The Project Gutenberg eBook of Os sonetos completos de Anthero de Quental

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Title: Os sonetos completos de Anthero de Quental

Author: Antero de Quental

Release date: December 20, 2006 [eBook #20142]

Language: Portuguese

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OS SONETOS COMPLETOS DE ANTHERO DE QUENTAL ***

Produced by Pedro Saborano, Ricardo Diogo and Tiago Tejo,

and edited by Rita Farinha (Biblioteca Nacional Digital—http://bnd.bn.pt).

SONETOS

OS SONETOS COMPLETOS

DE

Anthero de Quental

publicados por

J. P. Oliveira Martins

PORTO
LIVRARIA PORTUENSE
DE

LOPES & C.^a—EDITORES

119, Rua do Almada, 123*

1886

PORTO

TYPOGRAPHIA OCCIDENTAL

Rua da Fabrica, 66

Escrevendo estas breves paginas á frente dos Sonetos de Anthero de Quental tenho a satisfação intima de cumprir o dever de tornar conhecida do publico a figura talvez mais caracteristica do mundo litterario portuguez, e decerto aquella sobre que a lenda mais tem trabalhado. Estou certo, absolutamente certo, de que este livro, embora sem écco no espirito vulgar que faz reputações e dá popularidade, ha-de encontrar um acolhimento amoroso em todas as almas de eleição, e durar emquanto houver corações afflictos, e emquanto se fallar a linguagem portugueza.

Procurarei, no que vou dizer, guardar para mim aquillo que ao publico não interessa: a viva amisade, a estreita communhão de sentimentos, o affecto quasi fraterno que ha perto de vinte annos nos une, ao poeta e ao seu critico de hoje, fazendo da vida de ambos como que uma unica alma, misturando invariavelmente as nossas breves alegrias, muitas vezes as nossas lagrimas, sempre as nossas dores e os nossos enthusiasmos ou o nosso desalento.

Discutindo em permanencia, discordando frequentemente, ralhando a miudo, zangando-nos ás vezes e abraçando-nos sempre: assim tem decorrido para nós perto de vinte annos. Mas o leitor é que nada tem que vêr com esses casos particulares, nem com o abraço que trocámos no dia em que primeiro nos conhecemos e que só terminará n'aquelle em que um de nós, ou ambos nós, formos descançar para sempre sob meia duzia de pás de terra fria.

I

Eu não conheço phisionomia mais difficil de desenhar, porque nunca vi natureza mais complexamente bem dotada. Se fosse possivel desdobrar um homem, como quem desdobra os fios de um cabo, Anthero de Quental dava alma para uma familia inteira. É sabidamente um poeta na mais elevada expressão da palavra; mas ao mesmo tempo é a intelligencia mais critica, o instincto mais pratico, a sagacidade mais lucida, que eu conheço. É um poeta que sente, mas é um raciocinio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa.

Inventa, e critíca. Depois, por um movimento reflexo da intelligencia, dá corpo ao que criticou, e raciocina o que imaginou.—O seu temperamento apresenta um contraste correlativo: é meigo como uma creança, sensitivo como uma mulher nervosa, mas intermittentemente é duro e violento.

É fraco, portanto? Não. A vontade, em obediencia á qual, e com esforço, se faz colerico, fal-o tambem forte—d'esta força persistente, raciocinada e na apparencia placida, como a superficie do mar em dias de bonança. O Oceano, porém, é interiormente agitado pelo gulf stream quente e invisível: tambem ás vezes a placidez extrema da sua face encobre ondas de afflicção que sobem até aos olhos e rebentam em lagrimas ardentes. Sabe chorar, como todo o homem digno da humanidade.

É d'estas crises que nasceram os seus versos, porque Anthero de Quental não faz versos á maneira dos litteratos: nascem-lhe, brotam-lhe da alma como solluços e agonias. Mas, apezar d'isso, é requintado e exigente como um artista: as suas lagrimas hão de ter o contôrno de perolas, os seus gemidos hão de ser musicaes. As faculdades artisticas geradoras da estatuaria e da symphonia são as que vibram na sua alma esthetica. A noção das fórmas, das linhas e dos sons, possue-a n'um gráo eminente: não já assim a da côr nem a da composição. Aos quadros chama paineis com desdem, e por isso mesmo tem horror á descripção e ao pittoresco. É artista, no que a arte contém de mais subjectivo. A sua poesia é esculptural e hieratica, e por isso phantastica. É exclusivamente psychologica e dantesca: não pode pintar, nem descrever: acha isso inferior e quasi indigno.

Os seus versos são sentidos, são vividos como nenhuns; mas o sentir e o viver d'este homem é de uma natureza especial que tem por fronteiras phisicas as paredes do seu craneo, mas que não tem fronteiras no mundo real, porque a sua imaginação paira librada nas azas de uma razão especulativa para a qual não ha limites.

O poeta é por isso um mystico, e o critico um philosopho. O mysticismo e a metaphisica, o sentimento e a razão, a sensibilidade e a vontade, o temperamento e a intelligencia, combatem-se, ás vezes dilacerando-se. Eis ahi a explicação d'esta poesia que é o retrato vivo do homem. O genio, esse quid divinatorio, que não é honra para nenhuma creatura possuir, porque só nos dá merecimento aquillo que ganhámos á força de intelligencia e de vontade; o genio, que é uma faculdade tão accidental como a côr dos cabellos, ou o desenho das feições; o genio, que pode andar ligado a uma intelligencia mediocre, mas que o não anda no caso de Anthero de Quental—é o predicado particular e a chave do enygma d'este homem. O genio presuppõe a intuição de uma verdade visceral ou fundamental da natureza. Essa intuição, essa aspiração absorvente, é para o nosso poeta a synthese da verdade racional ou positiva e do sentimento mystico: uma poesia que exprima o raciocinio, ou antes uma philosophia onde caibam todas as suas visões. O proprio do genio é querer realisar o irrealisavel; é ser chimerico, no sentido critico da palavra, quando por chimera entendemos uma verdade essencial que não pode todavia reduzir-se a formulas comprehensiveis, ou uma cousa cuja realidade se sente, sem se poder ver.

Dos aspectos quasi inexgotavelmente variaveis d'esta singular phisionomia de homem, d'esta mistura excepcional de pensamentos e de temperamentos n'um mesmo individuo, resulta porém um typo de sinceridade e de rectidão mais singular ainda, porque mais facilmente podia resultar d'ella um grande cynico. É sobretudo um stoico, sem deixar de ter bastante de sceptico; é um mystico, mas com uma forte dose de ironia e humorismo; e um mysanthropo, quando não é o homem do trato mais affavel, da convivencia mais alegre; é um pessimista, que todavia acha em geral tudo optimo. Intellectualmente é a phisionomia mais dubia, complexa e contradictoria por vezes; moralmente é o caracter mais inteiro e melhor que existe. A sua intelligencia encontra-se permanentemente no estado de alguem que, querendo ir para um sitio, resiste por não querer ao mesmo tempo, sem todavia ter rasões bastantes para querer nem tambem para não querer. O nucleo da sua personalidade, se a encaramos pelo lado praticamente humano, está na energia do seu querer moral, e não na lucidez do seu pensamento; embora tenha a pretenção de julgar que a sua vontade obedece sempre á sua razão. É verdade que dentro de si tem permanentemente um espelho facetado que representa e critíca as modalidades do seu pensamento; mas, por isso mesmo, vê ou inventa faces de mais ás cousas, e tambem por vezes o cristal embacia. O que nunca esmorece é a bondade luminosa da sua alma. É um homem fundamentalmente bom.

A complexidade do seu espirito dá-lhe uma variedade de aptidões singular. Conversador como poucos, facil, espontaneo, original e suggestivo, ironico, humorista, espirituoso, descendo até á propria charge, não ha ninguem como elle para soltar o carro da sua phantasia critica na ladeira de uma these, e, explorando-a em todos os sentidos, architectar uma theoria. Os seus opusculos em prosa (da melhor prosa portugueza d'este tempo) têm em geral este caracter. São logicos, são bem deduzidos—sem serem sufficientemente pensados. São fructos da imaginação; são conversas escriptas, d'essas conversas que durante horas seduzem os que o ouvem—porque é um charmeur.

Elle proprio se embriaga, não com as suas palavras, mas sim com aquella theoria passageira que inventou ad hoc, e, quando alguem lhe objecta um pequeno senão, todavia essencial ao seu edificio logico, resiste, defende-se, irrita-se ás vezes, mas por fim é elle proprio que, com um dito, desfaz toda a construcção. Seria um orador, um jornalista de primeira ordem, se não tomasse apenas a sério a sua missão de poeta, ou antes de philosopho.

Depois de tudo isto dirão pessoas pouco dadas ao estudo do animal homem que Anthero de Quental é um assombro. Longe d'isso. A sua força e a prodigalidade com que a natureza dotou o seu espirito; mas essa força é uma fraqueza. Tem demasiada imaginação para ver bem; e por outro lado o raciocinio critico peia-lhe os vôos luminosos da phantasia. Vê de mais para poder ser activo, ou não tem a energia correspondente á sua visão. Se a tivesse, seria verdadeiramente um assombro. A imaginação e a razão, irreductiveis nos cerebros humanos com as circumvoluções limitadas que contêm, são egualmente poderosas no seu cerebro para que qualquer d'ellas domine. Luctam em permanencia, procurando entender-se, combinar-se, penetrar-se, e, no desejo chimerico da synthese, desequilibram o homem, atrophiando-lhe a energia activa. Ainda assim, felizes d'aquelles cuja inercia désse um livro comparavel a este!

Mas é que as suas paginas foram escriptas com sangue e lagrimas! E doe ver a vida do mais bello espirito consumir-se em agonias de uma alma em lucta comsigo mesmo! O commum da gente, ao ler as paginas d'este volume, dirá então: Quantas catastrophes, que desgraças, este homem soffreu! que singular hostilidade do mundo para com uma creatura humana!—E todavia o mundo nunca lhe foi propriamente hostil, nenhuma desgraça o acabrunhou; a sua vida tem corrido serena, placida, e até para o geral da gente em condições de felicidade.

É que o geral da gente não sabe que as tempestades da imaginação são as mais duras de passar! Não ha dores tão agudas como as dores imaginarias. Não ha problemas mais difficeis do que os problemas do pensamento, nem crises mais dolorosas do que as crises do sentimento. As agonias dilacerantes da morte com as ancias do stertor, os horrores mais inverosimeis dos crimes monstruosos, as afflicções mais pungentes da saudade, as tristezas mais dolorosas da solidão, as luctas do dever com a paixão, os gritos do homem arruinado, os ais da orphandade faminta… tudo, tudo, quanto no mundo pode haver de doloroso, desde a miseria até á prostituição, desde o andrajo até ao velludo arrastado pela immundicie, desde o cardo que dilacera os pés até ao punhal que rasga o coração: tudo isso é menos, do que a agonia de um poeta vendo passar diante de si, em turbilhão medonho, as lugubres miserias do mundo. Todas as afflicções têm o seu quê de imaginativas, e por isso ha apenas uma especie de homens que não sentem: são os cynicos, esses que perderam os nervos da moralidade, os anesthesiados do sentimento.

Quando se é poeta como Anthero de Quental, a imaginação exacerbada vibra como as harpas que os gregos expunham ás virações da brisa nos ramos das arvores. Nenhum dedo lhes feria as cordas, e todavia tocavam! Nenhuma d'essas desgraças do mundo feriu a harpa da vida do poeta; e todavia essa harpa geme e chora, solluça e grita, porque pelas suas cordas passa o vento agreste das idéas, passa o écco ullulante do egoismo dos homens, afflictivo como os uivos de uma alcateia de lobos famintos.

II

Esta collecção de Sonetos é, portanto, ao mesmo tempo biographica e cyclica. Conta-nos as tempestades de um espirito; mas essas tempestades não são os quaesquer episodios particulares de uma vida de homem: são a refracção das agonias moraes do nosso tempo, vividas, porem, na imaginação de um poeta.

O primeiro periodo, de 1860-2, contém em embryão todos os successivos, da mesma fórma que as flores incluem em si a substancia dos fructos. Denuncía uma alma sensivel, mas patenteia já a preoccupação metaphisica na sua phase rudimentar de duvida theologica, e apresenta uns assomos de tristeza que são como os farrapos de nuvens quando velam intermittentemente o sol, deixando antever a tempestade para o dia seguinte. Estes primeiros sonetos são o balbuciar de uma creança. Romantica? De modo nenhum. Este poeta não se filia em escholas, não obedece a correntes litterarias: a sua poesia é exclusivamente pessoal. Succedia, porem, que n'esse tempo já os nossos bardos classicamente romanticos tinham passado da moda; e a Coimbra chegavam por via de Paris os éccos do espirito novo, expresso nas obras de Michelet, de Quinet, de Vera-Hegel, etc.

Tudo isso fermentava no cerebro de Anthero de Quental, mas a sua personalidade não se deixava absorver pelo optimismo que, depois dos romanticos, se espalhou na Europa, lyricamente ingenuo no Occidente afrancezado, systematicamente philosophico na Allemanha hegeliana. Schopenhauer, ninguem o lia. Não era moda. Pois foi essa corrente, dominante hoje, aquella em que o nosso poeta, espontaneamente, por um movimento do seu temperamento, se achou levado. Aos dezoito ou vinte annos, ignorante ainda, mas inquieto e perscrutador, o poeta que desdenha sinceramente da fama e da gloria, vê no eterno feminino de que nos falla Goethe a synthese da existencia. Os seus amores já são phantasticos: só tem realidade no ceu.

Alli, ó lyrio dos celestes valles,
Tendo seu fim, terão o seu começo,
Para não mais findar, nossos amores.

E se ainda o dia, a luz, o sol esposo amado, têm o condão de o encher de enthusiasmo, é mister desconfiar de um homem mais caprichoso do que todas as mulheres, porque

Pedindo á forma, em vão, a idea pura
Tropeço, em sombras, na materia dura
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Esta nota é mais constitucionalmente verdadeira. «Seja a terra degredo, o ceu destino» diz n'um ponto; e n'outro:

Minha alma, ó Deus, a outros ceus aspira:
Se um momento a prendeu mortal belleza
É pela eterna patria que suspira…

Não acreditemos tambem demasiadamente n'isto, porque Deus não passa ainda de uma interrogação:

Pura essencia das lagrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! Se és verdade,
Descobre-te, visão, no ceu ao menos!

