The Project Gutenberg eBook of A Queda d'um Anjo: Romance

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Title: A Queda d'um Anjo: Romance

Author: Camilo Castelo Branco

Release date: March 5, 2006 [eBook #17927]

Language: Portuguese

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A QUEDA D'UM ANJO

ROMANCE
POR
CAMILLO CASTELLO BRANCO

LISBOA

LIVRARIA DE CAMPOS JUNIOR—EDITOR

77—Rua Augusta—81

1866

Imprensa de J. G. de Sousa Neves—Rua do Caldeira, 17

*DEDICATORIA*

ILL.^{MO} E EX.^{MO} SR. ANTONIO RODRIGUES SAMPAIO

Meu amigo.

Volto a offerecer-lhe uma das minhas bagatelas. Chamo assim, para me fingir modesto, bagatelas a umas coisas que eu reputo no maximo valor. Se não fossem ellas, naturalmente eu não chegaria a grangear a estima de V. Ex.^a, que m'as tem lido, e alguma vez louvado. Já V. Ex.^a, antes de me conhecer, quiz encravar a roda do meu infortunio, roda com que eu estou sempre brincando como as creanças com os seus arcos. Que tinha eu feito para commover a bemquerença do meu prestante amigo? Tinha feito uns livros futilissimos, á imitação d'este que lhe offereço.

Não é esta boa opportunidade de eu vir com a minha oblação de pobre a V.
Ex.^a Lembra-me a sentença do nosso Diogo de Teive:

  Donat cum egenus diviti
  Retia videtur tendere
.

Os praguentos hão de querer ver aquellas rêdes, por que não sabem que V. Ex.^a já me constituiu, ha muito, no dever de eterna e profunda gratidão.

Lessa da Palmeira 27 de setembro de 1865.

CAMILLO CASTELLO BRANCO.

I

*O heroe do conto*

Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, tem hoje quarenta e nove annos, por ter nascido em 1815, na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda.

Seu pae, tambem Calisto, era cavalleiro fidalgo com filhamento, e decimo sexto varão dos Barbudas da Agra. Sua mãe, D. Basilissa Escolastica, procedia dos Silos, altas dignidades da egreja, commendatarios, sangue limpo, já bom sangue no tempo do senhor rei D. Affonso I, fundador de Miranda.

Fez seus estudos de latinidade no seminario bracharense o filho unico do morgado da Agra de Freimas, destinando-se a doutoramento in utroque jure. Porém, como quer que o pae lhe fallecesse, e a mãe contrariasse a projectada formatura, em razão de ficar sosinha no solar de Caçarelhos, Calisto, como bom filho, renunciou á carreira das lettras, deu-se ao governo da casa algum tanto, e muito á leitura da copiosa livraria, parte de seus avós paternos, e a maior dos doutores em canones, conegos, desembargadores do ecclesiastico, cathedraticos, chantres, arcediagos e bispos, parentella illustrissima de sua mãe.

Casou o morgado, ao tocar pelos vinte annos, com sua segunda prima D. Theodora Barbuda de Figueirôa, morgada de Travanca, senhora de raro aviso, e muito apontada em amanho de casa, e ignorante mais que o necessario para ter juizo.

Unidos os dois morgadios, ficou sendo a casa de Calisto a maior da comarca; e, com o rodar de dez annos, prosperou a olho, tendo grande parte n'este incremento a parcimonia a que o morgado circumscreveu seus prazeres, e, por sobre isto, o genio cainho e apertado de D. Theodora.

Remenda teu panno, chegar-te-ha ao anno, dizia a morgada de Travanca; e, afferrada ao seu adagio predilecto, remendava sempre, e sergia com perfeição justamente admirada entre a familia, e fallada como exemplo na área de quatro leguas, ou mais.

Em quanto ella recortava o fundilho ou apanhava a malha rôta da pinga, o marido lia até noite velha, e adormecia sobre os in-folios, e acordava a pedir contas á memoria das riquezas confiadas.

Os livros de Calisto Eloy eram chronicões, historias ecclesiasticas, biographias de varões preclaros, corographias, legislação antiga, foraes, memorias da academia real da historia portugueza, cathalogos de reis, numismatica, genealogias, annaes, poemas de cunho velho, etc.

Respeito a idiomas estranhos, dos vivos conhecia o francez muito pela rama; porém, o latim fallava-o como lingua propria, e interpretava correntemente o grego.

Memoria prompta, e cultivada com aturado e indigesto estudo, não podia sair-se com menos de um erudito em historia antiga, e repositorio de noticias miudas sobre factos e pessoas de Portugal.

Consultavm-n'o os sabios transmontanos como juiz indeclinavel em decifrar cipos e inscripções, em restabelecer épocas e successos controvertidos por authores contradictorios.

Sobre castas e linhagens, coisa que elle tirasse a limpo, não dava péga a duvida nenhuma. Ia elle desenterrar geração já sepultada ha setecentos annos, e provar que, na era de 1201, D. Fuas Mendo casára com a filha de um mesteiral, e D. Dorzia se havia sujado casando mofinamente com um pagem da lança de seu irmão D. Payo Ramires.

Farpeados pela viperina lingua d'elle, os fidalgos provincianos retaliavam quanto podiam a prosapia dos Benevides, propalando que n'aquella familia se gerára um clerigo grande femieiro, beberrão e lambaz, a quem o santo arcebispo D. Frei Bartholomeu dos Martyres, uma vez, perguntára que nome havia; e, como quer que o padre respondesse Onofre de Benevides, o arcebispo accudira dizendo: Melhor vos acertará com o nome, segundo a vida que fazeis, quem vos chamará de Bene bibis e male vivis.»[1] O remoque, talvez por ser de santo, era medianamente engraçado e pouco para affligir; assim mesmo Calisto Eloy, á conta d'esta injuria dos fidalgos comarcãos, tanto lhes esgravatou nas gerações, que descobriu radicalmente serem quasi todas de má casta.

É superfluo dizer-se a qual doutrinação politica pendia o animo do morgado da Agra de Freimas. Estava com a decisão das côrtes de Lamego. Fizera-se n'ellas, e cuidava ter assistido, em 1145, áquelle congresso mythologico, e ter conclamado com Gonçalo Mendes da Maya, o Lidador, e com Lourenço Viegas, o Espadeiro: Nos liberi summus, rex noster liber est.[2] Todavia, se assim fossem todos os doutrinarios politicos, a gente apodrecia na mais refestelada paz, e supina ignorancia do andamento da humanidade.

Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda queria que se venerasse o passado, a moral antiga como o monumento antigo, as leis de João das Regras e Martim d'Ocem, como o mosteiro da Batalha, as ordenações manuelinas como o convento dos Jeronymos.

O mal que d'aqui surdia ao genero humano, a fallar verdade, era nenhum. Este bom fidalgo, se lhe tirassem o sestro de esmiuçar desdouros nas gerações das familias patriciatas, era inoffensiva creatura. D'este senão, a causa foi um chamado Livro-negro, que herdára de seu tio avô Marcos de Barbuda Tenazes de Lacerda Falcão, genealogico pavoroso, o qual gastára sessenta dos oitenta annos vividos, a colligir borrões, travessias, mancebias, adulterios, coitos damnados, e incestos de muitas familias n'aquellas satanicas costaneiras, denominadas Livro-negro das linhagens de Portugal.

Em summa, Calisto era legitimista quieto, calado, e incapaz de impecer a roda do progresso, com tanto que elle não lhe entrasse em casa, nem o quizesse levar comsigo.

Prova cabal de sua tolerancia foi elle acceitar em 1840 a presidencia municipal de Miranda. Na primeira sessão camararia fallou de feitio e geito, que os ouvintes cuidavam estar escutando um alcaide do seculo xv levantado do seu jazigo da cathedral. Queria elle que se restaurassem as leis do foral dado a Miranda pelo monarcha fundador. Este requerimento gelou de espanto os vereadores; d'estes, os que poderam degelar-se, riram na cara do seu presidente, e emendaram a galhofa dizendo que a humanidade havia já caminhado sete seculos depois que Miranda tivera foral.

—Pois se caminhou, replicou o presidente, não caminhou direita. Os homens são sempre os mesmos e quejandos; as leis devem ser sempre as mesmas.

—Mas… retorquiu a opposição illustrada, o regimen municipal expirou em 1211, sr. presidente! V. ex.^a não ignora que ha hoje um codigo de leis communs de todo o territorio portuguez, e que desde Affonso II se estatuiram leis geraes. V. ex.^a de certo leu isto…

—Li, atalhou Calisto de Barbuda, mas reprovo!

—Pois seria util e racional que v. ex.^a approvasse.

—Util a quem? perguntou o presidente.

—Ao municipio, responderam.

—Approvem os srs. vereadores, e façam obra por essas leis, que eu despeço-me d'isto. Tenho o governo de minha casa, onde sou rei e govérno, segundo os foraes da antiga honra portugueza.

Disse; saiu; e nunca mais voltou á camara.

II

*Dois candidatos*

Desde o qual incidente, o morgado, convicto da podridão dos vereadores em particular, e da humanidade em geral, prometteu a onze retratos, que tinha de onze avós, pintados indignamente, nunca mais tocar o cancro social com suas mãos impollutas.

N'este proposito, nem ao menos consentiu que o vigario lhe mandasse o Periodico dos Pobres do Porto de que era assignante emparceirado com mais quatro reitores limitrophes, e o mestre escola e o boticario.

Um dia, porém, quando elle saia da festividade de S. Sebastião, cujo mordomo era, deteve-se no adro, onde o rodearam os mais graudos lavradores da sua freguezia e das visinhas. N'outro grupo, fallava-se do sermão, e da constancia do santo capitão das guardas do barbaro Diocleciano, e da desmoralisação do imperio.

Estas puchadas reflexões era o boticario que as expendia, coadjuvado pelo mestre de primeiras lettras, sujeito que sabia mais historia romana do que é permittido a um professor da preciosa e capitalissima sciencia de ler, contar e escrever, pelo que o sabio vinha a grangear para a humanidade a sciencia, e para elle nove vintens e meio por dia. E comia o sabio estes nove vintens e meio quotidianos, e ensinava os rapazes, e sobejava-lhe tempo para ler historia! Podéra!… Os governos davam-lhe férias grandes ao estomago, em proveito do espirito. Se elle andasse bem nutrido e succado de tripa, não aprendia nem ensinava coisa de monta. Que a pobresa é o estimulo das maiores façanhas da intelligencia. Paupertas impulit audax[3]. Isto que o Horacio faminto dizia de si, accomodam-no os regedores da coisa publica aos professores de primeiras lettras; porém, outros muitos versos do Horacio farto, esses tomam-os elles para seu uso.

Estava, pois, o mestre-escola, de parceria com o boticario, a castigar a perversidade dos imperadores romanos, por amor do martyr S. Sebastião, que, segunda vez, acabava de ser fréchado no panegyrico. N'este comenos, abeirou-se d'elles Calisto Eloy, e para logo se callaram as duas capacidades, em referencia ao Salomão da terra.

—Que dizem vocemecês?—perguntou Calisto benignamente. Continuem…
Parece que fallavam do santo.

—É verdade, sr. morgado—accudiu o boticario, ajustando os collarinhos percucientes ao lóbulo das orelhas, escarlates do atrito da gomma.—Fallavamos na malvadez dos imperadores pagãos.

—Sim!—disse Calisto, com proeminencia declamatoria,—sim! Horrorosos tempos aquelles foram! Mas os tempos actuaes não se differençam tanto dos antigos, que possamos, em consciencia e sciencia, encarecer o presente e praguejar o passado. Diocleciano era pagão, cego á luz da graça: os crimes d'elle hão de ser contrapesados, e descontados, na balança divina, com a ignorancia do delinquente. Ai, porém, dos que prevaricaram fechando olhos á luz da notoria verdade, afim de se fingirem cegos! Ai dos impios, cujas entranhas estão afistuladas de herpes! No grande dia, funestissima ha de ser a sentença d'elles, novos Caligulas, novos Tiberios, e Dioclecianos novos!

Relanceou o pharmaceutico uma olhadella esguelhada ao professor, o qual, abanando tres vezes e de compasso a cabeça, dava assim a perceber que abundava na admiração do seu amigo e consocio erudito em historia romana.

Obrigado ás orelhas do auditorio attento, Calisto, em toada de Ezequiel, continuou:

—Portugal está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma imperial! Os costumes de nossos maiores são mettidos a riso! As leis antigas, que eram o baluarte das antigas virtudes, dizem os sycophantas modernos, que já não servem á humanidade, a qual, em consequencia de ter mais sete seculos, se emancipou da tutela das leis. (Allusão bervada aos vereadores de Miranda, que discreparam do intento restaurador do foral dado por D. Affonso. Vinham a ser sycophantas os collegas municipalenses.) Credite, posteri!—exclamou Calisto Eloy com enfase, nobilitando a postura.

O latim não lh'o entenderam, salvo o mestre-escola, que antes de ser sargento de milicias, havia sido donato no convento dominicano de Villa-Real.

E repetiu: Credite, posteri!

N'esta occasião, saiu da egreja a sr.^a D. Theodora Figueirôa, e disse ao esposo:

—Vem d'ahi, Calisto. Vamos jantar, que é uma hora, e já lá vae o padre prégador para casa.

Enguliu o morgado tres phrases de polpa, que lhe inflavam os bocios, e foi ao jantar, sacrificando-se á regularidade das suas horas inalteraveis de repasto.

Ficaram o boticario e o professor de primeiras lettras, e mais os lavradores, ruminando as palavras do fidalgo, e glosando-as de notas illustrativas, ao alcance das capacidades.

Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto nos entremezes do entrudo exclamou:

—Aquillo é que dava um deputado ás direitas! Um homem assim, se fosse a
Lisboa fallar ao rei, as contribuições haviam de acabar!

—Isso não, perdoará vocemecê, tio José do Cruzeiro,—observou o mestre-escola—os impostos é necessario pagal-os. Sem impostos, não haveria rei nem professores de instrucção primaria (observem a modestia da gradação!) nem tropa, nem anatomia nacional.

O mestre-escola havia lido, repetidas vezes no Periodico dos Pobres, as palavras autonomia nacional. Falhou-lhe d'esta feita a memoria, lapso que não destoou em nenhumas orelhas, exceptuadas as do boticario, que resmungou:

—Anatomia nacional!

—Que é?!—perguntou ao pharmaceutico um estudante de clerigo.

—Parece-me que é asneira!—respondeu o outro com certa indecisão.

Proseguiu, concluindo, o mestre-escola:

—E, portanto os tributos, tio José do Cruzeiro, são necessarios ao estado como a agua aos milhos. Ora, agora, que ha muito quem bebe o suor do povo, isso ha; e aquelles, que deviam ser bem pagos, são os que menos comem da fazenda nacional. Aqui estou eu, que sou um funccionario indispensavel á patria, e receberia cento e noventa réis por dia, se não trouxesse rebatidos seis recibos a trinta e seis por cento, de modo que venho a receber seis e cinco! Que paiz!… O senhor morgado disse bem: estamos chegados aos tempos dos Dioclecianos e Caligulas!

O auditorio já vacillava em decidir qual dos dois era mais talhado para ir fallar ao rei a Lisboa, se Calisto, se o mestre escola.

III

*O demonio parlamentar descobre o anjo*

Fermentou na mente dos principaes lavradores e parochos das freguezias do circulo eleitoral a idéa de levar ao parlamento o morgado da Agra de Freimas.

Os deputados eleitos até áquelle anno no circulo de Calisto Eloy, eram coisas que os constituintes realmente não tinham enviado ao congresso legislativo. Pela maior parte, os representantes dos mirandenses tinham sido uns rapazes bem fallantes, areopagitas do café Marrare, gente conhecida pela figura desde o botequim até S. Carlos, e affeita a beber na Castalia, quando, para encher a veia, não preferia antes beber da garrafeira do Matta, ou outro que tal ecónomo dos apollineos dons.

Em geral, aquella mocidade esperançosa, eleita por Miranda e outros sertões lusitanos, não sabia topographicamente em que parte demoravam os povos seus comittentes, nem entendia que os aborigenes das serranias tivessem mais necessidades que fazerem-se representar, obrigados pelo regimen da constituição. Se algum influente eleitoral, prelibando as delicias do habito de Christo, obrigára a urna e o senso commum a gemer nos apertos do doloroso parto do paralta lisboeta, o tal influente considerava-se idóneo para escrever ao deputado incumbindo-lhe trabalhar na nomeação d'um vigario chamôrro, ou outra coisa, que foi denominação de bando politico, em tempo que a politica não sabia sequer dar-se nomes decentes. Pois o deputado não respondia á carta do influente, nem o requerente sabia onde procural-o, fóra do Marrare.

Por muitos factos d'esta natureza conspiraram os influentes do circulo de Miranda contra os delegados do governo; e a idéa de eleger o morgado foi recebida entusiasticamente por todos aquelles que o ouviram fallar no adro da egreja, e por quantos houveram noticias da sua parlenda.

O partido, que o mestre-escola ganhára de eloquente assalto, cedeu ao imperio das rasoaveis conveniencias, e conglobou-se na maioria. A verbosidade, porém, do professor não ficou despremiada, sendo nomeado secretario da junta de parochia.

Resistiu Calisto de Barbuda tenazmente ás solicitações dos lavradores, que o procuraram com o mestre-escola á frente, facto que muito honra este desinteresseiro e reportado funccionario. N'este encontro, o professor excedeu o juizo avantajado que elle propriamente fazia de sua vocação oratoria. Mostrou as fauces do abysmo escancaradas para tragarem Portugal, se os sabios e virtuosos não acudissem a salvar a patria moribunda. Calisto Eloy, enternecido até ás lagrimas pela sorte da terra de D. João I, voltou-se para a esposa, e disse, como o agricultor Cincinnatus:

—Aceito o jugo! Assás receio, mulher, que os nossos campos sejam mal cultivados este anno…

Estavam proximas as eleições.

A authoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu o governo da inutilidade da lucta. Não obstante, o ministro do reino redobrou instancias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escripto revistas de espectaculos, e recitava versos d'elle ao piano, cuja falta ou demasia de syllabas a bulha dos sonoros martellos disfarçava. Redarguiu o administrador do concelho ao governador civil, que pedia sua demissão para não soffrer a inevitavel e desairosa derrota.

Quiz assim mesmo o governo alliciar no circulo algum proprietario, que contraminasse a influencia do candidato legitimista, fazendo-se eleger. Alguns lavradores, menos afferrados á candidatura de Calisto, lembraram á authoridade o professor de instrucção primaria, estropeando phrases dos discursos d'elle, proferidos na botica. O administrador riu-se, e mandou-os bugiar, como parvoinhos que eram.

Por derradeiro, o governador civil fez saber ao ministerio que os povos de Vimioso, Alcanissas e Miranda se haviam levantado com selvagem independencia e tintam fugido com a urna para os desfiladeiros das suas serras. Pelo conseguinte, não pôde ser proposto o poeta, que beliscado na sua vaidade assanhou-se contra o governo, escrevendo umas feras objurgatorias, as quaes, se tivessem grammatica á proporção do fel, o governo havia de pôr as mãos na cabeça e demittir-se.

Á excepção de uma lista, o morgado da Agra de Freimas teve-as todas. A que não tinha o nome sympathico aos eleitores, votava em Braz Lobato, professor de instrucção primaria, secretario da junta de parochia, e ex-sargento das milicias de Mirandella. Parece que votára em si o mestre-escola. A final, maculou a alvura do nobilissimo desprendimento com que perorara em pró da eleição de Calisto! Fragilidade humana!

Principiou, desde logo, o morgado eleito a refrescar a memoria com as suas leituras de historia grega e romana; era isto entroixar sciencia e enfreixar flores para o parlamento. Depois, releu a legislação dos bons tempos de Portugal, afim de restaurar os costumes desbaratados, fazendo remoçar as leis, que haviam sido o tabernaculo da moral humana guardado pelo temor de Deus. Tosquenejou muitas noites sobre os bacamartes pulvéreos; e, desde que a manhã raiava até horas de almoço, ia á margem do Douro, que lhe lambia a ourela da quinta, declamar, como Demosthenes nas ribas maritimas, ao stridor de uma açude e das rodas de duas azenhas. Os moleiros, que o viam bracejar, e lhe ouviam o vozeamento, benziam-se, pensando que o sabio treslêra, ou coisa má lhe entrara no corpo. A sr.^a D. Theodora Figueirôa, vendo o marido assim tresnoitado, seguia-o ás vezes, de madrugada, espreitava-o de um cabeço sobranceiro ao rio, e benzia-se tambem, dizendo: «Dão-me com o homem doido!»

Chegou o tempo de partir para a capital.

O deputado mandou adiante por almocreve duas cargas de livros, nenhum dos quaes tinha menos de cento e cincoenta annos.

Seguia-se, na conducta dos machos portadores, uma carga de persunto e orelheira, substancia quotidiana da alimentação de Calisto Eloy.

Depois, outra carga de ancoretas de vinho velho, e na entrecarga uma garrafeira com duas duzias de garrafas de vinho, que competia antiguidade com a fundação da companhia.

A guarda-roupa do procurador dos povos era modesta, salvo o chapéo armado, calção de tafetá e espadim, com que elle, na qualidade de fidalgo cavalleiro, costumava contribuir para a magestade das procissões de Miranda, pegando ao pallio.

A pessoa de Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda foi em liteira, e chegou a Lisboa ao decimo quinto dia de jornada, trabalhada de perigos, superiores á descripção de que somos capaz.

De proposito, saltamos por cima dos pormenores da partida, para não descrever o quadro lastimoso do apartamento de Calisto e Theodora.

O apartamento de Theodora e Calisto era titulo para dois capitulos de lagrimas.

IV

*Asneiras da erudição*

Por fins de janeiro, chegou Benevides de Barbuda a Lisboa, e alugou casa no bairro de Alfama, por lhe terem dito que, n'aquella porção da Lisboa antiga, a cada esquina havia um monumento á espera de archeologo competente.

Ao cabo de tres dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, suppondo que os lamaçaes de Alfama haviam tragado os monumentos, lamaçaes em que elle desastradamente escorregára, e d'onde saíra mal-limpo, e assoviado por marujos e collarejas, seus visinhos mais chegados. Mau agouro! A primeira chimera de Calisto, seu tanto ou quanto scientifica, atascara-se na lama d'aquella parte de Lisboa, que devia de ser a inclita Ulissea de Luiz de Camões!

O deputado, sem embargo de ir habitar o quarto andar de uma casa lavada de ares e muito desafogada na rua da Procissão, quiz-lhe parecer que a atmosphera da capital não cheirava bem.

Abriu um dos seus livros velhos, intitulado Do sitio de Lisboa etc. por Luiz Mendes de Vasconcellos, e leu:

«…E assim, de todo o territorio de Lisboa, parece que da terra, fontes e rios, respiram suavissimos vapores, amigos da natureza humana; porque é coisa certissima que a benignidade dos ares d'este sitio, não só é por natureza deleitosa, pelo seu temperamento, mas de grandissimo proveito para algumas doenças, etc…»

Calisto Eloy fechou o livro, e disse de si para comsigo, tomando uma vez de rapé:

—O meu classico não podia mentir. Este mau cheiro é desconcerto da minha membrana pituitaria.

E alcatroou segunda vez, as ventas com uma pitada desinfectante.

Pareceu-lhe tambem pesada e salôbra a agua.

Recorreu ao seu classico Luiz Mendes, no artigo agua, e leu que o chafariz de El-Rei dava uma lympha gostosa e de suave quentura, a qual limpava a garganta de toda a roquidão, e afinava as vozes, e assim, dizia o classico, não errará quem disser que ella é causa das boas vozes que em Lisboa docemente ouvimos cantar; e tambem dos bons carões que conservam as mulheres.

Em quanto aos bons carões das mulheres, Calisto, que, de um relancear honesto de olhos, observára os rostos pallidos e esgrouviados de algumas senhoras de Lisboa, não podendo arguir de fallacia o dizer de Luiz Mendes, attribuiu á degeneração dos costumes e raças o descarnado e amarellido das caras; no tocante á suavidade das vozes, ficou indeciso, não querendo desmentir o seiscentista, nem formar conceito por uns grunhidos de cantaróla barbara com que os vendilhões pregoavam os comestiveis.

Todavia, como a agua do chafariz de El-Rei aclarava o orgão vocal, e Calisto, á força de berrar ao pé da açuda e azenhas, estava um tanto rouco, mandou buscar um barril d'aquella salutifera agua, que o Mendes de Vasconcellos compára á das fontes camenas. Bebeu á tripa fôrra o deputado, e teve uma dôr de barriga precursora de febres quartãs. Valeu-se ainda do seu classico, e por conta d'elle mandou buscar á Pimenteira outro barril de agua, a qual, diz o citado author, se busca para os doentes de febres.

O velho criado e enfermeiro, quando viu o seu amo encharcado e cada vez peior, foi de moto proprio em cata do cirurgião, o qual deu o morgado rijo e fero em quinze dias com algumas beberagens quinadas.

Desde então, Calisto Eloy não bebeu senão vinho, e melhorou da garganta e do espirito, um tanto quebrantado, recitando, a cada garrafa que abria, o proverbio da sagrada escriptura:—Vinum bonum laetifical cor hominis.[4]

Não obstante, o descredito do seu classico deveras lhe doeu, mormente pelo tom de mofa com que o cirurgião enxovalhou as cãs do honrado e lusitanissimo escriptor Luiz Mendes.

Apenas convalescido, Calisto abria outro livro da mesma edade, escripto por identico motivo, para averiguar se o author do Sitio de Lisboa claudicára como patranheiro em materia de chafarizes.

O bacamarte consultado era a Fundação, antiguidades e grandezas da muito insigne cidade de Lisboa, etc., escripto pelo capitão Luiz Marinho de Azevedo.

—Cá está!—exclamou Barbuda em soliloquio—cá está explicada a minha dôr de barriga! era destemperança do figado.

O deputado acabava de ler o seguinte periodo de Luiz Marinho:

«Encareceu Plinio muito a agua, que vinha a Roma da fonte Marcia, e Vitruvio a das fontes Camenas, porque nasciam quentes e eram saborosas no gosto, sendo por esta causa muito sadias e proveitosas para conservar saude. E posto que (sic) Luiz Mendes de Vasconcellos queira que por estas propriedades tenha a agua do charariz d'El-Rei as mesmas qualidades; a experiencia mostra que, sendo suave no gosto, o não é nos effeitos, porque lhe attribuem os medicos a destemperança do figado, que muitas pessoas padecem, e de que procedem varias enfermidades.»

—Fie-se lá a gente!—monologou o deputado.—É preciso cuidado com os classicos a respeito da agua de Lisboa.

E, proseguindo na leitura, encontrou confirmada a maravilha de se afinarem as vozes com o uso da agua do chafariz d'El-Rei, por estes termos:

«É causa das boas vozes dos musicos naturaes de Lisboa, ou que n'ella moraram, que tanto lustram em sua real capella, e na da corte de Madrid[5], conventos e egrejas cathedraes d'este reino e do de Castella: excellencia que tambem se acha nas mulheres, cuja feminina voz enleva os sentidos, como se experimenta ouvindo cantar as religiosas dos mosteiros d'esta cidade, em que mais parece se ouvem córos de anjos que vozes humanas.»

Á primeira vez que saiu, andou Calisto em demanda dos conventos de freiras, e das festividades de cada um. Disseram-lhe, em face de um repertorio, que a mais proxima festa era, no domingo immediato, em Santa Joanna. Foi Calisto á festa para ouvir cantar as freiras. Não lhe pareceu cantoria o que ouviu: eram tres narizes roufinhando destoantes. Calisto saiu do templo, foi ao palratorio, chamou a madre-porteira, e disse-lhe, com a sua candura de bom homem, que recommendasse ás senhoras cantoras a agua do chafariz d'El-Rei. A madre ficou passada do disparate, e voltou-lhe as costas.

Como quer que o morgado da Agra de Freimas não fosse homem que estudasse as materias perfunctoriamente, quiz esquadrinhar a respeito de aguas toda a substancia d'este importante elemento.

Decepções sobre decepções!

Quando morára na Alfama, observára elle que, n'aquelle bairro, as mulheres eram sardentas, rôxo-terra, e crespas de pelle. Pois o classico Marinho saía-lhe com este desmentido aos seus proprios olhos:

«Tem mais outra propriedade occulta a agua do chafariz (d'El-Rei) que é conservar os rostos das mulheres, que com ella se lavam, em uma alvura engraçada, e côr natural tão encarnada, que não necessita de unturas, nem confecções, com que ellas se envelhecem antes de tempo: o que se vê claramente na vantagem que as de Alfama levam ás dos outros bairros no carão, rosto mimoso, e côr que logo se conhece por natural; e, se bastára isto, por desengano ás que as usam postiças, não fôra pequeno o fructo, que se tirára de ler este paragrapho, havendo quem lh'o recitasse.»

Calisto Eloy certamente não iria recitar o paragrapho a nenhuma senhora pallida e magra, depois da incivil resposta, que lhe deu a porteira de Santa Joanna, e mais ainda com a desconfiança em que o puzeram os bons authores da sua predilecção.

Parece, porém, que elle andava aporfiado em afogar o seu recto juizo nas aguas de Lisboa. Lêra o deputado que tambem o chafariz dos cavallos da rua Nova tinha prodigiosas virtudes em cura de molestias d'olhos. Procurou a rua Nova, que o terramoto de 1755 sotterrára; procurou o chafariz, que segundo elle, devia de estar na rua dos Capellistas ou Algibebes successoras d'aquella rua. Ninguem lhe dava conta do chafariz dos cavallos; e alguns logistas interrogados suppuzeram que o provinciano não podia beber em fonte que não tivesse aquella applicação.[6]

O erudito respondia aos chacoteadores.

—Pois saibam que se perdeu um mirifico chafariz! Resam os meus livros que as saluberrimas aguas d'esta fonte perdida tinham a propriedade occulta de engordar as cavalgaduras que bebiam d'ella; e acrescenta Marinho d'Azevedo, textualissimas palavras: e quando ella faz tão conhecidos effeitos nos animaes, os fizera nos corpos humanos, se a beberam em sua fonte.

Um bacharel, que ouvira as lastimas de Calisto, disse a um visinho a meia-voz:

—Este homem parece que tem uma cavalgadura magra no corpo!

Com estas zombarias é que em Portugal os sabios são premiados… Se Calisto fosse um parvo, o governo dava-lhe um subsidio até elle achar o chafariz dos cavallos.

V

*Estreia parlamentar de Calisto*

Antes de apresentar-se na sala das sessões, Calisto Eloy de Barbuda leu o Regimento interno da camara dos deputados, juntamente com um collega transmontano, o abbade de Estevães, sujeito de annos, e doutrina monarchico-absolutos.

O morgado de Agra embicou logo na fórma do juramento, e disse que não jurava sem aspar as palavras que o obrigavam a ser inviolavelmente fiel á carta constitucional. O abbade quiz amaciar-lhe a rigidez de espiritos, absolvendo-o do perjurio, que não era serio, porque já de si o juramento era irrisorio e mera brincadeira de nenhum peso na balança da justiça divina.

E allegava o clerigo esclarecido que os representantes da nação, com quanto jurassem fidelidade á religião-catholica-apostolica-romana, eram aliás atheus; jurando fidelidade ao rei, injuriavam-n'o nas gazetas; jurando fidelidade á nação, avexavam-n'a de tributos, e alguns a queriam fundir na Hespanha. Comedia e comedoria! exclamava o abbade. Se os deixarmos a elles jurar e mentir á sua vontade, a monarchia portugueza d'aqui a pouco não terá mais realidade no mappamundi que a ilha Berataria do Miguel Cervantes, ou as ilhas beatas do poeta Alceu!

A respeito das ilhas beatas do poeta Alceu, saiu-se Calisto de Barbuda com uma despropositada torrente de citações, em que a paciencia do padre esteve a pique. Era perigoso dar-lhe azo ás ejecções da sciencia velha, que não havia abafar-lhe as valvulas ejaculatorias.

O sabio, lá na sua terra, nunca tivera auditorio digno; escutava-se a si proprio; admirava-se e applaudia-se com perdoavel, senão legitima vaidade; faltava-lhe, porém, alguma coisa, a qual coisa era o abbade de Estevães.

Este clerigo, bem que tivesse exercido as funcções desembargatorias na relação ecclesiastica de Braga, era menos lettrado que o antiquario de Caçarelhos, mas um tanto mais illustrado em critica da historia. Por delicadesa, fingia engulir as araras que o morgado lhe ministrava guizadas pelo monge de Alcobaça Bernardo de Brito, por Fernão Mendes e Miguel Leitão d'Andrade, e centenares de outros escrevedores de polpa, que mentiram «mais do que permitte a força humana.»

Convencido da irresponsabilidade seria do juramento parlamentar, foi Calisto Eloy de Silos empossar-se da sua cadeira na representação nacional. Porém, proferido o juramento, e antes de sentar-se, não teve mão de si, e disse:

—Sr. presidente!

