra.

      Até que emfim—oh ceus!—os meus queixumes
      Te despertam o choro, que me assombra
      Envolvendo o cadaver em perfumes!

*Aquarella*

      Accorda a sombra tacita do lago,
      Do rouxinol a candida volata;
      A lua em chispas tremulas de prata
      Imprime ao lesto amor um tom presago.

      O vento raro e brando com afago
      O tredo esquife languido arrebata
      E o transporta subtil, como um pirata,
      Dando azas ao terror ignoto, vago.

      Suspira na floresta a morna aragem,
      As 'strellas trocam beijos delirantes,
      Que mais excitam castellã e pagem,

      Eis brilha uma coiraça junto á margem
      E a frecha sibilando alguns instantes
      Acaba n'um só golpe os dois amantes.

*Testamento*

      Lego uma trança do cabello d'ella
      Para atar um cavallo á mangedoura
      E as cartas da flacida impostora
      Para embrulhar assucar e canella.

      Ao credulo rival, deixo, leitora,
      A licença de entrar pela janella;
      Outrosim deixo as ligas e a fivela
      Que cingiram a perna encantadora:

      Os beijos que me deu ficam comigo
      E a memoria das noites palpitantes
      Hade caber tambem no meu jazigo.

      O seu retracto irá ao lupanar
      P'ra assistir á luxuria das bacchantes
      Já que a dona não vae em seu logar.

*Barcarola*

      «Corre, vôa, borboleta, vae graciosa
      Libar ondas de nectar delirante
      A anémona cingir, o lyrio, a rosa
      Com a aza fugitiva, coruscante.

      «Vae soffrega d'amor e sê ditosa.
      Dá-se no ceu um caso semelhante
      Quando estrellas em noite vaporosa
      Se abysmam n'uma queda extravagante.

      «Vae mariposa, a chamma te fascina
      Na aresta do ludibrio, como esphinge
      Em deserto d'areia crystallina.»

      Callam-se as vozes; picam-se as amarras;
      A gondola deslisa e o mar attinge
      Ao som dos bandolins e das guitarras.

*Bric-à-brac*

      O dono miseravel da locanda
      O brocanteur terrivel, sanguinario
      Agonisa n'um catre solitario
      D'uma alcova minuscula, execranda.

      Affinca as mãos convulso n'um rosario,
      Ao ceu a vida, supplice, demanda,
      N'uma imagem de Christo veneranda
      Crava os olhos de abutre, de corsario.

      Pois apesar das lagrimas-remorsos
      Das victimas do seu medonho trama
      Ruins phantasmas de lividos escorços.

      Nos paroxismos vende, além da cama,
      O Christo a um judeu, e em vis esforços
      A alma entrega a Satan, que lh'a reclama.

*Paysagem*

      O sol adormecera no horisonte;
      As nuvens em retalhos somnolentos,
      Parecem nos bisarros tons cinzentos
      O grupo despenhado de Phaetonte.

      O riacho deslisa ao pé do monte
      Em frequentes e turgidos lamentos;
      A philomela ensina o canto aos ventos
      No chorão, que murmura junto á fonte.

      A varzea rescende á larangeira!
      Da cathedral nas frestas em ogiva
      Um rancho d'andorinhas s'enfileira;

      E nas trevas soluça a sombra esquiva
      Do coveiro, que planta uma roseira
      Onde jaz a venal filha adoptiva.

*Vae victis*

(Struggle for life)

      Rasga sacrilego a amplidão celeste
      Um milhafre com azas pardacentas
      E a cotovia harmoniosa investe
      Armando as garras torpes e cruentas.

      Negro como o lethargo do cypreste,
      Rosna o vento nas franças macillentas,
      O sol dardeja n'um pallor agreste
      Que enthusiasma as nuvens corpolentas.

      A luz crua p'lo espaço se derrama,
      Engrossam os trovões em alcateia,
      Rutila do corisco a alegre flamma.

      A presa que o milhafre saboreia
      É o emblema do fraco, o velho drama
      Que o systhema do mundo patenteia.

*Episodio balnear*

      N'uma soirée heroica, ignea e linda
      Jurára o fulvo Arthur até á morte
      Ser da formosa e pudibunda Olinda
      Chumbando a ella p'ra sempre a sua sorte.