As luctas infantís d'este primeiro periodo para saber se Deus é ou não é verdade, bastam, em si mesmo e no proprio modo por que estão expressas, para nos mostrar que o poeta não saiu ainda das espheras da representação elementar dos seres, para a esphera comprehensiva das abstracções racionaes. Os sonetos d'esta primeira serie desenrolam-se no terreno da phantasmagoria transcendente. O traço mais seguro de todos e o mais significativo está n'este verso:

Que sempre o mal peior é ter nascido.

A segunda serie tem a data de 1862-6. Psychologicamente é a menos original, artisticamente é a mais brilhante. O Sonho oriental, o Idyllio, o Palacio da Ventura, são obras primas, até de colorido. Talvez por isso mesmo que o estado de espirito do poeta o não obrigava a tirar tanto de si, e porque n'esta epocha viveu mais á lei da natureza; talvez por isso mesmo a sentiu e pintou melhor nas suas côres, nas suas imagens.

A nebulose do primeiro periodo começava a resolver-se n'uma tragedia mental, que umas vezes tem os sonhos dos que mastigam haschich, outras vezes furias de desespero, ironias como punhaes e gritos lancinantes:

Se nada ha que me aqueça esta frieza,
Se estou cheio de fel e de tristeza,
É de crer que só eu seja o culpado.

Meu pobre amigo, como foi amarga esta epocha! Outros soffreram tambem, outros penaram eguaes dores, sem conseguirem porem estrangular os monstros que defendem os áditos do templo da Sabedoria. Heine e Espronceda, Nerval e Baudelaire viveram vidas inteiras n'esse estado de ironia e de sarcasmo, de desespero e de raiva, de orgia e de abatimento, de furia e de atonia, que para ti representam quatro annos apenas!

Mas é que não havia em nenhum d'esses homens a semente de abstracção que se descobre no Palacio da Ventura:

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silencio e escuridão—e nada mais!

Os romanticos, mais ou menos satanistas ou satanisados, ficavam-se por aqui. Achando apenas silencio e escuridão onde tinham sonhado venturas, ou davam em bebedos como Espronceda, ou suicidavam-se como Nerval, ou faziam-se cynicos, á maneira de Baudelaire, cultivando com amor as Flores do Mal.

De 1864 a 74, n'esses dez annos em que a tempestade caminha, vê-se a onda negra da desolação espraiar-se; vê-se o «silencio e a escuridão» que antes surgiam como surprezas medonhas, ganharem um logar apropriado, embora eminente, no regimen das cousas; vê-se o espirito do philosopho reagir sobre o temperamento do poeta, e tornar-se systema o que até ahi era furia. Bom prenuncio.

N'esta epocha Anthero de Quental é nihilista como philosopho, anarchista como politico: é tudo o que fôr negativo, é tudo o que fôr excessivo; e é-o de um modo tão terminante, tão dogmatico e tão affirmativo, que por isso mesmo hesitamos em crer na consciencia com que o é. Da sinceridade não é licito duvidar, mas contra a segurança depõe a propria violencia. A nevrose contemporanea, que produzira n'elle a terceira epocha, dá de si ainda a quarta; mas se poude galgar a saltos por entre a floresta incendiada que devorou e consumiu os satanicos, não poderá tambem sair da steppe lugubre onde apodrecem os pessimistas, embriagados na negação universal, sem se lembrarem de que são contradictorios no proprio facto de prégarem o que quer que seja?

Ora a isto responde esta propria serie, porque, ao lado dos sonetos crepuscularmente desolados, levantam-se como auroras os sonetos stoicos. Para curar o poeta da vertigem satanica serviu-lhe a methaphisica pessimista; para o curar mais tarde d'essa metaphisica, servir-lhe-ha a reacção do sentimento moral sobre a razão especulativa. Quando pede Mais luz, quando chama ao sol «O claro sol amigo dos heroes», quando define a Idea acabando por estes versos diamantinos:

A Idea, o Summo bem, o Verbo, a Essencia
Só se revela aos homens e às nações
No ceu incorruptivel da Consciencia!

sentimo-nos bem distantes das phantasmagorias do principio e das loucuras da viagem, que todavia o poeta não terminou ainda.

Luctando furioso contra a desillusão, caindo esmagado pelo anniquilamento, Anthero de Quental ensimismou-se (para usar de uma feliz expressão hespanhola) metteu-se dentro de si, a sós comsigo, apellou para as energias do seu instincto de homem, e foi isso o que lhe inspirou o bello Hymno á Razão.

Porem na lucta entre o temperamento de stoico e a imaginação metaphisica, o seu espirito attribulado não conseguiu manter o equilibrio, porque as suas exigencias de critico e philosopho (alimentadas agora por leituras variadissimas e profundas) contrariavam ou contradiziam as suas vizões de poeta. Á maneira que a intelligencia se lhe cultivava, que o saber lhe crescia, que a experiencia o educava com mais de um caso doloroso ou apenas triste—apurava-se-lhe a imaginação até ao ponto de ver claramente o que para o commum dos espiritos são apenas concepções do entendimento abstracto. A sua poesia despe-se então de accessorios: não ha quasi uma imagem; ha apenas linhas, mas essas linhas de estatuas incorporeas tem uma nitidez dantesca.

O seu pessimismo torna-se systematico: é uma philosophia inteira, a que corresponde, como expressão sentimental, a ironia transcendente. Na Disputa em Familia, Deus responde aos atheus:

Muito antes de nascerem vossos paes
D'um barro vil, ridiculas creanças,
Sabia eu tudo isso… e muito mais!

No Inconsciente, este heroe metaphisico, diz assim:

Chamam-me Deus ha mais de dez mil annos…
Mas eu por mim não sei como me chamo.

Na Divina Comedia os homens queixam-se aos deuses do que soffrem, invectivando-os pelos terem creado.

Mas os deuses com voz ainda mais triste
Dizem:—Homens! porque é que nos creastes?

Como se vê, houve um progresso. No periodo anterior a negação era violenta e terminante; agora tem como expressão a ironia que é uma das formas conhecidas do saber, e uma das linguagens da verdade. Eis ahi o que a reacção moral conseguiu, acompanhada pelo esclarecimento da razão, da intelligencia e do conhecimento. O antigo poeta satanico, transformado em um nihilista, vemol-o agora na pelle de um pessimista systematico, sorrindo já bondosamente, com a ironia n'esses proprios labios que, primeiro cobertos de espuma, depois nos appareciam brancos de agonias.

Não tinha eu razão para chamar cyclica a esta collecção de sonetos? Não tem sido este o movimento das idéas, a evolução do pensamento creador na segunda metade do nosso seculo?

Quando escreveu o primeiro soneto da quarta serie (1880-4)

Já socega, depois de tanta lucta,
Já me descança em paz o coração…

Anthero de Quental resolveu destruir todas as suas poesias lugubres. Sentia remorsos por alguma vez ter estado n'uma disposição de animo que agora considerava com horror. Entendia que esses versos tetricos não podiam consolar ninguem, e fariam mal a muita gente. Destruiu-os, pois, com aquella violencia propria de um caracter intermittentemente meigo e frenetico como o de uma mulher. D'esse naufragio onde se perderam verdadeiras obras-primas, salvei eu as poesias que vão no fim d'este ensaio; e salvei-as porque as possuia entre os originaes remettidos em cartas, e mais de uma vez como texto de noticias do estado do seu espirito, ou cartas rimadas.

Que especie de paz era porem essa em que o seu coração descançava? Era o Nirvâna:

E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge a custo d'esse mundo morto
E torna a olhar as cousas naturaes,

Á bella luz da vida, ampla, infinita
Só vê com tedio em tudo quanto fita
A illusão e o vasio universaes.

O Nirvâna é o ceu do buddhismo, a religião mais philosophica e menos phantasmagorica inventada pelos homens. É por este motivo que o buddhismo attrae hoje em dia todos os espiritos a um tempo racionalistas e mysticos, d'esta epocha em tudo similhante á alexandrina, menos no volume do saber positivo que já se não compadece com muitas das theorias sobre que os néoplatonicos especulavam. A theoria da Substancia levou-os a elles a uma concepção do Ser que produziu o mytho do Verbo christão, encarnado popularmente em Jesus-Christo. Ora hoje tudo isso vale apenas como documento historico, e, por paradoxal que isto pareça, o Não-Ser é, segundo a metaphisica contemporanea, a essencia de tudo o que existe. O Absoluto é o Nada. O Universo, a realidade inteira, são modalidades, aspectos fugitivos, que só se tornam verdades racionaes quando nos apparecem despidas de todos os accidentes. E como é pelos accidentes apenas que nós, distinguindo-as, as conhecemos, a realidade verdadeiramente e em si é Nada.

Religiosamente, Nada é egual a Nirvâna; e o buddhismo é a única religião que attingiu esta conclusão, summaria do pensamento scientifico moderno. O Nirvâna é esse estado em que os seres, despindo-se de todas as suas modalidades e accidentes, de todas as condições de realidade, condições que os limitam distinguindo-os entre si, adquirem a não-realidade (o não-contingente) e com ella a existencia absoluta e a absoluta liberdade. Essa liberdade é o typo e a essencia da vida espiritual; e o Nirvâna, puro Não-Ser para a intelligencia, é, para o sentimento moral, o symbolo e o vehiculo de toda a perfeição e virtude: radicalmente negativo na esphera da razão, é, na esphera do sentimento, absolutamente affirmativo. O pessimismo torna-se d'esta fórma um optimismo gigantesco; toda a inercia é condemnada, e o systema das cousas, agitando-se, movendo-se na direcção do anniquilamento final, move-se e agita-se no sentido de uma liberdade evolutivamente progressiva até attingir a plenitude. O Universo é uma grande vida que tem, no termo, o termo de todas as vidas—a morte, idealisada agora e tornada luminosa e appetecivel por essa idealisação.

Leiam-se os dois sonetos Redempção, talvez os mais bellos de todo o livro, e comprehender-se-ha melhor o que fica dito. Leia-se o Elogio da morte

Dormirei no teu seio inalteravel,
Na communhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolavel!

e ver-se-ha quanto estamos longe do desespero tragico de outros annos. A tempestade acalmou.

Na esphera do invisivel, da intangivel,
Sobre desertos, vacuo, soledade,
Vôa e paira o espirito impassivel

presidindo á evolução dos seres (V. o soneto Evolução) desde a rocha até ao homem, evolução que seria absolutamente inexpressiva se não tivesse um destino, um fim, um ideal. A theoria do progresso indefinido é, com effeito, racionalmente absurda. Esse destino, para os neo-buddhistas, é o Nada transcendente; esse ideal é a Liberdade. A existencia está pois consagrada racionalmente: falta consagral-a sentimentalmente. Falta ainda ao systema um medianeiro: é o Amor.

Porém o coração feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: D'esta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.

O Universo está pois construido e sanctificado na mente do poeta e na razão do philosopho. Dir-se-ha portanto que a chimera de que a principio fallámos ficou desvendada, o problema resolvido, conciliada a visão com a razão, e que nos não resta mais do que fazermo-nos todos buddhistas? Supprema illusão! Creia-o embora o poeta: eu, como critico, observando que o pensamento humano, desde que existe e trabalha, progride sempre, com effeito, mas progride em tres estradas parallelas que, por serem parallelas, nunca podem encontrar-se, atrevo-me a affirmar a irreductibilidade do mysticismo, racional ou imaginativamente concebido, e do naturalismo, ponderada ou orgiacamente realisado. Atrevo-me a dizer que estes dois feitios ou temperamentos são constitucionaes do espirito humano, e que da coexistencia necessaria d'elles resulta um terceiro—o sceptico, o critico, o que provêm da comparação de ambos, e por isso não tem côr, nem é affirmativo; dando-se melhor com a natureza do que com a phantasmagoria, preferindo a harmonia mais ou menos equilibrada, ou mais ou menos claudicante do hellenismo, á orgia desenfreada dos orientaes; considerando a existencia como um compromisso, o dever como uma condição da vida, mas tambem a fraqueza como uma condição dos homens. Estes tres temperamentos são correspondentes a typos eternos e irreductiveis da consciencia humana; e, se o buddhismo é a melhor religião para um mystico do seculo XIX, saturado de sciencia e derreado de cogitações, o christianismo, como directo herdeiro do hellenismo, hade eternamente satisfazer melhor os scepticos e os naturalistas, cujo numero é e foi sempre infinitamente maior, entre os europeos.

«Um hellenismo coroado por um buddhismo» eis a formula com que mais de uma vez Anthero de Quental me tem exprimido o seu pensamento—a sua chimera! Chimera, digo, por que a corôa não nos póde assentar na cabeça, sob pena de a crivar de espinhos e de a deixar escorrendo sangue. Fundar o principio da acção na inercia systematica, a realidade no não-ser, a vida no anniquilamento, só é praticamente acceitavel para o commum de homens quando acreditem na metempsycose, dogma tão infantilmente mythico do buddhismo como v. g. o inferno do christianismo. Ao christianismo, porém, tirando-se-lhe tudo quanto a imaginação semita deu para a sua formação, fica ainda o hellenismo, isto é, um idealismo mais ou menos pantheista e uma theoria moral—cousas que eu não affirmo que resistam a uma analyse rigorosamente logica, por isso mesmo que todo o nosso conhecimento racional das cousas assenta apenas sobre axiomas do senso commum—ao passo que, em se tirando a metempsycose ao buddhismo, o buddhismo reduz-se a uma nevoa de abstracções.

Pobre humanidade, se se visse condemnada á coroação buddhista! Nós europeos, incapazes de nos sujeitarmos ao regime da contemplação inerte, soffreriamos as agonias, experimentariamos as afflicções do poeta que, tendo no peito um coração activo, tem na cabeça uma imaginação mystica, e, para obedecer ao pensamento, tortura o coração, sem poder tambem esmagal-o sob o mando da intelligencia.