O abbade de Estevães ainda ciciou um cio, como quem lembrava ao collega que o Regimento lhe tolhia o dom da palavra assim abrupta n'aquelle acto; mas o presidente, como esperasse alguma extraordinaria reflexão, deixou violar o artigo 30.^o do titulo e ouviu-o.

Continuou Calisto:

—Sr. presidente! Nos primordios da humanidade, a boa fé dispensava os juramentos: hoje em dia, para tudo se faz mister jurar, porque a boa fé desappareceu velut umbra da face da terra. Se bem me recordo, os casos de juramentos mais antigos lêem-se nas sagradas escripturas. Abrahão jurou ao rei de Sodoma e ao rei Abimelech; Elieser a Abrahão; e Jacob a Labão…

O presidente, como o riso andasse já contagioso na sala e galerias, observou:

—O sr. deputado está fóra das prescripções do regimento. Peço licença para o convidar a sentar-se do lado que lhe convier.

—Eu concluo em duas palavras, tornou Calisto, conformando-me com o regimento, e mais ainda com o jurisconsulto Struvius, o qual no seu jurisprudencia civilis syntagma, diz que não deve exigir-se o juramento quando póde temer-se o perjurio. Preceito de mui remontada moralidade; sr. presidente! Preceito, cujo despreso, é a causa efficiente das apostasias que deshonram, dos sacrilegios que condemnam a alma, e estampam na testa dos precitos lemma de opprobrio indelevel. Disse.

E foi sentar-se, flauteando cromathicamente uma pitada, á beira do seu amigo abbade de Estevães.

A maior parte dos legisladores estava como indecisa entre rir-se ou espantar-se do aprumo com que o transmontano, atando facilmente as phrases, atirava á cara dos legisladores um murro indirecto. Tres brados lhe haviam victoriado o cabeçalho do discurso: eram expansões de deputados legitimistas, que entre si se ficaram victoriando de terem um homem bastante audaz, se necessario fosse, para fallar ao imperante como João Mendes Cicioso fallara a El-Rei D. Manuel.

—Fallou á portugueza, sr. morgado; mas extemporaneamente—murmurou-lhe o abbade de Estevães.

—A verdade é de todas as horas, abbade—redarguiu Calisto—mal de nós se havemos de esperar que ella caia a talho de fouce!… Deixem-me ir assim, que os meus constituintes assim me querem, Catão e Cicero, Hortensio e Demosthenes não fallavam pelo regimento. O conselheiro que disse a Affonso IV «senão procuremos outro rei» não pediu licença a presidente algum, nem viu no regimento se era hora de lh'o dizer. Eu li de tento e vagar o regimento, amigo abbade; e a mim me quiz parecer que tudo aquillo é um modo, o mais cerimonioso, de fazer callar aquelles cujos dizeres desagradam á presidencia, por via de regra, mancommunada com o governo.

Prudentia in omnibus, diz o sabio—retorquiu o abbade.[7]

O morgado accudiu logo:

Estote prudentes, sicut serpentes et simplices sicut columbae, disse Jesus, o sabio dos sabios.[8]

VI

*Virtuosas parvoiçadas*

A estreia parlamentar de Calisto de Barbuda fez hyperbolico estrondo nos salões da aristocracia, legitimista, que abriu suas portas ao esperançoso Berryer de Portugal.

Algum tempo se andou furtando o morgado ás solicitadas apresentações. Impediam-n'o o natural acanhamento de provinciano, e o affecto entranhado aos seus classicos, que lhe eram o deleite das horas feriadas do dia, e dos serões do inverno.

Como á força, fôra elle uma noite, ao theatro lyrico, em companhia do abbade de Estevães, que amava a musica pelo muito amor que tinha á guitarra, delicias da sua mocidade, e consoladora da velhice, já saudosa do tempo em que o coração lhe gemia nos bordões do instrumento apaixonado.

Calisto inteirou-se do enredo da opera, e assistiu em convulsões ao espectaculo, que era a Lucrecia Borgia. Saiu da platéa frio de horror e protestou, em presença de Deus e do abbade, nunca mais contribuir com oito tostões para a exposição das chagas asquerosas da humanidade. Rompeu-lhe então do imo peito esta exclamação sentida: Amici, noctem perdidi! Melhor me fôra estar lendo o meu Euripides e Seneca, o tragico! Medéa não mata os filhos cantando, como a scelerada Lucrecia! As devassidões postas em musica, dão bem a entender que geração esta é! Brinca-se com o crime, abafando-se os gemidos da humanidade com o stridor das trompas e dos zabumbas. É um tripudio isto, amigo abbade! Quem sae do seio da natureza rude, e de repente se acha à lavareda d'estes focos das grandes cidades, é que atina com a providencial phylosophia d'estas tramoias de theatros!

Assanhou o abbade de Estevães o azedume do fidalgo, dizendo-lhe que o estado subsidiava o theatro de S. Carlos com vinte contos de réis annuaes. Calisto fez pé atraz, e exclamou:

Obstupui!… O abbade zomba!… O estado!… o meu collega disse o estado!

—Sim o thesouro… confirmou o clerigo.

—A res publica? o dinheiro da nação?

—Certamente: pois de quem hade ser o dinheiro, senão da nação?

—Pois eu e os meus constituintes estamos pagando para estas cantilenas do theatro de Lisboa!

—Vinte contos de réis.

Calisto Eloy correu a mão pela fronte humedecida de suor civico, e sentou-se nas escadas da egreja de S. Roque, por que ao espanto, colera e dôr d'alma seguiram-se-lhes caimbras nas pernas. Minutos depois, ergueu-se taciturno, despediu-se do abbade, e foi para casa.

Os alvores da primeira manhã acharam-no passeando e declamando na estreita saleta do seu aposento. Via-se-lhe no rosto a pallidez dos Fabricios.

Ás onze horas entrou na camara. Dir-se-hia que entrava Cicero a delatar a conjuração de Catilina. Deu nos olhos dos seus tres correligionarios que entre si disseram:

—Calisto vae fazer alguma interpellação de grande alcance!

Acabava de sentar-se quando um deputado do Porto se ergueu, e disse:

—Sr. presidente. Muito a meu pezar, e talvez da camara, volto de novo a expender as razões já tres vezes inutilmente expendidas sobre o dever, e justiça com que o Porto reclama um subsidio para o seu theatro lyrico. Sr. presidente…

—Peço a palavra! bradou Calisto Eloy, erguendo-se inteiriço e fulminante—Peço a palavra!

O representante do Porto expendeu a quarta edição peorada das suas idéas, sobre o dever e justiça, com que o theatro de S. João reclamava subsidio, e sentou-se.

—Tem a palavra o sr. Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, disse o presidente.

O morgado da Agra escorvou-se de rapé, trombeteou a pitada, e orou d'este theor:

—Sr. presidente. Em Grecia e Roma as festas annuaes eram solemnisadas com espectaculos. Os cidadãos timbravam em se dispenderem aporfiadamente para o maior realce das representações theatraes. Na Grecia, o archonte eponymo, a cargo de quem o estado delegava as despezas das representações, esmava o dispendio de cada uma em dois talentos, 3:250$000 réis, pouco mais ou menos da nossa moeda. Este dispendio faziam-no espontaneamente os ricos; e se era o thesouro nacional, que adiantava as despezas, a concorrencia convidava pelo preço diminutissimo do theorikon ou entrada, que correspondia ao vintem da nossa moeda. E de Pericles em diante, sr. presidente, tomou o estado á sua conta o pagamento das entradas dos pobres. Entre os romanos, eram os poderosos, como Lepido e Pompeu, e, ao diante, os imperadores, que sustentavam do seu bolsinho as representações theatraes. Os imperios opulentos, sr. presidente, os imperios, que digeriam a substancia do universo, os imperios que edificavam theatros para trinta mil espectadores, não impunham aos povos a obrigação de se privarem do necessario para abrilhantarem Athenas ou Roma, com luxuosas superfluidades. Os serranos das provindas do Lacio não eram constrangidos a pagarem as delicias dos patricios romanos. Estes, sr. presidente, quando queriam divertir-se em espectaculos theatraes, pagavam-os, e regalavam a gente pobre em vez de a obrigarem a entrar no erario com o estipendio dos actores. (Sussurro e alguns «apoiados» provocados pelo sussurro.)

Sr. presidente—continuou o orador, tomando rapé com a soffreguidão de quem teme que o raio inspirativo se arrefente—sr. presidente! Eu tenho o desgosto de ter nascido n'um paiz, em que o mestre-escola ganha cento e noventa réis por dia, e as cantarinas, segundo me dizem, ganham trinta e quarenta moedas por noite. Eu sou de um paiz, sr. presidente, em que se pede ao povo o subsidio litterario para pagar com elle as tramoias da Lucrecia Borgia. Eu sou de um paiz, pobrissimo, em que a veia da nação exangue soffre cada anno a sangria de algumas duzias de contos para sustentar comediantes, farcistas, funambulos e dansarinas impudicas! Sr. presidente, v. ex.^a sorriu-se, vejo que a camara está sorrindo, e eu ouso dizer a v. ex.^a e aos meus collegas, como o poeta mantuano: sunt lacrimae rerum. Aqui é o ponto de se carpirem por seus filhos aquelles, que se cuidam muito avantajados em civilisação a seus avós. Aqui é o ponto de nos alembrarmos dos israelitas livres, que sorriam em Jerusalem, e choravam depois escravos ás margens do rio estranho. Depois será o declamarmos com o epico:

  Em Babylonia, sobre os rios, quando
  De ti, Sião sagrada, nos lembramos,
  Alli com gran saudade nos sentamos
  O bem perdido, miseros, chorando.

Os instrumentos musicos deixando

Peço á camara que repare nos tres versos, que completam a quadra e a prophecia:

  Os instrumentos musicos deixando
  Nos estranhos salgueiros penduramos,

Hic, sr. presidente:

  Quando aos cantares que já em ti cantamos
  Nos estavam imigos incitando.

Nos cantares, sr. presidente, é que bate o ponto do meu discurso: (Hilaridade: susurro nas galerias: o presidente tange a campainha).

O orador:—Sr. presidente! que me não queiram persuadir de que estou em casa de orates! Que é isto? Que bailar d'ebrios é este em volta de Portugal moribundo? Como podem rir-se os enviados do povo, quando um enviado do povo exclama: Não tireis á nação o que ella vos não póde dar, governos! Não espremais o ubre da vacca faminta, que ordenhareis sangue! Não queiraes converter os clamores do povo em cantorias de theatro! Não vades pedir ao lavrador quebrado de trabalho os ratinhados cobres das suas economias, para regalos da capital, em quanto elle se priva do aprezigo de uma sardinha, por que não tem uma pogeia com que compral-a.

E vinte contos e trinta contos de subsidios que moralidade fomentam, que lampadas accendem nos altares da civilisação? Eu peço á camara que leia attentamente o discurso theologico do padre Ignacio de Camargo, lente no real collegio de Salamanca, ácerca dos theatros. Não menos fervorosamente peço a v. ex.^a e ás camaras que leiam as mirificas paginas do nosso oratoriano Manuel Bernardes, sobre representações theatraes. O que são comedias? Responda por mim o eminente moralista, e mais que todos vernaculissimo escriptor: «Os assumptos das comedias pela maior parte são impuros cheios de lascivos amores, de galanteios profanos, de papeis amorosos, de rondas, passeios, musicas, dadivas, visitas, solicitações torpes, finezas loucas, empenhos desatinados, chimeras, emprezas impossiveis, que as solicita ordinariamente um criado, uma mulher terceira, uma chave, um jardim, uma porta falsa, um descuido do pae, ou do irmão, ou do marido da dama, e tudo isto costuma parar em uma communicação deshonesta, em um incesto, ou em um adulterio, em que ha muitos lances torpes, louvores lisongeiros da formosura, expressões affectadas de amor, promessas de constancia, competencias de affectos, temores, ciumes, suspeitas, sustos, desesperações, e em summa, uma gentilica idolatria, ajustada pontualmente ás infames leis de Venus e Cupido, e aos torpes documentos de Ovidio no livro de Arte amandi

Vozes da galeria: Muito bem! Bravo! (Espirram as risadas de varios sujeitos. Gargalhada compacta).

O orador: Sr. presidente! Eu irei contar aos povos, que me aqui mandaram, as gargalhadas com que fui recebido no seio da representação nacional, por que ousei dizer que um paiz carregado de dividas não instaura divertimentos attentatorios dos bons costumes com o dinheiro da nação. Irei dizer aos meus constituintes que se desfaçam das arrecadas e cordões de suas mulheres e filhas, para enfeitarem as gargantas despeitoradas das Lucrecias Borgias que custam quarenta libras por noite!

Sr. presidente, nossos avós, os coevos d'el-rei D. Manuel e D. João III, tiveram theatros. Era no tempo em que as frotas da India rompiam Téjo acima carregadas de oiro. O Plauto portuguez deliciava os paços dos reis, e os pateos e tablados do povo. Quando se abriu o erario para locupletar o alto engenho de Gil Vicente? Quando foi necessario ir mundo fóra em cata de gritadores que vendem tão caro o ar dos pulmões vibrado no mechanismo da garganta?

Uma voz: Fez-se a civilisação depois.

O orador: E a pobreza tambem. A civilisação que canta e dança, em quanto tres partes do paiz choram. A civilisação dos civilisados que dizem: Coronemus nos rosis antequam marcessant[9]. A civilisação do perdulario irrisorio, que traja de luzente lemiste no exterior, e aconchêga da pelle uma camisa surrada e fetida. Magnifica civilisação! Não sei de selvagens que nol-a possam invejar, e queiram cambiar comnosco a sua selvatiqueza!

Sr. presidente gosem nas boas horas os sátrapas da capital os deleites da sua civilisação theatral. Dispendam-se, arruinem-se, doudejem com essas ficções e visualidades, que relembram factos de alto escandalo que não deviam ser vistos á luz da civilisação, que o meu illustre collega preconisa. Se gostam, não serei eu, homem de outros tempos e gostos, quem lhes impugne a racionalidade de seus passatempos. O que eu requeiro, em nome da justiça e da pobreza do paiz, é que se não sizem os povos provinciaes para manutenção dos divertimentos de Lisboa. O que eu contesto é o direito de me fazerem pagar a mim e aos meus visinhos as notas garganteadas dos ganha-pães, que não tem na sua terra officio honesto em que vivam com seriedade e utilidade commum. O que eu sobretudo lamento, sr. presidente, é o silencio desapprovador dos meus collegas. Sou eu só: serei eu só o vencido. Não importa! Victis honos![10] As pequenas coisas tratam-n'as os pequenos: Parvum parva decent. Eu abro mão das glorias promettidas ao nobre collega, que, pouco ha, pediu subsidio para o theatro do Porto. Dêem-lh'o. Desenrolem a onda aurifera do Pactolo do nosso thesouro até Braga. Quem pede subsidio para o theatro bracharense? A equidade reclama-o. O meu circulo tambem quer um theatro. Theatro e subsidio para todo o logarejo onde morar um contribuinte. Estamos em vida ficticia como paiz independente. Somos como o sapateiro, que se veste de principe no entrudo. Pois bem! Comedia geral! Seja Portugal um theatro desde Monção ao cabo da Roca! Peço uma companhia italiana para a minha terra. Os meus constituintes querem provar o sabor das delicias que tem estipendiadas em Lisboa. Se eu não posso, sr. presidente, levar-lhes a boa nova de que vão ter estradas que os liguem á sua nação, seja-me permittida a gloria de lhes levar a Lucrecia Borgia, a incestuosa e envenenadora Lucrecia, que os ha de edificar e converter á civilisação. Disse.

Algumas vozes por entre frouxos de riso: Muito bem! Bravissimo!

Eram as ironias dos sublimes engenhos, que, ás vezes, não sabem como hão de havel-as com espiritos selvaticos do desplante montezinho de Calisto de Barbuda.

VII

*Figura, vestido, e outras coisas do homem*

Assim que os personagens dos romances começam a ganhar a estima ou aversão de quem lê, vem logo ao leitor a vontade de compor a physionomia do personagem plasticamente. Se o narrador lhe dá o bosquejo, a imaginativa do leitor aperfeiçoa o que sae muito em sombra e confuso no informe debuxo do romancista. Porém, se o descuido ou proposito deixa ao alvedrio de quem lê imaginar as qualidades corporaes de um sujeito importante como Calisto Eloy, bem póde ser que a intuição engenhosa do leitor adivinhe mais depressa e ao certo a figura do homem, que se lh'a descrevessem com abundancia de relevos e rara habilidade no estampal-os na phantasia estranha.

Não devo ater-me á imaginação do leitor n'este grave caso. Calisto Eloy não é a figura que pensam. Estou a adivinhar que o inquadraram já em molde grotesco, e lhe deram a edade que costuma authorisar, mórmente no congresso dos legisladores, os desconcertos do espirito, exemplificados pelo deputado por Miranda. Dei eu azo á falsa apreciação, por não antecipar o esboço do personagem. Acudo pelos creditos do personagem.

Calisto Eloy, n'aquelle tempo, orçava por quarenta e quatro annos. Não era desageitado de sua pessoa. Tinha poucas carnes, e compleição, como dizem, afidalgada. A sensivel e dessimetrica saliencia do abdomen devia-se ao uso destemperado da carne de porco e outros alimentos intumecentes. Pés e mãos justificavam a raça que as gerações vieram adelgaçando de carnes. Tinha o nariz algum tanto estragado das invasões do rapé e torceduras do lenço de algodão vermelho. A dilatação das ventas e o escarlate das cartilagens não eram assim mesmo coisa de repulsão. Estes narizes, se não se prestam á poesia lyrica, inculcam a seriedade de seus donos, o que é melhor. Eram assim os narizes de José Liberato Freire de Carvalho e de Silvestre Pinheiro. Quasi todos os estadistas de 1820 se condecoravam com a rubidez nazal. Não sei que ha n'isto indicativo de estudo, gravidade e meditação; mas ha o quer que seja.

As restantes feições de Calisto Eloy de Silos eram regulares, a não querermos encarecer a alta e brunida fronte, que poderia servir de rotulo a um talento abalisado, se o inimigo da Lucrecia Borgia não fosse, a meu ver, capacidade eminente, viciada pela educação e tradições de familia. Excedia a estatura meã, e era direito de pernas. No tronco havia tal qual inclinação, que denunciava o arqueamento da espinha por effeito da incansavel leitura, e minguado exercicio.

O que certamente o desairava era o traje. Calisto Eloy vestia de briche da Gollegã, e dos alfaiates de Miranda. A gola e portinholas da casaca eram serias de mais para estes tempos em que um homem se veste hoje á moda, e d'aqui a um mez corre o perigo de sair ridiculamente entrajado. Não se sabe a razão por que o morgado da Agra se affeiçoara ás calças rematando em polainas abotoadas de madreperola. Vestira assim umas pantalonas em 1833, quando se matrimoniou com D. Theodora. Ou por que a esposa gostasse do feitio das calças, ou porque a moda se mantivesse, mantida pelo fidalgo, na comarca de Miranda, o certo é que desde aquella época todas as pantalonas de Calisto foram talhadas pelas primeiras, e a abotoadura sempre aproveitada.

Ora, isto em Lisboa fez uma rasoavel impressão, especialmente no espirito observador dos gaiatos. Um d'estes desbragados ousou chamar gebo ao legislador; e outro levou a gandaíce ao extremo de planear-lhe um assalto ao chapéo.

Fartas vezes o advertira o abbade de Estevães da necessidade de reformar o vestido, e entrajar-se conforme o costume. Calisto respondia que não tinha que intender em costumes, que não fossem, em lusitanissima phrase, ruins costumes. Em quanto a vestiduras, dizia que o estofo das suas era portuguez como elle, e o feitio d'ellas era o que mais se aproximava das usanças dos seus maiores, os quaes andavam mais apontados no trajar do espirito que nas galanices do corpo. Salvo o abbade, ninguem se atrevia a contrarial-o, desde que a um joven deputado, que lhe observou o archaismo do trajo perguntou se elle era o alfaiate da camara, ou se as modas tinham fiscal subsidiado no parlamento.

Aconteceu ainda que outro deputado lhe analysasse galhofeiramente as botas aguçadas no bico. Sabia Calisto Eloy que este deputado era filho de um sujeito de Espozende que começara sua vida fazendo botas. Assim, pois, que o chocarreiro subiu da analyse das botas para a das polainas da calça, teve mão d'elle, dizendo-lhe: «agora, alto ahi! Em quanto o senhor escarneceu o feitio das minhas botas, estava no seu officio e no seu direito. Das botas acima, não. É o caso de eu lhe dizer como Apelles ao sapateiro, que lhe censurava a pintura: ne sutor ultra crepidam; o que em linguagem quer dizer: «não analyse o sapateiro acima da chinela.» Os circumstantes e a victima fizeram-se da côr do nariz de Calisto.

Estas passagens, significativas do salgado espirito do provinciano, sobre-doiravam a reputação que o trazia nas boas graças da fidalguia realista.

Sabia Calisto, como profundo genealogico, que existia illustrissima parentela sua em Lisboa; porém, pesavam graves motivos para que elle não quizesse recordar parentesco remoto com tal gente. Era o grão caso que, nos tempos do mestre d'Aviz estava na côrte um Martim Annes de Barbuda, da casa de Agra de Freimas, o qual conjurára com o Mestre na façanha do assassino do conde Andeiro. Até aqui havia muito para que o honrado portuguez se desvanecesse de tal parente. Martim Annes, todavia temeroso ou arrependido depois do feito, passou-se a Leonor Telles, e com ella e sua familia se foi a Hespanha, onde morreu, desprezado e amaldiçoado dos portuguezes. Na época de D. Duarte, os descendentes de Martim voltaram ao reino, e conseguiram perdão e posse dos seus haveres confiscados para a corôa. Eis aqui a razão do odio de Calisto á raça do máo portuguez.

Estava elle, um dia, folheando a reformação das leis de 1760 por Diogo de Pina, no intento de cravejar de erudição um projecto de lei sumptuaria, quando lhe annunciaram a visita do conde do Reguengo. Calisto estremeceu, e disse de si comsigo: «Vens ver o que eram e o que são os legitimos Barbudas de Agra de Freimas… Sê bem vindo!»

Entrou o conde, e disse com alegre alvoroço:

—Venho apertar nos braços um parente, que me honra tanto com a intelligencia, quanto seus avós me honraram com a lança.

Calisto permaneceu immovel na cadeira, e, tirando os oculos de prata, disse:

—Falta saber se meus avós se honraram dos avós de v. ex.^a

—Eu sou o conde do Reguengo—-disse o outro, attonito.

—Já sei. O conde do Reguengo é o decimo sexto varão de Martim Annes de
Barbuda?

—Sou eu mesmo.

Calisto ergueu-se, montou os oculos, foi mui depausa e a passo mesurado á estante dos seus livros, e tirou um in-folio. Voltou a sentar-se, mandou sentar o conde, abriu o livro e disse:

—Esta é a chronica dos reis, escripta por Duarte Nunes de Leão, e mandada publicar por D. Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa. Abro a pagina vinte e tres, e peço ao excellentissimo conde do Reguengo que leia.

O conde recebeu entre mãos a chronica, e leu o seguinte desde o paragrapho indigitado por Calisto: «As razões que ao Mestre moviam a apressar sua ida para fóra de Portugal, era conhecer a condição da Rainha, que, além do natural das mulheres, que é serem vingativas, ella o era mais que todas; mas, como mulher de grandes espiritos, e astuta que era, onde maior odio tinha, alli mostrava mais benevolencia, pelo que o Mestre tinha por mui suspeita a mostra de amizade que lhe fazia, e se temia mais d'ella, e tanto cria que lhe tinha maior odio, quanto mais affeiçoada era ella ao conde João Fernandes, de quem elle a apartou. Ajuntava-se a isto ter ella mandado chamar a El-Rei de Castella. Pelo que, sendo ella Rainha, e tendo o favor d'El-Rei presente, não confiava o Mestre que sua vida estava segura, pois em vida d'El-Rei D. Fernando, não sendo aggravada d'elle, o fez prender e o faria matar. Além d'isto, (as seguintes palavras estavam sublinhadas na chronica e emendadas com um proh dolor! da letra de Calisto) muitos dos que se a elle chegaram o deixavam e se passavam á Rainha, como fez Vasco Porcalho, e Martim Annes de Barbuda, commendadores de sua ordem, e Garcia Peres Craveiro de Alcantara, que para elle se viera.»

O conde entregou a chronica, e disse n'um tom de abborrido e confuso:

—E então?

—É v. ex.^a da progenie d'esse Barbuda infamado na pagina eterna de
Duarte Nunes?

—Sou—respondeu ufanamente.

—Pois vá em paz, que eu não procedo d'esses Barbudas. Eu sou o decimo sexto varão de Gonçalo Pero de Barbuda, que morreu em Aljubarrota, na ala dos namorados. Gonçalo era irmão de Martim: mas, ao entrar na batalha, pediu a D. João I que lhe legitimasse um filho natural, para que, no caso d'elle perecer, os filhos do irmão trêdo lhe não manchassem o solar. Gonçalo, morreu e D. João I cumpriu a vontade do portuguez de lei.

—O que d'ahi infiro—disse sarcasticamente o conde—é que v. ex.^a procede de um filho natural.

—A mãe do filho natural era abbadessa de Vairão, da familia dos
Alvins—redarguiu triumphantemente Calisto.

—Coito damnado!—retorquiu o conde.

—Discutamos esses pontos graves—voltou serenamente o morgado da Agra, tomando rapé.—A decima segunda avó de v. ex.^a Jeronyma Talha, era judia de Cezimbra, e esteve como covilheira dos sobrinhos de um Heitor de Barbuda com quem casou. Sua tresavó enviuvou sem filhos e casou com um filho do capellão. D'este matrimonio nasceu seu avô Luiz de Almeida de Barbuda, que foi o primeiro conde do Reguengo. Reconciliemo-nos, sr. conde, em quanto ao sangue de coito damnado, se v. ex.^a quer emparelhar o filho do padre com a abbadessa de Vairão, tia da mulher de Nuno Alvares Pereira por Alvins.

O conde ergueu-se accendido em raiva, e disse:

—No que não podemos emparelhar, sr. Calisto, é na tolice. Vou-me embora, com a vergonha de ter aqui vindo.

—Não vá, acudiu Calisto Eloy, que eu é que me hei de forrar á vergonha de dizer que v. ex.^a veiu cá.

E, passando a penna de ferro na pagina da chronica, rasgou a linha que dizia Martim Annes de Barbuda.

VIII

*Faz rir o parlamento*

Andava o animo de Calisto Eloy martellado pelo desejo de pôr cobro ao luxo da gente de Lisboa, sendo grande parte n'este intento o haverem-lhe os dois pisa-verdes do parlamento mettido a riso a sua casaca de briche. Impugnavam-lhe a idéa o abbade de Estevães, e outros correligionarios cordatos, mais entrados do espirito do seculo, e convencidos da inutilidade de atravessar represas á torrente caudal da indole de cada época. O deputado de Miranda respondia que viera de sua terra a cauterisar as chagas do corpo social, e não a cobril-as de pachos e lenimentos palliativos em respeito á sensibilidade dos doentes. Rebelde ás admoestações sisudas de amigos, que lhe receavam alguma queda mortal no conceito da camara, Calisto, provocado por um debate sobre importação e direitos de objectos de luxo, pediu a palavra, e o mesmo foi alvorotar alegremente a camara, desejosa de ouvil-o.

Concedida a palavra, e feito o silencio da curiosidade na sala, ergueu-se o morgado da Agra, e orou d'este feitio:

—Sr. presidente! Os conselheiros dos antigos reis de Portugal, homens de claro juizo e sciencia bastante, cortavam os abusos do luxo com pragmaticas, quando os vassallos se desmandavam em trajos, regalos e ostentações ruinosas do individuo, e, portanto, da cidade. O senhor rei D. Sebastião, que santa memoria haja, promulgou justas e rigorosas leis sobre o uso das sedas. E, n'aquelle tempo, sr. presidente, Portugal ainda se banqueteava com a baixella d'oiro do Pegu: ainda as paredes das salas nobres estavam colgadas de gualdamecins e razes da Persia. Era o Portugal, já não robusto nem enthusiasta; mas ainda sopitado das embriagadoras delicias dos reinados de D. Manuel e D. João III.

Nas Ordenações Filippinas, liv. 5.^o t. 82, § 4.^o, e seguintes, foram incluidas as principaes leis da reformação da justiça de 27 de julho de 1582.

Lá se vê quão salutar era a vara ferrea da lei no castigo dos contumazes em proveito da communidade. (Um deputado boceja contagiosamente: outros bocejam; e o presidente de ministros adormece). Vejamos a pena dos infractores: o peão perdia o vestido defezo, e pagava da cadeia quinze cruzados; e o nobre pagava da cadeia mais quinze cruzados que o plebeu. Note a camara que as reformas liberaes não complanaram tanto a egualdade entre poderoso e fraco. Bradam por ahi os ignaros contra os privilegios e exempções da fidalguia dos tempos ominosos. Estes democratas, se acontece de cairem nas presas da justiça, gritam pelo codigo das egualdades, e então experimentam o que vae da bonita redacção da lei á execução d'ella. Recolho-me ao assumpto, sr. presidente….

Um deputado: Faz bem.

O orador: Não me lisongea o beneplacito do collega. Recolho-me ao assumpto, sr. presidente. Lastimo este luxo que vejo em Lisboa! Por toda a parte, oiro, pedrarias, sedas, veludos, pompas, vaidades! Parece que toda esta gente voltou hontem da India nas naus que trouxeram as parias do Oriente! Essas ruas estrondeiam de carroagens, calechas e berlindas, como se cada dia se estivesse commemorando a passagem do cabo tormentorio ou o descobrimento da terra de Santa Cruz, atirando ás rebalinhas os thesouros que de lá nos vem. Por entre estas soberbas carroças…

Um deputado: Carroças são de lixo.

O orador: E bem póde ser que seja lixo o que vae n'ellas… Por entre estas soberbas carroças, sr. presidente, vejo eu passar mal arrimados ás paredes, e temerosos de serem esmagados, uns homens de aspecto melancholico, e mal entrajados. N'estes cuido eu vêr D. João de Castro, que empenhou as barbas, e tem duas arvores em Cintra; Duarte Pacheco, que vae entrar no hospital; e Luiz de Camões que vem de comer as sopas dos frades de S. Domingos. Cada época tem centenares d'estas illustres victimas.

Um deputado: Vê coisas magnificas!

O orador: E tambem vejo o dedo do propheta escrevendo na parede o lemma d'aquelle devasso festim… (Pausa. O orador conserva o braço em postura sculptural, apontando á parede. O presidente accorda estremunhado, com a risada do ministro da fazenda). O que eu vejo? quer o illustre deputado saber o que eu vejo? É a industria agricola de Portugal devorada pelas fabricas do estrangeiro; é o braço do artifice nacional alugado á escravidão do Brazil, porque a patria não lhe dá fabricas; é o funccionario publico prevaricado, corrupto e ladrão, porque os ordenados lhe não abastam ao luxo em que se desbarata; é o julgador dos vicios e crimes sociaes transigindo com os criminosos ricos, para poder correr parelhas com elles em regalias; é a mulher de baixa condição prostituida, para poder realçar pelos ornatos sua belleza; é a alluvião de homens, inhabeis, que rompe contra os reposteiros das secretarias pedindo empregos, e conjurando nas revoluções se lh'os não dão. O que eu vejo, sr. presidente, são sete abysmos, e á bocca de cada um o rotulo dos sete peccados capitaes que assolaram Babylonia, Cartago, Thebas, Roma, Tyro, etc. É o luxo, sr. presidente!

Um deputado do Porto:—Peço a palavra.

O orador continuando:

—De que desconhecida lua choveu ouro sobre estes paraltas enluvados e encalamistrados que pejam os theatros, praças, e botequins de Lisboa? Foi para estes tempos que um sabio e claro varão d'outro seculo escreveu: «Desde o bico do pé até á cabeça anda um d'estes cavalheiros bizarros (ou qualquer d'estes bizarros ainda que não sejam cavalheiros) armado de vaidade e de estudos de sua compostura, que são captiveiros de espirito, corrupções dos costumes, da republica, e despezas da sua fazenda, ou talvez da fazenda que não é sua.»

Aqui é que bate o ponto: da fazenda que não é sua. Á custa de quem se vestem estes Narcisos e Adonis? Que incognitos veios de ouro exploram? Qual é sua arte, se não devo antes perguntar quaes sejam suas manhas ou ronhas? Que sabe a policia d'elles?