      Por ella ao inferno iria, o mar ainda
      Beberia d'um trago! Ella é seu norte,
      Meiga estrella de lucido transporte,
      Palpitante de rubra graça infinda.

      De manhã cêdo a nossa Julieta
      Desce nas crespas vagas a banhar-se
      Mascarada n'um fato de baeta

      E quando grita prestes a affogar-se,
      Chega Romeu, exhibe uma gorgeta,
      Mas não vae lá, que teme constipar-se.

*Reischoffen*

6 de Agosto de 1870.

      Desfraldam-se estandartes e trombetas,
      Ouve-se o crepitar da espingarda;
      Quando o canhão rouqueja á retaguarda
      Scintilla a larga messe das baionetas.

      As coiraças protegem a vanguarda,
      Dos capacetes poisam nas facetas
      As crinas marciaes, vermelhas, pretas,
      Com expressão terrivel e galharda.

      Bonnemain determina a voz de carga:
      Os estribos telintam, fulge a espada,
      Debalde a morte os esquadrões embarga.

      N'esta lucta cyclopica, gigante,
      O exercito francez em retirada
      Teve assomos d'heroismo deslumbrante.

*Extra-muros*

NOTAS

No passeio publico

*Le roi fainéant*.—Allude-se a D. José. A contar de Clovis II até Pepino o Baixo, os reis da dynastia merovingia são designados na historia de França como reis fainéants, porque estiveram em permanente tutela debaixo da auctoridade e poderio dos Maires du Palais.

No passeio publico

*Lá te vaes Portugal agora á véla.*—Ao amanhecer d'um dos primeiros dias do mez do Abril de 1777, arrancaram do pedestal da estatua equestre o retracto do Marquez de Pombal, e em seu logar collocaram as armas de Lisboa—o navio com os dois corvos proverbiaes na lenda piedosa de S. Vicente. É tradicção que o Marquez disséra então com acerado sarcasmo—Agora é que Portugal vae á véla—

Vide Latino Coelho—Historia Politica e Militar de Portugal no seculo
XVIII, pag. 168.

O marquez de Pombal

*Enterrar os mortos e cuidar dos vivos.*—Alguns attribuem o dito ao illustre general Pedro d'Almeida, marquez de Alorna—(Ferdinand Denis—Histoire du Portugal, pag. 353.)

Garibaldi

*Nostalgia.*—Veja-se Oliveira Martins==Brasil E colonias portuguezas, pag. 86 e 87, sobre os diamantes do Jequitinhonha,==e Leon Gozlan, no seu romance Histoire d'une diamant, pag. 53, que diz n'uma bonita phrase encarecendo a difficuldade da pesquisa dos diamantes, que os seus cofres estão sellados com spatho, jaspe e ferro; e acerca das minas de Visapur, (Bedjapour) vejam-se as paginas 134 e seguintes. O carat era a unidade de peso usada antes do systema decimal para pesar os diamantes, as perolas e as pedras preciosas, e era avaliada em quatro grãos, cerca de 22 centigrammas.

O Terremoto

*Boletim militar.*—O Marquez de Pombal contractára generaes estrangeiros para a honrosa defeza do paiz, fortificára a fronteira, arcára com a curia romana, tecera uma bem urdida rede diplomatica, reconstituira o reino, e tinha deixado os cofres do estado repletos. Sob o governo da rainha mentecapta o dinheiro gastou-se e o civismo como que desapparecera no alçapão d'uma magica. Foi então que Santo Antonio, que no tempo de D. Pedro II sentára praça e subira a major (Oliveira Martins—Historia do Portugal, tom. 2.º, pag. 179) ascendeu ao posto de tenente coronel. Ha poucos annos correu na imprensa o celebre diploma, que concedeu tão exotica patente ao thaumaturgo.

INDICE

Voz no deserto

No passeio publico

Forget me not

Vendetta

Desditosa cecem

O marquez de Pombal

Abandonado

Garibaldi

Imprecação

O terremoto

Entre palmeiras

Nostalgia

No confessionario

Boletim militar

Taborda

Antonio Pedro

Mysterioso abysmo

Na floresta

O cão de bordo

No harem

Esculptura

Cavatina

No theatro anatomico

Epitaphio

Aquarella

Testamento

Barcarola

Bric-à-brac

Paysagem

Vae victis

Episodio balnear

Reischoffen

Extramuros