D'este cruel estado vêm os documentos que attestam a transformação soffrida pela ironia dos periodos anteriores. Que nome se hade dar ao sentimento que inspira os sonetos Á Virgem Santissima e o Na mão de Deus que fecha o volume? Eu por mim chamarei humorismo transcendente a essa liga intima da piedade e da ironia, e declaro que nunca vi cousa parecida posta em verso. Em prosa, ha mais de um periodo de Renan inspirado por um espirito similhante, embora menos agudo.

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa,
E deixa-me sonhar a vida inteira!

A visão é a Virgem Santissima, e a poesia é tão sincera, tão verdadeira, tão cheia de piedade e uncção, que eu sei de mais de um livro de resas onde andam copias escriptas.

Dorme o teu somno, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

Um monge christão escreveria isto. E Anthero de Quental nem é christão, nem crê em Deus, nem na Virgem, segundo o sentido ordinario da palavra crer.

Blasphemar era bom n'outros tempos; para a ironia tambem a idade passou; finalmente para o exercicio litterario nunca se inclinou a penna que o poeta molhou sempre no seu sangue. Como explicar, pois, o phenomeno?

Por acaso subiu já o leitor ao cume de um monte sufficientemente alto para que toda a paysagem lhe apparecesse á vista, fundida a ponto de não distinguir uma arvore de um cazal, nem um rio de um valle sem curso de agua? Pois succede assim nas campinas da historia do pensamento humano, quando as olhamos das cumiadas luminosas da critica. Vêem-se as cousas na sua essencia, não importam os accidentes. O fetiche que o selvagem adora, a imagem perante a qual se prostra o commum dos crentes, o architecto universal dos pensadores livres, e finalmente esse quid innominado a que a philosophia moderna chamou Inconsciente—tudo isso é egualmente Deus: sómente é Deus percebido pela imaginação infantil, Deus percebido pela intelligencia vulgar, Deus percebido pelo saber incipiente, e Deus finalmente incomprehendido, mas sentido, pela sabedoria. E todas essas modalidades de uma mesma impressão, recebida e representada de fórma diversa, consoante a natureza e o estado de educação dos homens, são egualmente verdadeiras, egualmente santas e egualmente humoristicas, para aquelle que tem coração para sentir as cousas por dentro, e olhos para as ver de fora—objectivamente, como os allemães dizem, e nós diremos criticamente.

Eis ahi a suprema liberdade do espirito, o Nirvâna apenas intellectual, a que eu prefiro chamar impassibilidade subjectiva: um estado que permitte comprehender todas as cousas, analysando-as e classificando-as, sem todavia nos transmittir essa especie de frialdade de coração, propria dos naturalistas quando estudam uma rocha, uma planta ou um animal. O philosopho, impassivel ao analysar e classificar os phenomenos do espirito humano, ha-de misturar ao sorriso que provocam todas as vaidades e illusões, o amor que merecem todos os sentimentos ingenuos e fundamentalmente bons; hade alliar á comprehensão da nullidade extrinseca das cousas, a comprehensão da sua excellencia intrinseca; exigindo que o homem seja activo, porque a actividade é boa por ser indispensavel á saude do espirito, embora os objectos da actividade sejam as mais das vezes irritos e nullos, quando considerados em si proprios e isoladamente.

E eis ahi as razões porque eu não sou buddhista… nem Anthero de Quental o é, embora julgue sel-o. A evolução dolorosa que terminou com o seu ultimo soneto, esta longa e tempestuosa viagem atravez do mar tenebroso da phantasia metaphisica, parece ter concluido. A edade, talvez, acima de tudo, trouxe ao espirito do poeta uma paz illuminada de bondade e sabedoria, e como a sua alma é san e a sua intelligencia firme e sempre activa, é mais que provavel que o declinar da vida de Anthero de Quental enriqueça o peculio por signal bem pobre da philosophia portuguesa com algum trabalho tão digno de se conservar na memoria dos tempos, como estes Sonetos que são as amargas flores de uma mocidade. Esse trabalho, porem, não será um cathecismo buddhista, não pode ser nenhuma revelação milagrosa do verdadeiro systema, porque a sabedoria nos diz que toda a pretenção de Verdade é illusoria, pois sendo nós, a nossa intelligencia, os nossos pensamentos, simples e fugitivas contingencias, é loucura pensar que jamais possamos definir o Absoluto. Cada qual sente-o a seu modo, segundo o seu temperamento; e sabio é aquelle que se limita a registrar as relações das cousas.

III

Quem deante d'estes versos não sentir elevar-se-lhe o espirito, como n'uma oração, áquella especie de Deus que é compativel com o seu temperamento ou com o estado de educação do seu pensamento, é por que tem dentro do peito, no logar do coração, um seixo polido e frio. Quem, no meio do lidar da vida, roçando os braços pelas arestas cortantes que a erriçam de angulos, pousar o olhar da alma sobre um d'estes sonetos e não sentir o que os sequiosos sentem ao encontrarem um arroio de agua limpida, é porque tem a alma feita apenas de egoismo. Quem, emergindo dos montões de papelada que as imprensas vomitam diariamente, deitar os olhos sobre estas paginas, e não sentir o deslumbramento que os diamantes produzem, é porque a sua vista se embaciou com o exame dos livros grosseiros em todo o sentido, e a sua lingua perdeu o habito de fallar portuguez.

Um dos nossos mais queridos amigos, um dos que conhecem de perto Anthero de Quental—e sómente o conhece quem com elle viveu largo tempo na intimidade—interroga-me geralmente d'este modo: «E santo Anthero, como vae?»

Dil-o com a convicção quente dos artistas, mas eu, que o não sou, tenho a pôr embargos, porque a santidade não é planta adequada ao clima do nosso tempo. Exige uma porção de sentimento ingenuo que já não ha nos ares que respiramos.

A vida contemplativa, porem, a vida asceta inclusivamente: essa virtude austera para comsigo, tolerante para com tudo e para com todos; esse observar constante de si proprio e o dispensar de um sorriso sempre bom, embora indifferente com frequencia, aos que alguma vez o rodeiam; a caridade, o amor, a abnegação, as tentações, as crises, as lagrimas, as afflicções, as duvidas cruciantes e as dores angustiosas: tudo o que, reunido, forma uma alma mystica—tudo isso móra na alma d'este poeta arrebatada pela visão inextinguivel do Bem.

Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e affirma o Bem.

E para nada faltar a este mystico, anachronicamente perdido no meio do borborinho de um seculo activo até á demencia, tem tambem uma fé ardente—uma fé buddhista. Somente o seu Deus, Deus sem vontade, sem intelligencia e sem consciencia, é, para nós outros, a quem são vedados os mysterios da metaphisica buddhista, igual a cousa nenhuma.

Este homem, fundamentalmente bom, se tivesse vivido no seculo VI ou no seculo XIII, seria um dos companheiros de S. Bento ou de S. Francisco de Assis. No seculo XIX é um excentrico, mas d'esse feitio de excentricidade que é indispensavel, porque a todos os tempos foram indispensaveis os herejes, a que hoje se chama dissidentes.

Oliveira Martins.

OS CAPTIVOS

Encostados ás grades da prisão,
Olham o céo os pallidos captivos.
Já com raios obliquos, fugitivos,
Despede o sol um ultimo clarão.

Entre sombras, no longe, vagamente,
Morrem as vozes na extensão saudosa.
Cae do espaço, pesada, silenciosa,
A tristeza das cousas, lentamente.

E os captivos suspiram. Bandos de aves
Passam velozes, passam apressados,
Como absortos em intimos cuidados,
Como absortos em pensamentos graves.

E dizem os captivos: Na amplidão
Jamais se extingue a eterna claridade…
A ave tem o vôo e a liberdade…
O homem tem os muros da prisão!

Aonde ides? qual é vossa jornada?
Á luz? á aurora? á immensidade? aonde?
—Porém o bando passa e mal responde:
Á noite, á escuridão, ao abysmo, ao nada!—

E os captivos suspiram. Surge o vento,
Surge e perpassa esquivo e inquieto,
Como quem traz algum pezar secreto,
Como quem soffre e cala algum tormento.

E dizem os captivos: Que tristezas,
Que segredos antigos, que desditas,
Caminheiro de estradas infinitas,
Te levam a gemer pelas devezas?

Tu que procuras? que visão sagrada
Te acena da soidão onde se esconde?
—Porém o vento passa e só responde:
A noite, a escuridão, o abysmo, o nada!—

E os captivos suspiram novamente.
Como antigos pezares mal extinctos,
Como vagos desejos indistinctos,
Surgem do escuro os astros, lentamente.

E fitam-se, em silencio indecifravel,
Contemplam-se de longe, mysteriosos,
Como quem tem segredos dolorosos,
Como quem ama e vive inconsolavel…

E dizem os captivos: Que problemas
Eternos, primitivos vos attrahem?
Que luz fitaes no centro d'onde saem
A flux, em jorro, as intuições supremas?

Por que esperaes? n'essa amplidão sagrada
Que soluções esplendidas se escondem?
—Porém os astros tristes só respondem:
A noite, a escuridão, o abysmo, o nada!—

Assim a noite passa. Rumorosos
Susurram os pinhaes meditativos,
Encostados ás grades, os captivos
Olham o céo e choram silenciosos.

OS VENCIDOS

Tres cavalleiros seguem lentamente
Por uma estrada erma e pedregosa.
Geme o vento na selva rumorosa,
Cae a noite do céo, pesadamente.

Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,
Têm os corceis poentos e abatidos,
Em desalinho trazem os vestidos,
Das feridas lhe cae o sangue, em gotas.

A derrota, traiçoeira e pavorosa,
As fontes lhes curvou, com mão potente.
No horisonte escuro do poente
Destaca-se uma mancha sanguinosa.

E o primeiro dos tres, erguendo os braços,
Diz n'um soluço: «Amei e fui amado!
Levou-me uma visão, arrebatado,
Como em carro de luz, pelos espaços!

Com largo vôo, penetrei na esphera
Onde vivem as almas que se adoram,
Livre, contente e bom, como os que moram
Entre os astros, na eterna primavera.

Porque irrompe no azul do puro amor
O sopro do desejo pestilente?
Ai do que um dia recebeu de frente
O seu halito rude e queimador!

A flor rubra e olorosa da paixão
Abre languida ao raio matutino,
Mas seu profundo calix purpurino
Só reçuma veneno e podridão.

Irmãos, amei—amei e fui amado…
Por isso vago incerto e fugitivo,
E corre lentamente um sangue esquivo
Em gotas, de meu peito alanceado.»

Responde-lhe o segundo cavalleiro,
Com sorriso de tragica amargura:
«Amei os homens e sonhei ventura,
Pela justiça heroica, ao mundo inteiro.

Pelo direito, ergui a voz ardente
No meio das revoltas homicidas:
Caminhando entre raças opprimidas,
Fil-as surgir, como um clarim fremente.

Quando ha de vir o dia da justiça?
Quando ha de vir o dia do resgate?
Trahio-me o gladio em meio do combate
E semeei na areia movediça!

As nações, com sorriso bestial,
Abrem, sem ler, o livro do futuro.
O povo dorme em paz no seu monturo,
Como em leito de purpura real.

Irmãos, amei os homens e contente
Por elles combati, com mente justa…
Por isso morro á mingoa e a areia adusta
Bebe agora meu sangue, ingloriamente.»

Diz então o terceiro cavalleiro:
«Amei a Deus e em Deus puz alma e tudo.
Fiz do seu nome fortaleza e escudo
No combate do mundo traiçoeiro

Invoquei-a nas horas affrontosas
Em que o mal e o peccado dão assalto.
Procurei-o, com ancia e sobresalto,
Sondando mil sciencias duvidosas.

Que vento de ruina bate os muros
Do templo eterno, o templo sacrosanto?
Rolam, desabam, com fragor e espanto,
Os astros pelo céo, frios e escuros!

Vacila o sol e os santos desesperam…
Tedio reçuma a luz dos dias vãos…
Ai dos que juntam com fervor as mãos!
Ai dos que crêem! ai dos que inda esperam!

Irmãos, amei a Deus, com fé profunda…
Por isso vago sem conforto e incerto,
Arrastando entre as urzes do deserto
Um corpo exangue e uma alma moribunda.»

E os tres, unindo a voz n'um ai supremo,
E deixando pender as mãos cançadas
Sobre as armas inuteis e quebradas,
N'um gesto inerte de abandono extremo,

Sumiram-se na sombra duvidosa
Da montanha calada e formidavel,
Sumiram-se na selva impenetravel
E no palor da noite silenciosa.

ENTRE SOMBRAS

Vem ás vezes sentar-se ao pé de mim
—A noite desce, desfolhando as rosas—
Vem ter commigo, ás horas duvidosas,
Uma visão, com azas de setim…

Pousa de leve a delicada mão
—Rescende amena a noite socegada—
Pousa a mão compassiva e perfumada
Sobre o meu dolorido coração…

E diz-me essa visão compadecida
—Ha suspiros no espaço vaporoso—
Diz-me: Porque é que choras silencioso?
Porque é tão erma e triste a tua vida?

Vem commigo! Embalado nos meus braços
—Na noite funda ha um silencio santo—
N'um sonho feito só de luz e encanto
Transporás a dormir esses espaços…

Porque eu habito a região distante
—A noite exhala uma doçura infinda—
Onde ainda se crê e se ama ainda,
Onde uma aurora igual brilha constante…

Habito ali, e tu virás commigo
—Palpita a noite n'um clarão que offusca—
Porque eu venho de longe, em tua busca,
Trazer-te paz e alivio, pobre amigo…

Assim me fala essa visão nocturna
—No vago espaço ha vozes dolorosas—
São as suas palavras carinhosas
Agua correndo em crystalina urna…

Mas eu escuto-a immovel, somnolento
—A noite verte um desconsolo immenso—
Sinto nos membros como um chumbo denso,
E mudo e tenebroso o pensamento…

Fito-a, n'um pasmo doloroso absorto
—A noite é erma como campa enorme—
Fito-a com olhos turvos de quem dorme
E respondo: Bem sabes que estou morto!