E eu já vi, sr. presidente, andarem as senhorias e excellencias, as pobres esfarrapadinhas, por meio d'estes peralvilhos, que saem de casa do alfayate com o fôro grande e o desaforo maior. Que desbarato e corruptela é esta dos tratamentos em Lisboa? Abandalha-se tudo para passar a rasoira por sobre um lamaçal plano? Isso é congruente; mas então tapem lá o rôto cofre das graças, que a toda hora nos está despejando corôas e veneras, cruzes e mais cruzes, cruzes onde a honra de Portugal geme cravejada! Fechem lá esses decretos de permanente carnaval, que nos trazem sempre acotovellados com mascaras, que eram hontem os nossos fornecedores de bacalhau, e hoje nos não conhecem a nós, receiosos de que os conheçamos a elles!

Sr. presidente! v. ex.^a conhece a pragmatica do Sr. D. João V, ácerca de tratamentos. Eu tenho de a ler ámanhã a um tendeiro, que me vendeu figos de comadre, por que o homem se offendeu de receber um vossemecê, que eu longanimamente lhe dei. O alvará resa assim: «Que aos viscondes e barões, aos officiaes da minha casa, e aos das casas das rainhas, e princezas d'estes reinos; aos gentis-homens das camaras dos infantes; aos filhos e filhas legitimos dos grandes, dos viscondes e barões… como tambem aos moços fidalgos… se dê o tratamento de senhoria.»

Senhoria aos ministros no estrangeiro; senhoria aos governadores das praças; reitor da universidade; senhorias ás dignidades prelaciaes e civis; sr. presidente, falta uma senhoria legal para o homem, que me vendeu os figos. Creêmos esta senhoria, para alliviarmos de escrupulos os que lh'a derem a medo. Legislemos a podridão dos tratamentos nobilitarios. Atiremos ao esterquilinio com esta moeda refece. Isto já não vale nada, não prova nada, não estrema coisa nenhuma. Latissima licença de condecorar-se a gentalha! Se algum mesteiral, uma vez, praticar feito nobre, que lhe conquiste justo galardão, havemos de honral-o chamando-lhe homem do povo, d'aquella raça de povo, que D. Diniz e D. João I amaram cordialmente.

Desviei-me algum tanto, sr. presidente. Vou chegar-me á questão, e concluir, porque a hora me não permitte delongas, nem a camara terá a benevolencia de m'as tolerar.

Invoco a attenção dos representantes do paiz para a mortal peçonha, que vae cancerando o machismo vital da nossa independencia. Rédeas ao luxo! Tranquem-se as alfandegas ás drogas estrangeiras. Carreguem-se de direitos as mercadorias, que incitam o appetite e prevertem as condições melhormente morigeradas. Vistamo-nos do que podemos colher de nossas possessões, e do estofo, que nossas fabricas podem dar. Sigam-se as leis velhas do ultimo rei da dynastia de Aviz. Coimem-se e castiguem-se os que venderem tecidos estrangeiros e os que os puzerem em obra.

Um deputado: Como redigirá o illustre deputado similhante absurdo de lei?

O orador: Como redigirei? Facilmente. Como D. João II legislou a respeito das mulas dos frades. Ora aconteceu que os frades teimaram em cavalgar mulas. Que fez então o estomagado rei? Deu sentença de morte aos ferradores, que ferrassem as mulas dos frades. E o caso foi que os desmontou.

Conclui, sr. presidente.

O presidente: Fica reservada para amanhã a palavra ao sr. dr. Liborio de Meirelles, e está fechada a sessão.

O dr. Liborio de Meirelles era o deputado portuense, que pedira a palavra, durante o discurso de Calisto Eloy.

—Que sairá d'aquelle arganaz?—perguntou o morgado de Agra ao abbade de
Estevães.

—Dizem que é moço de muita sabedoria, e que já escreveu livros.

Calisto sorriu-se e disse:

—Estou bem aviado, se elle escreveu livros!

IX

*O doutor do Porto*

O dr. Liborio de Meirelles, sujeito de trinta e dois annos, cara honesta, e posturas contemplativas, reunia os predicados que nos outros paizes ou passam despercebidos, ou são solemnisados pela irrisão publica; mas, em Portugal, taes predicados alçam o homem ao cume da escala politica, e dão-lhe escolta de absurdos propicios até onde o parvo laureado quer guindar-se.

Esta pessoa madrugou aos dezoito annos escrevendo poemas satyricos contra os titulares portuenses, não porque elle se pejasse de vel-os em sua plana, mas porque lhe fugiram d'ella. O progenitor de Liborio era um tendeiro, que entrara na estrada franca da fortuna prospera, creando de sua cabeça, para uso de gallegos e carretões madrugadores, um mixto saboroso e alcalino de licores, que ainda hoje sustentam o credito e primasia. Afóra isto, inventara o pae do dr. a aguardente de nabos.

Liborio foi menos feliz que o pae, no genero a que se dedicou. Os seus poemas viveram alguns dias afagados pela calumnia, como a belleza das collarejas lisongeada pelo rosto derrancado dos libertinos. Depois, o filho do tendeiro, graças á baixesa de sua posição social, antes de grangear o odio dos insultados, já tinha caido no desprezo d'elles.

Impellido pelo couce do pégaso, Liborio já não podia retroceder. Foi para Coimbra: fez-se examinar em latim, e foi reprovado. Desde este funesto dia de sua vida, Liborio começou a dizer que era sabio, e, por vingança dos examinadores, traduziu um poema latino com tanta claresa e fidelidade, que o poema original ficou sendo muito mais intelligivel aos ignorantes de latim, do que a versão; com que a memoria de Lucrecio fôra ultrajada.

Formou-se e doutorou-se Liborio, sem impedimento de uns rr que, alguma vez, lhe acalcanharam o orgulho. Em seguida foi visitar a Europa; e, de volta aos lares, achou-se no regaço da estupida fortuna que o beijou, na fronte, e lhe disse: «este anhelito de meus beiços côa-te fogo ao cerebro! Amo-te, porque careço de ti. Eu sou a Circe dos gregos: bestifico tudo que toco, e em ti delego o condão de radiares tua bestidade ao cerebro de quem embarrar por ti. Proponho-me transfigurar, não já em cochinos, mas em mais nobres alimarias, os regedores da coisa publica de Portugal. Tu, dilecto, vae caminho da gloria. Hoje és deputado; d'aqui a pouco serás ministro.»

De feito, Liborio estava deputado, á mesma hora em que o fidalgo da Agra de Freimas era fadado a ser um dia verberado no parlamento pelo filho do inventor da aguardente de nabos.

Calisto entrou á sala, e, digamol-o com espanto de sua fleuma, ia tranquillo e até contente, sem embargo de lhe haverem dito alguns collegas quão funesto era o contendor que a sua má sorte e imprudencia lhe deparara.

O dr. Liborio, dada a palavra, ergueu-se com ademanes não vulgares, alisou os bigodes, encravou na orbita esquerda um vidro sem grau, e disse:

—Sr. presidente, discorri cêrca d'anno por estranhas plagas. Fui-me mundo fóra com o meu bordão e concha de romeiro do progredimento social. Bebi a tragos nas enchentes de mel hybleú que desborda dos mananciaes da civilisação. Vi muito, vi tudo, que me abraseavam sedes de aprender, fomes de Ugolino que rompe seus ferros, e se defronta com lautos estendaes de loirejantes iguarias. Que deliquios de exultação me tomavam alma! como eu me sentia a tragar luz e humanidade por aquelles climas onde o supremo architecto chove inventos a frouxo e a flux! Vi muito, e vi tudo, sr. presidente. Encheu-se-me o peito de anhelos pela sorte da patria, e d'amores muito seus d'ella, como de filho que do imo das entranhas lhe quer. Volvi-me no rumo do ninho meu; e mal se enrubesceram os horisontes d'esta minha e tão nossa terra de fragrancias e idyllios, assim me coou as fibras do seio um como filtro de melancholia, que me subia aos olhos exsudando lagrimas.

(Calisto Eloy, em perigo de rebentar, ri-se. Parte da camara ciciou-lhe um sio prolongado. Calisto accommoda-se e desconfia que a maior parte da camara é tola).

O orador: É que eu, sr. presidente, muito a dentro d'alma sentia uns rebates de presagio. Locustas de excruciantissimos toxicos, que me estavam empeçonhando esperanças, enleios, arrobos e dulcissimas chimeras de ainda ver florejarem os agros da patria, estrellarem-se estes céos plumbeos e rasgarem-se os horisontes á onda fecundante d'este uberrimo torrão. Doeu-me alma, choraram-me olhos, e comprehendi a angustia virgiliana do hemestichio: pulcia linquimus arva. (Muitos apoiados.)

Pois que, sr. presidente? Cançariam maguas a quem se lhe antolhasse ter de ainda ouvir n'esta casa voz de homem, de homem nado do ventre d'este seculo, de homem que aqui entrou a verter no gasolifacio do templo do eterno Christo da eterna liberdade, a drachma ou o talento, a mialha ou o thesouro de sua dedicação, repito, sr. presidente, quem deixára de estillar bagas de pranto, ao aportar em chão portuguez com o presagio de que, alguma hora, havia de ouvir n'este sancta-sanctorum das luzes, blasphemias contra o luxo, que é a arteria, a órta do corpo industrial? Quem quizera, por tal preço, dizer ás nações cultas: «eu sou d'aquelle céo, nasci n'aquelle jardim de magas, onde Camões poetou glorias para invejas do mundo? Sou da terra dos laranjaes onde suspirou Bernardim? Sou da raça dos bravos que perpetuavam Aljubarrota, Badajoz, Valverde? (Apoiados prolongados.) Na minha terra… (quem quererá já dizer!) nasceram Gamas, nasceram Cabraes, e Castros, e Abuquerques, Nunes e Regras? Quem sr. presidente?

(Calisto pede a palavra.)

O orador: Que é o luxo? Perguntae ao selvatico das florestas invias o que é o seu hamac, e ao europeu o que é o seu almadraque de plumas, tão crato e flacido ás evoluções corporeas. Perguntae ás bellas europeas que lhes faz a grinalda de brilhantes, e ás bellas da Florida que prazer lhes insinuam os vitreos adornos de variegadas côres. Oh! o luxo! o luxo, senhores, é marco miliario de civilisação, a pomba que se volita da arca, e se vae espanejando de azas por céos e terras além, recobrada dos pavores primeiros, e saltitando de frança em frança. Oh! que rejubilos de coração para quem fadado lhe foi de cima o entender e amar, que o comprehender é amar, na phrase incisiva e galharda de Victor Hugo!

Sr. presidente! O coração da França, o encephalo, o grande nervo da França é o luxo. E eu estive na França, sr. presidente, fui lá para me reverberarem nos cristaes d'alma os lumes d'aquella perla d'Offir! Ai! a França! Quando nos entreluzem os zimborios da moderna Babylonia, «a esperança remonta-se-nos em rasgado vôo para tudo mais vasto, mais copioso, mais opulento, a espirar vida e bem para o alto, para o largo e de muita benção, a branquear-nos a casinha da serra, a florir-nos o pomar da veiga, a dar-nos canções e alegrias no artifice.» [11]

O luxo, sr. presidente, é o espantalho dos animos sandios e cainhos.

O deputado Calisto: Seja pelo amor de Deus!

O orador: Pois seja, e muito que lhe preste ao collega, que mister se lhe faz perdão de Deus pelas blasphemias economicas que ejaculou, sem dar de olhos na civilisaçao, matrona prestimosa, que toda se desentranha em blandicias e florinhas de viço e olor para opulentos e desremediados.

O deputado Calisto: Isso que diz em vernaculo?

O orador: Que me não falle á mão, se lhe sobranceio o intellecto. Affigura-se-me, sr. presidente, que tenho pela frente sombra, e sombra de que não ha temermo-n'os. Não sei, á bofé, com quem me esgrimo. Propugnar por artes, pôr peito a defender industrias, ruir os cancêlos das fabricas, bafejar incentivos á imaginativa do artifice, emfim e derradeiramente, encarecer a utilidade do luxo, isto me está assetteando o animo temeroso de desfechar injuria ao progresso, á idéa, ao fiat, á humanidade! Para que me estou aqui afadigando e derramando, sr. presidente se só mumias podem sair-me com esgares, de encontro ao civilisador principio? (Muitos apoiados.)

Corre-me obrigação de silencio. Já de contricto me recolho, e da offensa, á luz me penitencío; que eu me estive a espancar trevas que, em que pese a pávidos agoireiros, já não hão de espessar-se em derredor do sol esplendorosissimo.

E, pois, antevejo que não ha mais dizer, sem entibiar-me a nota de repetições, aqui ponho fecho.[12]

O orador foi comprimentado.

O presidente: Tem a palavra o nobre deputado Calisto Eloy de Silos de
Benevides de Barbuda.

—Sr. presidente!—disse Calisto—Eu entendi quasi nada, porque o sr. deputado dr. Liborio não fallou portuguez de gente (riso nas galerias.) As laranjas, espremidas de mais, dão sumo azedo, que corta a lingua. O sr. deputado fez do seu idioma laranja azeda. Se a linguagem portugueza fosse aquillo que eu acabo de ouvir, devia de estar no vocabulario da lingua bunda. Parece me que os obreiros da torre de Babel, quando Deus os puniu do atrevimento impio, fallaram d'aquelle feitio! (Ordem! ordem!)

O orador: Ordem, srs. deputados, peço eu para a lingua portugueza! Peço-a em nome dos illustres finados Luiz de Sousa, Barros, Couto, e quantos, no dia do juizo, se hão de filar á perna do sr. dr. Liborio.

O presidente: Peço ao illustre deputado que se abstenha de usar phrases não parlamentares.

O orador: Tomo a liberdade de perguntar a v. ex.^a se as locuções repolhudas do illustre collega são parlamentares; e, se o são, peço ainda a mercê de se me dizer onde se estudam aquellas farfalhices. (Vozes: Ordem! ordem!)

O orador: Quando aquelle senhor me chamou sandio, não foi violada a ordem? (Apoiados). Ora pois: eu não quero desordens. Vou pacificamente responder ao sr. deputado, como souber e podér. Estou a desconfiar que a minha linguagem secca e desornada raspará nos ouvidos da camara, que ainda agora se deleitou com a rethorica florida do sr. deputado do Porto. Sou homem das serras. Creei-me por lá no tracto facil e chão dos velhos escriptores: aprendi coisa de nada, ou pouquissimo. A mim, todavia, me quer parecer que o fallar gente palavras do uso commum é coisa util para nos entendermos todos aqui, e para que o paiz nos entenda. Do menospreço d'esta utilidade resulta não poder eu aperceber-me de razões para cabalmente responder aos argumentos do discreteador mancebo. Percebi, a longes, pouquinhas idéas; porém, querendo Deus, hei de, se me ajudar a paciencia com que estudei o idioma de Thucydides, decifrar os dizeres de s. ex.^a no «Diario das Camaras.» (Riso).

O illustre deputado quer que o luxo indique a riqueza das nações. Isto é o que eu entendi do seu arrasoamento. Em França viu s. ex.^a mosquitos por cordas. Pois, sr. presidente, eu li que, em França, onde o luxo é maior, ahi é menor, em proporção, o numero dos individuos ricos (Vozes: apoiado!) Este caso, se é verdadeiro, corta pela haste as flores todas dos jardins oratorios do sr. dr. Liborio. Que mais disse s. ex.^a? Faça-me a graça de m'o achanar na linguagem caseira com que o diria á sua familia em pratica como do lar, consoante phrase a D. Francisco Manuel de Mello na Carta de Guia.

O dr. Liborio de Meirelles: Não velei as armas do raciocinio para me ir á liça da absurdeza. Melhores fadas me fadaram; e não me estou aqui sabbatinando como em pleitos de bancos escolares. (Vozes: Muito bem.)

O orador: Muito bem o que?… Vae-me parecendo historia isto, sr. presidente!… Eu queria-me entender com o sr. deputado, afim de tirarmos algum proveito d'este debate; mas s. ex.^a, pelos modos por me vêr assim minguado de affeites poeticos, acoima-me de absurdidade, e despreza-me!… Valha-me Deus! Se o sr. dr. Liborio me não lançasse da sua presença com tamanho desamor, havia de perguntar-lhe por que foram Athenas e Roma bem morigeradas quando pobres, e corrompidas quando ricas e luxuosas? Havia de perguntar-lhe que artes e sciencias progrediram entre os sybaritas e lydios, povos que a mais elevado gráo de luxo subiram? Havia da perguntar-lhe por que foi que os persas acaudilhados por Ciro cortados de vida aspera e privada do necessario, subjugaram as nações opulentas? Havia de perguntar-lhe porque foram os persas, logo que se deram ás delicias do luxo, vencidos pelos lacedemonios?

A suprema verdade, sr. presidente, a verdade que os arrebiques da rhetorica não seduzem, é que á medida que os imperios antigos se locupletavam, o luxo ia de foz em fóra, e os costumes a destragarem-se gradualmente, e o pulso da independencia a quebrantar-se, e os cimentos das nações a estremecerem. Depois, era o cair do Egypto, da Persia, da Grecia e Roma.

Até aqui a historia, sr. presidente; d'aqui em diante o sr. dr. Liborio de Meirelles, o moço poeta, que foi a França, e achou desmentidos Xenophonte e Thucidydes, Livio e Tacito, Plutarcho e Flavio.

O sr. dr., a meu juizo, é sujeito de grande imaginativa. Bonita coisa é idear fabulações em academia de poetas; porém, n'esta casa, onde a nação nos manda depurar a verdade dos fallaciosos ornatos com que a mentira se arrea, mister é que sejamos sinceros. Já o insigne author dos Apologos dialogaes disse que a imaginação era curral do conselho, onde, por não ter portas, todo o animal tinha entrada. Bom é tambem que os moços muito imaginativos senão pavoneem até ao philaucioso sobrecenho de passarem alvará de sandeus á gente que raciocina mais porque imagina menos. É permittido aos versistas poetarem em prosa; mas as liberdades poeticas não ajustam bem nos debates circumspectos da res publica.

Vou concluir, sr. presidente, votando contra a proposta do illustre collega, que propoz a reducção dos direitos aduaneiros das sedas, e pedindo ao sr. dr. Liborio, que, se outra vez me der a honra de imbicar com este pobre homem lá das montanhas da raia, haja por bem de se expressar em linguagem correntia. Não sou homem de salvas e rodeios: digo as coisas á moda velha. Quero-me portuguez com os do sujeito, verbo e caso no seu competente logar. E, se assim não fôr, ir-me-hei com aquellas palavras que ouviu Arsenio: Fuje, quíesce, et tace; «foge, socega, e não falles.»

Sentou-se Calisto Eloy. Alguns deputados anciãos do partido liberal foram cumprimental-o; e outros, que se pejaram de imitar os velhos, encararam no rustico provinciano com cortezia e tal qual veneração. Calisto Eloy ganhára consideração na camara e no paiz.

Os deputados governamentaes acercaram-se d'elle, convidando-o em termos delicados a aceitar, no banquete do progresso, o logar que a sua intelligencia reclamava. Os deputados opposicionistas conjuravam-no a não levantar mão de sobre os projectos depredadores com que a facção governamental andava cavando novas voragens ao paiz.

O morgado da Agra respondia que estava descontente de gregos e troyanos, e acrescentava:

—Não sei, por ora, de qual dos lados da camara se falla peor a lingua patria. Tenho ouvido os quinhentistas á la moda, e os galliparlas. Todos ressabem á hervilhaca; uns estão gafados de francezias, outros tresandam nos seus dizeres o bafio que os bons seiscentistas regeitaram. Carecem de cunho nacional estes homens. O máo portuguez principia a sel-o, desde que mareia a pureza de sua lingua. Dêem-me portuguezes de lingua, e eu me bandearei com elles, como com portuguezes de coração. Com aquelle dr. Liborio do Porto nem para o céo. Tenho medo que Deus o não entenda, e nos ponha ambos fóra de cambulhada.

X

*O coração do homem*

Entremos no coração de Calisto Eloy.

Cuidava o leitor que não tinhamos que entender com aquella entranha do homem? Estou que a julgaram inviolavel ás suspeitas da historia em acto de tanto alcance na biographia d'este personagem!

Já se disse que orçava pelos quarenta e quatro o morgado. N'aquella edade, se ha fibras virginaes no coração, eram as d'elle.

Casára com sua prima Theodora, menina estimabilissima por virtudes, mas mais feia do que pede a razão que seja uma senhora honesta. A noiva deixou-se ir pela mão do pae á casa do esposo. Não ia alegre nem triste. Tanto se lhe dava casar com o primo Calisto como com o primo Leonardo. Logo que o pae lhe consentiu que levasse para Caçarelhos umas tres duzias de gallinhas e parrecos, que ella creara, não lhe ficou na casa natal coisa para sérias saudades.

Encontrou marido ao pintar. Coraram ambos ao mesmo tempo, quando o bulicio das festas nupciaes se aquietou e a mãe do noivo lhes disse: «Meninos, cada môcho a seu soito» phrase amenissima que em pouco e depressa exprime a muita poesia de toda aquella família.

Calisto, ao outro dia da primeira noite de esposo, por volta das sete horas da manhã, já estava a ler a Viagem á terra santa, por frei Pantaleão de Aveiro; e, á mesma hora a noiva andava de pé sobre um catre de pau preto rendilhado, com uma bassoira de giesta, a limpar teias de aranha do tecto.

Almoçaram, e foram visitar o pae e o sogro, em cuja casa jantaram. Durante a visita, a sr.^a D. Theodora esteve a ensinar uma criada a engommar as camisas do pae; e Calisto, como descobrisse n'um armario um tratado de alveitaria de 1610, levou-o de um folego, e tirou apontamentos, visto que o sogro se tratava por aquelle tratado, diminuindo as doses das drogas. Não sei quem lhe dissera a elle que o sr. D. João IV, nas doenças graves, se medicava com um veterinario.

Ora, d'este começo de amores infiram v. ex.^as o restante d'aquella doce vida!

Theodora tomou a cargo os cuidados domesticos de sua sogra, e muitos do tracto com caseiros, vendo que o marido, tirante as horas de comer, não saia da livraria, onde a mulher, como amavel sombra, o ia visitar, e olhando com desdem sobre os infolios, dizia-lhe:

—Ó homem, ainda não acabaste de ler estes missaes?

—Isto não são missaes, rapariga. Não estejas a profanar os meus classicos.

A esposa não entendia isto, e pedia-lhe que lhe lêsse pela vigesima vez as Sete partidas de D. Pedro. E o bom marido lia-lhe pela vigesima vez as Sete partidas, porque estavam escriptas em portuguez de lei. Vida para invejar! paraiso em que Deus se esqueceu de mandar o anjo do montante de fogo vedar a entrada!

Discorreram annos, sem que o morgado tivesse de perguntar á sua consciencia a explicação do minimo alvoroto de sangue na presença de mulher estranha. Andava por feiras, quando a mulher o mandava comprar utensilios agricolas; pernoitava por diversas casas da provincia, famosas pela belleza das donas, e contava-lhes casos mirificos de suas leituras, se acontecia não achar livro velho, que lhe deliciasse o serão.

Da maior, e talvez unica dôr litteraria da sua vida, fui eu causa. Calisto, pernoitando em não sei que solar de damas dadas á leitura amena, pediu algum livro, e deram-lhe um romance meu. Consta-me que deixou o volume com as margens annotadas de gallicismos e nodoas de toda a casta. Imaginem quantas punhaladas eu dei n'aquelle lusitanissimo coração!

Afóra este incidente, as boninas da vida campestre floriam immarcessiveis para o homem de bem, raro exemplo de compostura; salvo quando lhe beliscavam a estirpe que, então, como já disse, retaliava descaridosamente, e revelava a quebra contingente de todo homem imperfeito de sua natureza. Isto creou-lhe inimigos; mas detrahidores de sua fidelidade marital nenhum tentou infamar-lhe o bom nome. Das virtudes conjugaes de Theodora até me treme a penna sómente de escrever isto para encarecel-as! Duvide-se da pureza das onze mil virgens, antes de maliciar suspeitas d'aquella matrona, em tudo romana, do puro estofo das Cornelias, Poncias e Arrias.

Com esta pureza de vida entrara em Lisboa o morgado da Agra.

Ahi está um como Daniel á beira da fornalha. Ahi está o homem-anjo! Quarenta e quatro annos immaculados! Um coração que, se algumas imagens tem gravadas, são as dos frontispicios apparatosos de alguma edição princeps, d'algum Elsevir annotado por Grenobio.

XI

*Santas ousadias!*

Natural coisa é que este sujeito, intangivel ás caricias do amor, seja severo e intolerante com as fragilidades do coração.

Aconteceu-lhe frequentar, uma noite por outra, a sala d'um antigo desembargador do paço, que era pae de duas galantes senhoras, uma casada e outra solteira.

Soou aos ouvidos de Calisto Eloy, que uma das illustres damas innodoava sua gentileza e prosapia, violando os deveres de esposa. Fez-lhe sangrar o coração honrado tão funesta nova, e communicou elle o seu espanto e dôr ao collega abbade. O abbade desfechou-lhe na cara uma estrallada de riso civilisado, e disse-lhe:

—Ora o morgado tem coisas! V. ex.^a parece que caiu, ha pouco, de algum planeta! Olhe que Lisboa não é Miranda, meu amigo. Se o morgado tem de espantar-se por cada caso d'estes que chegar ao seu conhecimento, a sua vida na capital tem de ser um permanente ponto de admiração!… Deixe correr o mundo…

—Que remedio!—atalhou o morgado—mas o que eu farei é sacudir o pó dos meus botins á porta das casas, cuja desordem de costumes me escandalisa. Não voltarei a casa do desembargador Sarmento.

—Faça v. ex.^a o que quizer; porém, consinta que eu reprove similhante procedimento, por duas razões; seja a primeira, que o desembargador e a familia receberam o sr. morgado com cordeal affecto; segunda razão, é que v. ex.^a já não está em edade de perder a sua virtude seduzida por máos exemplos. Faça como eu: lamente as miserias dos homens, e viva com elles, sem participar-lhes dos defeitos; porque, meu nobre amigo, se a gente vae a regeitar as relações das familias, justa ou injustamente abocanhadas pela maledicencia, a poucos passos não temos quem nos receba.

—Eu tenho os meus livros, accudiu Calisto.

—E os seus livros, as suas chronicas, os seus classicos gregos e latinos não lhe contam enormes desmoralisações? V. ex.^a, que leu a vida romana em Tacito, e Apuleio, e no Festim de Trimalicão de Petronio…

—De qual Petronio?—interrompeu o morgado. Foram doze os Petronios em
Roma, e todos escreveram com mais ou menos despejo.

—Pois melhor. Se v. ex.^a leu doze, eu li um, que era o ecónomo, ou arbitro dos prazeres de Nero, e este me bastou para edificação do meu espirito. Pois se o meu amigo póde ler sem horror as infamias das saturnaes, e os mysterios da deusa Bona, e quejandas protervias dos antigos tempos, como póde espantar-se do que ouve dizer da filha do desembargador Sarmento, que a final de contas, póde estar innocente do crime que lhe assacam?! Não a vê v. ex.^a filha cuidadosa, mãe estremecida, e esposa honesta na apparencia? Já a ouviu defender theses da moral do adulterio? Que lhe importa a v. ex.^a o que se passa lá na vida privada da mulher?

Calisto deteve-se breves instantes com a resposta, e disse:

—Acho-lhe razão, sr. abbade, não tanto pelo que disse, como pelo que não disse. As pessoas de vida impolluta devem acercar-se d'aquellas que prevaricam. Lá vem uma hora em que o conselho é taboa salvadora… Quem sabe se eu terei predestinação de desviar aquella senhora do caminho máo!?…

—É verdade—assentiu o abbade;—mas é justo e urbano que v. ex.^a não vá interrogal-a sobre coisas do fôro intimo.

—Não me ensine as leis da cortezia, abbade—replicou algum tanto affrontado o fidalgo da Agra.—Eu não me fiz em alcatifas de salas; mas aprendi a policia e trato humano nas lições de galãs afamados como D. Francisco Manuel. E, demais d'isso, meu caro sr. abbade, não me peça Deus conta de minha soberba, se lhe eu digo que o bom sangue como que já tem congeniaes e infusas em si as regras da urbanidade cortezã. Não se fazem mister directorios de civilidade a sujeitos, que herdam com a fidalguia a indole de avoengos palacianos, feitos nas côrtes, e affeitos a sentarem-se na ourella dos thronos.

—Não ponho duvida n'isso;—obtemperou o abbade, e accrescentou com malicia e bem rebuçada ironia—alguns fidalgos muito mal-creados que tenho topado, em quanto a mim, não lhes faltou a herança de polidez; foram elles que propriamente derrancaram sua indole, até se fazerem plebe grosseira e ignobil.

—Acertadamente—disse o morgado.

—Eu ensinar cortezia a v. ex.^a!—insistiu o deputado bracharense.—A minha observação tendia a moderar os impulsos descomedidos da sua justa censura aos máos costumes da sr.^a D. Catharina Sarmento. Noli esse multum justum, diz o Ecclesiastico.[13] Bem fidalgos e policiados eram S. Domingos de Gusmão, S. Francisco de Borgia, e Santo Ignacio de Loyola, todavia, bem sabe v. ex.^a com que exempção e santa descortezia elles invectivavam as corruptelas da mais elevada sociedade, em rosto dos proprios delinquentes.

—Mas eu não sou apostolo—acudiu Calisto.—Conheço que já não vim a tempo, nem a missão me condecora.

Assim mesmo, sem desaire das pessoas, hei de pôr a pontaria aos vicios, e, se poder, influirei pensamentos de emenda ao animo dos viciosos.

N'uma das seguintes noites, foi Calisto ao chá do desembargador Sarmento. Achou mais abatido e melancholico o antigo magistrado. Estiveram conversando á puridade sobre o desgosto que revia á face do hospedeiro ancião. Crê-se que Sarmento lhe dissera que sua filha Catharina, depois de haver casado por paixão, com cedo se desaviera da vontade do marido, e este da estima d'ella; de modo que raro dia deixavam de altercar e renhir por motivos insignificantes. D'isto resultava a tristeza constante do velho, acrescentada agora com ter-lhe dito alguem que sua filha andava infamada pela voz publica.

—Ferro penetrante—exclamou o desembargador—que me traspassou este corpo já fraco, e pendido á campa.

Calisto apertou-o nos braços e clamou:

—Amigo e senhor meu! A desgraça não derrete o aço dos peitos fortes. Tenha-se v. ex.^a arrimado ao bordão de sua honra, que não hão de adversidades derribal-o. Aqui me ponho de seu lado, com a fortaleza da amizade, para, como filho de v. ex.^a e irmão da sr.^a D. Catharina, minha senhora, tirar a limpo da sugidade da calumnia, se o é, a virtude d'ella, e o contentamento de v. ex.^a. Aqui vem de molde o repetir as palavras affectivas do meu dilecto Heitor Pinto, no tractado da Tribulação: «O que eu queria é que a boceta de vossas angustias estivesse depositada em minhas entranhas, e que os meus bens fossem vossos, e os vossos males fossem meus.»

Ouvido isto, o desembargador commoveu-se até ás lagrimas, e disse com mui entranhado affecto:

Quem me dera assim um marido para a minha Adelaide, que n'esta casa reinaria o socego da virtude! Agora vejo que lá nos escondrijos dos mattos da provincia se refugiaram as reliquias da honra portugueza! Ditosa senhora a que avassallou tão honesta alma!

D'ahi a pouco, o morgado da Agra, buscando azo de estar apartado com Catharina a um canto da sala, e praticando sobre livros perigosos, rompeu elle n'esta pergunta:

—A sr.^a D. Catharina já leu Homero?

—É romance? disse ella.

—Romance ou fabulado de alta moral lhe havemos de chamar; não já romances d'uns que, de oitiva o sei, por ahi impestam a sociedade. Na Iliada de Homero achei dois pares de casados; um é Paris, que se matrimoniou com Helena; o outro é Ulysses, que se casou com Peneloppe. Os primeiros, cubiçosos e voluptuarios, cobriram a Grecia de calamidades; os segundos, prudentes e discretos, foram o modelo do thalamo ditoso.

Fez Calisto uma longa pausa, e proseguiu, interpollando os dizeres com algumas pitadas, que solemnisavam a gravidade das fallas.

—Ninguem devera casar sem muito lêr e sem applaudir aquelles preceitos do casamento, escriptos pelo eminentissimo Plutarcho.

—Não conheço, disse a dama… Li Le mariage, de Balzac.

—Não sei quem é: deve ser francez.

—Pois não leu?

—Eu não leio francez. Não me chega o meu tempo para tirar aguas sujas de poços infectos. Plutarcho é oraculo n'esta materia. Um pensamento lhe li que me chegou á medula, e que ainda agora em Lisboa me saiu explicado. Diz elle algures. «Não podem as mulheres convencer-se de que Pasiphae, bem que esposa d'um rei, se enamorasse apaixonadamente de um touro; ao passo que estão vendo, sem espanto, mulheres que menospresam maridos benemeritos e honrados, e se dedicam a homens bestificados pela libertinagem.» Asseveram-me os pilotos peritos n'estes mares verdes e aparcellados da capital, que ha d'isto muito por aqui.

—É possivel… balbuciou D. Catharina.

—E porque não ha de ser, se algumas senhoras conheço eu casadas, tornou Calisto, que andam com os braços nus fóra das alcovas do seu leito nupcial!…

—E isso que tem?—atalhou a dama—é a moda…

—A moda, que franqueia as portas aos ruins desejos, ás cogitações viciosas, aos afrontamentos, ao pudor. Aquella filha de Pytagoras, a quem encareceram o feitio do braço, respondeu: «Bello é; mas não para ser visto». Na Andromacha de Euripedes, Hermion exclama: «Infelicitei-me, consentindo que de mim se achegassem mulheres preversas.» Quantas damas de hoje em dia poderão dizer, e na consciencia o estarão dizendo: Consenti, para minha desgraça, que preversos homens convisinhassem de mim!…

—Mas onde quer v. ex.^a chegar com o seu discurso? interrompeu a filha do desembargador.

—Á razão da sr.^a D. Catharina, minha senhora.

—Como assim?! quem o auctorisa…

—As lagrimas de seu ex.^{mo} pae.

—Veja lá, sr. Barbuda, que se não equivocasse com as lagrimas de meu pae… A minha reputação e costumes repellem similhantes allusões, se o são.

—Peores do que estas, sr.^a D. Catharina, minha senhora, peores referencias do que estas lhe faz a voz do mundo.

—A mim?

—Á fé! que sim! Dou-lhe em penhor da verdade a minha honra.

—Mas—interrogou irada e rubra de despeito a dama—que ousadia a de v. ex.^a fallar assim a uma senhora, que apenas conhece!… Olhe que essas liberdades de provincia não se usam cá em Lisboa.

—Não se moleste assim, minha senhora—tornou Calisto.—Respeito tanto v. ex.^a quanto estimo seu venerando pae. O atrevimento é grande, maior será a magnanimidade de v. ex.^a em perdoar-m'o. Lagrimas de velho e de pae dão estranho ousio. Desgraças sobranceiras incutem alentos destemidos nas mais fracas almas. No proposito de conjurar a tormenta, que se encapella e ameaça de sossobrar a felicidade de uma familia illustre, é que eu, sr.^a D. Catharina, me affoitei a ser o advogado espontaneo do bem de todos.

—Agradeço o zelo; mas agradecera-lhe mais a discrição—disse D.
Catharina; e, retirando-se, fez uma ceremoniosa mesura a Calisto.

Não voltou mais á sala a dama. O desembargador não desfitava olhos de
Calisto Eloy, que se assentou meditativo no mais assombrado do recinto.

Erguera-se do voltarete o abbade de Estevães, e abeirou-se d'elle, dizendo:

—Desconfiei que v. ex.^a estava missionando a dama… Amolleceu-a?

Calisto ergueu a fronte, enclavinhou os dedos das mãos sobre o peito consternado, e murmurou:

—Agora acabo de entender o meu padre Manuel Bernardes.

E repetiu em tom cavo:

«…Converto minha attenção, e temor a ti ó Lisboa, Lisboa, considerando o que em ti passa. Medo me fazem tuas corrupções tão graves e tão devassas, que já o lançar-t'as em rosto, não seja nos zelosos falta de prudencia, senão obra de magua.»

Depois, suspirou, e cheirou rapé.

XII

*O anjo custodio*

Santa audacia! Bizarra indole de antigo cavalleiro, que abriga no peito a generosidade com que os heroes dos Lobeiras, Barros, e Moraes se lançavam ás aventurosas lides, no intento de corrigir vicios e indireitar as tortuosidades da humana maldade!

Não desanimou Calisto Eloy, tão desabridamente rebatido por D. Catharina
Sarmento.

Averiguou quem fosse o galan d'aquella cega dama, e facilmente lh'o nomearam. Era um gentil moço, ouzeiro e vezeiro de similhantes baldas, enfatuado d'ellas, e respondendo por si com sabre ou florete, quando gente intromettida em vidas alheias lhe fallava á mão.

O informador do morgado esplanou diffusamente as qualidades do sujeito, relatando as victimas, e os acutilados na defeza d'ellas.

Occorreu á memoria de Calisto aquella apostolica e heroica intrepidez de fr. Bartholomeu dos Martyres, quando foi a defrontar-se com um criminoso e façanhudo balio, que promettia engulir o arcebispo de Braga, e o collegio dos cardeaes com o proprio papa, se necessario fosse! Grande coisa é ter lido os bons classicos, se desejamos saber a lingua portugueza, e crear alentos para atacar velhacos!

Ahi vae o esforçado Calisto Eloy de Silos em demanda de D. Bruno de
Mascarenhas. Um escudeiro annuncia ao fidalgo um ratazana.

—Quem é um ratazana?—pergunta D. Bruno.

É um sujeitorio, diz o criado, vestido ratonamente, e não diz o nome, porque v. ex.^a o não conhece.

—Que quer elle?

—Fallar com v. ex.^a

Vae perguntar-lhe quem é, d'onde vem, e que quer.

Interrogou o criado com máo semblante o morgado.

Calisto escreveu n'uma pagina rasgada da carteira, e perguntou ao criado se sabia lêr. Disse que não o interrogado.

—Pois entrega esse papel a s. ex.^a

D. Bruno leu, meditou algum espaço, e perguntou:

—Sabes se em casa do desembargador Sarmento ha algum criado chamado
Custodio?

—Não, senhor, não havia até hontem; só se entrou hoje.

—Esse homem que ahi está dá ares de criado?

—Não, senhor: é assim um jarreta vestido á antiga, com uma gravata que parece um colete.

—Manda-o entrar para aqui.

D. Bruno releu a linha escripta a lapis, e disse entre si:

—Que Custodio é este!?

N'isto, assomou Calisto Eloy.

Bruno de Mascarenhas adiantou-se a recebel-o, e disse-lhe maravilhado.

—Eu já tive a honra de comprimentar v. ex.^a no escriptorio da Nação.
V. ex.^a é o sr. Calisto Eloy de Barbuda.

—Sou, e agora me recordo que já tive o prazer de o encontrar…

—Mas v. ex.^a n'este bilhete diz que é Custodio!—tornou Bruno.

—Custodio, que é sinonymo de anjo-da-guarda, ou anjo-custodio da ex.^{ma} sr.^a D. Catharina Sarmento.

Abriu o moço a bôcca, e disse:

—Ah… agora é que eu entendi… Mas… queira v. ex.^a sentar-se… Eu não sei que allusão possa ser esta… que… a respeito de…

Calisto sentou-se, estendeu o braço direito com a mão aberta, e atalhou o enleio de Bruno, dizendo solemnemente:

—Vou fallar.

E, apoz curta pausa, relanceou discretamente os olhos á porta, como quem receia ser ouvido.

—Póde v. ex.^a fallar, que eu fecho a porta, disse o confuso
Mascarenhas.

—O sr. Bruno de Mascarenhas—proseguiu o morgado—é solteiro. Cedo ou tarde ha de ser casado, por que é varão de preclarissima linhagem, e duas forças invenciveis hão de compellil-o a propagar-se: o sentimento congenito da especie, e a gloria, que vangloria não é, da prosecução da raça.

(Este exordio abrupto invencilhou os espiritos de D. Bruno, os quaes eram pouco entendidos em estylo garrafal.)

Façamos de conta—proseguiu Calisto—que v. ex.^a é hoje, como será, volvidos mezes ou annos, casado com uma dama egual em sangue, de honrada fama, acatada do conceito geral, dama emfim, na qual v. ex.^a empregou suas complacencias todas. Á boa dita de esposo succede-lhe a prosperidade de pae. Vê v. ex.^a em redor de si umas alegres creancinhas, que o beijam e o furtam com graciosas blandicias ás graves cogitações dos negocios, e aos aborrimentos que salteam as existencias mais descuidadas e desprendidas. A mãe dos filhinhos de v. ex.^a é o cofre de oiro: as creanças são as joias inestimaveis que v. ex.^a lá encontrou e lá encerra.

A mãe é a flôr, os filhos são o fructo. V. ex.^a arde de amores d'elles e d'ella. Por que a sua familia é não sómente a sua alegria domestica, senão que lhe é fóra de casa um pregão da honestidade e honra que vae n'ella.

De repente, quando v. ex.^a está meditando nos jubilos da velhice, com seus filhos já homens, com sua esposa laureada pelas cans sem macula, de repente, digo, ha um amigo em lagrimas, ou um inimigo secretamente satisfeito, que, lhe diz: «Tua mulher deshonra-te; essas creanças, que tu affagas, e para quem estás multiplicando os teus haveres, podem não ser teus filhos, por que tua mulher prevaricou.» Pergunto eu ao ex.^{mo} Bruno de Mascarenhas: a sua agonia, n'essa hora de atroz revelação, como hão de expressal-a os que a não sentiram ainda?

—Não sei…—respondeu Bruno—Só, no caso de se darem as circumstancias que v. ex.^a diz, é que se póde responder.

—Todavia, o seu entendimento e coração, já antes da experiencia, podem antever qual deva ser a agonia do marido deshonrado pela ignominia de sua mulher…

—Sim…

—Até aqui a hypothese em v. ex.^a: agora o exemplo em Duarte de Malafaya, marido de D. Catharina Sarmento. Duarte era rico, e dos mais fidalgos; por excesso de amor casou com D. Catharina, filha de um nobilissimo cavalheiro, porém magistrado empobrecido pelos desconcertos da politica. Duarte entrou n'aquella casa, restaurou a decencia antiga, e encostou ao seio as cans do magistrado octogenario, assegurando-lhe o socego e contentamentos dos annos ultimos da vida.

Decorridos cinco annos, Duarte tem cinco filhos. São anjos que descem a povoar o paraiso d'aquella ditosa familia. Brincam á volta de sua mãe, e como que lhe estão dando os alegres emboras da felicidade que elle está gosando, e lhe augura a elles.

É n'este ensejo que o inferno se abre aos pés d'esta familia honrada e ditosa. Surge das tenebrosas agonias um homem que despedaça ás mãos os laços humanos e divinos da santa união do velho, da filha, do genro, e dos netos. Ora, o homem que os assaltou no seu eden, foi o sr. D. Bruno de Mascarenhas.

—Eu!…—exclamou o moço com artificial espanto.

—V. ex.^a. Vejo-o admirado, não sei se da minha affoitesa, se da responsabilidade que lhe pesa, sr. D. Bruno!

—Mas que houve em casa do Sarmento?—perguntou alvoroçado o fidalgo.

—O que eu antes de hontem vi foi a face do ancião lavada de lagrimas. O que eu vi hontem á noite foi Duarte de Malafaya fitar os olhos nas creancinhas, e escondel-os para que o não vissem chorar. O que hoje verei em casa do desembargador Sarmento, se v. ex.^a o não presagia… Não temos tempo para conjecturas: a chaga deve ser cauterisada já, para não ser gangrena ámanhã. Quer v. ex.^a ajudar-me a conjurar a nuvem negra que vae rasgar-se em torrentes de desgraças?

D. Bruno reflectiu dois segundos, como se houvesse pejo de responder, no primeiro instante:

—Da melhor vontade. Eu desisto d'estas relações, para evitar desgostos serios á sr.^a D. Catharina.

—Falla-me um honrado portuguez, que tem o appellido dos Mascarenhas? perguntou com solemnidade o Barbuda.

—Juro pela honra de meus avós.

—Que vae fazer v. ex.^a?—tornou Calisto.

—Antecipo um passeio que mais tarde tencionava fazer á Europa. Parto no paquete de ámanhã para França.

—Sem dizer, nem fazer saber á sr.^a D. Catharina que esteve aqui um amigo do desembargador Sarmento…

—Nada direi sr. Barbuda.

—Aperto-lhe e beijo esta mão. Agradeço-lh'o em nome dos cinco filhos de
Duarte de Malafaya, ou dos cinco anjos que lhe chamam pae.

—E saíu com os olhos marejados.

* * * * *

D. Bruno cumpriu a promessa com tanta pontualidade como o faria um sujeito de menos fidalgos brios, se lhe dissessem: «Afasta-te, se não queres o encargo de amparar uma familia, cujo esteio estás quebrando.»

É coisa que pouquissimo custa, em condições analogas, o ser pontual. Ás vezes, até se vinga fama de prudente e ajuizado.

Como quer que fosse Calisto Eloy foi d'alli em direitura á poltrona do magistrado, e disse-lhe:

—Cobre animo, amigo e senhor meu. O inimigo levantou o cerco. A maledicencia descaridosa, se não mudar de juizo, esquece-se.

Seguiu-se a narrativa do acontecido, e as alegrias do ancião interpolladas de agradecidas lagrimas.

XIII

*Regeneração*

Ó coração sensivel! ó peccadora Catharina, que vaes agora expiar o teu crime nas agonias da saudade! Aquelle Calisto, cuidando que te salvava, matou-te!

Não foi tanto quanto diz a apostrophe; mas, de feito, Catharina, quando recebeu de Bruno de Mascarenhas uma carta saturada de sãs doutrinas e reflexões, como as faria S. Francisco de Salles a mad. du Chantal, entendeu de si para comsigo que devia morrer de despeito e raiva. O fugitivo escrevia-lhe pouco antes de embarcar-se. Não referia o dialogo com Calisto; dava porém como certa uma tempestade a prumo das cabeças d'elles delinquentes. «Irei, dizia elle, morrer longe da mulher que amo, para lhe não sacrificar os creditos e os filhos. Se souberes que eu morri, recompensa-me esta virtude rara, dizendo em tua consciencia que eu te amei, como já ninguem ama sobre a face da terra.»

Depois, seguiam-se na carta os conselhos ajustados á felicidade da vida. Expunha as consequencias funestas das paixões. E terminava dizendo que as lagrimas o não deixavam continuar.

Que dama resistiria, depois d'isto, á morte?

Encerrou-se a filha do desembargador, no intento de providenciar em artigo de morte, e entrouxar para a eternidade.

N'estas cogitações a surprehendeu a mana Adelaide, mostrando-lhe uma carta de um certo Vasco da Cunha, que escrevia desde muito, e honestamente a menina solteira, no proposito de casamento. Este Vasco, de boa linhagem, conhecia Bruno, e via com desprazer os amores da dama, que havia de ser sua cunhada. Eventualmente soubera elle do embarque do Mascarenhas. Pessoas que o viram a bordo, referiram-lhe que o sujeito, perguntado ácerca dos amores de Catharina Malafaya, respondera fatuamente que se ia escapando a um aguaceiro de escandalos, com que elle não queria brincar, por que a mulher, enthusiasta e apaixonada mais que o necessario, seria capaz de o fazer assumir as funcções de marido não canonico.

Pouco mais ou menos, era d'aquella amavel contextura o periodo que D.
Adelaide leu a sua irmã lagrimosa.

D. Catharina levantou-se com fidalgos brios, chamou pelos filhos, abraçou-se n'elles, e disse á irmã:

—Estou bem! Deus me perdoará, rogado por estes innocentes. Meu amado marido, como eu te quero hoje! como eu sinto o teu coração a consolar-me n'estes remorsos!…

Ora, eu não tenho a caridade de crêr nos remorsos de D. Catharina; mas piamente acredito que a mulher se estava sentindo mais amiga do marido, fineza que elle devia agradecer-lhe com as suas mais melifluas caricias.

E veiu logo a succeder que o esposo, surprehendido pela extremosa ternura da senhora, estranhou o caso, e requereu brandamente a explicação da improvisa mudança. Catharina, imaginosa como todas as pessoas que amam muito, explicou, entre alegre e lagrimante, que a final se convencera de que o seu Duarte a não trahia: suspeita de tanta força para ella, que podéra empeçonhar, com as serpes do ciume, a felicidade de duas almas, ligadas por paixão.

Duarte ficou lisongeado e satisfeito. Seguiu-se confessar elle tambem as suas vagas desconfianças emquanto á lealdade da esposa. Aqui é que foi a scena, digna de mais conspicuo narrador. A offendida senhora pregou os olhos no firmamento de madeira, espreitou por elle o azul do empyreo, com a dupla vista que dá a angustia, e murmurou:

—Céos! que injustiça!

Era dôr que lhe encolhia os folipos das lagrimas. Não arranjou a chorar. Caíu de golpe na poltrona de mais capacidade e flacidez para quedas d'aquella natureza! e, tapando a face com as mãos alvissimas, balbuciou, desentallando-se dos suspiros:

—Oh! que infeliz! que infeliz!

Duarte inclinou-se com os labios ao colo de Catharina, e disse affectuosamente:

—Perdoemos um ao outro. Estes ciumes reciprocos dizem que nos amavamos por egual.

Não queria a magoada senhora perdoar; porém, como lhe faltasse fôlego de despejo para sustentar a scena, envergonhou-se de si mesma, e teve dó do marido, a quem ella, e pae, e irmã, deviam a decencia, estado, representação e sociabilidade com as primeiras familias de Lisboa.

Instantes foram estes de consciencia rehabilitada, que poderam muito com ella no decurso da vida, e promettem ser-lhe amparo até ao fim.

É-me pequeno o peito para o prazer que sinto, relatando este caso, que é unico dos meus apontamentos, em egualdade de circumstancias. Ainda ha gente boa e de muitissima virtude: isto é que é verdade.

O fautor d'este successo, com que a gente se consola, foi, sem debate,
Calisto Eloy, aquelle anjo!

Com que delicias d'alma contemplava elle a restaurada ventura d'aquelles casados, e o jubilo do desembargador! E os agradecimentos do ancião, que bem lhe faziam ao peito honrado! E os affectos de Catharina, que de todo ignorava ter sido elle o agente do seu socego; porém muito lhe queria pelo tom grosseiro, mas paternal com que lhe admoestára a culpa!

Afóra o desembargador, uma pessoa unica sabia que o morgado tinha sido o conciliador engenhoso da paz da familia: era Adelaide. Esta menina vivera receosa de que o seu Vasco, rapaz timbroso, a não quizesse esposar, fazendo-a cumplice dos desvios da irmã. Agora, já mais esperançada na realisação do casamento, via com olhos agradecidos o bom provinciano, e attendia-o com os disvelos de extremosa amiga. A isto a incitava o pae, que frequentes vezes lhe dizia:

—Se este honrado fidalgo fosse solteiro, e podesses amal-o, filha, que prazer o nosso se…

—-Oh! papá…—atalhava quasi sempre a menina—pois eu havia de casar com elle?…

—Por que não? Honra, riqueza, sciencia e nobreza… que mais querias tu, filha?—perguntava o pae.

Adelaide sorria-se, e murmurava de si comsigo.

—Ainda bem que elle é casado, senão eu tinha que vêr com a jarrêta da creatura!…

No entanto, a reconhecida senhora, no auge da sua gratidão, jogava a sueca emparceirada com Calisto de Barbuda, e ensinou-lhe a jogar as damas, prenda em que o morgado revelou uma inhabilidade que excede todo o encarecimento.

XIV

*Tentação! Amor! Poesia!*

Eis que, a subitas, do coração de Calisto resalta a primeira faisca de amor!

Conheço que este desastre não se devia contar sem grandes prologos. Sei que o leitor ficou passado com esta noticia. Grita que a inverosimilhança é flagrante. Não póde de boamente consentir que se lhe desfigure a sisuda physionomia moral do marido de D. Theodora Figueirôa. Quer que se limpe da fronte d'este homem o stigma de um pensamento adultero. Honrados desejos!

Mas eu não posso! Queria e não posso! Tenho aqui á minha beira o demonio da verdade, inseparavel do historiador sincero, o demonio da verdade que não censentiu ao sr. Alexandre Herculano dizer que Affonso Henriques viu coisas extraordinarias no céo do campo de Ourique, e a mim me não deixa dizer que Calisto Eloy não adulterou em pensamento! Estes são os ossos malditos do officio; esta é a condemnação dos infelizes artifices que edificam para a posteridade, e exploram nas cavernas do coração humano os cimentos da sua obra.

Ai! Se Calisto Eloy foi de repente assalteado do dragão do amor, como hei de eu inventar preludios e antecedencias que a natureza não usou com elle!? Se o homem, espantado, a si mesmo se interrogava, e dizia: «isto que é?!» como hei de eu dizer ao leitor o que foi aquillo?!

O que elle sabia e eu sei é que, estando Calisto de Barbuda a jogar a sueca de parceiro com Adelaide, a razão de cruzado novo a partida, a menina passou a sua bolsinha de filagrana para a mão do parceiro, e disse-lhe:

—Administre-me o meu thesouro, sr. morgado. Tenho ahi o meu dote.

—Pois sejam todos muito boas testemunhas da quantia que recebo da ex.^{ma} sr.^a D. Adelaide, minha senhora;—disse Calisto, esvasiando a bolsinha.

Com as moedas de prata e oiro, que a bolsa continha, saíu um pequeno coração de oiro esmaltado com iniciaes.

Ah!—acudiu Adelaide pressurosa—isto não!…—E retirou sofregamente o coraçãosinho.

Algum dos circumstantes disse:

—Então o sr. morgado não serve para administrar corações?!

—Serve para os dominar com a sua bondade, e enchel-os de affectuosa estima—respondeu com adoravel graça a menina.

Foi n'este instante que o morgado da Agra de Freimas sentiu no lado esquerdo do peito, entre a quarta e quinta costella, um calor de ventosa, acompanhado de vibrações electricas, e vaporações calidas, que lhe passaram á espinha dorsal, e d'aqui ao cerebêlo, e pouco depois, a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs de ambas as faces com o rubor mais virginal.

D'isto não deu tento Adelaide nem a outra gente.

Duas enfermidades ha ahi, cujos symptomas não descobrem as pessoas inexpertas; uma é o amor, a outra é a tenia. Os symptomas do amor, em muitos individuos enfermos, confundem-se com os symptomas do idiotismo. É mister muito acume de vista e longa pratica para descriminal-os. Passa o mesmo com a tenia, lombriga por excellencia. O aspecto morbido das victimas d'aquelle parasita, que é para os intestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos, confunde-se com os symptomas de graves achaques, desde o hidrotorax até á espinhela caída.

E aqui está que Calisto Eloy—ia me esquecendo dizel-o—tambem sentiu a queda da espinhela, sensação esquisita de vacuo e despêgo, que a gente experimenta, uma pollegada e tres linhas acima do estomago, quando o amor ou o susto nos leva de assalto repentinamente.

Sem embargo da concumitancia de tantas enfermidades, Calisto de Barbuda embaralhou as cartas, passou-as á esquerda, e jogou a primeira partida com tamanha incuria e desacerto, que Adelaide, no acto do pagamento da aposta observou ao parceiro que era preciso administrar com mais zelo o dote da sua amiga.

E ajuntou:

—V. ex.^a esteve a compor algum bello discurso para a camara…

O morgado cacarejou um sorriso, e mais nada.

Proseguiu o jogo. Calisto deu provas de supina bestidade em quatro partidas de sueca. Adelaide, dissimulando a má sombra do fastio com que estava jogando, aturou até ao fim a partida, com grande desfalque do seu peculio.

Tinha-se feito uma atmosphera nova em redor dos pulmões de Calisto. A loquacidade, embrechada de sentenças e latinismos, com que elle costumava aligeirar as palestras dos eruditos amigos do desembargador, desamparou-o n'aquella noite. Isto causou extranhesa e cuidados ao amoravel Sarmento, que presava Calisto como a filho.

A partida acabou taciturna e triste.

Fechado em seu gabinete de estudo, o morgado da Agra, sentou-se á banca, apanhou entre dois dedos o beiço superior, e esteve assim meditabundo largo espaço. Depois, ergueu-se para dar largas ao coração que pulava, e andou passeando com desusada agilidade e aprumo de corpo. Parou diante da livraria, tirou d'entre os poetas classicos o dilecto Antonio Ferreira, sentou-se, abriu á sorte, e leu, declamando os dois quartetos do soneto V;

  Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
  Rosto, qu'entre nós ha, do mais divino
  Lume, mais branca neve, oiro mais fino,
  Mais doce fala, riso mais gracioso:

  D'um Angelico ar, de um amoroso
  Meneo, de um spirito peregrino
  S'acendeu em mim o fogo, de qu'indino
  Me sinto, e tanto mais assi ditoso.

Repetiu, fez pausa, suspirou, e declamou ainda o primeiro verso do terceto:

Não cabe em mim tal bem-aventurança!

N'isto, a imagem de sua prima e esposa D. Theodora Figueirôa, trazida alli por decreto do alto, antepoz-se-lhe aos olhos enleados na imagem de Adelaide. Calisto estremeceu de puro pejo de sua fraqueza, e lançou mão da ultima carta que recebêra de sua saudosa mulher. Resava assim, escripta por mão de uma filha do boticario de Caçarelhos, com orthographia mais imaginosa que a minha:

«Meu amado Calisto. Cá soube pelo mestre-escóla que tens botado algumas fallas nas côrtes, e que tens muita sabedoria. O sr. abbade já cá veiu ler-me um pedaço do teu dito, e oxalá que seja para bem da religião. Olha se botas abaixo as decimas, que é o mais necessario. Aqui veiu um padre de Miranda para tu o despachares para abbade; e o regedor tambem quer que tu lhe arranjes um habito de Christo para elle, e uma pensão para a tia Josepha, que é viuva de um sargento de milicias de Mirandella. Assim que arranjares isso, manda para cá.

Saberás que mandei trocar os bois barrosãos á feira dos onze, e comprei vaccas de cria. Os sevados não saíram de boa casta, e acho que será bom trocal-os na feira dos dezenove. A porca russa teve dez leitões hontem de madrugada. E, com isto, olha se isso lá acaba depressa, que eu ando por cá triste e acabrunhada de saudades. Na semana que passou andei mal das reins, e muito despegada do peito. Hoje vou vêr medir seis carros de centeio, que vão para a feira, por isso não te enfado mais. D'esta tua mulher muito amiga, Theodora

Por mais que recolhesse o espirito vagabundo, Calisto não dava tento d'estes dizeres de Theodora, encantadores de simplicidade e boa governança de casa. Arrumou a carta, re-abriu o seu Antonio Ferreira, e leu no soneto XXXIII:

  Eu vi em vossos olhos novo lume,
  Qu'apartando dos meus a nevoa escura.
  Viram outra escondida fermosura,
  Fóra da sorte e do geral costume…

Deitou-se por deshoras, e dormitou sobresaltado. Ante-manhã espertou com as alvoradas de uns pintassilgos e calhandras, que lhe cantavam amorosamente na alma. Eram as alegrias do primeiro amor, aquelles momentos de céo, visita dos anjos, que todo coração hospedou na infancia, na virilidade, ou já na decadencia na vida. Saíu alegre do leito, e leu algumas lyricas de Camões e Filintho Elysio.

Nunca em sua vida poetára Calisto Eloy de Silos. O amor não lhe havia dado o beliscão suavissimo, que por vezes, abre torrentes de metro da veia ignorada. Eis que o corisco da inspiração lhe vulcanisa o peito. Levanta machinalmente a mão á fronte, como a palpar a excrescencia febril que todo o poeta apalpa no conflicto sublimado do estro. Senta-se: pega da penna, e o coração distilla por ella este fragmento de madrigal, que, a meu vêr, foi o ultimo que o sincero amor suggeriu em peito portuguez:

  Senhora de grão primor,
  Meu amor,
  Formosissima deidade,
  Arde meu peito em saudade,
  Quem fui hontem, não sou hoje;
  Minha alegria me foge,
  Se vos olho.
  Já captivo em vós me acôlho,
  Havei de mim piedade;
  Sêde minha divindade;
  Não leveis a mal que eu chore
  Com tanto que vos adore
  Gentil e nobre menina
  Como Camões a Cath'rina
  E como Ovidio a Corinna.

Posto isto, o morgado da Agra relanceou os olhos com desdem para o taboleiro do almoço, e com muita repugnancia, consentiu ao appetite que se desejuasse com uma linguiça assada, almoço que elle alternava com um salpicão frito.

Depois quando se estava vestindo, olhou para a casaca de briche e para as pantalonas apolainadas, e teve engulho d'esta fatiota. Vestiu-se, saíu apressado, entrou no estabelecimento do sr. Nunes na rua dos Algibebes. Aqui o vestiram o mais desgraciosamente que puderam, com um farto paletó de panno côr de rato, e umas calças, de xadrez cinzento, e colete azul, de rebuço, com botões de coralinas falsas. No Chiado abjurou um chapéo de molas de merino, e comprou outro de castor, á ingleza. Cumpria-lhe vestir as primeiras luvas de sua vida. No vestil-as arrostou com difficuldades, que venceu, rompendo a primeira luva de meio a meio. Disse-lhe a luveira que não introduzisse os cinco dedos ao mesmo tempo, e ajudou o na ardua empreza.

Dois mancebos galhofeiros, que estavam na loja, riram indelicadamente da inexperiencia do sujeito desconhecido. Um d'elles, confiado na inepcia tolerante do provinciano, ou supposto brazileiro, disse, a meia voz, ao outro:

—Quatro pés nunca vestiram luvas.

Calisto encarou n'elles com sorriso minacissimo, e disse á luveira:

—As luvas são boa coisa para a gente não dar bofetadas com as mãos.

Os joviaes sujeitos olharam-se com ar consultivo, sobre o despique digno da affronta, e tacitamente concordaram em se irem embora.

Ao meio dia, entrou o morgado na camara, e fez sensação. As calças de xadrez eram uma das grandes desgraças, que a providencia, por intermedio do sr. Nunes aljubêta mandára a este mundo. Como se a substancia não fosse já um crime de leso gosto e lesa seriedade; ainda por cima as pernas caíam sobre as botas em feitio de boca de sino.

A camara afogou o riso, salvo o dr. Liborio do Porto, que tirou de dentro esta facecia puchada á fieira do costumado estylo:

—Guapamente intrajado vem mestre Calisto! Faz-se mister saber que rolos de pragmaticas lhe impendem entre as botinas e as pantalonas. Certo, que o urso se pule e lustra. Bom seria que o cerebro se lhe vestisse de roupagens novas e hodiernos afeites!…

Foram festejados estes apódos pelos tolos mais convisinhos do dr.
Liborio.

Calisto houve noticia da zombaria do doutor: a intriga politica não perdeu lanço de acirrar o morgado contra Liborio, que era governamental.

N'esta sessão fôra dada ao deputado portuense a palavra, na discussão de uma proposta de lei sobre cadeias. O morgado, assim que lh'o disseram, aguardou opportunidade de desforrar-se da chacota.

Ai da patria, quando os talentos parlamentares se incanzinam n'estas pugnas inglorias!

XV

*Ecce iterum Crispinus…*

Corrido um quarto de hora, fez-se na camara o silencio da subterranea
Pompea. É que o dr. Liborio ia fallar.

—Sr. presidente, e senhores deputados da nação portugueza!—disse elle—Vem-nos agora sob a mão assumpto, até aqui pretermittido.[14] Pelo que toca e friza com cadeias patrias, direi os cinco stygmas que um estylista de folego esculpiu nos frontaes d'esses antros:

INJUSTIÇA!
IMMORALIDADE!
IMMUNDICIE!
INSULTO!
INFERNO!

Inferno, sr. presidente, inferno dantesco, inferno theologico em que ha o ranger de dentes, stridor dentium!

Que é da civilisação d'esta miserrima e tão coitada terra? Quem nos lampeja verdade n'esta escureza em que nos estorcemos? Ai! A verdade ainda não matiza de rosicler a alvorada do novo dia. As idéas entre nós estão como flores palpitantes no gomo nascente. Eu me esquivo, sr. presidente, o lavor de historiar as successivas phases que tem percorrido os methodos do aprisoamento. Urge primeiro pregoar a brados que se faz mister funda cauterisação na lei. O direito não se estudou ainda em Portugal. Pois que é o direito? No seu todo synthetico e como corpo doutrinal, o direito é a sciencia da condicionalidade ao fim do homem. Consoante vige e viça o nosso direito de punir, sr. presidente, o juiz é o delegado de Deus, o carrasco o substituto do anjo S. Miguel.[15]

Calisto Eloy pediu a palavra. O orador proseguiu:

—Sr. presidente, n'este paiz não se attende ás bossas. Os legisladores não estudam o crime com o compasso sobre um craneo esbrugado. Se fordes a Windsor Castle e vos metterdes de gôrra com os guardas que mostram o castello, ouvireis que um dos filhos da rainha tem uma irresistivel tendencia para a rapina: é uma pêga humana. Uma pêga humana, rapacissima, a mais não! Sr. presidente, do nosso rei D. Miguel se conta, que já mancebo saodo da puericia, se entretinha a maltratar animaes, chegando um dia a ser encontrado arrancando as tripas a uma gallinha viva com um sacarolhas.[16]

Vozes: Á ordem! Á ordem!

O orador: Pois em que me transviei da ordem?

Uma voz: Não se diz no seio da representação nacional: o nosso rei D. Miguel.

O orador: Eu referi o caso com as expressões em que o acho narrado n'um livro mirifico e sobre-excellente do sr. dr. Ayres de Gouveia.