HYMNO DA MANHÃ

Tu, casta e alegre luz da madrugada,
Sobe, cresce no céo, pura e vibrante,
E enche de força o coração triumphante
Dos que ainda esperam, luz immaculada!

Mas a mim pões-me tu tristeza immensa
No desolado coração. Mais quero
A noite negra, irmã do desespero,
A noite solitaria, immovel, densa,

O vacuo mudo, onde astro não palpita,
Nem ave canta, nem susurra o vento,
E adormece o proprio pensamento,
Do que a luz matinal… a luz bemdita!

Porque a noite é a imagem do Não-Ser,
Imagem do repouso inalteravel
E do esquecimento inviolavel,
Que anceia o mundo, farto de soffrer…

Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,
O nada universal o pensamento,
E despreza o viver e o seu tormento.
E olvida, como quem está já morto…

E, interrogando intrepido o Destino,
Como reu o renega e o condemna,
E virando-se, fita em paz serena
O vacuo augusto, placido e divino…

Porque a noite é a imagem da Verdade,
Que está além das cousas transitorias.
Das paixões e das formas illusorias,
Onde sómente ha dor e falsidade…

Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
De que és symbolo tu? do eterno engano,
Que envolve o mundo e o coração humano
Em rede de mil malhas, mysteriosa!

Symbolo, sim, da universal traição,
D'uma promessa sempre renovada
E sempre e eternamente perjurada,
Tu, mãe da Vida e mãe da Illusão…

Outros estendam para ti as mãos,
Supplicantes, com fé, com esperança…
Ponham outros seu bem, sua confiança
Nas promessas e a luz dos dias vãos…

Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia
E que tortura ainda não provada
Hoje me ensinará esta alvorada?
E digo: Porque nasce mais um dia?

Antes tu nunca fosses, luz formosa!
Antes nunca existisses! e o Universo
Ficasse inerte e eternamente immerso
Do possivel na nevoa duvidosa!

O que trazes ao mundo em cada aurora?
O sentimento só, só a consciencia,
D'uma eterna, incuravel impotencia,
Do insaciavel desejo, que o devora!

De que são feitos os mais bellos dias?
De combates, de queixas, de terrores!
De que são feitos? de illusões, de dores,
De miserias, de maguas, de agonias!

O sol, inexoravel semeador,
Sem jamais se cançar, percorre o espaço,
E em borbotões lhe jorram do regaço
As sementes innumeras da Dor!

Oh! como cresce, sob a luz ardente,
A seara maldita! como treme
Sob os ventos da vida e como geme
N'um susurro monotono e plangente!

E cresce e alastra, em ondas voluptuosas,
Em ondas de cruel fecundidade,
Com a força e a subtil tenacidade
Invencivel das plantas venenosas!

De podridões antigas se alimenta,
Da antiga podridão do chão fatal…
Uma fragrancia morbida, mortal
Lhe reçuma da seiva peçonhenta…

E é esse aroma languido e profundo,
Feito de seducções vagas, magneticas,
De ardor carnal e de attracções poeticas,
É esse aroma que envenena o mundo!

Como um clarim soando pelos montes,
A aurora acorda, placida e inflexivel,
As miserias da terra: e a hoste horrivel,
Enchendo de clamor e horisontes.

Torva, cega, colerica, faminta,
Surge mais uma vez e arma-se á pressa
Para o bruto combate, que não cessa,
Onde é vencida sempre e nunca extincta!

Quantos erguem n'esta hora, com esforço,
Para a luz matinal as armas novas,
Pedindo a lucta e as formidaveis provas,
Alegres e crueis e sem remorso,

Que esta tarde ha-de ver, no duro chão
Cahidos e sangrentos, vomitando
Contra o céo, com o sangue miserando,
Uma extrema e importante imprecação!

Quantos tambem, de pé, mas esquecidos,
Ha-de a noite encontrar, sós e encostados
A algum marco, chorando aniquilados
As lagrimas caladas dos vencidos!

E porque? para que? para que os chamas,
Serena luz, ó luz inexoravel,
Á vida incerta e á lucta inexpiavel,
Com as falsas visões, com que os inflamas?

Para serem o brinco d'um só dia
Na mão indifferente do Destino…
Clarão de fogo-fatuo repentino,
Cruzando entre o nascer e a agonia…

Para serem, no páramo enfadonho,
Á luz de astros malignos e enganosos,
Como um bando de espectros lastimosos,
Como sombras correndo atraz d'um sonho…

Oh! não! luz gloriosa e triumphante!
Sacode embora o encanto e as seducções,
Sobre mim, do teu manto de illusões:
A meus olhos, és triste e vacillante…

A meus olhos, és baça e luctuosa
E amarga ao coração, ó luz do dia,
Como tocha esquecida que allumia
Vagamente uma crypta monstruosa…

Surges em vão, e em vão, por toda a parte,
Me envolves, me penetras, com amor…
Causas-me espanto a mim, causas-me horror,
E não te posso amar—não quero amar-te!

Symbolo da Mentira universal,
Da apparencia das cousas fugitivas,
Que esconde, nas moventes perspectivas,
Sob o eterno sorriso o eterno Mal,

Symbolo da Illusão, que do infinito
Fez surgir o Universo, já marcado
Para a dor, para o mal, para o peccado,
Symbolo da existencia, sê maldito!

A FADA NEGRA

Uma velha de olhar mudo e frio,
De olhos sem cor, de labios glaciaes,
Tomou-me nos seus braços sepuleraes.
Tomou-me sobre o seio ermo e vasio.

E beijou-me em silencio, longamente,
Longamente me unio á face fria…
Oh! como a minha alma se estorcia
Sob os seus beijos, dolorosamente!

Onde os labios pousou, a carne logo
Myrrou-se e encaneceu-se-me o cabello,
Meus ossos confrangeram-se. O gelo
Do seu bafo seccava mais que o fogo.

Com seu olhar sem cor, que me fitava,
A Fada negra me qualhou o sangue.
Dentro em meu coração inerte e exangue
Um silencio de morte se engolfava.

E volvendo em redor olhos absortos,
O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de nevoa, de illusão,
E a luz do sol como um luar de mortos…

Como o espectro d'um mundo já defuncto,
Um farrapo de mundo, nevoento,
Ruina aerea que sacode o vento,
Sem cor, sem consistencia, sem conjuncto…

E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cahir,
Inerte e já da cor d'um moribundo.

Dentro em meu coração, n'esse momento,
Fez-se um buraco enorme—e n'esse abysmo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento…

Razão! velha de olhar agudo e cru
E de halito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bemdita sejas tu!

Bemdita sejas tu pela agonia
E o lucto funeral d'aquella hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!

Pelo pranto e as torturas bemfazejas
Do desengano… pela paz austera
D'um morto coração, que nada espera,
Nem deseja tambem… bemdita sejas!

*1860—1862*

IGNOTO DEO

Que belleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão d'esta alma ardente,
Que reflectes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande—e esta ancia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro… nua e velha…

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos…

Pura essencia das lagrimas que chóro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, ao céo ao menos!

LAMENTO

Um diluvio de luz cae da montanha:
Eis o dia! eis o sol! o esposo amado!
Onde ha por toda a terra um só cuidado
Que não dissipe a luz que o mundo banha?

Flor a custo medrada em erma penha,
Revolto mar ou golfo congelado,
Aonde ha ser de Deus tão olvidado
Para quem paz e alivio o céo não tenha?

Deus é Pae! Pae de toda a creatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado…

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura
N'esta hora santa… e eu só posso ser triste…
Serei filho, mas filho abandonado!

A M.C.

Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fada o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «vae, filha, sê formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste n'este solo angustiado,
Estrella envolta n'um clarão sagrado,
Do teu limpido olhar na luz radiosa…

Mas eu… posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais… a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

A Santos Valente

Estreita é do prazer na vida a taça:
Largo, como o oceano é largo e fundo,
E como elle em venturas infecundo,
O cális amargoso da desgraça.

E comtudo nossa alma, quando passa
incerta peregrina, pelo mundo,
Prazer só pede à vida, amor fecundo,
É com essa esperança que se abraça.

É lei de Deus este aspirar immenso…
E comtudo a illusão impoz à vida.
E manda buscar luz e dá-nos treva!

Ah! se Deus accendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria… ou porque a leva?

Tormanto do Ideal

Conheci a Belleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que elle encerra
Perder a côr, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à fórma, em vão, a idea pura,
Tropéço, em sombras, na materia dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o baptismo dos poetas,
E assentado entre as fórmas incompletas
Para sempre fiquei pallido e triste.

ASPIRAÇÃO

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dôr, e até parece
Que o foco interior já desfallece
E vacilla com raios duvidosos.

É bella a vida e os annos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor fallece…
Mas, se a belleza aqui nos apparece,
Logo outra lembra de mais puros gosos.

Minh'alma, ó Deus! a outros céos aspira:
Se um momento a prendeu mortal belleza,
É pela eterna patria que suspira…

Porém do presentir dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dôr me fira,
Eu sempre bemdirei esta tristeza!

A FLORIDO TELLES

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si têm occulto o damno,
Com aquele outro affecto soberano,
Que amor se diz e é luz de pura chama,

Vejo que são bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vão prazer deixa quem ama.

Nasce do orgulho aquelle esteril goso
E a gloria d'elle é cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso
E das paixões tambem some-o a tormenta…
Mas a gloria do amor… essa vem d'alma!

PSALMO

Esperemos em Deus! Elle ha tomado
Em suas mãos a massa inerte e fria
Da materia impotente e, n'um só dia,
Luz, movimento, acção, tudo lhe ha dado.

Elle, ao mais pobre de alma, ha tributado
Desvelo e amor: elle conduz á via
Segura quem lhe foge e se extravia,
Quem pela noite andava desgarrado.

E a mim, que aspiro a elle, a mim, que o amo,
Que anceio por mais vida e maior brilho.
Ha-de negar-me o termo d'este anceio?

Buscou quem o não quiz; e a mim, que o chamo,
Ha-de fugir-me, como a ingrato filho?
Ó Deus, meu pae e abrigo! espero!… eu creio!

A M.C.

No céo, se existe um céo para quem chora.
Céo, para as magoas de quem soffre tanto…
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que não devora…

No céo, se uma alma n'esse espaço mora.
Que a prece escuta e encharga o nosso pranto…
Se ha Pae, que estenda sobre nós o manto
Do amor piedoso… que eu não sinto agora…

No céo, ó virgem! findarão meus males:
Hei-de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dôres.

Ali, ó lyrio dos celestes valles!
Tendo seu fim, terão o seu começo.
Para não mais findar, nossos amores.

A João de Deus

Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei tambem, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que ha-de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida:
Se procura, só acha… o desatino!

Só Deus póde acudir em tanto damno:
Esperemos a luz d'uma outra vida,
Seja a terra degredo, o céo destino.

A Alberto Telles

Só!—Ao ermita sósinho na montanha
Visita-o Deus e dá-lhe confiança:
No mar, o nauta, que o tufão balança,
Espera um sopro amigo que o céo tenha…

Só!—Mas quem se assentou em riba estranha,
Longe dos seus, lá tem inda a lembrança:
E Deus deixa-lhe ao menos a esperança
Ao que á noite soluça em erma penha…

Só!—Não o é quem na dor, quem nos cançaços,
Tem um laço que o prenda a este fadario.
Uma crença, um desejo… e inda um cuidado…

Mas cruzar, com desdem, inertes braços,
Mas passar, entre turbas, solitario,
Isto é ser só, é ser abandonado!

A J. Felix dos Santos

Sempre o futuro, sempre! e o presente
Nunca! Que seja esta hora em que se existe
De incerteza e de dor sempre a mais triste,
E só farte o desejo um bem ausente!

Ai! que importa o futuro, se inclemente
Essa hora, em que a esperança nos consiste,
Chega… é presente… e só á dor assiste?…
Assim, qual é a esperança que não mente?

Desventura ou delirio?… O que procuro,
Se me foge, é miragem enganosa,
Se me espera, peor, espectro impuro…

Assim a vida passa vagarosa:
O presente, a aspirar sempre ao futuro:
O futuro, uma sombra mentirosa.

A M. C.

Porque descrês, mulher, do amor, da vida?
Porque esse Hermon transformas em Calvario?
Porque deixas que, aos poucos, do sudario
Te aperte o seio a dobra humedecida?

Que visão te fugio, que assim perdida
Buscas em vão n'este ermo solitario?
Que signo obscuro de cruel fadario
Te faz trazer a fronte ao chão pendida?

Nenhum! intacto o bem em ti assiste:
Deus, em penhor, te deu a formosura;
Bençãos te manda o céo em cada hora.

E descrês do viver?… E eu, pobre e triste,
Que só no teu olhar leio a ventura,
Se tu descrês, em que hei-de eu crer agora?

A Alberto Sampaio

Não me fales de gloria: é outro o altar
Onde queimo piedoso o meu incenso,
E animado de fogo mais intenso,
De fé mais viva, vou sacrificar.

A gloria! pois que ha n'ella que adorar?
Fumo, que sobre o abysmo anda suspenso…
Que vislumbre nos dá do amor immenso?
Esse amor que ventura faz gosar?

Ha outro mais perfeito, unico eterno,
Farol sobre ondas tormentosas firme,
De immoto brilho, poderoso e terno…

Só esse hei-de buscar, e confundir-me
Na essencia do amor puro, sempiterno…
Quero só n'esse fogo consumir-me!

A Germano Meyrelles

Só males são reaes, só dor existe;
Prazeres só os gera a phantasia;
Em nada, um imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.

Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos n'um bem, que a mente cria,
Que outro remedio ha ahi senão ser triste?

Oh! quem tanto pudera, que passasse
A vida em sonhos só, e nada vira…
Mas, no que se não vê, labor perdido!

Quem fôra tão ditoso que olvidasse…
Mas nem seu mal com elle então dormira,
Que sempre o mal peor é ter nascido!

A M. C.

Não busco n'esta vida gloria ou fama:
Das turbas que me importa o vão ruído?
Hoje, deus… e amanhã, já esquecido
Como esquece o clarão de extincta chama!