Uma voz: Pois não faça obra por inepcias do dr. Ayres de Gouveia.

O orador: Retiro a dessoante phrase, que impensada destilei do labio, e ao ponto me revêrto. Sem a sciencia de Porta e de Blumenbache toda a penalidade saírá vêsga, bestial, e infernalissima. É natural, sr. presidente, que o sentimento se corrompa, assim como o calculo se empedra, e arraiga o cancro nas entranhas, e o coração se ossifica, e o hydrocephalo se gera, ainda nos mais solicitos em hygiene:

Posto isto, sr. presidente, cumpre dividir os sexos, pelo que diz respeito ao calibre do castigo. Eu citarei com quanta emphase me cabe n'alma, algumas linhas do jovem explendido de verbo, que auspicia e promette o primeiro criminalista d'esta terra. Fallo de Ayres de Gouveia, e n'elle me estribo. O douto viajeiro diz: «O individuo, para quem a lei legisla, e a quem tem em vista, é o homem (vir), não a mulher (mulier), desde os vinte e um annos, ou época do predominio racional, até aos sessenta, ou principio do periodo debilitante, no estado generico, ou que constitue a generalidade de ser homem, não descendo sequer ás gradações principaes, que tornam o homo homem, o genero especie.»[17]

É certo, sr. presidente, que a femina toca o requinte da depravação, e chega a effeituar horrores cuja narração é de si para gelar ardencias de sangue, para infundir pavor em peitos equanimes, porem, o mobil dos crimes seus d'ellas é outro: as faculdades da mulher agitam-se perturbadas; é um periodo de evolução, e não ha ahi arcar com evidencia.

Que farte me hei despendido em razões que superabundam no caso em que me empenho, de parçaria com Victor Hugo, e com quejandas lumieiras que esplendem na vanguarda d'esta caravana da humanidade, que se vae demandando a Meca da perfectibilidade. Faça-se a lei, restaure-se a justiça, e depois crie-se a penitencia, regimente-se o criminoso aprisoado! Aos que já metteram rêlha e adubo no torrão do novo plantio, d'aqui me desentranho em louvores e muitos e francos e perennes.

Sr. presidente! Em quanto a cadeias, estamos no mesmo pé de idéas da inquisição! Que esterquilinios! que protervia! Eu quero, com o dr. Ayres, que todo o preso seja de todo barbeado semanalmente, lave rosto e mãos duas vezes por dia, e tenha o cabello da cabeça cortado á escovinha. Eu quero, com o doutor supracitado, que elle não fume, nem beba bebida fermentada. Água em abundancia, e mais nada potavel. Não quero que os presos se conversem, porque, no dizer do insigue patricio meu, e abalisado humanista, das cadeias saem delineamentos de assaltos, e assassinatos de homens que sabem ricos.

Lastimado isto, sr. presidente, um preso descomedido entre os de mais, é qual febricitante despedido do leito que como setta voada do arco, exaspera em barulho os males de toda a enfermaria.

Eu quero que o preso funcionne intellectivamente, e de lavores corporaes se não desquite. O homem sem instrucção obra instinctivamente, obra egoistamente, obra septicamente, se lhe escaceia religião. Ao preso lide-lhe a mão na tarefa, sim; mas lide-lhe tambem a cabeça na idéa. Inclinando rasoamento para isto, em todas as cadeias europeas lustram sciencias, pulem saber, e se amenisam instinctos. Veja-se o que diz o nunca de sobra invocado Ayres, honra e joia da cidade de Sá de Menezes, d'Andrade Caminha, de Garrett, cidade onde me eu rejubilo de haver vagido nas faixas infantis. É mister que se entranhe o sacerdote no cancro das masmorras; mas o sacerdote atilado de engenho e todo impeccavel de costumes; e não padres cuja uncção sacrosanta se lhes convertesse no corpo em lascivos amavíos. Quem sabe ahi joeirar o optimo para capellães de prisões?

Depois quer-se um director, olho e norma. E tão boas partes se lhes requerem, que ainda scismando talhal-o um composto de virtudes, o não viriamos delinear senão escorço.

Deu a hora, sr. presidente. A materia é tal e tão rica, e para tamanho cavar n'ella, que se me confrange alma de lhe não dar largas. Aqui me fico, e do imo peito espido brado de louvor, que louvaminha não é, ao illustre membro d'esta camara que mandou para a mesa a proposta da reformação das cadeias. Bençãos lhe chovam, que assim, com valida mão, emborca a froixo urnas de balsamos sobre a esqualidez da mais ascosa ulcera da humanidade. (Prolongados applausos. O orador foi comprimentado por pessoas graves, que tinham estado a rir-se.)

Calisto Eloy contemplou-o com a fixidez de medico, que estuda os symptomas da demencia nos olhos do enfermo. Depois, voltando-se contra o abbade de Estevães, disse:

—Eu queria ver como este dr. Liborio tem a cabeça por dentro.

E rythmando o compasso com os dedos na tampa da caixa declamou:

  Quantos folgam fallar a prisca lingua
  Qual Egas, qual fallou, Fuas Roupinho,
  Qual esse conde antigo, que levára
  A villa de Condeixa por compadre!
  Mas como a fallam? Põem sua méestria
  Em palavras sediças, termos velhos
  Termos de saibo e mofo, que arrepiam
  Os cabellos da gente…
  Que dizes d'isto?
  Como chamas a estes?…..
  Que eu não acerto a dar-lhe um nome proprio.
  Que bem quadre a tão rancidos guedelhas?
  Quando estas coisas desvairadas vejo
  Dão-me engulhos de riso, ou já bocejos,
  Como arrepiques certos de gran fome![18]

XVI

*Quantum mutatus!…*

Á noite, no salão do desembargador Sarmento, soube-se que o morgado da Agra havia de orar no dia seguinte. Entre as pessoas alvoraçadas com a noticia, a mais empenhada em ouvil-o era D. Adelaide. Ao encontro de Calisto Eloy saiu ella pedindo-lhe com requebrada doçura, tres entradas na galeria das senhoras, para ella, irmã e pae.

—Já sou considerado senhora, amigo Barbuda!—ajuntou o velho—São as tristes honras da ancianidade!… E lá vou, lá vamos ouvil-o. Ha seis mezes que não saí de casa, nem saíria para ouvir o proprio Berryer ou Montalembert.

—Beijo-lhe as mãos pela cortezia, meu benigno amigo—disse Calisto; porém olhe que ha de chorar o tempo malbaratado. Eu não vou discorrer, nem cogitei ainda no que direi. Pedi a palavra, quando uma brava sandice me esfusiou nos tympanos, e estorcegou os nervos. Soou-me lá que o carrasco estava substituindo o anjo S. Miguel!… Ó meu caro desembargador, eu entro a desconfiar que a besta do apocalipse já tem tres pés bem ferrados no parlamento! Quando lá metter o quarto pé, a gente escorreita é posta fóra da sala a couces. Peço a vv. ex.^{as} perdão do pleismo do termo—disse Calisto voltando-se para as damas, que estavam examinando com espanto as transfiguradas vestes do morgado.—A boa policia, continuou elle, perde-se com a paciencia. Hei grão medo de volver-me ás minhas serras mais rudo do que vim.

—Está-se desmentindo v. ex.^a—acudiu D. Catharina graciosamente—com os trages cidadãos que apresenta hoje! Cuidavamos que havia jurado nunca reformar a sua toilette de 1820!

Calisto sorriu contrafeito, e sentiu-se algum tanto molestado no seu pundonor e seriedade. Como a causa da mudança do vestido era pouco menos de irrisoria, o homem foi logo castigado pela propria consciencia. A si lhe quiz parecer que era já ante si proprio, outro sujeito, e que os estranhos lhe liam no rosto o desaire inquietador. Então lhe foi desabafo o coração. Soccorreu-se d'elle para contradizer as reprimendas do juizo; e o coração, coadjuvado pelas maneiras e ditos affectuosos de Adelaide despontara as ferroadas do juizo.

Os visitantes habituaes do desembargador e as senhoras da casa notaram certa mudança nos modos e linguagem de Calisto. Dir-se-ia que o paletó e as pantalonas lhe tolhiam a liberdade dos movimentos, e aquella assim rude, que sympathica espontaneidade da expressão.

Authorisados philosophos e christãos disseram que o vestido actua imperiosamente sobre o moral do individuo. Nas paginas immorredouras de fr. Luiz de Sousa está confirmado isto. «É nossa natureza muito amiga de si (diz o historiador do santo arcebispo) e experiencia nos ensina que não ha nenhuma tão mortificada, que deixe de mostrar algum alvoroço para uma peça de vestido novo. Alegra e estima-se ou seja pela novidade ou pela honra, e gasalhado que recebe o corpo. Até os pensamentos e as esperanças renova um vestido novo.»[19]

O adoravel dominicano, pelo que diz da alegria que influe no animo um vestido em folha, enganou-se a respeito de Calisto Eloy. O homem dava ar de quebranto e melancholia, salvo se o jubilo se lhe introvertera ao coração. Creio que era isto. Era o amor abscondito a magoal-o docemente. E a não ser o amor, o que poderia ser senão as calças de xadrez? De feito, o amor quando é serio, põe ás canhas o mais pespontado espirito, e o mais mazorral tambem. O amoroso de grande loquella, volve-se parvoinho em presença da sua amada; o sandeu tem inspirações e raptos, que seriam influxo do céo, se não soubessemos, que o demonio tentador costuma incubar-se e parvoejar eloquentemente no corpo d'estes palermas.

Calisto Eloy pagou o tributo dos espiritos esclarecidos. Umas eloquentes simplezas, com que elle costumava alegrar o auditorio; as maximas joviaes de Supico e outras com que elle intermeava a conversação; as gargalhadas provincianas, as liberdades desmaliciosas, o ar de familia com que elle se fazia bem-querer e desculpar de alguma demasia menos urbana do que permitte a convenção das salas: tudo isto, que lhe ia tão bem ao morgado, se demudou em recolhimento cogitativo, sombra triste e acanhada parvolez.

N'esta noite, concorreu á partida do desembargador aquelle Vasco da Cunha, galanteador de Adelaide, mancebo bem composto de sua pessoa, sisudo, e muito catholico. Este fidalgo, representante dos melhores Cunhas, mencionados na «Historia Genealogica da Casa Real» e no «Villas-boas» além do brilho herdado, estava-se gosando de lustre propriamente seu, figurando sempre nos annuncios pios em que os fieis eram convidados a assistir a tal festividade religiosa, ou convocando assembléas de irmandades, para o fim de consultas attinentes á maior pompa do culto divino. Dito isto, dispensa o leitor que se annumerem outras virtudes a facto só por si tão significativo. As outras virtudes hão de vir apparecendo naturalmente.

Alguem disse a Calisto Eloy que o circumspecto Vasco da Cunha não era estranho ao coração de Adelaide. Esta nova sobresaltou o peito do morgado, sem comtudo, lhe innevoar os olhos do discreto juizo, a ponto de se dar em espectaculo de risivel ciume. Reparou no porte de ambos; e tão graves e cerimoniosos os viu durante a partida, que não achou razão para os crer enamorados bem que, n'esta noite, Adelaide jogasse o voltarete com Vasco da Cunha, e seu cunhado Duarte Malafaya.

Ás onze horas, Calisto Eloy retirou-se taciturno e contristado.

A só com a sua consciencia, e debaixo do olhar severo dos seus livros, o marido de D. Theodora Figueirôa reflectiu conturbado na transformação do seu modo de viver e sentir. Gritou-lhe a razão que fizesse pé atraz no caminho que o levava á ladeira de algum abysmo, ou ás fauces voracissimas do amor que tão illustres victimas tinha ingulido. A memoria, alliada da razão, abriu-lhe os fastos desgraçados do coração humano, desde o perdimento de Troia até á extincção do imperio godo nas Hespanhas. Viu desfilarem, uma por uma, todas as mulheres fataes, desde Dalila até Florinda, a forçada do conde Julião; e, no couce de todas, a phantasia febril da insomnia afigurou-lhe Adelaide.

Aos quarenta e quatro annos a razão póde muito, se o coração já está enervado e enfraquecido de luctas e quedas; todavia, a razão dos quarenta e quatro annos é ainda frouxa e transigente, se o coração começa a amar tão a deshoras. Não se calculam as miserias e parvoiçadas d'esta serodia mocidade!

Não obstante, Calisto, pouco antes de adormecer por volta das quatro da manhã, protestára esquecer Adelaide, perguntando a si proprio se seria crime amal-a como os paladinos dos tempos heroicos amaram incognitamente grandes damas, sem mais logro de seus amores que adorarem-n'as? Com isto queria elle responder á imagem plangente de Theodora, que o estava arguindo.

Pobre senhora! àquella hora já ella andaria a pé, a moirejar pela cosinha, a fim de mandar almoçados para a lavoura os servos, e cuidar dos leitões.

Ai! maridos, maridos! Quando a Providencia vos enviar mulheres d'este raro cunho, encostae a face ao regaço d'ellas, e não queiraes saber como é que o inimigo de Deus enfeita as suas cumplices na perdição da humanidade!

XVII

*In Liborium*

Estavam cheias as galerias da camara.

Entre as mais formosas, extremava-se a filha do desembargador Sarmento. A pedido de Calisto Eloy, fôra o abbade de Estevães levar as entradas ao magistrado, e offerecer-se a conduzir as senhoras á galeria.

O vistoso coreto das damas exornavam-n'o, talvez mais que a formosura, algumas senhoras doutas enfrascadas em politica, amoraveis Cormenins, que aquilatavam o merito dos oradores com incontrastavel rectidão de juizo e apurado gosto. Lisboa tem dezenas d'estas senhoras Cormenins.

Não dírei que o renome de Calisto attrahisse as damas illustradas: era grande parte n'este concurso femeal a esperança de rirem. A nomeada do provinciano, bem que favorecida quanto a dotes intellectuaes, cobrára fama de coisa extravagante e impropria d'esta geração.

Entrou Calisto na sala um pouco mais tarde que o costume, porque fôra vestir-se de calça mais cordata em côr e feitio. Não me acoimem de archivista de insignificancias. Este pormenor das calças prende mui intimamente com o cataclismo que passa no coração de Barbuda. Aquella alma vae-se transformando á proporção da roupa. Assim como o leitor, á medida que o amor lhe fosse avassalando o peito, escreveria paginas intimas, ou ainda peor, cartas corruptoras á mulher querida, Calisto, em vez d'isso, muda de calças.

As damas, que o esperavam vestido conforme a fama lh'o pintára, desgostaram-se de vêl-o trajado no vulgar desgracioso, do commum dos representantes do paiz.

Apenas Calisto Eloy se assentou, entrou-se na ordem do dia, e logo o presidente lhe deu a palavra.

Cessou o reboliço e fallario d'aquella feira veneranda, assim que o deputado por Miranda, começou d'este theor:

—Sr. presidente! Muito ha que se foi d'este mundo o unico sujeito, de que me eu lembro, capaz de entender o sr. dr. Liborio, e capaz de fallar portuguez digno de s. ex.^a. Era o chorado defuncto um personagem que foi uma vez consultar o dr. Manuel Mendes Enchundia, ácerca d'aquella famigerada casa que elle tinha na ilha do Pico, com um passadiço para o Baltico. V. ex.^a e a camara, podem refrescar a memoria, lendo aquelle pedaço de estylo, que presagiou estas farfalharias de hoje.

Sr. presidente, a mim faz-me tristeza contemplar a ribaldaria, com que os belfurinheiros de missangas e lantejoulas adornam a lingua de Camões, despojando-a dos seus adereços diamantinos. A pobresinha, trajada por mãos de gente ignara, anda por aqui a negacear-nos o riso como moura do auto, ou anjo de procissão de aldeia. Se acerta de lhe pagarem os farrapinhos broslados de folha de Flandres em algum silvedo, a mesquinha fica núa, e nós a córarmos de vergonha por amor d'ella.

É forçoso, sr. presidente, que a linguagem castiça vá com a patria a pique?

Á hora final da terra de D. Manuel, não haverá quem lavre um protesto em portuguez de João Pinto Ribeiro, contra os Iskariotas, Juliões, Vasconcellos e Mouras, que nos vendem?

Vozes: Á ordem!

O orador: É contra o regimento d'esta casa, repetir o que está dito na historia, sr. presidente?

O presidente: Sem offensa de particulares.

O orador: Authorisa-me portanto, v. ex.^a a crer que n'esta casa está Iskariotas, e o bispo Julião, e Miguel de Vasconcelos, e…

Vozes: Á ordem!

O orador: Pois então eu calo-me, se offendo estes personagens a quem me não apresentaram, ainda bem! As minhas intenções são inoffensivas, no entanto, desconsola-me a camaradagem. Se eu soubesse que estava aqui similhante gente, não vinha cá, palavra de homem de bem!

O dr. Liborio: Mais prestimoso fôra ao cosmos, se o sr. Calisto estanceasse no agro do seu covil a lidar com a fereza dos javalis.

O orador: Não percebi o dito bordalengo: faça favor de explicar-se.

O dr. Liborio: Já disse que não desço.

O orador: Se não desce, cairá de mais alto. Refiro a v. ex.^a a fabula da aguia e do kágado, na linguagem lidima e chan de D. Francisco Manuel de Mello. É o Relogio da Aldeia, que falla no dialogo dos Relogios fallantes: «…Lembra-me agora o que vi succeder a um kágado com uma aguia, lá em certa lagoa da minha aldeia: veiu a aguia, e de repente o levantou nas unhas, não com pequena inveja das rãs, e de outros kágados, que o viam ir subindo, vendo-se elles ficar tão inferiores a seu parceiro. Julgavam por gran fortuna que um animal tão para pouco, fosse assim sublimado á vista de seus eguaes. Quando n'isto, eis que vemos que, retirada a aguia com sua presa a uma serra, não fazia mais que levantar o triste animal, e deixal-o cair nas pedras vivas, até que quebrando-lhe as conchas com que se defendia…» não me lembra bem se D. Francisco Manuel diz que a aguia lhe comeu o miolo.

Se o sybillino collega figura na moralidade d'este conto, offerece-se-me cuidar que não é a aguia.

(Pausa do orador: riso das galerias.)

Sabido, pois, sr. presidente, que as citações historicas fazem repugnancias ao regimento e á ordem, abjuro e exorciso os demonios incubos e succubos da historia, pelo que rogo a v. ex.^a muito rogado que me descoime de desordeiro.

Direi de Quintiliano, se este nome não desconcerta a ordem. Trata-se de oradores, e de estylos viciosos. Diz este mestre dos rethoricos que «ha um natural prazer em escutar qualquer que falla, ainda que seja um pedante, e d'aqui aquelles circulos que a cada hora vemos nas praças á roda dos charlatães» N'esta nossa edade, Quintiliano redivivo diria: «nas praças e nos parlamentos.»

Vozes: Á ordem?

O orador: Pois tambem Quintiliano?!

Bem me quer parecer que rarissimas vezes o admittem aqui a elle!…

O presidente: Lembro ao nobre deputado, que a camara não é aula de rethorica.

O orador: Assim devo presumil-o, vendo que todos a professam com dignidade, exceptuado eu, que me não desdoiro, em confessar que sou o discipulo unico e máo de tantos mestres. Eu direi a v. ex.^a qual eloquencia considero necessaria n'esta casa da nação: é a eloquencia que a nação entenda. A arte de bem fallar, ars béne dicendi, é o estudo da clareza no exprimir a idéa. Os affectos, as galas da linguagem, que lhe tolhem o mostrar-se e dar-se a conhecer dos rudos, não é arte, é tramoya, não é luz, é escuridade. Os meus constituintes mandaram-me aqui fallar das necessidades d'elles em termos taes que por elles v. ex.^a e a camara lh'as conheçam, ponderem, e remedeiem.

Sou da velha clientela de Quintiliano, sr. presidente. Com elle entendo que por de mais se enganam aquelles que alcunham de popular o estylo vicioso e corrupto, qual é o saltitante, o agudo, o inchado, e o pueril, que o mestre denomina proedulce dicendi genus, todo affectação menineira de florinhas, broslados de pechisbeque, recamos de fitas como em bandeirolas de arraial.

Eis-me já de força inclinado á substancia do discurso do sr. dr. Liborio. Primeiro me cumpre declarar que não sei pelo claro a quem me dirijo. Ha dias me regalei de ler o succoso livro de um doutor grande lettrado que escreveu da Reforma das Cadeias. Achei-o lusitanissimo na palavra; mas hebraico na locução. Tem elle de bom e singular que tanto se percebe lendo-o da esquerda para a direita como da direita para a esquerda. Soou-me que o sr. dr. Liborio, amador do que é bom, se identificára com o livro, e aformosentára o seu discurso com muitas louçainhas d'aquelle thesouro.

Não sei, pois, se me debato com o sr. dr. Ayres, se com o sr. dr. Liborio. Se me debato, desavisadamente disse! O discurso não dá péga a debates que não sejam philologicos. Estes não vem aqui de molde. Rethorica, grammatica e logica, se alguem quizer tratal-a n'este predio, entretenha-se lá em baixo no pateo com o porteiro, ou com as viuvas e orphãos, que pedem pão com a logica da desgraça, e com a rethorica das lagrimas: grammatica não sei eu se a fome a respeita: parece-me que não, por que na representação nacional ha famintos que a não exercitam primorosamente. (Murmurio e agitação na direita. Applausos na galeria. Um «bravo» estridulo do desembargador Sarmento. Um cautelleiro dá palmas na galeria popular. A tolice é contagiosa. O presidente sacode a campainha. Restabelece-se o silencio. Calisto Eloy tabaqueia da caixa do radioso abbade de Estevães.)

O presidente: Relembro, já com magoa, ao sr. deputado que se abstenha de divagações alheias do debate.

O orador: De maneira, sr. presidente, que v. ex.^a quer á fina força, subjugar as minhas pobres idéas em aprisoamento, como disse gentilmente o illustre collega!

Pois assim sou esbulhado de um sacratissimo direito? É então certo, como disse o sr. dr. Liborio, que não ha direito em Portugal? V. ex.^a sem o querer, está sendo, na phrase ingrata do illustre deputado, o substituto do anjo S. Miguel! (Riso) Oh! V. ex.^a não será algoz do pensamento, já de si tão intanguido que não é mister matal-o: basta deixal-o morrer… Callar-me-hei, se estou magoando v. ex.^a.

Vozes: Falle! falle!

O orador: O illustre collega referiu o que vem contado no livro do sr. dr. Ayres de Gouveia: que o nosso rei D. Miguel já mancebo, saido da puericia se entretinha a maltratar animaes, chegando um dia a ser encontrado, arrancando as tripas a uma gallinha com um sacarolhas. É pasmoso, sr. presidente, que os dois doutores, protestando pela legitimidade do seu rei, um no livro, outro no discurso, refiram a sanguinaria historia do sacarolhas nos intestinos da deploravel gallinha! Eu suei quando ouvi este canibalismo, suei de afflicção, sr. presidente, figurando-me o desgosto da ave!

Protesto, sr. presidente, protesto contra a suja aleivosia cuspida na sombra de um principe ausente, indefeso e respeitavel como todos os desgraçados. Que historia villã é esta? Quem contou ao sr. dr. Ayres o caso infando do sacarolhas nas tripas da gallinha?! Em que soalheiro de antigos lacaios de Queluz ou Alfeite ouviram os refundidores da justiça estas anedoctas hediondas, e mais torpes no squalôr de recontal-as?

E, depois, sr. presidente, que me diz v. ex.^a e a camara áquelle filho da rainha da Grã-Bretanha, que é um rapinante: uma pêga humana! Que musa de tamancos! uma pêga humana! Que imagem! que allegoria tão ignobil, e extractado do vocabulario da ralé!…

Em desconto d'estas repugnantes noticias, fez-nos o sr. doutor o bom serviço de nos dizer que homem em latim é vir, e mulher é mulier, e que, em alguns casos, homo tambem é homem. Ficamos inteirados e agradecidos. Uma lição de linguagens latinas para nos advertir que a lei não legisla para a mulher!… Teremos ainda de assistir á repetição do concilio em que havemos de averiguar se a mulher é da especie humana? Se os srs. drs. Ayres ou Liborio, alguma vez, dirigirem os negocios judiciarios e ecclesiasticos em Portugal, receio que os legisladores excluam a mulher das penas codificadas, e que os bispos lusitanos as excluam da especie humana!… E peior será se algum d'estes ministros, no intento de punil-as, as classificam nas aves, e nomeadamente nas gallinhas! O horror dos sacarolhas, sr. presidente, não me desaperta o animo!

Porque não ha de ser castigada a mulher por egual com o homem? Resposta séria á pergunta que tresanda a paradoxo: «Porque, no delicto, as faculdades da mulher agitam-se perturbadas; é um periodo de evolução.» A mulher, que mata, por ciume é que mata; a mulher, que propina venenos, por ciume é que despedaça as entranhas da victima. Isto é crime, ao que parece; crime, porém, de faculdades que se agitam perturbadas, e periodo de evolução. Se o termo fosse parlamentar, eu diria farelório!

Quem ha de enristar armas de argumentação contra estes odres de vento?

O que eu melhor entendi, graças á linguagem correntia e pedestre da arenga, foi que o illustre collega, avençado com o sr. dr. Ayres, querem que todo o preso seja de todo barbeado semanalmente, lave o rosto e mãos duas vezes por dia, e tenha o cabello cortado á escovinha, e beba agua com abundancia, e não beba bebidas fermentadas, nem fume.

N'este projecto de lei a pequice corre parelhas com a crueldade. Que o preso lave a cara duas vezes por dia, isso bom é que elle o faça, se tiver a cara suja, mas obrigal-o a lavatorios superfluos, é risivel puerilidade, juizo pouco aceiado que precisa tambem de barrela.

Privar do uso do tabaco o preso que tem o habito de fumar inveterado, é requisito de deshumanidade que sobreleva á pena de prisão perpetua ou degredo por toda a vida. Tirem o cigarro ao preso; mas pendurem logo o padecente, que elle ha de agradecer-lhe o beneficio.

Estes reformadores de cadeias, sr. presidente, parece que tem d'olho apertar mais as cordas que amarram o condemnado á sentença; picar-lhe as veias, e desangral-o gota a gota, na intenção de o regenerar e rehabilitar! Optima rehabilitação! humanissimos legisladores! Querem que o preso se regenere hydropaticamente. Mandam-n'o lavar a cara duas vezes por dia. Agua em abundancia, conclamam os dois doutores. Fazem elles o favor de dar ao preso agua em abundancia; mas descontam n'esta magnanimidade prohibindo-os de fallarem aos companheiros de infortunio, com o formidavel argumento de que sáem das cadeias delineamentos de assaltos, e assassinatos de homens que sabem ricos!…

«Delineamentos de assassinatos»! Que é isto? Assassinato é coisa que me não cheira a idioma de Bernardes e Barros. Seja o que fôr, é coisa horrivel que sáe das cadeias com seus delineamentos, contra homens que os presos sabem ricos. Aqui, sr. presidente, n'este sabem ricos, quem soffre o assassinato é a grammatica. O alticismo d'esta phrase é grego de mais para ouvidos lusitanos.

O que é um preso descomedido, sr. presidente? Dil-o-hei? Vox faucibus haesit!…

É febricitante despedido do leito, que, como setta voada do arco, exaspera em barulho os males de toda a enfermaria. Que se ha de fazer a um patife que é setta voada do arco? Faz-se-lhe lavar a cara terceira vez!

Que desperdicio de poesia para descrever um preso bulhento!

Setta voada do arco! Que infladas necedades assopram estes estylistas de má morte!

Inclinando rasoamento (peço venia para me tambem enriquecer com esta locução do sr. dr. Ayres) inclinando rasoamento a pôr fecho n'este palanfrorio com que dilapido o precioso tempo da camara, sou a dizer, sr. presidente, que a melhor reforma das cadeias será aquella que legislar melhor cama, melhor alimento, e mais christã caridade para o preso. Impugno os systemas de reforma que disparam em accrescentamento de flagelação sobre o encarcerado. Visto que Jesus Christo, ou seus discipulos, nos ensinam como obra de misericordia visitar os presos, conversal-os humanamente, amaciar-lhes pela convivencia a ferocia dos costumes, não venham cá estes civilisadores aventar a soledade aos ferrolhos, o insulamento do preso, aquelle terrivel voe soli! que exacerba o rancor, e os instinctos enfurecidos do delinquente.

Tenho dito, sr. presidente. Não redarguo ao mais do discurso, porque não percebi. Sou um lavrador lá de cima, e não adivinhador de enygmas. Davus sum, non OEdipus.

O orador foi comprimentado por alguns provincianos velhos.

XVIII

*Vae cair o anjo!*

A respeito do ultimo discurso de Calisto Eloy, as gazetas governamentaes estamparam que a sala da representação nacional nunca tinha sido testimunha de insolencias de tamanha rudesa e tão audaciosa ignorancia. Os jornaes da opposição liberal disseram que o representante de Miranda, á parte as demasias escolares do seu discurso, déra uma util, bem que severissima lição, aos meninos que jogueteam com o paiz, indo ao sanctuario das leis bailar em acro-batismos de linguagem, que seriam irrisorios em palestra de estudantes de selecta segunda.

Em casa do desembargador é que o morgado deslumbrou o renome dos fulminadores de catilinarias e filippicas. A numerosa roda do fidalgo legitimista encarava com venerabundo assombro em Calisto Eloy. As raças godas, que o não conheciam, concorreram a dar-lhe os emboras a casa de Sarmento. Sangue dos Affonsos e Joões não se dedignava de inventar em Calisto um primo. Todos queriam ter nas arterias sangue de Barbudas. E elle, o genealogico por excellencia, modestamente contradictava o empenho de alguns parentes honorarios; bem que, de si para si, e para alguns amigos, se ufanava de não carecer de tal parentella para egualar-se barba por barba com os mais antigos titulares em limpeza de sangue. As expressões laudatorias que mais calaram no animo de Calisto Eloy disse-as Adelaide. A menina, confessando sua surpresa no parlamento, foi sincera. Não o julgava tão denodado e destemido em face de gente nova, que parecia acovardar-se diante da coragem de um provinciano algum tanto achamboado. Disse ella á mana Catharina que a fronte de Calisto parecia allumiada, e no todo das feições e ademanes se revelava certa nobreza e garbo, que o faziam parecer mais novo.

E era assim. Os quarenta e quatro annos do morgado, vividos na aldeia, e no resguardo da bibliotheca, viçavam ainda frescura de mocidade. A reforma do trajar fôra grande parte n'isto. A casaca antiga, e o restante da roupa trazida de Miranda, tolhiam-lhe a elegancia das posturas e movimentos, nos primeiros discursos.

Cicero e Demosthenes, se entrassem de frak, no forum ou na ágora, desdouravam os mais luzentes relevos de suas esculpturaes orações. A estatuaria do orador pende grandemente do alfaiate. Vistam Casal Ribeiro ou Latino Coelho, Thomaz Ribeiro ou Rebello da Silva, Vieira de Castro ou Fontes, de casaca de brixe e gravata sepulchral da mandibula inferior: hão de vêr que as perolas desabotoadas d'aquellas bocas de oiro se transformam em graniso glacial no coração dos ouvintes.

—Eu estava encantada de ouvil-o, sr. Barbuda—disse Adelaide—Tem uma voz muito sã e argentina. Gostei de vêr a presença de espirito de v. ex.^a, quando se levantou aquella algazarra contra as suas ironias. Lembrou-me então que prazer sentiria sua senhora, se o escutasse!

—Minha prima Theodora de certo me não attendia—observou o morgado.—Em quanto eu fallasse, estaria ella pensando no governo da casa, e na calacice dos criados. Eu já disse a v. ex.^a que minha prima Theodora entendeu no summo rigor da expressão a palavra «casamento». Casamento deriva de casa. Senhora de casa e para casa é que ella é. E eu assim a acceitei e assim a préso.

—Mas o coração…—atalhou Adelaide.

—O coração, minha senhora, ninguem lá nos disse que era necessario á felicidade domestica. Tanto sabia eu o que era coração, como aquella creancinha, que sua ex.^{ma} mana tem nos braços, sabe o que é sensação do fogo. Ora veja como ella está estendendo as mãosinhas inexperientes para a chamma das velas… Se as tocar, que dôr não sentirá ella?

—Então, volveu a filha do magistrado, hei de crêr que v. ex.^a ainda ignora o que seja coração… o que seja amor?

—Se ignoro o que seja…—balbuciou Calisto.—Sabe v. ex.^a—proseguiu elle, reanimado, apoz longa pausa—sabe v. ex.^a que no paraizo existiu uma celestial ignorancia, até ao momento em que na arvore da sciencia tocou Eva?

—Sim… E Adão lambem tocou…

—Depois, minha senhora. Mas não discutamos a primasia: tocaram ambos, e eu comprehendo que deviam ambos peccar. Maior crime sería a resistencia a Eva que a Deus. Perdoe-me o céo a blasphemia!… A que hei de eu comparar nos nossos tempos, e n'este instante, a arvore da sciencia, da sciencia do coração?!… Comparo-a a v. ex.^a.

—A mim?! que idéa!

—A v. ex.^a. Eu contemplei-a, e… aprendi!… Hoje sei o que é coração: agora começo a estudar a maneira de o matar ao passo que elle vae nascendo.

Calisto levantou-se, agradecendo á Providencia a chegada de um ancião respeitavel que se aproximava d'elle a cortejal-o.

Adelaide quedou pensativa. Reflectiu, e considerou-se molestada e mescabada no respeito que devia ás suas virtudes um homem casado.

Receiosa de ajuizar mal, por equivoca intelligencia do que ouvira, buscou azo de provocar explicações de Calisto Eloy. Como o ensejo lhe não saisse de molde, consultou a irmã, referindo-lhe o supposto galanteio do morgado. D. Catharina dissuadiu-a de pedir esclarecimentos, aconselhando-a a simular que o não entendêra.

Pouco antes de terminada a partida, um moço legitimista recitou um poemeto dedicado ao nascimento do terceiro filho do sr. D. Miguel de Bragança. Perguntou alguem a Calisto se conversava alguma hora com as musas, ou se, á maneira de Cicero, escrevia o desgracioso:

Ó fortunatam natam, me consule, Romam.

Disse o morgado relanceando os olhos a Adelaide, que o seu primeiro parto metrico apenas tinha de vida quarenta e oito horas, e tão aleijado saíra, que elle se envergonhava de o offerecer ao apadrinhamento de pessoas authorisadas.

Instaram damas e cavalheiros pela amostra da obra prima, que certamente o era, attenta a modestia do poeta.

—São versos, disse elle, que se poderiam mostrar aos quinze annos, e que seriam derisão e lastima aos quarenta e quatro.

Objectaram as damas argumentando que o homem de quarenta e quatro annos devia receber as inspirações dos vinte, porque no vigor da edade é que o coração fulgura em toda a sua luz.

Tregeitou Calisto uns esgaros de satisfação ridicula. Eram os percursores de alguma enorme necedade.

Embora resistisse á exposição da sua estreada musa, não se conteve que, despedindo-se de cada uma das senhoras da casa, disse, á puridade, a D. Adelaide:

—V. ex.^a verá as trovas que só Deus viu, e ninguem mais verá no mundo.

D. Adelaide ficou embaçada. Seria aggravar as meninas de dezoito annos, e educadas como a filha do desembargador, e amantes como ellas de um compromettido esposo, estar eu aqui a definir a entranhada zanga que lhe fez no espirito d'ella o desproposito de Calisto. A estima affectuosa que lhe ella ganhára, por amor d'aquella cavalheirosa acção, por onde a paz domestica se restaurára, não teve força de rebater o tedio e o odio do tom mysterioso do provinciano.

Em quanto ella confiava da irmã o despeito e aversão com que a deixaram as ultimas palavras de Calisto Eloy, estava elle no seu gabinete retocando e peorando aquellas linhas rimadas, a cuja rebentação assistiu o leitor com piedosa tristeza.

XIX

*Ó mulheres!…*

Seguiram-se horas de insomnia. O juizo dava-lhe tratos amarissimos ao coração. O homem sentava-se na cama, e remechia-se inquieto como se o escarneo o estivesse picando d'entre a palha do enxergão.

Os intervalos lucidos eram-lhe intervalos do inferno. Os axiomas classicos sobre o amor caiam-lhe na memoria como chuva de dardos. Quem mais o suppliciou foi o seu mestre e amigo D. Amador Arraiz. Este santo bispo apresentou-se-lhe em visão, com D. Theodora Figueirôa ao lado, e disse-lhe as palavras do capitulo XLV dos Dialogos: «Em a lei de Christo a fidelidade que deve a mulher ao marido, essa mesma deve o marido á mulher; e, se as leis civis dão mais poder aos maridos que ás mulheres, não é para as offender e maltratar, nem para um ter mór jurisdição sobre si que o outro.»

Seguiram-se outras visões de não somenos pavor. Ahi pela madrugada, Calisto Eloy amodorrou-se em roncado dormir; mas a fada que lhe abrira os thesouros virgineos do coração, a esbelta Adelaide bateu-lhe com as azas brancas nas palpebras, e o homem acordou estremunhado a desgrudar os olhos, que se haviam fechado com duas lagrimas, as primeiras que o amor lhe esponjára do seio, e cristalisára nos cilios, como diria o dr. Liborio. Então foi o trabalharem-n'o umas cogitações tão sandias, que seriam imperdoaveis, se não estivessem na tresloucada natureza de todo homem que ama.

Entrou a inventariar as alterações que devia fazer no substancial e accidental da sua personalidade.

O uso do meio grosso pareceu-lhe incompativel com um galan. Aquelles sibilos da pitada, bem que denotassem espiritos cogitantes e gravidade de juizo, deviam de toar ingratamente nos ouvidos de Adelaide. De mais d'isso, a saraivada de bagos de rapé que elle sacudia dos sorvedouros nasaes, algumas vezes obrigava as damas a formarem sobre os olhos com os dedos um antemural sanitario contra as insuflações immundas do sabio. Deliberou, portanto, immolar as delicias pituitarias.

Viu-se no espelho de barbear, modesto utensilio do estojo de bezerro, e conveio no deslavado prosaismo da sua cara clerical. Resolveu deixar pera e meia barba, como transição para o bigode, que devia ir-lhe bem na tez um tanto moreno-pallida.

Como o estudo lhe havia extenuado os olhos, e por amor d'isso usava oculos de prata quando lia, adoptou a luneta de oiro com molas pensis.

N'este proposito, saiu a delinear as reformas capillares; fez alinhar as bases de uma cabelleira, que trouxera escadeada da provincia; e consentiu que lhe encalamistrassem dois topes rebeldes ao ferro.

Depois, quando a ancia de uma pitada começava a importunal-o, fez provisão de charutos, e fumou o primeiro com afflictivas caretas, e engulhos de estomago.

Colheu informações dos alfaiates de melhor fama, e foi ao Keil encommendar duas andainas de fato. O artista offereceu-lhe os figurinos; e, como lhe fallasse francez, Calisto suppoz que o attencioso alfaiate lhe dava a conhecer os retratos de alguns sujeitos illustres da França. Corrido do engano, depois de lêr as indicações das toilettes, saiu d'alli a procurar mestre de linguas, e a comprar diccionarios e guias de conversação.

Se o leitor, mais perseguido da fortuna esquerda, nunca passou por lances analogos, não se tenha em conta de desgraçado.

Quem tivesse conhecido, um mez antes, Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, devia choral-o, quando o viu entrar n'um café a pedir agua para combater os vomitos provocados pelo charuto!

Irá perder-se aquella alma tão portugueza, aquelle exemplar marido, aquelle sacerdote e glorificador dos classicos lusitanos?

O amor abrirá no pavimento da camara um alçapão, onde se afunda aquelle grande brilhante, desluzido, mas promettedor de refulgente lume?

Di meliora piis!

Ó Lisboa!…

Ó mulheres!…

XX

*Proh dolor!…*

Adelaide, temerosa de algum imprevisto accidente, que a desmerecesse no conceito de Vasco, por causa do morgado da Agra, relatou ao pae o dialogo da antevespera, e a promessa da poesia para a noite seguinte.

O desembargador duvidou do entendimento da filha, antes de acreditar na insania do seu melhor amigo. Como havia de crer elle no intento deshonesto de um homem que lhe emergira a outra filha da voragem? E, crendo, como se comportaria em lanço de tanto melindre?

Meditou, e discretamente resolveu que suas filhas e genro fossem passar alguma temporada da primavera na sua quinta de Campolide; e se pretextasse a doença de uma neta, para que a saida se fizesse n'aquelle mesmo dia. Pôde mais com o velho a gratidão que a offensa.

Calisto Eloy chegou á hora costumada. Já não entrava á presença do magistrado com a facilidade e lhanesa de outros dias. A sisudeza do semblante arguia o incommodo da consciencia. Mais lh'a inquietava a estudada jovialidade, com que Sarmento o recebeu. Antes de perguntar pelas senhoras, lhe disse o velho o motivo da inopinada saida para ares. Calisto passou o restante da noite com os amigos da casa; porém, insolitamente abstraido, concorreu a augmentar a lethargia d'aquelles velhos soporosos, que pareciam ajuntar-se para se narcotisarem, e entrarem emparceirados nas silenciosas regiões da morte.

Fez sensação na assembléa tirar Calisto de uma charuteira de prata um charuto, e baforar columnas de fumo, com uns modos aperalvilhados, e improprios de sua gravidade. Sarmento, com delicada liberdade, observou a preponderancia que os costumes de Lisboa iam actuando sobre o animo do seu bom amigo. Sentiu que os ruins exemplos vingassem quebrantar aquella admiravel singeleza de trajo e maneiras que o morgado trouxera da sua provincia. Lamentou que, em menos de tres mezes, o modelo do portuguez dos bons tempos, se baralhasse com os usos modernos e viciosos.

Calisto Eloy defendeu-se froixamente, allegando que as mudanças exteriores não faziam implicancia ás faculdades pensantes; e ajuntou que, sciente de que tinha sido incentivo da mofa entre os seus collegas, á conta da simpleza um tanto anachronica dos seus costumes, entendera que a prudencia o mandava viver em Lisboa consoante os costumes de Lisboa, e na provincia, segundo o seu genio e habitos aldeãos. Concluiu, dizendo que: Cum fueris Roma, Romam vivito mora,[20] e que o fazer-se singular importava fazer-se ridiculoso; e que os seus annos não eram ainda bastantes para authorisarem a distinguir-se no mero accidente dos trajos.

Perguntado por que deixára de tomar rapé, costume indicativo de homem pensador e estudioso, respondeu que alguns escriptores modernos attribuiam á ammoniaca componente do rapé, o deperecimento das faculdades retentivas, pela acção deleteria que o poderoso alcali exercitava sobre a massa encephalica. Além de que a fumarada do charuto, sobre ser purificante e anti-putrida, dava aos alvéolos solidez, e consistencia aos dentes.

Estas explicações não evitaram que o desembargador, com os seus velhos amigos, prognosticassem o derrancamento do morgado da Agra, depois que elle se retirou, algum tanto azedado das reflexões d'aquella gente encanecida.

Sarmento não o convidára a ir visitar as filhas a Campolide, nem de leve; no correr da noite, fallou d'ellas. Calisto Eloy tambem não suscitou conversação relativa ás senhoras, porque já a doblez do espirito lhe tolhia a usual franqueza e familiaridade.

Entrou a dementar-se aquella desconcertada cabeça. A saudade, em vez de lhe tirar lagrimas do intimo amadurou-lhe temporamente a apostêma de sandices, que em todo homem se cria paredes-meias com o coração. Ahi começa elle a imaginar que o desembargador Sarmento, adivinhando os amores mal recatados de Adelaide, a obrigara a sair de Lisboa. Corroborava a suspeita não o convidar elle a visitar as damas. Isto sobre excitou-lhe o sentimento; por que, a seu vêr, Adelaide estava penando, havia uma victima, um coração sopesado, uma alma em abafos de paixão.

Esta conjectura atirou com Calisto para os tempos cavalleirosos.

O olhar em si, e ver-se maneatado pelos vinculos sacramentaes, não o reduzia á compostura e honestidade de seu estado e annos. Ainda assim, sejamos justiceiros e ao mesmo tempo misericordiosos com esta alma enferma: na cabeça allucinada de Calisto de Barbuda não havia idéa ignobil e impudica.

O amor, resaltando da cratera abafada quarenta e quatro annos, dizia-lhe que era fidalguia de alma não transigir, por conveniencias e respeitos sociaes, com a oppressão, e alvedrio paterno. Se Adelaide o amava como e quanto Calisto já não podia duvidar, sua honra d'elle era pôr peito á defesa da oppressa, beber metade do absyntho do seu calix, luctar, sem desdouro da probidade de um Barbuda, até perecer, exemplo de amadores de antiga tempera.

Amou quem isto lê, e tresvariou aos vinte annos? Passou por uns hórridos eclipses de entendimento, que apoz si deixam lagrimas tardias e vergonhas insanaveis?

Amisere-se, pois, d'aquelles lucidissimos espiritos de Calisto, que por um se vão apagando ao ventar rijo da paixão, quaes se apagam em céo de bronze as estrellas do mar alto, já quando o naufrago desesperançado finca os dedos recurvos na espuma das vagas.

Ó mal-sorteado Calisto! que aureola de patriarcha te resplendia em volta do teu chapéo de merino e aço, quando entraste em Lisboa! Que anjo eras, entrajado na tua casaca de saragoça sem nodoas! Aquella scientifica boa fé com que procuravas monumentos em Alfama, e agua depurante do muco catharroso no chafariz d'El-Rei, e querias que os aljubêtas da rua de S. Julião te dessem conta do chafariz dos cavallos!…

Que te valeram as maximas de boa vida colhidas a centenares nos teus classicos, e enceleiradas n'essa alma, refractaria á ternura de tanta moça escarlate e succada, que, lá em Caçarelhos, se enfeitava para achar graça em teus olhos?

Cairias tu nas piozes d'esta princeza dos mares, d'esta Lisboa que filtra aos nervos dos seus habitantes o fogo que lhe estua nas entranhas?

Cairias tu, anjo?

XXI

*O mordomo das tres virtudes cardeaes*

Era por uma noite escura e fria de abril.

O vento esfusiava nas ramalheiras de Campolide.

A lua, a longas intermittencias, parecia, wagon dos céos, correr velocissima entre nuvens pardas, para ir ingolfar-se n'outras. Então era o carregar-se a escuridão da terra, e mais para pavores o rangido das arvores sacudidas pelos bulcões do septentrião.

Soaram doze horas por egrejas d'aquelles valles. Era um como crebro soluçar da natureza por pulmões de bronze. Era o grão clamor da terra em angustias parturientes de alguma enorme calamidade.

Áquella hora, e por aquella noite capeadora de assassinos e bestas-feras, Calisto Eloy, embrulhado n'um capote de tres cabeções e mangas, que trouxera de Caçarelhos, passava rente com o muramento da quinta de Adelaide.

Depois, como saisse da vereda escura a um recio que defrontava com a frontaria da casa, aqui parou, e cruzando os braços, se esteve largo espaço quedo, e fito nas janellas.

Nem lua nem scintilla de estrella no céo! As confidentes d'aquelle amador torvo como o cerrado da noite, negro como o coração que lhe arfa a lapela esquerda do collete, são as trevas. Quiz accender um charuto. Nem os phosphoros vingavam lampejar na escuridão.

E o vento assoviava no vigamento da casa, e nas orelhas de Calisto, o qual, levado do instincto da conservação, levantou a gola do capote á altura das bossas parietaes, e disse, como Carlos VI:

—Tenho frio!

E passou-lhe então pelo espirito um painel da sua situação tirado pelo natural. Viu-se no espelho, que a razão lhe offereceu, e cobrou horror da sua figura.

Bem que tal acto não implicasse delicto, nem affrontasse os bons costumes, Calisto, apertado no transito difficil das indoles que se passam do comportamento austero e captivo ás liberdades e solturas do vicio, olhava com saudade o seu passado, as suas alegrias puras; e, mais que tudo, áquella hora, como o frio cortava as orelhas, lembrou-se da quentura e aconchego do leito nupcial.

E como esta visão honesta, para mais o pungir, havia de ser encarecida com uma imagem de mulher leal e immaculada, Calisto viu D. Theodora de touca, n'aquelle dormir placido de quem adormeceu com a alma quieta e intemerata. Não bastava a touca, tão hygienica quanto pudica, a penitencial-o com remordentes saudades: viu-lhe tambem o lenço de tres pontas de algodão azul com que ella costumava resguardar os hombros, antes de subir as quatro escadinhas que conduziam ao alteroso leito de páo santo.

Se visões analogas, alguma vez, puzeram guerra ao demonio tentador dos maridos infieis e o venceram, d'esta feita não se logra a sã virtude do triumpho.

É que as toucas e lencinhos pudibundos, sobre não serem enfeites mui seductores, algumas vezes tornam a virtude rançosa e tamsómente boa para adubar palestras de avós com as netas casadoiras. Este mal deve-se ás artes da estatuaria, artes em que a imaginativa não põe nada seu, porque tudo é copiado da natureza nua, ou quasi nua. Nem se quer as Niobes, as Lucrecias e Penelopes o buril respeita. Nos casos mais lacrimaveis e tragicos, querem fados máos que os olhos achem sempre pasto á cobiça, quando a impressão devera ser toda para levantamentos de espirito, e «visões altas» como diz o bom Sá de Miranda.

Quando a arte deshonesta não despe as figuras, veste-as de feitio que pelo ondeado das roupas transparentes esteja o peccado a fazer negaças a conjecturas taes que, certo estou, Calisto Eloy, antes de se empestar em Lisboa, se taes impudicias visse, romperia no parlamento os vesuvios da sua eloquente indignação. E a posteridade, ajuizando da moral d'esta nossa edade de limos e alforrecas, viria a este lameiral esgaravatar a perola da edade aurea, caida dos labios do marido de D. Theodora, a qual, segundo fica dito, dormia de touca e lencinho de algodão azul de tres pontas.

Esta peregrina imagem não bastou a desandar Calisto pelo caminho de Lisboa, e do seu gabinete, onde os pergaminhos dos seus livros pareciam rever lagrimas de amigos descaroavelmente desprezados. O infeliz não desfitava olhos de certa janella, desde que vira perpassar uma luz pelos resquicios das portadas. Podia a trahida Theodora antepôr-se aos olhos extasiados do esposo, com a pudenda touca, ou com as madeixas estrelladas de brilhantes, que elle não a via nem queria ver.

Ahi por volta de meia noite estava Calisto recordando o que dissera, em circumstancias analogas, Palmeirim aquelle grão cavalleiro de Francisco de Moraes, diante do castello de Almourol que fechava em seus arcanos a formosa Miraguarda. N'isto scismava, comprehendendo então as phrases mélicas dos famosos amadores, quando as portadas da janella se abriram subtilmente, e logo a vidraça foi subindo mui de leve.

O recanto, em que o morgado da Agra se abrigára do vento, estava fóra do caminho, e sumido aos olhos da pessoa que abrira a janella. Ao mesmo tempo, ouvia elle passos na estrada, e logo viu acercar-se um vulto rebuçado da casa de Adelaide, e parar debaixo da janella que se abrira.

Conjecturou Calisto de Barbuda, que D. Catharina Sarmento, a esposa infida, reincidira nas presas do velho peccado, e sentiu algum tanto molestada sua vaidade de regenerador de corações estragados. Tambem suspeitou que Bruno de Vasconcellos, quebrando a palavra jurada, voltára do estrangeiro a reatar a criminosa alliança. Não lhe deram tempo a mais conjecturas. O encapotado espectorou um cacarejo de tosse secca; da janella, como contra-senha, respondeu outro cacarejo de mais sympathico som, e logo as duas almas se abriram n'este dialogo:

—Ainda bem que recebeste a minha carta, Vasco!…—disse Adelaide—Estavas em casa da tia condessa? Eu mandei lá por me lembrar que se fazia lá hoje a novena das Chagas…

—Fiquei espantado—disse Vasco da Cunha—Que rapida deliberação foi esta?! Vir para uma quinta com tão máo tempo! Foi caso de maior!…

—Fui eu a causa—tornou ella—São melindres do meu coração, que, por amor de ti, não soffre que outra voz de homem lhe falle a linguagem que eu só quero e acceito de tua bocca. Antes me quero aqui escondida com a tua imagem, que ver-me obrigada a tolerar os atrevimentos do Calisto de Barbuda…

—Que!—atalhou Vasco—pois aquelle homem tão serio!… tão temente a
Deus!…

—É um hypocrita com a brutalidade de um provinciano!… Offereceu-me uns versos em segredo! Que ultraje! que falta de respeito á minha posição…

—E que desmoralisada e irreligiosa creatura! Casado, já d'aquelles annos, legitimista, e catholico, segundo diz, e ousar… Estou espantado! E a tia condessa que me tinha encarregado de o convidar para assistir, no domingo á festa das Chagas! Fiem-se lá!… E tu não faltes, á festa, Adelaide. Esto anno fazemol-a com toda a pompa. O prégador já me leu o discurso, e trata eruditamente a materia. A prima Lacerda vae cantar um Benedicite, e a prima viscondessa de Lagos canta um Tantum ergo. Havemos de fazer melhor festa que a do conde de Melres. Eu começo ámanhã a colher flores e a pedil-as para enfeitar o altar dos tres reis magos e das tres virtudes cardeaes, de que me fizeram mordomo, não sei se sabias?

—Não sabia, meu amor—disse Adelaide, congratulando-se com os enthusiasmos pios do excellente moço.

A palestra proseguiu n'este tom por espaço de uma hora. A lua espreitava estas duas pessoas por entre as nuvens, que a pouco e pouco se foram descondensando. O céo azulejou-se e estrellou-se para galardoar a virtude do mordomo das tres virtudes cardeaes e da bella menina destinada a maridar-se com o mais energico influente da festa das Chagas, com que o devoto conde de Melres se havia de dar a perros.

No entanto, Calisto Eloy, consultando a sua consciencia a respeito de Vasco da Cunha, decidiu que o homem, se não era um santo, propendia grandemente para a semsaboria de idiotismo. Esta critica é a prova de um animo já iscado da peçonha da meia impiedade que degenera em impiedade inteira. Já como castigo de escarnecer um moço virtuoso, sentia elle encher-se-lhe de amargura o coração. Não bastava ouvir-se qualificado de hypocrita brutal por Adelaide; quiz de mais d'isto a providencia dos amantes lerdos, providencia que eu não posso escrever se não com p pequeno, quiz, digo, que Vasco da Cunha, mancebo em flor d'annos e gentileza, se estivesse alli rejubilando em novenas e mordomias das tres virtudes cardeaes, em quanto elle Calisto, a mais de meio caminho da morte, ardia em fogo impuro e cobiça peccaminosa, com os olhos cerrados á visão duas vezes pura de uma esposa de touca e lencinho azul de tres pontas sobre as espaduas não despeciendas, segundo me consta.

Merecem escriptura as ultimas phrases de Adelaide e Vasco.

A menina, interrompendo os enlevos do devoto moço, que se deleitava em conjecturar a zanga do conde de Melres, perguntou-lhe, com doce requebro, quando viria o dia suspirado de sua união.

Vasco deteve a resposta alguns segundos, e disse:

—Deixemos vêr se morre minha tia Quiteria, que me quer deixar os vinculos do Algarve.

—Pois nós—volveu Adelaide magoada—não poderemos ser felizes sem os vinculos de tua tia Quiteria, meu Vasco?

—Ninguém é feliz desobedecendo aos seus maiores, replicou Vasco. A tia Quiteria quer que eu espere a volta d'el-rei para depois tomar ordens sacras, e trazer mais uma mytra episcopal á nossa linhagem onde estavam como em vinculo as principaes prelazias do reino.

Adelaide, não obstante o coração, quando aquillo ouviu, sentiu-se mal do estomago.

XXII

*Outro abysmo*

Esta pungente lancetada não esvermou a postema do peito de Calisto de Barbuda. Desde que qualquer sujeito perde o siso do coração, escusado é esperar que a razão lh'o restaure: em tão boa hora que elle o recupera depois das amargas provas. O homem, porém, que amanhece tolo aos quarenta e quatro annos, a mim me quer parecer que ao entardecer-lhe a vida a tolice refinará.

Tenho dois grandes exemplos d'isto: um é Calisto de Caçarelhos; o outro é Henrique VIII de Inglaterra. Este, ahi pelas alturas dos quarenta annos, tão bom homem era, que até escrevia contra o impio Luthero, e vivia santamente com sua esposa, Catharina de Aragão. Insandeceu de amor, vinte annos depois de marido exemplar, e d'ahi por diante sabe o leitor que golpes elle deu no peito invulneravel do papa e no fragil pescoço das pobres mulheres.

Calisto Eloy não será capaz de repudiar nem degolar Theodora, porque n'este paiz ha leis que reprimem os patetas sanguinarios; todavia, eu não assevero que elle seja incapaz, alguma hora, de lhe chamar parva e hedionda, e de lhe atirar com a touca e com o lenço azul de tres pontas á cara vermelha de pudor. Veremos.

Calisto, digamol-o sem refolhos, caiu. Atascou-se. Foi de cabeça ao fundo do pégo em que deram a ossada o ultimo rei dos godos, e Marco Antonio, e o rei enfeitiçado pela comborça Leonor Telles, e Simplicio da Paixão, e varias pessoas minhas conhecidas, que experimentaram todos os systemas de desfazer a vida, desde o muro de S. Pedro d'Alcantara até ás cabeças dos palitos phosphoricos.

Este enguiçado Barbuda, na volta de Campolide, não teve uma lagrima que chorasse sobre a sua dignidade esfarrapada. Circumvagou a vista pelos seus livros, figurou-se-lhe vêr na lombada de cada in-folio o olho de um demonio zombeteiro, bem que aquelles pergaminhos encadernassem almas, no céo bem-aventuradas, e na terra immorredoiras, almas que n'este mundo se chamaram fr. João de Jesus Christo, fr. Pantaleão d'Aveiro, fr. Antonio das Chagas, e dezenas d'estes talismans, que tem salvado o leitor e a mim de soçobrarmos nos parceis que esbravejam á volta de Calisto.

Eram duas horas da manhã, quando o morgado experimentou uma sensação, que viria a definir-lhe o espirito, se alguem carecesse de vêr este homem a luz extraordinaria.

Nas aguas-furtadas do andar, em que elle morava, residia uma viuva de um tenente, senhora d'annos insuspeitos, de muitas lerias, minguada de recursos, e, por amor d'isso, se offerecêra a cuidar da casa e da cosinha do deputado. Ás duas horas, pois, bateu Calisto á porta da visinha, e, como ella lhe fallasse, exprimiu elle a sensação imperativa, que o levou alli, por estes termos:

—Sr.^a D. Thomazia, ha por ahi alguma coisa que se coma?

—Não ha nada feito; mas eu vou fazer chá, sr. Barbuda, e o que v. ex.^a quizer.

—Olhe se me póde frigir uns ovos com presunto—volveu elle.

—Pois lá vão ter d'aqui a pouco.

—Veja lá que se não constipe, sr.^a D. Thomazia—recommendou elle.

—Não tem duvida. Olhe que eu tenho muito que lhe dizer. Achou um bilhete de visita na escrevaninha? perguntou D. Thomazia pelo buraco da fechadura.

—Não achei.

—Pois lá está. Faz favor de ir, que eu vou vestir-me.

—Então a sr.^a D. Thomazia está-se constipando? Ora esta! Isso é que eu não queria!… Cá desço, e até logo.

O bilhete, que o deputado encontrou, dizia: Iphigenia de Teive Ponce de
Leão, e logo a lapis: viuva do tenente general Gonçalo Telles Teive
Ponce de Leão
.

Desfilaram por diante do espirito de Calisto Eloy regimentos de illustres familias oriundas dos Telles e dos Teives e dos Ponce de Leão. Na linhagem dos Barbudas tambem alguma vez tinham entrado os Teives, e uma decima nona avó de Calisto viera de Hespanha, e era Ponce, dos Ponces genuinos dos duques de Banhos.

Estava o morgado combinando estes parentescos contrahidos ahi pelo ultimo quartel do seculo XII, quando D. Thomazia entrou com o presunto e ovos. Calisto assentou o prato sobre dois volumes da Historia Geneologica, que lhe tomavam a banca: e quanto a deglutição lh'o permittia, n'alguns intervalos, foi perguntando:

—Então quem é esta senhora, que me procurou?

—Eu só sei dizer, respondeu D. Thomazia, que é uma creatura linda, linda quanto se póde ser!

—Como assim?! atalhou Calisto, retendo uma lasca de presunto entre os dentes molares, pois ella não é a viuva de um tenente general, que naturalmente havia de morrer velho?

—Póde ser que elle morresse velho; mas a viuva o mais que póde ter é trinta annos.

—E com que então galante?

—É uma imagem de cera. V. ex.^a ha de vêl-a. E então elegante! A cintura cabe aqui, proseguiu D. Thomazia, formando um annel com dois dedos. Eu, quando ouvi parar uma carruagem, cuidei que era v. ex.^a e vim abrir as portas do escriptorio. A senhora veiu subindo, e puchou á campainha. Eu espreitei lá de cima, e, a fallar verdade, lembrei-me se seria a sua esposa, que lhe quisesse fazer uma agradavel surpreza. Perguntou-me ella pelo sr. Barbuda de Benevides, e foi entrando comigo para a sala. Levantou o véo, e disse: «Não está em casa?» Que voz, sr. morgado, que voz de creatura aquella!

—E isso a que horas foi? atalhou Calisto. Era por noite alta?

—Não, meu senhor. Eram seis horas da tarde. V. ex.^a tornou ás oito, mas saiu logo; e, quando eu voltei de fazer uma visita, já o não achei para lhe dar esta noticia.

—E depois a senhora que mais disse?

—Mostrou-se pesarosa de o não encontrar, e prometteu de voltar hoje ás tres horas.

—E a sr.^a D. Thomazia saberá o que me quer essa dama?

—Não sei; o que ella sómente disse foi que v. ex.^a era um genio.

—Pois ella disse-lhe isso sem mais nem menos?

—Foi a respeito de vêr aqui estes livros muito grandes, acho eu. Esteve a reparar n'elles com uma luneta… E a graça com que ella punha a luneta!… Mulher assim!… Os homens ás vezes por mais asneiras que façam, teem desculpa!…

—As paixões, minha sr.^a D. Thomazia…—obtemperou o morgado, e lambeu os beiços molhados da libação de um vinho nervoso d'aquella garrafeira já mencionada. E proseguiu.—As paixões do amor… Nem os grandes sabios nem os grandes santos se exemptaram d'ellas. Somos todos de quebradiço barro; somos uns pucarinhos de Extremoz nas mãos infantis das mulheres. O tributo é fatal: quem o não pagou aos vinte annos, ha de pagal-o aos quarenta, e mais tarde, quando Deus quer… Deus ou o demonio, que eu não sei ao justo quem fiscalisa estes malaventurados successos de amor, que a historia conta e a humanidade experimenta cada dia…

—É um gosto ouvil-o!—interrompeu D. Thomazia—Bem no disse aquella senhora: v. ex.^a é um genio, e falla de modo que se mette no coração da gente. Quer que lhe diga a verdade, sr. Barbuda? Foi bom que v. ex.^a me encontrasse n'esta edade. Se eu fosse moça e bonita, como dizem que fui, um homem como v. ex.^a havia de me dar cuidados.

—Ora, minha sr.^a D. Thomazia, isso é lisonja e favor. Eu já não estou tambem na edade de tocar corações, nem os meus habitos vão muito para ahi!

—Edade!—accudiu a viuva do tenente—v. ex.^a póde dizer que tem trinta e cinco annos, que ninguem lh'o duvida. É mania agora dos rapazes quererem á fina força passar por velhos. Pergunte quem quizer á visinha do primeiro andar se o acha velho. Está-me sempre a perguntar se v. ex.^a me diz d'ella alguma coisa… Conhece-a?

—Bem sei: uma mocetona cheia, com umas fitas escarlates na cabeça…
Não é má…

—E sabe v. ex.^a que mais? Eu vou apostar que esta senhora, que veiu cá, traz coisa no coração, que a obrigou. Assim uma senhora nova, sosinha, tão encantadora!… Aquillo, em quanto a mim, é que já o ouviu no parlamento, e apaixonou-se. Ha muitos casos assim cá em Lisboa de senhoras apaixonadas pelos homens de talento. O talento é uma coisa muito bonita! Meu marido casou comigo quando era sargento do treze de infanteria, e andava nos estudos. Era feio, e ao principio tinha-lhe medo; mas assim que elle me mandou um acrostico… V. ex.^a sabe fazer acrosticos?

—Ainda não me puz a isso.

—Pois como eu me chamo Thomazia Leonor e tenho quatorze letras fez-me elle um soneto que me deu volta á cabeça, e tamanho incendio me tomou o peito, que o amei até á morte, e ainda agora, ficando eu viuva aos trinta e nove annos, fui, sou e serei fiel á sua memoria.

N'este ponto, D. Thomazia, ferida n'alma pelo acrostico memorando, chorou.

Calisto represou-lhe os prantos com algumas maximas consoladoras sobre a morte, e bocejou, já por que eram tres horas e meia da manhã, já por que o dialogo descaira nos aborrimentos de uma palestra em dia de fieis defuntos. D. Thomazia começou a espirrar, por que se não agasalhára bastantemente, e assim se apartaram estas duas pessoas, que uma hora de expansão aproximara.

Calisto, conforme ao antigo uso, levou um livro para a cabeceira do leito. Escolheu poeta, e saiu-lhe o seu já tão querido outr'ora Sá de Miranda. Abriu ao acaso, e saiu-lhe n'uma pagina d'Os Estrangeiros esta maxima: Duas sortes de homens ha no mundo que se possam servir: ou muito parvos ou muito namorados, e ainda os namorados tem grande vantagem.