Foco incerto, que a luz já mal derrama,
Tal é essa ventura: eccho perdido,
Quanto mais se chamou, mais escondido
Ficou inerte e mudo á voz que o chama.

D'essa coroa é cada flor um engano,
É miragem em nuvem illusoria,
É mote vão de fabuloso arcano.

Mas coroa-me tu: na fronte ingloria
Cinge-me tu o louro soberano…
Verás, verás então se amo essa gloria!

AD AMICOS

Em vão luctamos. Como nevoa baça,
A incerteza das cousas nos envolve.
Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
Nas suas proprias redes se embaraça.

O pensamento, que mil planos traça,
É vapor que se esvae e se dissolve;
E a vontade ambiciosa, que resolve,
Como onda entre rochedos se espedaça.

Filhos do Amor, nossa alma é como um hymno
Á luz, á liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor d'um presentir divino;

Mas n'um deserto só, arido e fundo,
Ecchoam nossas vozes, que o Destino
Paira mudo e impassivel sobre o mundo.

A um crucifixo

Ha mil annos, bom Christo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: ha Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Porque morreu sem eccho o eccho de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste… ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojáras de nova á campa os membros lassos…

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céo, frio como um sudario…

E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar—de que servio o sangue
Com que regaste, ó Christo, as urzes do Calvario?—

Desesperança

Vae-te na aza negra da desgraça,
Pensamento de amor, sombra d'uma hora,
Que abracei com delirio, vae-te, embora,
Como nuvem que o vento impelle… e passa.

Que arrojemos de nós quem mais se abraça,
Com mais ancia, á nossa alma! e quem devora
D'essa alma o sangue, com que vigora,
Como amigo commungue á mesma taça!

Que seja sonho apenas a esperança,
Emquanto a dor eternamente assiste.
E só engano nunca a desventura!

Se era silencio soffrer fôra vingança!..
Envolve-te em ti mesma, ó alma triste,
Talvez sem esperança haja ventura!

BEATRICE

Depois que dia a dia, aos poucos desmaiando,
Se foi a nuvem d'ouro ideal que eu vira erguida:
Depois que vi descer, baixar no céo da vida
Cada estrella e fiquei nas trevas laborando:

Depois que sobre o peito os braços apertando
Achei o vacuo só, e tive a luz sumida
Sem ver já onde olhar, e em todo vi perdida
A flor do meu jardim, que eu mais andei regando:

Retirei os meus pés da senda dos abrolhos,
Virei-me a outro céo, nem ergo já meus olhos
Senão á estrella ideal, que a luz d'amor contém…

Não temas pois—Oh vem! o céo é puro, e calma
E silenciosa a terra, e doce o mar, e a alma…
A alma! não vês tu? mulher, mulher! oh vem!

1862—1866

AMOR VIVO

Amar! mas d'um amor que tenha vida…
Não sejam sempre timidos harpejos,
Não sejam só delirios e desejos
D'uma douda cabeça escandecida…

Amor que vive e brilhe! luz fundida
Que penetre o meu ser—e não só beijos
Dados no ar—delirios e desejos—
Mas amor… dos amores que têm vida…

Sim, vivo e quente! e já a luz do dia
Não virá dissipal-o nos meus braços
Como nevoa da vaga phantasia…

Nem murchará do sol á chama erguida…
Pois que podem os astros dos espaços
Contra debeis amores… se têm vida?

VISITA

Adornou o meu quarto a flor do cardo,
Perfumei-o de almiscar recendente;
Vesti-me com a purpura fulgente,
Ensaiando meus cantos, como um bardo;

Ungi as mãos e a face com o nardo
Crescido nos jardins do Oriente,
A receber com pompa, dignamente,
Mysteriosa visita a quem aguardo.

Mas que filha de reis, que anjo ou que fada
Era essa que assim a mim descia,
Do meu casebre á humida pousada?…

Nem princezas, nem fadas. Era, flor,
Era a tua lembrança que batia
Ás portas de ouro e luz do meu amor!

PEQUENINA

Eu bem sei que te chamam pequenina
E tenue como o véo solto na dança,
Que és no juizo apenas a criança,
Pouco mais, nos vestidos, que a menina

Que és o regato de agua mansa e fina,
A folhinha do til que se balança,
O peito que em correndo logo cança,
A fronte que ao soffrer logo se inclina…

Mas, filha, lá nos montes onde andei,
Tanto me enchi de angustia e de receio
Ouvindo do infinito os fundos ecchos,

Que não quero imperar nem já ser rei
Senão tendo meus reinos em teu seio
E subditos, criança, em teus bonecos!

A SULAMISA

Ego dormio, et cor meum vigilat. CANTICO DOS CANTICOS.

Quem anda lá por fóra, pela vinha
Na sombra do luar meio cacoberto,
Sutil nos passos e espreitando incerto,
Com brando respirar de criancinha?

Um sonho me accordou… não sei que tinha…
Pareceu-me sentil-o aqui tão perto…
Seja alta noite, seja n'um deserto,
Quem ama até em sonhos adivinha…

Môças da minha terra, ao meu amado
Correi, dizei-lhe que eu dormia agora,
Mas que póde ir contente e descançado,

Pois se tão cedo adormeci, conforme
É meu costume, olhae, dormia embora,
Porque o meu coração é que não dorme…

Sonho oriental

Sonho-me ás vezes rei, n'alguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite é balsamica e fulgente
E a lua cheia sobre as aguas brilha…

O aroma da magnolia e da baunilha
Paira no ar diaphano e dormente…
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com finas ondas de escumilha…

E emquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto n'um scismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,

Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descanças debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.

Quinze annos

Eu amo a vasta sombra das montanhas,
Que estendem sobre os largos continentes
Os seus braços de rocha negra, ingentes,
Bem como braços colossaes aranhas.

D'ali o nosso olhar vê tão estranhas
Cousas, por esse céo! e tão ardentes
Visões, lá n'esse mar de ondas trementes!
E ás estrellas, d'ali, vê-as tamanhas!

Amo a grandeza mysteriosa e vasta…
A grande idea, como a flor e o viço
Da arvore colossal que nos domina…

Mas tu, criança, sê tu boa… e basta:
Sabe amar e sorrir… é pouco isso?
Mas a ti só te quero pequenina!

IDYLLIO

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos valles lyrios e boninas,
E galgamos d'um folego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar, das ermas cumiadas,
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem phantasticas ruinas
Ao longe, no horisonte, amontoadas:

Quantas vezes, de subito, emmudeces!
Não sei que luz no teu olhar fluctua;
Sinto tremer-te a mão, e empallideces…

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das cousas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.

NOCTURNO

Espirito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a lua,
Filho esquivo da noite que fluctua,
Tu só entendes bem o meu tormento…

Como um canto longinquo—triste e lento—
Que voga e sutilmente se insinua,
Sobre o meu coração, que tumultua,
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento…

A ti confio o sonho em que me leva
Um instincto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Genio da Noite, e mais ninguem!

SONHO

Sonhei—nem sempre o sonho é cousa vã—
Que um vento me levava arrebatado,
Atravez d'esse espaço constellado
Onde uma aurora eterna ri louçã…

As estrellas, que guardam a manhã,
Ao verem-me passar triste e calado,
Olhavam-me e dixiam com cuidado:
Onde está, pobre amigo, a nossa irmã?

Mas eu baixava os olhos, receoso
Que trahissem as grandes magoas minhas,
E passava furtivo e silencioso,

Nem ousava contar-lhes, ás estrellas,
Contar ás tuas puras irmansinhas
Quanto és falsa, meu bem, e indigna d'ellas!

AMARITUDO

Só por ti, astro ainda e sempre occulto,
Sombra do Amor e sonho da Verdade,
Divago eu pelo mundo e em anciedade
Meu proprio coração em mim sepulto.

De templo em templo, em vão, levo o meu culto,
Levo as flores d'uma intima piedade.
Vejo os votos da minha mocidade
Receberem sómente escarneo e insulto.

Á beira do caminho me assentei…
Escutarei passar o agreste vento,
Exclamando: assim passe quando amei!—

Oh minh'alma, que creste na virtude!
O que será velhice e desalento,
Se isto se chama aurora e juventude?

ABNEGAÇÃO

Chovam lyrios e rosas no teu collo!
Chovam hymnos de gloria na tua alma!
Hymnos de gloria e adoração e calma,
Meu amor, minha pomba e meu consolo!

Dê-te estrellas o céo, flores o solo,
Cantos e aroma o ar e sombra a palmar.
E quando surge a lua e o mar se acalma,
Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!

E nem sequer te lembres de que eu chóro…
Esquece até, esquece, que te adoro…
E ao passares por mim, sem que me olhes,

Possam das minhas lagrimas crueis
Nascer sob os teus pés flores fieis,
Que pises distrahida ou rindo esfolhes!

APPARIÇÃO

Um dia, meu amor (e talvez cedo,
Que já sinto estalar-me o coração!)
Recordarás com dor e compaixão
As ternas juras que te fiz a medo…

Então, da casta alcova no segredo,
Da lamparina ao tremulo clarão,
Ante ti surgirei, espectro vão,
Larva fugida ao sepulcral degredo…

E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos
E afflictos ais, estenderás os braços
Tentando segurar-te aos meus vestidos…

—«Ouve! espera!»—Mas eu, sem te escutar,
Fugirei, como um sonho, aos teus abraços
E como fumo sumir-me-hei no ar!

ACCORDANDO

Em sonho, ás vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão soffrer; esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o céo a minh'alma sobe e canta.

Canta a luz, a alvorada, a estrella santa,
Que ao mundo traz piedosa mais um dia…
Canta o enlevo das cousas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta…

Mas, de repente, um vento humido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me accorda.—A noite é negra e muda: a dor

Cá vela, como d'antes, ao meu lado…
Os meus cantos de luz, anjo adorado,
São sonho só, e sonho o meu amor!

MÃE…

Mãe—que adormente este viver dorido,
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas ate o fio
Do meu pobre existir, meio partido…

Que me leve comsigo, adormecido,
Ao passar pelo sitio mais sombrio…
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido…

Eu dava o meu orgulho de homem—dava
Minha esteril sciencia, sem receio,
E em debil criancinha me tornava.

Descuidada, feliz, docil tambem,
Se eu podesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!

Na capella

Na capella, perdida entre a folhagem,
O Christo, lá no fundo, agonisava…
Oh! como intimamente se casava
Com minha dor a dor d'aquella imagem!

Filhos ambos do amor, igual miragem
Nos roçou pela fronte, que escaldava…
Igual traição, que o affecto mascarava,
Nos deu supplicio ás mãos da villanagem…

E agora, ali, em quanto da floresta
A sombra se infiltrava lenta e mesta,
Vencidos ambos, martyres do Fado,

Fitavamo-nos mudos—dor igual!—
Nem, dos dois, saberei dizer-vos qual
Mais pallido, mais triste e mais cançado…

Velut Umbra

Fumo e scismo. Os castellos do horizonte
Erguem-se, á tarde, e crescem, de mil cores,
E ora espalham no céo vivos ardores,
Ora fumam, vulcões de estranho monte…

Depois, que formas vagas vêm defronte,
Que parecem sonhar loucos amores?
Almas que vão, por entre luz e horrores,
Passando a barca d'esse aereo Acheronte…

Apago o meu charuto quando apagas
Teu facho, oh sol… ficamos todos sós…
É n'esta solidão que me consumo!

Oh nuvens do Occidente, oh cousas vagas,
Bem vos entendo a cor, pois, como a vós,
Belleza e altura se me vão em fumo!

MEA CULPA

Não duvido que o mundo no seu eixo
Gire suspenso e volva em harmonia;
Que o homem suba e vá da noite ao dia,
E o homem vá subindo insecto o seixo.

Não chamo a Deus tyranno, nem me queixo,
Nem chamo ao céo da vida noite fria;
Não chamo á existencia hora sombria;
Acaso, á ordem; nem á lei desleixo.

A Natureza é minha mãe ainda…
É minha mãe… Ah, se eu á face linda
Não sei sorrir: se estou desesperado;

Se nada ha que me aqueça esta frieza;
Se estou cheio de fel e de tristeza…
É de crer que só eu seja o culpado!

O Palacio da Ventura

Sonho que sou um cavalleiro andante.
Por desertos, por sóes, por noite escura,
Paladino do amor, busco anhelante
O palacio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exhausto e vacillante.
Quebrada a espada já, roda a armadura…
E eis que subito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aerea formosura!

Com grandes golpes bato á porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Desherdado…
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silencio e escuridão—e nada mais!

JURA

Pelas rugas da fronte que medita…
Pelo olhar que interroga—e não vê nada…
Pela miseria e pela mão gelada
Que apaga a estrella que nossa alma fita…

Pelo estertor da chama que crepita
No ultimo arranco d'uma luz minguada…
Pelo grito feroz da abandonada
Que um momento de amante fez maldita…

Por quanto ha de fatal, que quanto ha mixto
De sombra e de pavor sob uma lousa…
Oh pomba meiga, pomba de esperança!

Eu t'o juro, menina, tenho visto
Cousas terriveis—mas jamais vi cousa
Mais feroz do que um riso de criança!

IDEAL

Aquella, que eu adoro, não é feita
De lyrios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas languidas, divinas
Da antiga Venus de cintura estreita…

Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortaes entre ruinas,
Nem a Amazona, que se agarra ás crinas
D'um corcel e combate satisfeita…

A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino…

É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpavel do Desejo…

Emquanto outros combatem

Empunhasse eu a espada dos valentes!
Impellisse-me a acção, embriagado,
Por esses campos onde a Morte e o Fado
Dão a lei aos reis tremulos e ás gentes!

Respirariam meus pulmões contentes
O ar de fogo do circo ensanguentado…
Ou cahira radioso, amortalhado
Na fulva luz dos gladios reluzentes!

Já não veria dissipar-se a aurora
De meus inuteis annos, sem uma hora
Viver mais que de sonhos e anciedade!

Já não veria em minhas mãos piedosas
Desfolhar-se, uma a uma, as tristes rosas
D'esta pallida e esteril mocidade!