A meu vêr, o espirito d'aquelle honrado doutor, que tão santo marido fôra de Briolanja de Azevedo, até de saudades d'ella se deixar morrer, alli lhe viera, áquella hora, relembrar occasionalmente e a ponto uma de suas maximas, como em paga do affectuoso respeito com que Barbuda o lia e inculcava á mocidade depravada.

Calisto Eloy pôde ainda admirar o lidimo portuguez da maxima, e adormeceu.

XXIII

*Tenta o seu anjo da guarda salval-o mediante uma carta da esposa*

Calisto dormiu mal.

As alvoradas de um dia feliz são mais temporãs que as da estrella d'alva. O coração acorda primeiro que os passaros. O amor diz o seu fiat lux primeiro que Deus. Estas tres sentenças, a meu vêr, são mais intelligiveis que o contentamento do morgado da Agra, ao levantar-se da cama em que dormitára algumas escassas horas alvoroçadas.

O desastre de Campolide quebrantaria um homem qualquer que viesse a cumprir n'este mundo os vulgares destinos da maxima parte dos mortaes. Individuos notaveis já sairam scepticos e bravos cynicos de aperturas menos dilacerantes. Os annaes ensanguentados da humanidade estão cheios de facinoras, empuxados ao crime pela ingratidão injuriosa de mulheres muito amadas e perversissimas. Superabundam casos de embaçadellas analogas á de Calisto: d'estes lances obscuros tem saido aparvalhada muita gente que era escorreita, e que se volve daninha á republica. São uns homens que vos namoram as criadas, se vos não podem requestar a familia; uns vampiros de sangue femeal, que trazem o demonio da vingança no corpo, demonio meridiano e nocturno, que bebe lagrimas de mulher, em quanto os possessos d'elle bebem cognac e absyntho. Um homem d'estes, encostado a frade de esquina, é o leão que espreita da sua caverna lybica a antilopa descuidosa. Officiala de modista, que se espaneja nas verduras do jardim da Estrella, como alvéola nas praias borrifadas de espuma, se o anjo da guarda a desampara um quarto de hora, tem os seus dias contados. O scelerado, com o simples auxilio de um gallego, em que por vezes se ingere e chafurda o confidente de Fausto, arranca da fronte da alegre palmilhadeira de botinhas a grinalda de laranjeira em botão, que esperava a sua primavera, o seu abrir-se e rescender, no primeiro dia nupcial. Que tristeza! E ninguem falla d'isto senão eu, porque me cumpre fazer o elogio de Calisto Eloy, que não fez cousa nenhuma d'aquellas.

Assim que se ergueu cuidou em aformosear a saleta, cuja decoração era menos de modesta. Saiu açodado ao armazem dos mais elegantes estofos, e comprou alfaias magnificas. O homem pasmava dos nomes d'aquelles objectos, nenhum dos quaes soava portuguezmente.

—Porque chamam a isto chaise-longue?—perguntava Calisto Eloy ao engenhoso Margoteau.

—Porque chamam?!

—Sim: eu creio que se não offende a França no caso de chamarmos a este movel uma cadeira longa, ou uma preguiceira, que sôa melhor. E étagère e console e téte-à-tête, e onaise? E é carissimo tudo isto! A gente, pelos modos, de fóra parte os objectos, tambem paga a lição de francez de samblador, que vem aqui aprender?

Sem embargo d'estes reparos, o oiro saiu-lhe generosamente da algibeira bem apercebida.

A pobre saleta do morgado, dentro em pouco, transformou-se em recinto digno de uma Ponce de Leão. Calisto, refestelado nos coxins elasticos da ottomana, contemplava os restantes adornos do aposento, quando lhe chegou do correio carta da sua esposa.

Dizia assim:

«Já com esta são tres que te escrevo, e ó por hora nem uma nem duas da tua parte. Marido! que fazes tu, que não respondes? Ando a futurar que não tens o miolo no seu logar. Longe da vista, longe do coração, diz lá o ditado. Ora, queira Deus que não seja por minga de saude; e, se é, dil-o para cá, que eu estou aqui estou lá.

«O primo Affonso de Gamboa esteve cá ha dias, e a modo de caçoada foi-me dizendo que lá na capital as mulheres inguiçam os homens, e fazem d'elles gato sapato. Eu fiquei sem pinga de sangue, meu Calisto! Mal fiz eu em te deixar ir ás côrtes. Bem tolo é quem está bem na sua casa, e se mette n'estas coisas dos governos, que só servem para quem não tem que perder, como diz o primo Affonso.

O peor é se tu pegas a doidejar com as mulheres, e saes do teu sério. Eras um marido perfeito como a santa religião o quer, e tenho cá uns agouros no peito que me não deixam fechar olho ha tres noites. Deus te defenda, homem, e te traga aos braços da tua mulher são e escorreito da alma e do corpo.

Saberás que o mestre-escola anda de candeias ás avessas por que tu lhe não respondes á carta em que elle te pediu uma venera. Olha se lhe arranjas isso ainda que te custe pedir ao rei ou lá a quem é a tal coisa. O homem tem-me feito favores, quando eu preciso que elle me leia a relação dos foreiros. A vacca preta comeu o bicho, e morreu hontem á noite. Lá se vão cinco moedas e um quartinho com a breca. O centeio da tulha do meio deu-lhe o gorgulho, e tratei de o vender, a trezentos e quinze, foi bem bom arranjo; eram mil e duzentos alqueires.

Olha cá, meu Calisto, disse-me a Joanna Pedra, que ouvira dizer ao Manuel da Loja, que ouviu dizer ao compadre Francisco Lampreia, que veiu de Bragança que lá lhe disseram que tu mandaras ir de casa de um negociante mais de cem moedas de ouro!!! Fiquei estarrecida. Pois tu lá não recebes do rei dinheiro que te sobre? Em que affundes tu tantas moedas, homem? Vê lá no que andas mettido, Calisto! E, se te fôr muito necessario algum dinheiro, cá estou eu para t'o mandar. Aquelle caixote de peças de duas caras fui ha dias escondêl-o na lareira da cosinha velha, porque tenho medo á ladroeira desde que tu andas por lá.

Não te enfado mais. Responde sem demora, que estou muito consternada.

Tua mulher que muito te quer Theodora

Calisto Eloy dobrou a carta vagarosamente, e disse de si para comsigo:

—Pobre mulher! já me sinto enfadado com as tuas cartas… Já as tuas sinceras babozeiras me incommodam e enjoam!… Agora vejo que tu eras quasi nada na minha vida. Não sei em que logar do meu coração estiveste, porque não dou pela falta, nem sequer a saudade me chama para ti!… Os contentamentos da minha vida passada deu-m'os o estudo. O coração dormia como os ventos da tempestade no bojo da nuvem negra, que serenamente se vae acastellando no horisonte. Eil-a começa a desfechar agora relampagos e coriscos. Mas o viver é isto! eu quero e preciso amar. Levam-me os impetos de uma vontade juvenil, e «a vontade é vida» como diz o Jorge Ferreira na Eufrozina. Amor! amor! que me caldeaste e retemperaste o peito nas tuas forjas! emborca-me os teus nectareos phyltros, embriaga-me este coração, que já não póde respirar de afogado nos seus ardores!…

Disse, e tirou de uma charuteira de canudos de prata um havano, cujas ondulações de fumo lhe perfumaram o quarto e subtilisaram a phantasia.

Depois, com forçado tregeito, estendeu o braço sobre uma banqueta de charão, em que assentava um tinteiro de crystal, e escreveu á esposa, n'este theor:

«Prima Theodora e estimada esposa.

Passo bem de saude; mas saudoso de ti. Não te tenho escripto, porque os negocios do estado me levam todo o tempo. Mandei vir dinheiro de Bragança, para emprezas de grande vantagem. Não te dê cuidado os meus gastos, que somos muito ricos, e não temos filhos. Até aqui vivemos miseravelmente, quando eu voltar a casa, quero que mudes de vida, prima. Hei de reformar o nosso palacete de Miranda, e viveremos como nossos avós, com representação e commodidades proprias d'este tempo. É preciso gosarmos a vida, que é curta. Não andes por lá a medir grão nem a tratar das aves. Entrega isso ás criadas, e faz-te a senhora e fidalga que és.

Em quanto ao mestre-escola, e á sua exigencia do habito de Christo, devo
dizer-te que o mestre-escola é um asno. Não respondo a taes cartas.
Manda-o á tabua, e não admittas similhante palerma á tua conversação.
Lembra-te que és uma Figueirôa, casada com um Barbuda.

Se receberes ordem minha, em mão de algum negociante de Bragança, paga o dinheiro que disser a ordem.

Não te lembres de infidelidades do teu Calisto. O primo Gamboa é um patarata sem juizo, que te diz essas coisas para te disfructar.

Quando vier o recoveiro de Miranda, manda-me presunto, salpicões, e algumas ancoretas do vinho da Ribeira.

  Teu muito affecto e extremoso
  Calisto

XXIV

*A mulher fatal*

Ás tres horas em ponto, parou uma sege de praça, á porta de Calisto Eloy de Silos. O bolieiro subiu ao terceiro andar, perguntando se s. ex.^a estava em casa. O morgado arregaçou com o pente as mechas do cabello, que lhe escondiam porção das escampadas fontes, apertou os cordões do rob-de-chambre na volta mais airosa da cintura, e desceu ao pateo a receber a visita.

Saltou da sege, amparando-se levemente na mão de Calisto, uma mulher d'aquellas que Lucifer fazia, quando assaltava no deserto a pudicicia dos Antonios, dos Paulos, dos Pacomios e Hilarioens.

Era alta e pallida: rutilavam-lhe os olhos como lustrosos azeviches á flor de um busto de marfim, algum tanto emaciado. Calisto machinalmente levou a mão ao coração: traspassara-lh'o uma azagaia electrica.

—É muita delicadeza da parte de v. ex.^a, disse Iphigenia.

—Oh, minha senhora!… tartamudeou o morgado da Agra, offerecendo-lhe o braço.

—Parece, tornou ella quando iam subindo, que o meu palpite não me enganou…

—O palpite de v. ex.^a?

—Sim… eu contava com um cavalheiro no rigor da palavra… Delicadeza egual ao talento, qualidades que raras vezes se conformam.

Entraram á sala. O morgado conduziu Iphigenia ao sophá, e disse com voz tremida:

—A que devo eu a honra d'esta visita, minha senhora?

—Abreviarei a minha historia e a minha pretenção. As suas horas deve-as v. ex.^a ao bem da patria, e indiscreta fui eu obrigando-o a estar fóra do parlamento a esta hora…

—Minha senhora… que vale a patria, em comparação da honra que v. ex.^a me dá?! atalhou Calisto Eloy, com o coração nos labios a sorrir.

—Sou brazileira. Pela falla me terá já conhecido…

—Sim: eu estava notando no fallar de v. ex.^a, uma graça indisivel…

—Meu pae era portuguez, capitão de mar e guerra. Foi de Portugal com D. João VI, e casou no Rio de Janeiro, com minha mãe, senhora de boa linhagem, mas de pouquissimos recursos. Nasci em 1830, e casei em 1846 com um official general, do exercito do imperador do Brazil. Meu marido tinha sessenta e seis annos. Emigrára em 1834, com a patente de brigadeiro dada por D. Miguel, tendo sido coronel ainda no reinado de D. João. Gonçalo Telles offereceu a sua espada e intelligencia a Pedro II, serviu bravamente o imperio, e subiu em postos. Eu vivia orphã de pae e mãe, na companhia de parentes maternos, que pensavam constantemente em me dar posição. Casaram-me, e, se me não fizeram feliz, deram-me pae, amigo e mestre na pessoa de Gonçalo Telles.

Ha dois annos que meu marido morreu. Deixou-me pouco, porque ninguem póde grangear muito com honra, principalmente na vida militar. Pouco antes de cair enfermo, me disse que, se algum dia me faltassem recursos e beneficios do governo brazileiro, viesse a Portugal e procurasse o amparo de alguns grandes fidalgos, seus parentes que elle me nomeou um por um; e ajuntou que, se os parentes me não amparassem, pedisse ao estado uma tença em attenção aos muitos serviços que elle fizera á patria em trinta annos, até ao dia em que foi promovido a coronel de cavallaria.

Ha tres mezes que cheguei a Lisboa. Procurei os parentes do meu marido. Apeei á porta de grandes palacios, e esperei largas horas em grandes salas de espera, como viuva que anda requerendo esmola. Enganaram-se.

Alguns, por mais tractos que deram á memoria, já não conseguiram lembrar-se de Gonçalo Telles de Teive Ponce de Leão; outros, os mais velhos, recordavam-se do sujeito, e lastimavam que elle deixasse o serviço da patria. Quando eu não tinha mais que lhes dizer nem elles a mim, eu levantava-me, elles levantavam-se, e despediamo-nos cerimoniosamente. A altivez com que eu os despreso, sr. Barbuda, authorisa-me a dizer-lhe que os miseraveis são elles: eu tenho comigo a riqueza do meu orgulho; e, se conservo os appellidos de meu marido, é porque elle foi talvez o unico de sua raça que os não desdourou…

—Diz v. ex.^a muito bem—atalhou Calisto.—Que nobre alma as suas palavras me manifestam!

—Ha dias, por não ter de portas a dentro coisa que me distraisse de pensares melancholicos, fui ao parlamento. Segui umas senhoras que iam subindo para as galerias. Um homem pediu-me o meu bilhete de admissão: eu não tinha bilhete, e ia descer algum tanto envergonhada, quando um deputado cortezmente me disse: «aqui tem uma entrada, minha senhora.» Agradeci, posto que a minha vontade seria regeitar. Entrei, quando v. ex.^a começava a fallar. Impressionou-me a sua eloquencia chã, os seus ares graves, a compostura, um não sei quê mais sério que os seus annos, permitta-me assim fallar. E, ao mesmo tempo, lembrou-me a recommendação de meu marido, respectivamente aos direitos que elle tinha de ser remunerado na pessoa de sua viuva. Eu nada sei de leis nem consultei quem as soubesse; ignoro se tenho direito a reclamar o que meu marido nunca reclamou. V. ex.^a póde de prompto responder-me?

—Não, minha senhora. O que eu de prompto posso asseverar a v. ex.^a é que, em honra da memoria e cinzas do honrado brigadeiro do sr. D. Miguel, não erguerei minha voz humilde no parlamento, pedindo aos inimigos de D. Miguel favores para a viuva de Gonçalo Telles.

—Em tal caso…—balbuciou D. Iphigenia—baldou-se a minha pretenção.

—Queira v. ex.^a ouvir-me…—Molesta-se com o fumo do charuto?—perguntou elle erguendo-se.

—Não, senhor.

Calisto accendeu o charuto com ademanes theatraes, e voltou a sentar-se, proseguindo:

—Se o marido de v. ex.^a houvesse profundamente estudado a sua arvore genealogica, ajuntaria alguns nomes, mais obscuros mas não menos antigos, á lista dos parentes em Portugal. Mais obscuros, digo eu; porém, a illustração dos mais claros não é de invejar, minha nobilissima senhora. Entre aquelles que se honram do parentesco dos Telles, dos Teives e ainda dos leonezes chamados Ponces de Leão, ha um que dispensou estes appellidos por se não demasiar em composturas nobiliarias. E esse, minha senhora e prima, sou eu.

—V. ex.^a?!—acudiu Iphigenia.

—Eu, que não costumo fallar de meus antepassados, sem invocar o testemunho dos tratadistas nobliarchicos, dos chronistas, dos genealogicos impressos e não impressos. Devo poupal-a a discursos, aliás curiosos, de agradaveis e historicas noticias: mais tarde v. ex.^a ouvirá com interesse as allianças travadas entre os meus maiores e os de meu parente Gonçalo Telles de Teive. Achou, pois, v. ex.^a um parente em Portugal. Boa estrella nos fez confluir a Lisboa; em boa hora me deixei vencer das instancias dos meus constituintes.

—Eu estou maravilhada!…—exclamou Iphigenia—Ha presentimentos prodigiosos!… Que força estranha era esta que me impellia para v. ex.^a!? Subi as escadas de sua casa com desusada affoiteza. Comecei a fallar-lhe com segurança e tranquilidade extraordinarias! Não me lembrei que estava diante de um cavalheiro, que podia intender-me falsa e desairosamente… Em fim, eu fallava a v. ex.^a como se deve fallar… a um primo.

—E mais que tudo a um amigo. E, como amigo, ouso perguntar a v. ex.^a qual é actualmente a sua situação.

—Francamente responderei. Entrei em Lisboa com dinheiro, que poderia bastar á minha economica subsistencia de dois annos; porém, como ao fim de tres mezes, não se me antolhava amparo de ninguem, nem esperanças de alcançar a paga dos serviços de meu marido, pensei em trabalhar para não exhaurir o peculio que tinha. Li um annuncio, convidando mestra de linguas ingleza e franceza para collegio. Confiei bastante em mim, e apresentei-me aos directores. Fallei francez, e cuidaram que eu nascêra em França; em quanto a inglez, deram-me como bastante conhecedora da lingua. Pareceu-me que a minha posição melhorava; mas enganei-me. Eu levava comigo o fatal condão de algumas mulheres; dizem que ainda não estou velha nem feia…

—Que favor lhe fazem, minha senhora!—atalhou Calisto mui risonho.

—Pois este accidente, de que tanto se desvanecem algumas mulheres, tornou-se para mim supplicio. Não querem crêr que eu envolvi meu coração na mortalha de meu marido, no tumulo d'elle o fechei; e, se podesse, este resto de formosura atirara áquella campa, que me roubou um pae.

—Então é certo que minha prima abjurou todas as alegrias do coração?—perguntou Calisto, já ferido n'alma por este desengano á paixão que o ia queimando com um crescer e desenvolvimento para pavores!

—Todas as que não condigam com a minha situação de viuva.

—Pois se a Providencia lhe deparasse um marido digno…

—Maridos dignos são unicamente aquelles que affagam como a filhas as mulheres; são aquelles que as mulheres estremecem como paes; são os que concentram todo o seu viver no pequenino ambito da familia, na placidez e silencios de almas que se contemplam mudas, quando as vozes do coração já não tem que dizer. Eu experimentei estes contentamentos ao lado de um pae, que me deu todo o seu saber quando já não tinha forças para manejar a espada. Não se podem repetir as situações do meu passado; lembro-as com saudade; mas não cogito nem levemente em revivêl-as. Aqui tem v. ex.^a a sincera exposição do que sou. Veiu isto a dizer-lhe que a vida de mestra, que adoptei, me é golpeada de desgostos e repugnancias que me fazem desgraçada.

—E como seria v. ex.^a feliz?—interrompeu Calisto.

—N'uma casinha entre duas arvores, com os meus livros e com as minhas saudades. Ambiciono muito, porque ha pessoas abastadas que nunca puderam conseguir esta felicidade, tão moderada apparentemente.

Ergueu-se Calisto Eloy de golpe, avisinhou-se da brazileira, tomou-lhe a mão com solemnidade, e abriu do peito estas graves e doces vozes:

—Prima Iphigenia, eu não permittirei que a sua mocidade vá emmurchecer-se n'uma casinha entre duas arvores. Para as arvores e flôres se fizeram as aves; e, todavia, na estação desabrida, umas aves desferem remontado vôo a outros climas, e outras pipilam enfezadas de frio e fome. Na estação das manhãs regorgeadas e das tardes inspirativas terá v. ex.^a a sua casa bem assombrada de arvores e rodeada de relvas e fontes que retemperem as calmas do estio. Porém, no inverno, gosará o aconchêgo e regalos que as grandes populações offerecem. Não lhe admitto replicas, prima. Achou um parente de edade authorisada, que requer obediencia. Agora, fallar-lhe-hei de mim. Sou rico, não tenho filhos, com quanto seja casado…

N'este ponto do discurso, Calisto de Barbuda fez ama visagem funebre, e correu os dedos vertiginosamente por sobre o bigode, ainda escasso. Depois, desentranhou um suspiro cavo, e continuou:

—Minha prima e mulher, se alguma vez se encontrar com v. ex.^a abrir-lhe-ha os braços de parenta. É uma creatura feita no campo, dotada apenas das luzes naturaes, que a levam pelo melhor caminho da felicidade n'este mundo. Casei, por que era necessario que o vinculo dos Figueirôas voltasse á casa d'onde saíra. Acho-me ha vinte e alguns annos ligado á mulher, que não devia ser minha. E, se ella é feliz, isso prova a muita probidade e resignação com que me tenho conformado ao meu destino…

Fez uma breve pausa, e proseguiu:

—V. ex.^a deu largas á sua alma: consinta que eu seja avaro do prazer de uma expansão.

—Porque não ha de sêl-o?—accudiu D. Iphigenia, interessada na commovente historia.

—Não sei o que é felicidade. Tenho quarenta e quatro annos, e ainda não vi uma aurora benigna. Muitos annos procurei aturdir-me no estudo. Roía-me o abutre de um desejo vago; mas eu, que me segregára do mundo para o escondrijo da minha bibliotheca, se ás vezes passava de relance entre mulheres, que poderiam espertar-me paixões, fitava n'ellas como idiota que perdeu a memoria da terra natal, e se quêda espantado das coisas que ligeiramente lhe espertam a lembrança. Se alguma vez me surpresou algum sentimento estranho de affecto, podia tanto comigo a consciencia da sujeição ao dever, que o mesmo era cerrar os ouvidos da alma ao quer que era, entidade dupla, que me segredava delicias de uma vida incognita. Estas breves e poucas pelejas, com o discorrer dos annos, cessaram. Eu tinha consummado a paralysia do coração, e chamado sobre mim todos os habitos da velhice. A minha vinda para Lisboa foi o resurgimento da vida, sepultada antes de haver consciencia de si. Achei-me entre homens, aquecidos á luz d'este seculo. Na athmosphera d'esta cidade ha perfumes que vaporam do coração das esposas amadas, das amantes queridas, das pombas ideaes, que volteam á volta dos espiritos anhelantes de cada homem. Pulou-me como arfar de vulcões a vida no peito. Vi-me no passado, e tive pesar, e saudade, e pejo da minha mocidade… Onde vão estas candidas revelações do meu pobre coração? Não na enfadam porventura minha senhora?

—Interessam-me e commovem-me—disse com affectuosa sympathia a brazileira—Vae dizer-me que se apaixonou?

—Tive um delirio—respondeu o morgado, compassando as palavras em tom muito do intimo—Um delirio, sonho de infeliz, que se desperta a arrancar do seio uma frecha. Foi o estremecer do terremoto, que alarma terrores, e se aquieta. Medi a profundeza da minha alma, e pude vêr que eu seria capaz de um crime… E, todavia, se algum seio de mulher podesse comprehender quanta pureza sanctificava os meus affectos!… Se alguem visse a aguia que por tão alto avoeja, sem descer ás searas a roubar um grão!… Fallo a um espirito elevado, que tem obrigação de me comprehender… Agora, senhora, perdão! Eu disse tudo: confessei-me diante de um anjo de Deus. Mostrei-lhe o desamparo d'este meu viver. E, se estas lagrimas alguma coisa significam, é uma supplica de amizade. Eu vejo ahi uma formosura que dobra a alma, e ouso procurar o compadecimento de uma amiga, porque sei agora que ha mulheres, diante das quaes um homem precisa chorar.

Calou-se o morgado. Iphigenia encarava n'elle com certo assombro e estranheza de pessoa que não póde, nem quer conhecer dos sentimentos que a alvoroçam. O inesperado remate d'este dialogo figurou-se-lhe a ella a passagem de um romance, que se não presa de muito verosimil. Porém, como quer que a viuva do general Ponce de Leão fosse grandemente lida em novellas francezas, o caso não lhe pareceu tão extraordinario como ao leitor e a mim, quando m'o referiram.

Passados momentos, Iphigenia, contemplando, sem as vêr, umas figuras chinezas do seu leque, disse:

—De maneira que esta apparição imprevista de uma mulher desafortunada, se deu logar á expansão, tambem foi causa a uma dôr de v. ex.^a!…

Calisto entrelaçou os dedos em postura supplicante, e exclamou:

—Chovam-lhe os archanjos do Senhor quantas felicidades a bem-aventurança encerra! Nunca uma nuvem escura lhe ennegreça os seus sonhos de felicidade! Multipliquem-se em alegrias eternas para v. ex.^a, estes instantes de ventura que me deu, minha misericordiosa amiga!

Nenhuma paixão subita estalou ainda com estrondos d'este tamanho. A gente comprehende como estas coisas acontecem; casos se podem ter dado comnosco da mesma natureza, mas o que nós não fizemos nunca, se o amor nos assaltou de improviso, foi fallar assim, romper tão depressa em vehemencias de enthusiasmo. Nós, homens creados mais ou menos por salas, affeitos a subordinar o sentimento ás praticas da civilidade, desafogâmos em extasis e suspiros, contemplamos embellezados a mulher que nos endoudece, respondemos com frioleiras gagas a uma pergunta, que nos ella faz com toda a presença do seu espirito. Toda a lastima é pouca para os ridiculissimos tregeitos que fazemos então.

Ora, isto é bom que assim continue a ser. Esse quarto de hora de suprema realeza das mulheres é tudo que ellas tem, e pouco mais. Esse espaço de fascinação, que nos embrutece, é a divinisação d'ellas. Ás pobresinhas, quando o tempo as apêa dos altares, e os maridos convertem a prata dos thuribulos em caixas de rapé, fica-lhes sempre a memoria consolativa d'aquelle quarto de hora.

Tornando ao ponto, queria eu dizer, que o morgado da Agra de Freimas não fallaria d'aquelle modo, nem tão do intimo da alma apaixonada, se tivesse experiencia dos usos da boa sociedade. Os bons usos ordenam que o homem se declare á mulher que ama, depois que as impressões repetidas de vêl-a e ouvil-a bajam desfalcado o vigor do sentimento. A praxe requer primeiro o extasis, depois as semsaborias tratamudas, ultimamente a declaração, com intervalo de tres mezes ao extasis.

XXV

*Perdido!*

Fecharam-se as camaras.

Calisto Eloy desamparára a sua cadeira do parlamento, quinze dias antes de encerrada a legislatura. Era opinião geral que o deputado de Miranda, desgostoso do governo e da opposição, se retirara, convicto da fraqueza de seus hombros contra o colosso, que tombava sobre o desangrado Portugal.

As gazetas realistas indigitavam Calisto como exemplo de peito illustre e invulneravel no marnel de febres podres em que ardiam e patinhavam miseraveis ambiciosos. Deram-lhe, á conta d'isso, varios nomes gregos e romanos, que lhe ajustavam tão a primor, como a verdade historica á legenda das fabulosas virtudes de Grecia e Roma. A opposição liberal lamentava que as medidas obnoxias e hybridas do governo afugentassem da camara um deputado como Benevides de Barbuda, a cuja alta intelligencia e virtude repugnavam os desatinos da camarilha. Calisto Eloy lia estas coisas nas gazetas, e dizia entre si:

—Como hei de eu crer no que vejo escripto a respeito dos outros!…

Ao tempo que estes juizos dos publicistas eram impressos e mandados á posteridade, estava o morgado da Agra no hotel de Cíntra, cuidando em alugar e trastejar com elegancia britannica uma casa, entre moitas de arbustos, a qual parecia feita para a rainha das flores ou para repousar-se em fresca sesta a aurora.

Decoradas as paredes interiores, cobertos de oleado os pavimentos, e afestoadas as paredes exteriormente com lilazes e jasmineiros, baunilhas e eras de verdejante urdidura, entrou n'aquella casa D. Iphigenia, conduzida pelo braço de Calisto, e seguida de uma senhora de porte honesto e recommendavel, que vinha a ser aquella D. Thomazia Leonor, em honra de quem as musas do defuncto tenente suspiraram acrosticos. Mais atraz, iam duas criadas, e um servo fardado de casimira côr de pombo, com gola e canhões escarlates, golpeados de listas amarellas, distinctivos da libré dos Ponces de Leão de Hespanha.

Iphigenia foi surprehendida pelo seu gabinete de estudo, decorado de graciosas estantes e étagères, cheias de livros luxuosamente encadernados, acondicionados com tão elegante symetria que induziam muito mais á contemplação que á leitura. O restante d'aquella vivenda de fadas era por egual magnifico, em gosto e riqueza.

Calisto deu posse da casa a sua prima, e retirou-se ao hotel, para que ella sestiasse e se recobrasse da fadiga e calma da jornada.

Ao descair da tarde, o morgado foi bater á porta d'aquelle eden.
Iphigenia saiu-lhe ao encontro com um ramilhete de flores, e disse-lhe:

—Aqui tem as primicias do seu jardim, primo.

Calisto aspirou o aroma das flores, osculou a mão que lh'as offerecera, e murmurou:

—Fechem-se os meus olhos, quando eu as poder vêr sem lagrimas de gratidão.

—Lagrimas… para que?—Volveu ella com meiguice.—As lagrimas deixemol-as aos infelizes. O primo não comparte do meu contentamento? Não vê que me realisou o meu sonho com tamanho excesso de delicias, que eu não me atrevera, sequer, a imaginar? Sinto-me ditosa!… Ainda não quiz pensar um instante se estas alegrias podem descair em magoas… Estou sonhando, e não quero que me acordem. Seria crueldade dizerem-me que ha viboras debaixo d'estas alcatifas de flores. Isto deve ser paraizo sem culpa, ignorancia santa do porvir sem pomo de arvore da sciencia que m'o descubra. Não é assim?…

—Que fallar o seu prima!—disse com vehemente, mas suffocado amor, o morgado—Que melodias!… Eu não sei responder-lhe… Apenas sei escutal-a. N'uma composição dramatica de Sá de Miranda, chamada Vilhalpandos, ha um epitheto dado a uma mulher, o qual eu não podia perceber, sem que o baptismo das doces lagrimas me chamassem o coração á vida.

—Sempre lagrimas!…—atalhou Iphigenia—Então que é que diz o Sá de
Miranda?

—Na bocca de um amante, que encontra a sua amada, põe estas palavras: «mulher santissima». Quem disse mais n'este mundo? os seus poetas francezes disseram coisa mais peregrina?… E n'esta mesma scena, poucas linhas abaixo, diz o amante a Fausta: «Sabes que sonho?». Que immenso amor devia de ser o de Antonioto, que assim perguntava á vida de sua alma: «Sabes que sonho?»

Fausta!… é um nome lindo, disse a mimosa viuva.

—Se não existisse Iphigenia…—accudiu Calisto. Já este nome me soava docemente quando, na minha mocidade relia as angustias da filha da Agamemnão, cujo sacrificio o oraculo de Aulida demandava.

—Ah! tambem eu conheço essas angustias da tragedia de Racine. Quantas vezes eu, nas minhas horas tristes, repetia com a Iphigenia do grande poeta francez, e com o espirito na alma de minha mãe, assim como ella o tinha no afflicto rosto da sua:

  Ah!
  Sous quel astre-cruel avez-vous mis au jour
  Le malheureux objet d'un si tendre amour?

O primo, continuou ella, conhece perfeitamente Racine e Corneille?

—Perfunctoriamente. Conheço melhor Euripedes e Seneca. Pendi sempre á lição de classicos gregos, latinos e portuguezes. Crê-se nas provincias que o saber humano está n'isto. Os francezes começo a presal-os agora, porque… não ha linguagem que não sôe divinamente fallada por minha prima.

—Essas lisonjas—volveu ella sorrindo—aprendeu-as nos seus livros velhos, primo Calisto?

—A lisonja deixará alguma hora de ser mentira?… Eu não podia mentir-lhe, prima Iphigenia. Não!… Os meus classicos só me ensinaram duas palavras, que eu possa dizer-lhe: Mulher Santissima!

Iphigenia deixou-se amorosamente beijar nos dedos.

A natureza de Cintra, incluindo os rouxinoes d'aquellas ramarias, poderia espantar-se: eu, não.

XXVI

*E ella amava-o!*

Era já pleno estio. Os galans mais hardidos de Lisboa estanceavam por Sitiaes, por Pisões, e por aquellas varzeas de Collares, a engarrafar lyrismo para gastarem por salas nas noites de inverno.

O primeiro d'elles que descortinou por entre arvores a formosa brazileira foi alviçarando aos outros a ondina incognita, que saira das vagas a buscar camilha de folhagem e boninas entre as fragas da serra da lua.

Entram os agitados monteiros da estranha caça a circumvagarem nas encostas e oiteirinhos que rodeavam a vivenda de Iphigenia. Uns a viam ao sol posto, outros ao arraiar da manhã, e outros, quando ella perpassava por entre aleas de cylindras para uma gruta fechada como concha de perola.