DESPONDENCY

Deixal-a ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade…
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as azas partidas a levaram…

Deixal-a ir, a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Quando a noite surgio da immensidade,
Quando os ventos do Sul levantaram…

Deixal-a ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
Á morte queda, á morte silenciosa…

Deixal-a ir, a nota desprendida
D'um canto extremo… e a ultima esperança…
E a vida… e o amor… deixal-a ir, a vida!

Das Unnennbare

Oh chimera, que passas embalada
Na onda de meus sonhos dolorosos,
E roças co'os vestidos vaporosos
A minha fronte pallida e cançada!

Leva-te o ar da noite socegada…
Pergunto em vão, com olhos anciosos,
Que nome é que te dão os venturosos
No teu paiz, mysteriosa fada!

Mas que destino o meu! e que luz baça
A d'esta aurora, igual á do sol posto,
Quando só nuvem livida esvoaça!

Que nem a noite uma illusão consinta!
Que só de longe e em sonhos te presinta…
E nem em sonhos possa ver-te o rosto!

Metempsychose

Ausentes filhas do prazer: dizei-me!
Vossos sonhos quaes são, depois da orgia?
Acaso nunca a imagem fugidia
Do que fostes, em vós se agita e freme?

N'outra vida e outra esphera, aonde geme
Outro vento, e se accende um outro dia,
Que corpo tinheis? que materia fria
Vossa alma incendiou, com fogo estreme?

Vós fostes nas florestas bravas feras,
Arrastando, leôas ou pantheras,
De dentadas de amor um corpo exangue…

Mordei pois esta carne palpitante,
Feras feitas de gaze fluctuante…
Lobas! leôas! sim, bebei meu sangue!

UMA AMIGA

Aquelles, que eu amei, não sei que vento
Os dispersou no mundo, que os não vejo…
Estendo os braços e nas trevas beijo
Visões que á noite evoca o sentimento…

Outros me causam mais cruel tormento
Que a saudade dos mortos… que eu invejo…
Passam por mim, mas como que têm pejo
Da minha soledade e abatimento!

D'aquella primavera venturosa
Não resta uma flor só, uma só rosa…
Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

Tu só foste fiel—tu, como d'antes,
Inda volves teus olhos radiantes…
Para ver o meu mal… e escarnecel-o!

A uma mulher

Para tristezas, para dor nasceste.
Podia a sorte por-te o berço estreito
N'algum palacio e ao pé de regio leito,
Em vez d'este areal onde cresceste:

Podia abrir-te as flores—com que veste
As ricas e as felizes—n'esse peito:
Fazer-te… o que a Fortuna ha sempre feito…
Terias sempre a sorte que tiveste!

Tinhas de ser assim… Teus olhos fitos,
Que não são d'este mundo e onde eu leio
Uns mysterios tão tristes e infinitos,

Tua voz rara e esse ar vago e esquecido,
Tudo me diz a mim, e assim o creio,
Que para isto só tinhas nascido!

Voz do Outomno

Ouve tu, meu cançado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
—«Mais te valera, nú e sem defeza,
Ter nascido em asperrima soidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel
deveza, Do que emballar-te a Fada da Belleza,
Como emballou, no berço da Illusão!

Mais valera á tua alma visionaria
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba varia,

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com odio e raiva e dor… que ter sonhado
Os sonhos ideaes que tu sonhaste!»—

Sepultura romantica

Ali, onde o mar quebra, n'um cachão
Rugidor e monotono, e os ventos
Erguem pelo areal os seus lamentos,
Ali se ha-de enterrar meu coração.

Queimem-no os sóes da adusta solidão
Na fornalha do estio, em dias lentos;
Depois, no inverno, os sopros violentos
Lhe revolvam em torno o arido chão…

Até que se desfaça e, já tornado
Em impalpavel pó, seja levado
Nos turbilhões que o vento levantar…

Com suas luctas, seu cançado anceio,
Seu louco amor, dissolva-se no seio
D'esse infecundo, d'esse amargo mar!

1864—1874

A IDEA

I

Pois que os deuses antigos e os antigos
Divinos sonhos por esse ar se somem,
E á luz do altar da fé, em Templo ou Dolmen,
A apagaram os ventos inimigos;

Pois que o Sinai se ennubla e os seus pacigos,
Seccos á mingua de agua, se consomem,
E os prophetas d'outrora todos dormem
Esquecidos, em terra sem abrigos;

Pois que o céo se fechou e já não desce
Na escada de Jacob (na de Jesus!)
Um só anjo, que acceite a nossa prece;

É que o lyrio da Fé já não renasce:
Deus tapou com a mão a sua luz
E ante os homens velou a sua face!

II

Pallido Christo, oh conductor divino!
A custo agora a tua mão tão doce
Incerta nos conduz, como se fosse
Teu grande coração perdendo o tino…

A palavra sagrada do Destino
Na bocca dos oraculos seccou-se:
A luz da sarça ardente dissipou-se
Ante os olhos do vago peregrino!

Ante os olhos dos homens—porque o mundo
Desprendido rolou das mãos de Deus,
Como uma cruz das mãos d'um moribundo!

Porque já se não lê seu nome escrito
Entre os astros… e os astros, como atheus,
Já não querem mais lei que o infinito!

III

Força é pois ir buscar outro caminho!
Lançar o arco de outra nova ponte
Por onde a alma passe—e um alto monte
Aonde se abre á luz o nosso ninho.

Se nos negam aqui o pão e o vinho,
Avante! é largo, immenso esse horizonte…
Não, não se fecha o mundo! e além, defronte,
E em toda a parte ha luz, vida e carinho!

Avante! os mortos ficarão sepultos…
Mas os vivos que sigam, sacudindo
Como o pó da estrada os velhos cultos!

Doce e brando era o seio de Jesus…
Que importa? havemos de passar, seguindo,
Se além do seio d'elle houver mais luz!

IV

Conquista pois sósinho o teu futuro,
Já que os celestes guias te hão deixado,
Sobre uma terra ignota abandonado,
Homem—proscrito rei—mendigo escuro!

Se não tens que esperar do céo (tão puro,
Mas tão cruel!) e o coração magoado
Sentes já de illusões desenganado,
Das illusões do antigo amor perjuro:

Ergue-te, então, na magestade estoica
D'uma vontade solitaria e altiva,
N'um esforço supremo de alma heroica!

Faze um templo dos muros da cadeia,
Prendendo a immensidade eterna e viva
No circulo de luz da tua Idea!

V

Mas a Idea quem é? quem foi que a vio,
Jámais, a essa encoberta peregrina?
Quem lhe beijou a sua mão divina?
Com seu olhar de amor quem se vestio?

Pallida imagem, que a agua de algum rio,
Reflectindo, levou… incerta e fina
Luz, que mal bruxulêa pequenina…
Nuvem, que trouxe o ar, e o ar sumio…

Estendei, estendei-lhe os vossos braços,
Magros da febre d'um sonhar profundo,
Vós todos que a seguis n'esses espaços!

E emtanto, oh alma triste, alma chorosa,
Tu não tens outra amante em todo o mundo
Mais que essa fria virgem desdenhosa!

VI

Outra amante não ha! não ha na vida
Sombra a cobrir melhor nossa cabeça,
Nem balsamo mais doce, que adormeça
Em nós a antiga, a secular ferida!

Quer fuja esquiva, ou se offereça erguida,
Como quem sabe amar e amar confessa,
Quer nas nuvens se esconda ou appareça,
Será sempre ella a esposa promettida!

Nossos desejos para ti, oh fria,
Se erguem, bem como os braços do proscrito
Para as bandas da patria, noite e dia.

Podes fugir… nossa alma, delirante,
Seguir-te-ha a travez do infinito,
Até voltar comtigo, triumphante!

VII

Oh! o noivado barbaro! o noivado
Sublime! aonde os céos, os céos ingentes,
Serão leito de amor, tendo pendentes
Os astros por docel e cortinado!

As bodas do Desejo, embriagado
De ventura, a final! visões ferventes
De quem nos braços vae de ideaes ardentes
Por espaços sem termo arrebatado!

Lá, por onde se perde a phantasia
No sonho da belleza: lá, aonde
A noite tem mais luz que o nosso dia;

Lá, no seio da eterna claridade,
Aonde Deus á humana voz responde;
É que te havemos abraçar, Verdade!

VIII

Lá! Mas aonde é ?—Espera,
Coração indomado! o céo, que anceia
A alma fiel, o céo, o céo da Idea.
Em vão o buscas n'essa immensa esphera!

O espaço é mudo: a immensidade austera
De balde noite e dia incendeia…
Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia
A rosa ideal da eterna primavera!

O Paraiso e o templo da Verdade,
Oh mundos, astros, sóes, constellações!
Nenhum de vós o tem na immensidade…

A Idea, o summo Bem, o Verbo, a Essencia,
Só se revela aos homens e ás nações
No céo incorruptivel da Consciencia!

A um crucifixo

     Lendo, passados 12 annos, o soneto da parte 1.^a que tem o mesmo
     titulo

Não se perdeu teu sangue generoso,
Nem padeceste em vão, quem quer que foste,
Plebeu antigo, que amarrado ao poste
Morreste como vil e faccioso.

D'esse sangue maldito e ignominioso
Surgio armada uma invencivel hoste…
Paz aos homens e guerra aos deuses!—poz-te
Em vão sobre um altar o vulgo ocioso…

Do pobre que protesta foste a imagem:
Um povo em ti começa, um homem novo:
De ti data essa tragica linhagem.

Por isso nós, a Plebe, ao pensar n'isto,
Lembraremos, herdeiros d'esse povo,
Que entre nossos avós se conta Christo.

DIALOGO

A cruz dizia á terra onde assentava,
Ao valle obscuro, ao monte aspero e mudo:
—Que és tu, abysmo e jaula, aonde tudo
Vive na dor e em lucta cega e brava?

Sempre em trabalho, condemnada escrava.
Que fazes tu de grande e bom, comtudo?
Resignada, és só lodo informe e rudo;
Revoltosa, és só fogo e horrida lava…

Mas a mim não ha alta e livre serra
Que me possa igualar!.. amor, firmeza,
Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra!

Sou o espirito, a luz!.. tu és tristeza,
Oh lodo escuro e vil!—Porêm a terra
Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!

MAIS LUZ!

(A Guilherme de Azevedo)

Amem a noite os magros crapulosos,
E os que sonham com virgens impossiveis,
E os que inclinam, mudos e impassiveis,
Á borda dos abysmos silenciosos…

Tu, lua, com teus raios vaporosos,
Cobre-os, tapa-os e torna-os insensiveis,
Tanto aos vicios crueis e inextinguiveis,
Como aos longos cuidados dolorosos!

Eu amarei a santa madrugada,
E o meio-dia, em vida refervendo,
E a tarde rumorosa e repousada.

Viva e trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro sol, amigo dos heroes!

These e Antithese

I

Já não sei o que vale a nova idea,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, á luz da barricada,
Como bacchante após lubrica ceia…

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e socegada
Eil-a presa das furias de Medea!

Um seculo irritado e truculento
Chama á epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz…

Mas a idea é n'um mundo inalteravel,
N'um crystallino céo, que vive estavel…
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

II

N'um céo intemerato e crystallino
Póde habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectaculo divino.

Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmão possante…
Cá da terra blasphema ou ergue um hymno…

A idea encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos soes!

Combatei pois na terra arida e bruta,
Té que a revolva o remoinhar da lucta,
Té que a fecunde o sangue dos heroes!

Justitia Mater

Nas florestas solemnes ha o culto
Da eterna, intima força primitiva:
Na serra, o grito audaz da alma captiva,
Do coração, em seu combate inulto:

No espaço constellado passa o vulto
Do innominado Alguem, que os soes aviva:
No mar ouve-se a voz grave e afflictiva
D'um deus que lucta, poderoso e inculto.

Mas nas negras cidades, onde sôlta
Se ergue, de sangue medida, a revolta,
Como incendio que um vento bravo atiça,

Ha mais alta missão, mais alta gloria:
O combater, á grande luz da historia,
Os combates eternos da Justiça!

Palavras d'um certo Morto

Ha mil annos, e mais, que aqui estou morto,
Posto sobre um rochedo, á chuva e ao vento:
Não ha como eu espectro macilento,
Nem mais disforme que eu nenhum aborto…

Só o espirito vive: vela absorto
N'um fixo, inexoravel pensamento:
«Morto, enterrado em vida!» o meu tormento
É isto só… do resto não me importo…

Que vivi sei-o eu bem… mas foi um dia,
Um dia só—no outro, a Idolatria
Deu-me um altar e um culto… ai! adoraram-me.

Como se eu fosse alguem! como se a Vida
Podesse ser alguem!—logo em seguida
Disseram que era um Deus… e amortalharam-me!

A UM POETA

Surge et ambula!

Tu, que dormes, espirito sereno,
Posto á sombra dos cedros seculares,
Como um levita á sombra dos altares,
Longe da lucta e do fragor terreno,

Accorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio d'esses mares,
Um mundo novo espera só um aceno…

Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! são canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!

Ergue-te pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Hymno á Razão

Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz d'um coração que te appetece,
D'uma alma livre, só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça
De astros e soes e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroismo medra e viça.

Por ti, na arena tragica, as nações
Buscam a liberdade, entre clarões:
E os que olham o futuro e scismam, mudos,

Por ti, podem soffrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

1874—1880

HOMO

Nenhum de vós ao certo me conhece,
Astros do espaço, ramos do arvoredo,
Nenhum adivinhou o meu segredo,
Nenhum interpretou a minha prece…

Ninguem sabe quem sou… e mais, parece
Que ha dez mil annos já, neste degredo,
Me vê passar o mar, vê-me o rochedo
E me contempla a aurora que alvorece…

Sou um parto da Terra monstruoso;
Do humus primitivo e tenebroso
Geração casual, sem pae nem mãe…

Mixto infeliz de trevas e de brilho,
Sou talvez Satanaz;—talvez um filho
Bastardo de Jehovah;—talvez ninguem!

Disputa em familia

Dixit insipiens in corde suo: non est Deus.

I

Sae das nuvens, levanta a fronte e escuta
O que dizem teus filhos rebellados,
Velho Jehovah de longa barba hirsuta,
Solitario em teus Céos acastellados:

«—Cessou o imperio emfim da força bruta!
Não soffreremos mais, emancipados,
O tyranno, de mão tenaz e astuta,
Que mil annos nos trouxe arrebanhados!

Emquanto tu dormias impassivel,
Topámos no caminho a liberdade
Que nos sorrio com gesto indefinivel…

Já provámos os fructos da verdade…
Ó Deus grande, ó Deus forte, ó Deus terrivel.
Não passas d'uma van banalidade!—»

II

Mas o velho tyranno solitario,
De coração austero e endurecido,
Que um dia, de enjoado ou distrahido,
Deixou matar seu filho no Calvario,

Sorrio com rir extranho, ouvindo o vario
Tumultuoso côro e alarido
Do povo insipiente, que, atrevido,
Erguia a voz em grita ao seu sacrario:

«—Vanitas vanitatum! (disse). É certo
Que o homem vão medita mil mudanças,
Sem achar mais do que erro e desacerto.

Muito antes de nascerem vossos paes
D'um barro vil, ridiculas crianças,
Sabia em tudo isso… e muito mais!—»

Mors liberatrix

(A Bulhão Pato)

Na tua mão, sombrio cavalleiro,
Cavalleiro vestido de armas pretas,
Brilha uma espada feita de cometas,
Que rasga a escuridão como um luzeiro.

Caminhas no teu curso aventureiro,
Todo involto na noite que projectas…
Só o gladio de luz com fulvas betas
Emerge do sinistro nevoeiro.

—«Se esta espada que empunho é coruscante,
(Responde o negro cavalleiro-andante)
É porque esta é a espada da Verdade.

Firo, mas salvo… Prostro e desbarato,
Mas consólo… Subverto, mas resgato…
E, sendo a Morte, sou a Liberdade.»

O Inconsciente

O Espectro familiar que anda commigo,
Sem que podesse ainda ver-lhe o rosto,
Que umas vezes encaro com desgosto
E outras muitas ancioso espreito e sigo.

É um espectro mudo, grave, antigo,
Que parece a conversas mal disposto…
Ante esse vulto, ascetico e composto
Mil vezes abro a bocca… e nada digo.

Só uma vez ousei interrogal-o:
Quem és (lhe perguntei com grande abalo)
Phantasma a quem odeio e a quem amo?

Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos,
Chamam-me Deus, ha mais de dez mil annos…
Mas eu por mim não sei como me chamo…

MORS-AMOR

(A Luiz de Magalhães)

Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me apparece
Da noite nas phantasticas estradas.

D'onde vem elle? Que regiões sagradas
E terriveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavalleiro de expressão potente,
Formidavel, mas placido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera extranha sem temor.
E o corcel negro diz: «Eu sou a Morte!»
Responde o cavalleiro: «Eu sou o Amor!»

ESTOICISMO

(A Manoel Duarte de Almeida)

Tu que não crês, nem amas, nem esperas,
Espirito de eterna negação,
Teu halito gelou-me o coração
E destroçou-me da alma as primaveras…

Atravessando regiões austeras,
Cheias de noite e cava escuridão,
Como n'um sonho mau, só oiço um não,
Que eternamente ecchoa entre as espheras…

—Porque suspiras, porque te lamentas,
Cobarde coração? Debalde intentas
Oppor á Sorte a queixa do egoismo…

Deixa aos timidos, deixa aos sonhadores
A esperança van, seus vãos fulgores…
Sabe tu encarar sereno o abysmo!

ANIMA MEA

Estava a Morte alli, em pé, diante,
Sim, diante de mim, como serpente
Que dormisse na estrada e de repente
Se erguesse sob os pés do caminhante.

Era de ver a funebre bacchante!
Que torvo olhar! que gesto de demente!
E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente,
Loba faminta, pelo mundo errante?»

—Não temas, respondeu (e uma ironia
Sinistramente estranha, atroz e calma,
Lhe torceu cruelmente a bocca fria).

Eu não busco o teu corpo… Era um tropheu
Glorioso de mais… Busco a tua alma—
Respondi-lhe: «A minha alma já morreu!»

Divina comedia

(Ao Dr. José Falcão)

Erguendo os braços para o céo distante
E apostrophando os deuses invisiveis,
Os homens clamam:—«Deuses impassiveis,
A quem serve o destino triumphante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguiveis,
Dor, peccado, illusão, luctas horriveis,
N'um turbilhão cruel e delirante…

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem:—«Homens! porque é que nos criastes?»

Espiritualismo

I

Como um vento de morte e de ruina,
A Duvida soprou sobre o Universo.
Fez-se noite de subito, immerso
O mundo em densa e algida neblina.

Nem astro já reluz, nem ave trina,
Nem flor sorri no seu aereo berço.
Um veneno sutil, vago, disperso,
Empeçonhou a criação divina.

E, no meio da noite monstruosa,
Do silencio glacial, que paira e estende
O seu sudario, d'onde a morte pende,

Só uma flor humilde, mysteriosa,
Como um vago protesto da existencia,
Desabroxa no fundo da Consciencia.

II

Dorme entre os gelos, flor immaculada!
Lucta, pedindo um ultimo clarão
Aos soes que ruem pela immensidão,
Arrastando uma aureola apagada…

Em vão! Do abysmo a bocca escancarada
Chama por ti na gélida amplidão…
Sobe do poço eterno, em turbilhão,
A treva primitiva conglobada…

Tu morrerás tambem. Um ai supremo,
Na noite universal que envolve o mundo,
Ha-de ecchoar, e teu perfume extremo

No vacuo eterno se esvahirá disperso,
Como o alento final d'um moribundo,
Como o ultimo suspiro do Universo.

O CONVERTIDO

(A Gonçalves Crespo)

Entre os filhos d'um seculo maldito
Tomei tambem o logar na impia meza,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
D'uma ancia impotente de infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza…
Mas, um dia, abalou-se-me a firmeza,
Deu-me rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tedio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na fé o pensamento,
E achei a paz na inercia e esquecimento…
Só me falta saber se Deus existe!

ESPECTROS

Espectros que velaes, emquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus somnos curtos e cançados
Me encheis as noites de agonia e susto!…

De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados
Disputar dia a dia á mão dos Fados
Uma parcella do saber augusto,

Se a minh'alma ha-de ver, sobre si fitos,
Sempre esses olhos tragicos, malditos!
Se até dormindo, com angustia immensa,

Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma verter sobre o meu peito
As lagrimas geladas da descrença!

Á Virgem Santissima

Cheia de Graça, Mãe de Misericordia

N'um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizivel anciedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza…

Não era o vulgar brilho da belleza,
Nem o ardor banal da mocidade…
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as ha na natureza…

Um mystico soffrer… uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira…

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa…
E deixa-me sonhar a vida inteira!

NOX

(A Fernando Leal)

Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, á luz cruel do dia,
Tanto esteril luctar, tanta agonia,
E inuteis tantos asperos tormentos…

Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exhalam da tragica enxovia…
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descança e esquece, alguns momentos…

Oh! antes tu tambem adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalteravel,
Cahindo sobre o mundo, te esquecesses,

E elle, o mundo, sem mais luctar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolavel,
Noite sem termo, noite do Não-ser!

EM VIAGEM

Pelo caminho estreito, aonde a custo
Se encontra uma só flor, ou ave, ou fonte,
Mas só bruta aridez de aspero monte
E os soes e a febre do areal adusto,

Pelo caminho estreito entrei sem susto
E sem susto encarei, vendo-os defronte,
Phantasmas que surgiam do horizonte
A accommetter meu coração robusto…

Quem sois vós, peregrinos singulares?
Dor, Tedio, Desenganos e Pesares…
Atraz d'elles a Morte espreita ainda…

Conheço-vos. Meus guias derradeiros
Sereis vós. Silenciosos companheiros,
Bemvindos, pois, e tu, Morte, bemvinda!

Quia aeternus

(A Joaquim de Araujo)

Não morreste, por mais que o brade á gente
Uma orgulhosa e van philosophia…
Não se sacode assim tão facilmente
O jugo da divina tyrannia!

Clamam em vão, e esse triumpho ingente
Com que a Razão—coitada!—se inebria,
É nova forma, apenas, mais pungente,
Da tua eterna, tragica ironia.

Não, não morreste, espectro! o Pensamento
Como d'antes te encara, e és o tormento
De quantos sobre os livros desfallecem.

E os que folgam na orgia impia e devassa
Ai! quantas vezes ao erguer a taça,
Param, e estremecendo, empallidecem!

No turbilhão

(A Jayme Batalha Reis)

No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus proprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
Arrebatado em vastos turbilhões…

N'uma espiral, de estranhas contorsões,
E d'onde sáem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições…

—Phantasmas de mim mesmo e da minha alma,
Que me fitaes com formidavel calma,
Levados na onda turva do escarceo,

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões miserrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!…

IGNOTUS

(A Salomão Sáragga)

Onde te escondes? Eis que em vão clamamos,
Suspirando e erguendo as mãos em vão!
Já a voz enrouquece e o coração
Está cançado—e já desesperamos…

Por céo, por mar e terras procuramos
O Espirito que enche a solidão,
E só a propria voz na immensidão
Fatigada nos volve… e não te achamos!

Céos e terra, clamai, aonde? aonde?—
Mas o Espirito antigo só responde,
Em tom de grande tedio e de pezar:

—Não vos queixeis, ó filhos da anciedade,
Que eu mesmo, desde toda a eternidade,
Tambem me busco a mim… sem me encontrar!

NO CIRCO

(A João de Deus)

Muito longe d'aqui, nem eu sei quando,
Nem onde era esse mundo, em que eu vivia…
Mas tão longe… que até dizer podia
Que emquanto lá andei, andei sonhando…

Porque era tudo ali aereo e brando,
E lucida a existencia amanhecia…
E eu… leve como a luz… até que um dia
Um vento me tomou, e vim rolando…

Cahi e achei-me, de repente, involto
Em lucta bestial, na arena fera,
Onde um bruto furor bramia solto.

Senti um monstro em mim nascer n'essa hora,
E achei-me de improviso feito fera…
—É assim que rujo entre leões agora!

NIRVÂNA

(A Guerra Junqueiro)

Para além do Universo luminoso,
Cheio de fórmas, de rumor, de lida,
De forças, de desejos e de vida,
Abre-se como um vacuo tenebroso.

A onda d'esse mar tumultuoso
Vem ali expirar, esmaecida…
N'uma immobilidade indefinida
Termina ali o ser, inerte, ocioso…

E quando o pensamento, assim absorto,
Emerge a custo d'esse mundo morto
E torna a olhar as cousas naturaes,

Á bella luz da vida, ampla, infinita,
Só vê com tedio, em tudo quanto fita,
A illusão e o vasio universaes.

CONSULTA

(A Alberto Sampaio)

Chamei em volta do meu frio leito
As memorias melhores de outra edade,
Fórmas vagas, que ás noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito…

E disse-lhes:—No mundo immenso e estreito
Valia a pena, acaso, em anciedade
Ter nascido? dizei-mo com verdade,
Pobres memorias que eu ao seio estreito…

Mas ellas perturbaram-se—coitadas!
E empallideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena…

E cada uma d'ellas, lentamente,
Com um sorriso morbido, pungente,
Me respondeu:—Não, não valia a pena!

Divina comedia

(Ao Dr. José Falcão)

Erguendo os braços para o céo distante
E apostrophando os deuses invisiveis,
Os homens clamam:—«Deuses impassiveis,
A quem serve o destino triumphante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguiveis,
Dor, peccado, illusão, luctas horriveis,
N'um turbilhão cruel e delirante…

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem:—«Homens! porque é que nos criastes?»

VISÃO

(A J. M. Eça de Queiroz)

Eu vi o Amor—mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem tregoa e de intimos cançaços.

Pairava, como espectro, nos espaços,
Todo envolto n'um nimbo pardacento…
Na attitude convulsa do tormento,
Torcia e retorcia os magros braços…

E arrancava das aras destroçadas
A uma e uma as pennas maculadas,
Soltando a espaços um soluço fundo,

Soluço de odio e raiva impenitentes…
E do phantasma as lagrimas ardentes
Cahiam lentamente sobre o mundo!

1880—1884

Transcendentalismo

(A J. P. Oliveira Martins)

Já socega, depois de tanta lucta,
Já me descança em paz o coração.
Cahi na conta, emfim, de quanto é vão
O bem que ao Mundo e á Sorte se disputa.

Penetrando, com fronte não enxuta,
No sacrario do templo da Illusão,
Só encontrei, com dor e confusão,
Trevas e pó, uma materia bruta…

Não é no vasto mundo—por immenso
Que elle pareça á nossa mocidade—
Que a alma sacia o seu desejo intenso…

Na esphera do invisivel, do intangivel,
Sobre desertos, vacuo, soledade,
Vôa e paira o espirito impassivel!

EVOLUÇÃO

(A Santos Valente)

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco ou ramo na incognita floresta…
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquissimo inimigo…

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
Ou, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paúl, glauco pacigo…

Hoje sou homem—e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espiraes, na immensidade…

Interrogo o infinito e ás vezes chóro…
Mas, estendendo as mãos no vacuo, adoro
E aspiro unicamente á liberdade.

Elogio da Morte

Morrer é ser iniciado.

Anthologia Grega.

I

Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e accórdo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.

Não que de larvas me povôe a mente
Esse vacuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razão por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo…

Nem phantasmas nocturnos visionarios,
Nem desfilar de espectros mortuarios,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte…

Nada! o fundo dum poço, humido e morno,
Um muro de silencio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcraes da Morte.

II

Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a phantasia.

Atravesso, no escuro, a nevoa fria
D'um mundo estranho, que povôa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.

Que mysticos desejos me enlouquecem?
Do Nirvâna os abysmos apparecem,
A meus olhos, na muda immensidade!

N'esta viagem pelo ermo espaço,
Só busco o teu encontro e o teu abraço,
Morte! irman do Amor e da Verdade!

III

Eu não sei quem tu és—mas não procuro
(Tal é minha confiança) devassal-o.
Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,
Entre as fórmas da noite, com quem falo.

Atravez do silencio frio e obscuro
Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,
No cairel dos abysmos do Futuro
Me inclino á tua voz, para sondal-o.

Por ti me engolfo no nocturno mundo
Das visões da região innominada,
A ver se fixo o teu olhar profundo…

Fixal-o, comprehendel-o, basta uma hora,
Funerea Beatriz de mão gelada…
Mas unica Beatriz consoladora!

IV

Longo tempo ignorei (mas que cegueira
Me trazia este espirito ennublado!)
Quem fosses tu, que andavas a meu lado,
Noite e dia, impassivel companheira…

Muitas vezes, é certo, na canceira,
No tedio extremo d'um viver maguado,
Para ti levantei o olhar turbado,
Invocando-te, amiga derradeira…

Mas não te amava então nem conhecia:
Meu pensamento inerte nada lia
Sobre essa muda fronte, austera e calma.

Luz intima, afinal, alumiou-me…
Filha do mesmo pae, já sei teu nome,
Morte, irman coeterna da minha alma!

V

Que nome te darei, austera imagem,
Que avisto já n'um angulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cançaço e do tedio da viagem?

Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recúa apavorada…
Mas eu confio em ti, sombra velada,
E cuido perceber tua linguagem…

Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemmas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos…

Dormirei no teu seio inalteravel,
Na communhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolavel!

VI

Só quem teme o Não-ser é que se assusta
Com teu vasto silencio mortuario,
Noite sem fim, espaço solitario,
Noite da Morte, tenebrosa e augusta…

Eu não: minh'alma humilde mas robusta
Entra crente em teu atrio funerario:
Para os mais és um vacuo cinerario,
A mim sorri-me a tua face adusta.

A mim seduz-me a paz santa e ineffavel
E o silencio sem par do Inalteravel,
Que envolve o eterno amor no eterno luto.

Talvez seja peccado procurar-te,
Mas não sonhar comtigo e adorar-te,
Não-ser, que és o Ser unico absoluto.

Contemplação

(A Francisco Machado de Faria e Maia)

Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as apparencias,
Mas vendo a face immovel das essencias,
Entre ideas e espiritos pairando…

Que é o mundo ante mim? fumo ondeando,
Visões sem ser, fragmentos de existencias…
Uma nevoa de enganos e impotencias
Sobre vacuo insondavel rastejando…

E d'entre a nevoa e a sombra universaes
Só me chega um murmurio, feito de ais…
É a queixa, o profundissimo gemido

Das cousas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só presentido…

Lacrimae rerum

(A Tommaso Cannizzaro)

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oraculo sagrado,
Confidente e interprete da Sorte!

Aonde vão teus soes, como cohorte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza que o conforte?

Mas, na pompa de immenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triumphal,
Passa volvendo as horas vagarosas…

É tudo, em torno de mim, duvida e luto:
E, perdido n'um sonho immenso, escuto
O suspiro das cousas tenebrosas…

REDEMPÇÃO

(Á Ex.^{ma} Snr.^a D. Celeste C. B. R.)

I

Vozes do mar, das arvores, do vento!
Quando ás vezes, n'um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento…

Verbo crepuscular e intimo alento
Das cousas mudas; psalmo mysterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espirito habita a immensidade:
Uma ancia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu comprehendo a vossa lingua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha…
Almas irmans da minha, almas captivas!

II

Não choreis, ventos, arvores e mares,
Côro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares…

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D'esse sonho e essas ancias affrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares…

Almas no limbo ainda da existencia,
Accordareis um dia na Consciencia,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Illusão,
Cahir desfeitas, como um sonho vão…
E acabará por fim vosso tormento.

Voz interior

(A João de Deus)

Embebido n'um sonho doloroso,
Que atravessam phantasticos clarões,
Tropeçando n'um povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso…

Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céos arroja os seus cachões,
Atravez d'uma luz de exhalações,
Rodeia-me o Universo monstruoso…

Um ai sem termo, um tragico gemido
Echoa sem cessar ao meu ouvido,
Com horrivel, monotono vaivem…

Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e affirma o Bem!

LUCTA

Fluxo e refluxo eterno…

João de Deus.

Dorme a noite encostada nas colinas.
Como um sonho de paz e esquecimento
Desponta a lua. Adormeceu o vento,
Adormeceram valles e campinas…

Mas a mim, cheia de attracções divinas,
Dá-me a noite rebate ao pensamento.
Sinto em volta de mim, tropel nevoento,
Os Destinos e as Almas peregrinas!

Insondavel problema!… Apavorado
Recúa o pensamento!… E já prostrado
E estupido á força de fadiga,

Fito inconsciente as sombras visionarias,
Emquanto pelas praias solitarias
Echoa, ó mar, a tua voz antiga.

LOGOS

(Ao snr. D. Nicolau Salmeron)

Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
E, o que é mais, dentro de mim—que me rodeias
Com um nimbo de affectos e de ideas,
Que são o meu principio, meio e fim…

Que estranho ser és tu (se és ser) que assim
Me arrebatas comtigo e me passeias
Em regiões innominadas, cheias
De encanto e de pavor… de não e sim…

És um reflexo apenas da minha alma,
E em vez de te encarar com fronte calma,
Sobresalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te…

Falo-te, calas… calo, e vens attento…
És um pae, um irmão, e é um tormento
Ter-te a meu lado… és um tyranno, e adoro-te!

Com os mortos

Os que amei, onde estão? idos, dispersos,
Arrastados no gyro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos…

E eu mesmo, com os pés tambem immersos
Na corrente e á mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma livida, em cachões,
E entre ella, aqui e ali, vultos submersos…

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei: vivem commigo.

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me tambem,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na communhão ideal do eterno Bem.

Oceano Nox

(A A. de Azevedo Castello Branco)

Junto do mar, que erguia gravemente
A tragica voz rouca, em quanto o vento
Passava como o vôo d'um pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermittente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céo pesado e nevoento,
E interroguei, scismando, esse lamento
Que sahia das cousas, vagamente…

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idea gravitaes?—

Mas na immensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente immortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais…

Communhão

(Ao snr. João Lobo de Moura)

Reprimirei meu pranto!… Considera
Quantos, minh'alma, antes de nós vagaram,
Quantos as mãos incertas levantaram
Sob este mesmo céo de luz austera!…

—Luz morta! amarga a propria primavera!—
Mas seus pacientes corações luctaram,
Crentes só por instincto, e se apoiaram
Na obscura e heroica fé, que os retempera…

E sou eu mais do que elles? igual fado
Me prende á lei de ignotas multidões.—
Seguirei meu caminho confiado,

Entre esses vultos mudos, mas amigos,
Na humilde fé de obscuras gerações,
Na communhão dos nossos paes antigos.

Solemnia Verba

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, d'esta altura fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos…

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E noite, onde foi luz de primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera
Semeador de sombras e quebrantos!—

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,

Respondeu: D'esta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.

O que diz a Morte

Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;
E os que cheios de magua e tedio encaram
As proprias obras vans, de que escarnecem…

Em mim, os Soffrimentos que não saram,
Paixão, Duvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como n'um mar, em mim desapparecem.—

Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso interprete sagrado
Das cousas invisiveis, muda e fria,

É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.

Na mão de Deus

(Á Ex.^{ma} Snr.^a Victoria de O. M.)

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descançou a final meu coração.
Do palacio encantado da Illusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortaes, com que se enfeita
A ignorancia infantil, despojo vão,
Depuz do Ideal e da Paixão
A forma transitoria e imperfeita.

Como criança, em lobrega jornada,
Que a mãe leva ao collo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu somno, coração liberto,
Dorme na não de Deus eternamente!

INDICE

A cruz dizia á terra, onde assentava [pag. 64]
Adornou o meu quarto a flor do cardo [pag. 26]
Ali, onde o mar quebra, n'um cachão [pag. 52]
Altas horas da noite, o Inconsciente [pag. 103]
Amar! mas d'um amor que tenha vida [pag. 25]
Amem a noite os magros crapulosos [pag. 65]
Aquella, que eu adoro, não é feita [pag. 44]
Aquelles, que eu amei, não sei que vento [pag. 49]
Ardentes filhas do prazer, dizei-me [pag. 48]
Chamei em volta do meu frio leito [pag. 96]
Chovam lyrios e rosas no teu collo [pag. 35]
Como um vento de morte e de ruina [pag. 84]
Conheci a belleza que não morre [pag. 7]
Conquista pois sósinho o teu futuro [pag. 58]
Deixae-os vir a mim, os que lidaram [pag. 120]
Deixal-a ir, a ave, a quem roubaram [pag. 46]
Depois que dia a dia, aos poucos desmaiando [pag. 22]
Disse ao meu coração: Olha por quantos [pag. 119]
Dorme a noite encostada nas colinas [pag. 114]
Dorme entre os gelos, flor immaculada [pag. 85]
Embebido n'um sonho doloroso [pag. 113]
Empunhasse eu a espada dos valentes! [pag. 45]
Em sonho, ás vezes, se o sonhar quebranta [pag. 37]
Em vão luctamos! Como nevoa baça [pag. 19]
Entre os filhos d'um seculo maldito [pag. 86]
Erguendo os braços para o céo distante [pag. 83]
Espectros que velaes, em quanto a custo [pag. 87]
Esperemos em Deus! Elle ha tornado [pag. 10]
Espirito que passas, quando o vento [pag. 32]
Esse negro corcel, cujas passadas [pag. 80]
Estava a morte ali, em pé, deante [pag. 82]
Estreita é do prazer na vida a taça [pag. 6]
Eu amo a vasta sombra das montanhas [pag. 30]
Eu bem sei que te chamam pequenina [pag. 27]
Eu não sei quem tu és mas não procuro [pag. 103]
Eu vi o Amor—mas nos seus olhos baços [pag. 97]
Força é pois ir buscar outro caminho! [pag. 57]
Fui rocha, em tempos, e fui, no mundo antigo [pag. 102]
Fumo e scismo. Os castellos do horizonte [pag. 40]
Ha mil annos, bom Christo, ergueste os magros braços [pag. 20]
Ha mil annos, e mais, que aqui estou morto [pag. 69]
Já não sei o que vale a nova idea [pag. 66]
Já socega, depois de tanta lucta [pag. 101]
Junto do mar, que erguia gravemente [pag. 117]
Lá! mas aonde é ? aonde? Espera [pag. 62]
Longo tempo ignorei—mas que cegueira [pag. 106]
Mãe, que adormente este viver dorido [pag. 38]
Mas a Idea quem é? quem foi que a vio [pag. 59]
Mas o velho tyranno solitario [pag. 77]
Meus dias vão correndo vagarosos [pag. 8]
Muito longe d'aqui, nem eu sei quando [pag. 94]
Na capella, perdida entre a folhagem [pag. 34]
Na floresta dos sonhos, dia a dia [pag. 104]
Na mão de Deus, na sua mão direita [pag. 121]
Na tua mão, sombrio cavalleiro [pag. 78]
Nas florestas solemnes ha o culto [pag. 68]
Não busco n'esta vida gloria ou fama [pag. 18]
Não duvido que o mundo no seu eixo [pag. 41]
Não choreis, ventos, arvores e mares [pag. 112]
Não morreste, por mais que o brade á gente [pag. 91]
Não se perdeu teu sangue generoso [pag. 63]
Não me fales de gloria: é outro o altar [pag. 16]
No céo, se existe um céo para quem chora [pag. 11]
Nenhum de vós ao certo me conhece [pag. 75]
Noite, irmã da Razão e irmã da Morte [pag. 110]
Noite, vão para ti meus pensamento [pag. 89]
No meu sonho desfilam as visões [pag. 92]
N'um céo intemerato e crystalino [pag. 67]
N'um sonho todo feito de incerteza [pag. 88]
O espectro familiar, que anda commigo [pag. 79]
Oh chimera, que passas embalada [pag. 47]
Oh! o noivado barbaro! o noivado [pag. 61]
Onde te escondes? eis que em vão clamamos [pag. 93]
Os que amei, onde estão? idos, dispersos [pag. 116]
Outra amante não ha! não ha na vida [pag. 60]
Ouve tu, meu cançado coração [pag. 31]
Pallido Christo, oh conductor divino! [pag. 56]
Para além do Universo luminoso [pag. 93]
Para tristezas, para dar nasceste [pag. 50]
Pelas rugas da fronte que medita [pag. 43]
Pelo caminho estreito, aonde a custo [pag. 90]
Pois que os deuses antigos e os antigos [pag. 55]
Porque descrês, mulher, do amor, da vida? [pag. 15]
Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa [pag. 5]
Quando nós vamos ambos, de mãos dadas [pag. 31]
Que belleza mortal se te assemelha [pag. 3]
Que nome te darei, austera imagem [pag. 107]
Quem anda lá por fora, pela vinha [pag. 28]
Razão, irmã do Amor e da Justiça [pag. 71]
Reprimirei meu pranto!… Considera [pag. 118]
Sáe das nuvens, levanta a fronte e escuta [pag. 76]
Se comparo poder, ou ouro, ou fama [pag. 9]
Se é lei, que rege o escuro pensamento [pag. 12]
Sempre o futuro, sempre! e o presente [pag. 14]
Só! Ao ermita sósinho na montanha [pag. 13]
Só males são reaes, só dor existe [pag. 17]
Só quem teme o Não-Ser é que se assusta [pag. 108]
Só por ti, astro ainda e sempre occulto [pag. 34]
Sonho-me ás vezes rei, n'alguma ilha [pag. 29]
Sonhei—nem sempre o sonho é cousa vã [pag. 33]
Sonho de olhos abertos, caminhando [pag. 109]
Sonho que sou um cavalleiro andante [pag. 42]
Tu, que eu não vejo e estás ao pé de mim [pag. 115]
Tu, que dormes, espirito sereno [pag. 70]
Tu, que não crês, nem amas, nem esperas [pag. 81]
Um dia, meu amor, e talvez cedo [pag. 36]
Um diluvio de luz cáe da montanha [pag. 4]
Vae-te na aza negra da desgraça [pag. 21]
Vozes do mar, das arvores, do vento [pag. 111]

Porto Typographia Occidental. Fabrica 66