A presença de Calisto Eloy, confundido com os arbustos floridos da casinha mysteriosa, augmentou a curiosidade dos indagadores. Uns consideraram esposa do deputado a bella esquiva; outros aventaram hypotheses mais romanticas, mas menos honestas. Á primeira conjectura oppunha-se uma forte razão negativa: se era marido, porque vivia no hotel do Victor? Á segunda conjectura, contradictava outra razão ponderavel: se era amante, que descuidado amante era elle, que se encerrava no seu quarto do hotel, durante as noites,—facto averiguado minudenciosamente pelos interessados? O mysterio, pelo conseguinte, a nublar-se, e as esporas de uma curiosidade impaciente a picar os moços ociosos, e os ricassos velhos, que espreitavam por entre a rede das sebes verdejantes, esta Susana, mais cuidadosa do que a outra, que accendia fogos nos lubricos juizes de Israel.

Entre os mancebos, estremava-se um, que passava grandes espaços de tempo em quietismo esculptural debaixo de um olmo, que sobranceava a casa de Iphigenia. Sempre que ella, á hora da maior calma, se aproximava da janella do seu gabinete a respirar o frescor do jardim, via o contemplativo sujeito de braços cruzados, e olhos fitos. Mas, assim que, ao intardecer, os arredores da casa começavam a ser frequentados, o moço, como quem se resguarda, desapparecia.

Era este sujeito aquelle Vasco da Cunha, que esperava a herança de uma tia para casar com Adelaide Sarmento. Os olhos indifferentes de Iphigenia assetearam-lhe a pia alma, n'um d'aquelles dias em que elle viera de Lisboa a Cintra para assistir á novena de Santo Antonio de Padua, celebrada solemnemente na capella de uma tia marqueza. Ou porque o ascetico fidalgo andasse com o coração amollecido pelas praticas piedosas, ou porque Iphigenia se lhe figurasse algum d'aquelles seraphins que visitavam os anachoretas da Thebaida, o certo é que não houve mais despegar-se-lhe a phantasia d'aquella imagem, que se interpunha entre elle e o santo filho de Martim de Bulhões.

Iphigenia attentou na pertinacia do homem, e contou ao primo Calisto, gracejando, a tempestade amorosa que lhe andava imminente na pessoa d'aquelle sujeito. Assomaram differentes côres ao rosto do morgado. Quizera elle dissimular o sobresalto com o sorriso: mas a rubidez sanguinea dos olhos, se o dramaturgo inglez a visse, arranjaria d'aquelle aspeito feroz assumpto para mais scelerado preto.

Iphigenia lisongeou-se d'aquella explosão de lavas que archejavam na testa do homem.

Lisongeou-se!… Pois amava-o ella?!

Não sei com que direito me fazem esta pergunta assim com uns visos de espanto! Amava-o como quem não tinha amado nunca. E para lisongear-se de incutir ciume não lhe fôra mister amal-o, digamol-o de passagem, e em nome da consciencia incorruptivel das senhoras, cuja attenção e reparo é felicidade que eu anteponha a todas.

Amava-o, sem pensar os beneficios extremamente delicados com que elle lhe dulcificava a existencia. Amava-o captiva do quer que é que primeiro prende a vontade da mulher, sem dependencia dos dons da alma. Calisto Eloy de Silos estava uma esbelta figura de homem. A cara compuzera-se arabicamente. O bigode cerrado e negro caía-lhe sobre as claviculas. O descostume da leitura restituira-lhe o aprumo da espinha dorsal. O ventre baixou ás proporções rasoaveis. No trajar; refinava em elegancia e gosto, subordinando-se ao alvitre do alfaiate. Todo aquelle ar de meneios, posturas e geitos accusava os fidalgos espiritos, resgatados da brutesa da antiga vida. Póde ser que alguma affectação lhe maculasse os modos e garbo das attitudes: sem embargo, o senhor da Agra de Freimas era homem para merecer, sem favor, a consideração de qualquer dama superciliosa na escolha.

Se isto não bastasse a ponderar no animo de Iphigenia, mal poderia resistir-lhe o coração aos respeitos, porventura demasiados, com que elle interpunha largo stadio entre as expansões da palavra e o minimo vislumbre de qualquer intento menos decoroso. Casos houve era que ella o surprehendeu com os olhos marejados de lagrimas e um sorriso nos labios, sorriso supplicante, de perdão para as lagrimas. Casos houve em que ella sentiu ferver-lhe o desejo de lhe pedir que, em vez de lagrimas, lhe desse um beijo na face, um d'aquelles beijos, que não tiram nada á formosura do corpo nem da alma, porque no rosto augmentam o rubor—o que é bello—; e na alma convencem a consciencia da adoração—o que é sublime. Difficil coisa será achar a virtude que se furta a estes conflictos! Virtude, que se esconde e encolhe para não ser alcançada pela flecha de um beijo, ás vezes acontece que, por muito esquivar-se, apouca-se, vapora-se, safa-se e ninguem sabe como ella se foi, nem como é possivel que um vaso fechado de essencias aromaticas appareça vasio sem ter sido quebrado. Este caso, naturalmente, anda explicado na esthetica. Eu hei de vêr o que é isto quando tiver vagar.

Vamos já rodeando por longe dos ciumes de Calisto Eloy. Revertamos ao assumpto.

Iphigenia tomou-lhe amorosamente da mão e disse-lhe:

—Meu primo, eu não quero lêr em sua alma uma pagina que se não assimelha ás outras.

—Pois que é, prima?… perguntou elle enleado e tremente.

—Eu não quero ter de justificar-me, tornou ella balbuciante.

—Justificar-se….

—Sim. Duas palavras que bastem a definir-me. Se eu perder a sua amizade, quero morrer. Veja quanto eu farei para lh'a merecer.

Calisto dobrou o joelho, e beijou a mão, que lhe estreitava calorosamente, a d'elle.

Seguiu-se silencio de alguns minutos.

Se houvesse elos na cadeia da felicidade humana, o ultimo, a maxima perfeição, devia prender com os gosos celestiaes. Esse ultimo elo não o ha: se existisse, o morgado, n'aquelle instante, perderia a consciencia d'esta vida, e entraria na exaltação beatifica dos anjos.

A fortuna dos corações que desbordam da felicidade no amor, deve ser aquella Fortuna parva, á qual Servio Tullio erigiu templos. Tito Livio, a meu vêr, toma o parva no sentido de baixa ou pequena: eu traduzo latamente «fortuna lorpa»; porque não conheço, quem, n'uns lances analogos ao de Calisto, mantivesse a inteireza de sua razão e espiritos. É que o morgado não disse coisa que mereça escriptura, elle que tão donosamente, em supremos apertos, face a face do dr. Liborio, tirou da veia copiosa repuchos de eloquencia!

No dia seguinte, quando as aves abraseadas do sol das onze horas, se embrenhavam nos tufos das ramagens, lá estava Vasco da Cunha debaixo da arvore.

Á mesma hora, Calisto Eloy circuitava a parede da matta em que se emboscava o religioso mancebo, saltava de manso, e quasi a subitas passava rente d'elle hombro a hombro.

Vasco não conheceu o homem que o fitava com sobranceria. Tres mezes antes se havia encontrado em casa do desembargador Sarmento com um Calisto, que não tinha que vêr com aquelle homem.

Sorriu-se o morgado, e disse-lhe:

—Costuma v. ex.^a intermear as suas novenas com a oração mental nas brenhas e florestas, á imitação dos antigos padres? Ou está pedindo aos deuses infernaes que lhe levem a alma da tia, e lhe deixem o vinculo da mesma para poder maridar-se com a sr.^a D. Adelaide Sarmento?

Alumiou-se Vasco de uns longes de suspeita, e cuidou estar ouvindo a voz mesurada e sonora de Calisto.

—O senhor… disse elle.

—Eu, que?—atalhou o morgado á suspensão do moço.

—Com que direito vem aqui incommodar-me?—tornou o mordomo das tres virtudes cardeaes.

—Não o incommodo, nem me incommodo. Dir-lhe-hei muito de relance que mora alli n'aquella casa uma prima de um Barbuda, e accrescentarei que tal dama não faz novenas a santo nenhum das particulares devoções de v. ex.^a. Se o sr. Vasco da Cunha aqui voltar ámanhã, continuaremos a palestra.

Vasco não voltou.

XXVII

*A saudade e a sciencia em dialogo*

Dois mezes depois de fechado o parlamento, D. Theodora Figueirôa, farta de escrever cartas, e de esperar respostas que lhe iam a razão de uma por dez, mandou chamar aquelle Braz Lobato, professor de instrucção primaria, e, com os olhos vermelhos de chorar, abriu do peito oppresso estas palavras:

—Que me diz vocemecê sr. Braz, á demora do meu homem?

—Eu estou passado, fidalga!—disse o mestre-escola empunhando e sacudindo o queixo inferior.—Seu marido, a minha opinião é que ficou por lá embeiçado n'alguma mulher. Lisboa é uma Babylonia, fidalga. Quem para lá vae com um bocado de temor de Deus, perde-o; e quem não tiver muito lume no olho, e alguns annos de tarimba e experiencia do mundo, como eu, póde contar que em lá chegando fica reduzido á expressão mais simples.

—E que é ficar reduzido á… que? como disse vocemecê? perguntou D.
Theodora.

—Quero dizer que dá com as canastras n'agua. Foi o que succedeu ao fidalgo, futura-se-me isto! Sabio era elle, mas faltava-lhe a pratica do mundo. Foi uma asneira mandal-o a côrtes; eu bem não queria… mas emfim… tanto me azoinaram os abbades e os lavradores, que eu deixei-me ir com os outros… (O impostor que tinha votado em si!) E que diz elle nas cartas a v. ex.^a?

—Lá por milagre recebo alguma… Aqui tem vocemecê a que veiu aqui ha dias atraz. Ora leia lá isso.

Braz montou os oculos de cobre, e leu:

«Prima Theodora. Cessa de ter cuidado com a minha saude: eu passo soffrivelmente. Não me pude ainda desembaraçar dos negocios do estado, que me não deixam tomar fôlego. Á vista te contarei o que tenho feito a favor da nação. Tem tu saude, e descança da vida trabalhosa que tens. Ha de ir ahi um sujeito de Bragança para lhe entregares oito centos mil réis. Vende o grão todo que houver, e diz aos lavradores que por lá tem dinheiro a juro que eu preciso recolher essas quantias para negocio de mais interesse. Teu primo e affectuoso marido Calisto

Ahi tem vocemecê!—continuou a esposa atribulada, com os braços em cruz e as mãos nos sovacos.—O dinheiro, que ha sete mezes tem saido d'esta casa, é um louvar a Deus! Ainda o dinheiro vá que o leve a breca! mas andar-me por lá o marido, o meu homem, que d'antes, se ficava uma noite fóra de casa, era lá uma vez de anno a anno, e dizia elle que não estava bem senão á beira de sua mulher!… Que me diz a isto sr. Braz? Então vocemecê é de parecer que elle está por lá embeiçado? Pois o meu Calisto seria capaz d'isso?!

—Olhe fidalga—respondeu o professor de instrucção primaria fazendo com os beiços um bico e logo um arco, tregeitos meditabundos com que elle usava solemnisar os dizeres graves.—Um homem cá nas aldeias é uma coisa, e nas cidades é outra. Eu corri mundo, e sei o que fui. As mulheres das cidades tem umas artes e manhas, que, se um homem se não precata, ás duas por tres, não sabe de que freguezia é. Ainda que a gente não queira aquelles demonios taes esparrelas armam, que não ha remedio senão cair em fragilidades proprias da fragil natureza humana, como o outro que diz. O sr. morgado já não é rapaz; mas tambem não é velho. Aquillo, em quanto a mim, e oxalá que eu me engane, deu por lá com alguma menina que o embruxou…

—Sabe vocemecê que mais—interrompeu com abrupta resolução D. Theodora—pégo em mim, metto-me n'uma liteira, e vou por ahi abaixo até á capital. É o que eu faço!

—Essa idéa precisa de ser pensada com prudencia—observou o mestre-escola, erguendo-se, e dando alguns passeios na eira, onde estavam dialogando—Se a fidalga fôr, esta casa fica sem dono, entregue á criadagem, e o sr. morgado póde zangar-se. De mais a mais, ora supponhamos nós que o senhor seu esposo está, como elle diz na sua, occupado em negocios do estado; a ida de v. ex.^a vae atrapalhal-o, por que elle não a ha de deixar sosinha na estalagem. Depois a fidalga vae, palavra puxa palavra, um diz uma coisa, outro diz outra, e afinal desavem-se, e começam a viver de esguêlha. A minha opinião é que v. ex.^a se deixe estar em sua casa, e espere a vêr para onde correm os ventos. Se elle por lá anda com a cabeça a juros, deixal-o pagar o tributo, que elle cairá em si. Antes isso que quebrar uma perna. Lá o dinheiro isso é o menos. A casa dá para tudo, graças a Deus. A fidalga não sabe o que tem de seu. Lá em quanto ao marido, uma extravagancia não lhe dá nem tira. Salomão foi o mais sabio dos homens e teve trezentas mulheres e setecentas concubinas, e mais acho que foi santo. David, tambem era santo, e caiu tambem na fraqueza de amar a mulher de um capitão, general, ou uma coisa assim. As sagradas escripturas contam muitos casos d'estes… Pois emfim, a fidalga não esteja ahi a chorar. Seu marido ha de voltar são e salvo. O mais que eu posso fazer-lhe é ir por ahi abaixo ter com elle, e desenganar-me por meus proprios olhos.

—Isso é que era bom, sr. Braz!—exclamou Theodora, limpando as lagrimas ao avental de chita.

—Eu estou ainda com a idéa ferrada do habito de Christo. É cá uma birra com o boticario, que disse ao cirurgião que eu havia de ser cavalleiro do habito quando elle fosse papa. O sr. morgado não me responde ás cartas: é um ingrato d'aquella casta; mas, emfim, os favores que lhe fiz na eleição não me arrependo de lh'os fazer… Emfim, fidalga, se v. ex.^a quer, eu vou ter-me com o sr. morgado, e póde ser que venha com elle para cima e com o habito.

—Está dito!—clamou Theodora—Vocemecê vae, e eu faço-lhe as despezas.

—Isso lá como v. ex.^a quizer… Eu, a fallar verdade, não estou muito indinheirado, e alguns vintens que tenho todos me hão de ser precisos para pagar os direitos da mercê.

* * * * *

Ahi vem Braz Lobato, caminho de Lisboa.

XXVIII

*Ingratidão de um deputado*

Braz Lobato, antigo sargento de milicias, e antigo borra de frades franciscanos, era legitimo homem para farejar Calisto em Lisboa. Cuidou elle que encontraria o marido de D. Theodora de Figueirôa nos logares mais celebrados e admirados da capital, segundo é fama nas provincias. Como o não encontrasse na Memoria do Terreiro do Paço, foi procural-o ao Aqueducto das Aguas-Livres. Depois de baldadas estas pesquisas, outro qualquer sujeito desanimaria; Braz Lobato, porém, resolveu ir ao Paço das Necessidades em busca do seu patricio, porque, no seu modo de julgar as correlações dos altos poderes do estado, Calisto Eloy devia frequentar regularmente a casa real.

Perguntou o mestre-escola affoitamente á sentinella do paço se o representante nacional, morgado da Agra estava em palacio. A sentinella mandou-o entrar, e que perguntasse ao commandante da guarda. O commandante mandou-o a um fidalgo que vinha descendo, e o fidalgo interrogado mandou-o á fava.

Com o quê, Braz Lobato saiu á rua, e perguntou a um aguadeiro se alli não morava o rei. E, como soubesse que a familia real estava em Cintra, conjecturou que os deputados, e particularmente Calisto, deviam estar em Cintra para de lá governarem a monarchia.

Chegou o mestre-escola a Cintra, e descavalgou do jumento portador, á porta do palacio. Fez as suas perguntas á sentinella com aquelle ar marcial que lhe ficou das milicias. Esperou a vinda de um camarista, velho fidalgo attencioso, que sorriu da supposição do provinciano, e lhe disse que o deputado Calisto Eloy residia no hotel do Victor.

Chegado ao hotel, á hora mais de passeio, por fim da tarde, não encontrou Calisto, e foi demandal-o nos logares mais frequentados. Abeirou-se de um grupo de sujeitos, que inculcavam gente grave, e perguntou por Calisto Eloy de Silos Benevides de Barbuda.

Esta pergunta coincidiu com o caso de estarem aquelles individuos aventando hypotheses sobre a formosa solitaria, cujo ninho de folhas e flores apenas Calisto de Barbuda frequentava.

O ar provinciano de Braz fez crêr aos curiosos que o homem, sendo patricio de Calisto, poderia esclarecel-os ácerca da creatura mysteriosa.

—D'onde conhece vocemecê o sr. Barbuda?—perguntou um.

—Conheço-o desde menino, que é da minha terra, e eu sou o professor de instrucção primaria lá do concelho do sr. morgado da Agra de Freimas.

—Então, volveu outro, ha de saber se a senhora que está com elle em
Cintra é parenta d'elle, ou mulher ou amante.

—A mulher do sr. morgado ficou em casa; parenta não me consta que elle tenha cá nenhuma. Isso ha de ser negocio de contrabando, em quanto a mim. Fazem favor vv. s.^as de me ensinarem o caminho da casa onde elle está?

Conduzido á espessa cancella de ferro, que estremava o jardim do caminho publico, Braz Lobato puchou a campainha. Fallou lhe um criado de libré, o qual, perguntado se o sr. morgado estava em casa, respondeu que n'aquella casa morava a viuva do general Ponce de Leão.

Dada a resposta, o criado rodou solemnemente nos calcanhares, e deixou o mestre-escola com o nariz n'um orificio da grade, e os olhos n'outros orificios, espreitando os massiços de murtas, que escondiam a fachada da casa.

D'ahi a pouco lobrigou elle entre os arbustos um galhardo homem com uma senhora pelo braço, atravessando vagarosamente para um bosque de aveleiras.

Fitou-se n'elle; mas não viu coisa que lhe désse lembranças do fidalgo da Agra. Cuidou que o tinham enganado os lisboetas, e desandou para a hospedaria.

Novamente informado, resolveu esperar que o morgado entrasse ás dez horas, consoante o costume.

Sentou-se á porta do pateo.

Viu entrar um empavesado sujeito retorcendo as guias do bigode, com os olhos postos na lua atravez de uma luneta. Levou urbanamente a mão ao chapéo. Calisto, divertido pela acção civil do sujeito, ia corresponder, quando reconheceu o mestre-escola.

—Você aqui, Braz! disse elle.

O professor arregaçou as palpebras, e exclamou:

—Que vejo! a voz é a do fidalgo!

—Sou eu, não tenha duvida nenhuma.

Braz levou a mão á testa, e da testa ao peito, e de um hombro ao outro, murmurando:

—Em nome do Padre, e do Filho, e do Espirito Santo! Coisa assim nunca os meus olhos esperaram vêr!… V. ex.^a é outro homem!… Eu estarei a dormir! E esfregava os olhos, desconfiando seriamente que estava dormindo.

—Entre cá dentro, disse o morgado.

Entrados á sala, perguntou o fidalgo com um ar secco:

—Que novidade o traz aqui?

—Vim por ahi abaixo, afim de vêr v. ex.^a, e ao mesmo tempo…

—Bem sei no que quer fallar. O habito de Christo, sim?

—Não sendo coisa muito de costa acima…

—Ha de arranjar-se. E que mais?

—-E que mais?…

Braz Lobato sentia-se como esmagado pelo tom rispido e sobranceria do fidalgo. A concisão e rapidez das perguntas enleavam-no a ponto de o engasgarem nas respostas.

—Como ficou minha prima? disse Calisto.

—Está muito contristada, senhor.

—Porque?

—São saudades. Ainda na vespera da minha vinda esteve a chorar na eira… O melhor seria que v. ex^a viesse comigo para casa… Mas como o fidalgo está mudado!… Então v. ex.^a, pelos modos, era o mesmo que eu vi, ao fim da tarde, n'aquella casa que tem porta de ferro! Bem me diziam que v. ex.^a estava lá com uma madama, e eu não o conheci.

—Aonde?—atalhou desabrido o morgado.

—N'aquella casa que tem muitas flores.

—Quem o mandou lá?

—Uns fidalgos a quem eu perguntei por v. ex.^a

—E quem o manda perguntar por mim?! Quem lhe disse que eu estava em
Cintra?

—Foi no palacio do rei que…

—Então foi-me procurar ao palacio do rei! O sr. Braz é parvo!… Bem.
Eu preciso recolher-me. Quer mais alguma coisa?

—Não, sr. fidalgo… E v. ex.^a não quer nada lá para a terra?—volveu logo o antigo sargento com o nariz rubro de colera.

—Não quero nada.

—Pois eu para cá vou. Passe muito bem por cá, e até lá.

Não pôde ter mão de si o professor: voltou ao limiar da porta, que se fechava, e disse:

—Sr. morgado…

—Que é?

—Eu, para a outra vez, elegerei deputado que me arrange o habito de
Christo. Faça favor de se não incommodar.

—É asno!—murmurou Calisto batendo a porta com impeto.

XXIX

*O demonio em Caçarelhos*

Estava D. Theodora presidindo á limpeza do lagar em que se havia de fabricar o azeite, quando Braz Lobato, ainda empoado da jornada, assumou á porta, e chamou de parte a fidalga.

—O meu homem veiu!—exclamou ella.

—Faz favor de me ouvir aqui fóra, disse elle á puridade.—E, retirados ao escuro de um bosque de castanheiro, continuou:

—Seu marido está perdido, sr.^a morgada.

—Que me diz? bradou a pallida consorte.

—Estragou-se; d'alli ao inferno não tem mais que morrer.

—Credo! Então que é?

—Seu marido está tolhido! A mulher que o roubou á patria, e á esposa, e aos amigos, está lá n'uma serra, cercada de arvores, e de grades de ferro![21] Dizem que é a viuva de um general, e bonita como os serafins. Eu ainda a enxerguei pelo braço do fidalgo; ia vestida de branco, e parecia uma estrella.

—Ai! que eu estalo! clamou Theodora, apertando a cabeça entre as mãos.

—Seu marido, se a senhora o vir agora não o conhece. Está mais apanhado do corpo; aquella barriga, que elle tinha, sumiu-se-lhe. Tem um bigode muito grande, e aqui no queixo uma moita de pellos, como os bodes. Traz os cabellos puchados para cima e retorcidos. Usa oculos á moderna, de oiro, pendurados ao pescoço. O panno de roupa luzia como vidro, e andava apertado n'ella e puchado á substancia que parecia espremido no peso do lagar. Repito: a sr.^a morgada, se o vir, não o conhece.

—E então elle está lá com essa mulher? insistiu soluçando a quebrantada senhora.

—É verdade, lá a tem como uma princeza. Agora já sabe a fidalga no que elle estraga o dinheiro.

—E vocemecê não lhe disse que viesse para sua casa?

—Ora se disse! chamou-me parvo e asno. Asno a mim fidalga! E eu acommodei-me, porque não quero testilhas com doidos. Afinal, eu estava a vêr quando me empurrava pela porta fóra! Aqui tem o que ha a tal respeito. Sirva-lhe de governo, sr.^a morgada. Agora, faça por ter mão na manta. A casa é grande; mas tem-se visto acabarem casas maiores. O que a fidalga deve fazer é não deixar ir pela agua abaixo o seu patrimonio.

—Não, que eu vou a Lisboa!—exclamou ella batendo o pé, e vibrando murros contra o ar.—Vou a Lisboa, e faço lá o diabo!… Então a tal mulher está n'uma serra? Vocemecê disse que ella estava n'uma serra?…

—É serra; mas a terra é bonita. Ha por lá arvores do começo do mundo, e cada pedaço de jardim que dava trezentos alqueires de centeio. Chama-se Cintra, e está lá o rei e a fidalguia.

—Pois vou lá, que o meu homem é meu—vociferou ella voz em grita.—Se elle não quizer vir para casa, vou fallar ao rei e aos governos.

—Fidalga, pense bem no que faz, e ouça o que lhe diz o senhor seu primo Lopo de Gamboa, que sabe mais do que eu. D'aqui me vou a vêr a minha gente, e até amanhã, fidalga.

Doida de afflicção, a traida esposa mandou logo um criado á casa da
Verdoeira chamar o primo Lopo de Gamboa.

Este Lopo, bacharel em direito, homem de trinta e tantos annos, e sagaz até á protervia, vivia na companhia do irmão morgado, comendo o rendimento da sua escassa legitima de filho segundo. Tinha máo nome em materia de mulheres. A bruteza dos espiritos não lhe implicava o exercicio de tramoias e bom palavriado com que mareara a reputação de muitas moças, que, á conta d'elle, ficaram solteiras; e tambem de algumas casadas, que não conservam as costellas todas.

Calisto desadorava este primo de sua mulher, em razão das suas ruins manhas; não obstante, admittia-o ao seu trato familiar, e consentia que Theodora, uma vez por outra, lhe désse alguns pintos para charutos, já que o morgado lh'os não dava, sem lançar o emprestimo a desconto da legitima.

Theodora, com quanto o excedesse em edade uns quatro annos, tinha sido creada com elle, e por suas mãos lhe fizera o enxoval, que o primo Lopo levou para Coimbra. Esta poesia de infancia converteu-se n'ella em sentimentos benignos de generosidade para com as privações monetarias do sujeito, algumas das quaes lhe remediou liberalmente a occultas do marido. Mais se afervorou a estima da prima Theodora, quando viu que Lopo, na ausencia de Calisto, amiudava as visitas, e lhe fazia companhia ao serão nas noites de inverno.

Mandou, pois, a esposa angustiada chamar o primo Lopo de Gamboa. Já raivosa, já em mavioso soluçar, contou Theodora o que ouvira ao mestre-escola.

—Bem t'o agourava eu, prima!—disse Lopo, concluidos os queixumes de Theodora.—Eu sei o que são homens. Quando meu irmão morgado e outros santarrões me apontavam como exemplo as virtudes de teu marido, dizia-lhes eu: «Tirem-n'o da aldeia para Lisboa ou Porto, deixem-n'o lá estar dois mezes, e fallem-me depois á mão.» O Calisto vivia bem com todo o mundo e comtigo, Theodora, porque se apaixonou pela livralhada, e encheu a cabeça d'aquellas velhas arólas dos seus classicos, e não queria saber de mais nada. E, além d'isso, diz-me tu prima, que grande amor era o d'elle por ti? Passavam-se dias e noites que o não vias, senão enterrado na livraria. Nunca lhe vi fazer-te uma meiguice!

—Pois fazia; estás enganado, Lopo—atalhou D. Theodora, molestada no instincto da sua vaidade de esposa.

—Parecia-te isso, prima, porque tu não viste ainda como os bons maridos acariciam as suas mulheres. Nunca te levou aos banhos do mar, precisando tu de tonicos; nunca te levou a festa nenhuma de Miranda nem de Bragança; sendo tu a mais rica herdeira d'estes arredores, deixou-te viver para ahi sujamente; a cuidar em sevados e gallinhas. As senhoras, que não te chegam em fidalguia aos calcanhares, vivem á lei da nobreza, visitam-se, tem os seus bailes, vão ás romarias ricamente vestidas; e tu?… chorava-me o coração, quando vim de me formar, e te visitei, e vim dar comtigo a cortar couves para fazer a comida dos patos.

—Isso é porque eu gosto.

—Muito embora gostasses; teu marido não devia consentir que o fizesses. Trabalhar é bom e necessario; mas cada qual trabalhe segundo a pessoa que é. As senhoras cozem, bordam, marcam, e dão-se a outros muitos cuidados domesticos e limpos. Os serviços, que tu fazias, pertencem ás criadas da cosinha. De maneira que a tua riqueza não te dava o descanço e bem estar que desfrutam as pessoas da lavoira. Esta casa parecia-me sordida; e, apezar das grandes sabenças de teu marido, ainda não vi casados que tão estupidamente vivessem! Ahi está agora teu marido a despejar sacas de dinheiro no regaço de uma amasia, e tu aqui de vestido de chita e chinellas! Tu!… de chinellas!… Foi bom que levasses vida de negra vinte annos para elle agora levar em Lisboa vida de principe!

—Não ha de levar, que eu vou lá!—bradou Theodora assanhada pelas reflexões do primo.

—Não vaes, prima, que os teus parentes não consentem que tu vás ser em Lisboa motivo de gargalhadas d'aquella gente, e maltratada por Calisto. A morgada de Travanca, a filha de Francisco de Figueirôa, não vae, como as mulherinhas da ralé, procurar o marido fóra de sua casa. Se elle vier, veiu; se elle ficar, fique embora. Gaste o que quizer, mas que não gaste a casa de sua mulher. N'este paiz ha leis que separam do máo marido a esposa affrontada, e prohibem que os bens dos Figueirôas sejam desbaratados em devassidões de um extravagante.

—Eu não quero separar-me do meu homem!—balbuciou ella afogada de soluços.

—Tambem te não aconselho a que o faças por em quanto, prima. Ainda é cedo. Póde ser que teu marido caia em si, e se arrependa. Isto da separação é um remedio extremo, que se ha de applicar no caso de continuarem os saques de dinheiro como até aqui, e os embustes infames com que o Calisto te tem enganado. Ai! prima, prima, grande desgraça foi para ti e para mim, que te esquecesses do nosso amor de creanças, e tão depressa aceitasses o casamento com este homem! Eu estava a concluir a minha formatura, resolvido a pedir-te, e casar comtigo, quer teu pae quizesse, quer não. Nunca t'o disse; digo-t'o agora, porque a minha dôr me obriga. Não serias tu mais feliz, se casasses com teu primo Lopo?

—Eu sei cá?…—disse ella, alimpando as lagrimas.

—Pois duvidas, Theodora?

—Tu tens sido um estroina com mulheres…

—E não sabes por que?

—Não…

—Desesperado por te encontrar casada, quando cheguei de Coimbra, não tratei mais de me ligar seriamente ao coração de mulher nenhuma. Queria distrahir-me, e fazia desatinos que me tornavam ainda mais desgraçado. A minha consolação unica era estar alguns momentos ao pé de ti; mas quantas vezes, eu saía do teu lado com o coração cheio de fel!… Nunca te disse uma palavra por onde tu desconfiasses o meu estado, pois não?

—Tu o que me dizias ás vezes é que estavas afflicto por causa de dividas, e eu dava-te o dinheiro que podia arranjar…

—É verdade: foste sempre o meu bom anjo, prima; mas olha que essas mesmas dividas as fazia eu para poder sair d'estes sitios; ia para as feiras, para as caldas, por toda a parte á busca de distracções, e não achava coisa que me distraisse de ti o pensamento. Toda a gente da nossa parentella me aborrecia, menos tu. Ora imagina, prima, que tormentosa vida a minha desde os dezenove annos! Amar-te, amar-te sempre, e vêr-te mulher de outro homem; e, de mais a mais, de outro homem indigno de ti! Céos! que martyrio! que martyrio!

Lopo cobriu a cara deslavada com as mãos enormes.

Theodora estava como idiota a olhar para aquillo, sem poder atinar com as sensações atrapalhadas que aquellas palavras lhe causavam.

Ergueu-se o velhaco de golpe, e disse:

—Adeus, prima: eu estou profundamente magoado com a tua desgraça; doem-me mais os teus pezares que os meus. Disse-te o que me pareceu rasoavel a respeito de teu marido, d'esse cruel que me roubou a mulher do meu coração, da minha alma, da minha vida, e da minha morte. Adeus, prima!

—Tu vaes afflicto, Lopo!—exclamou ella, resahindo do spasmo tolo em que estivera—Vem cá; se te aconteceu alguma desgraça, remedeia-se como poder ser.

—Ha doenças sem remedio, prima. A minha é mortal.

—Então que tens, primo? que te dóe?

—Doe-me a certeza de que estou morrendo desde o primeiro dia da tua união com este homem!… a certeza de que o has de amar sempre, ainda que elle te despreze como já te desprezou.

—Pois se elle é o meu homem recebido á face do altar!…

—Por isso, por isso, é que eu perdi o teu amor, Theodora!…

—Pois eu sou casada, bem no sabes, senão teria casado comtigo.

—Não fallemos mais n'isto—atalhou com muita serenidade Lopo—Já chorei, e fiquei melhor!—continuou elle esborrachando os olhos até elles reverem agua—Estas lagrimas estavam aqui no peito ha vinte annos. Foi bom que tu as visses para que saibas que o homem que chora por ti, bem mais te merecia que o outro que te despreza… Queres mais alguma coisa de mim, prima? Queres que eu escreva a teu marido, e lhe diga que seja honrado e digno da melhor das esposas? Queres que eu mesmo o vá procurar a Cintra?

—Se tu lá fosses, Lopo, não seria máo!—disse ella.

Lopo de Gamboa, como grande farçola que era, sentiu impulso de desfechar uma risada na cara da prima. O homem viu-se ridiculo até onde a consciencia de um bargante se póde vêr a si mesma.

Reteve-o, porém, a coherencia do seu plano. Resolutamente disse que iria a Cintra, bem que nenhum sacrificio lhe podesse ser mais cruelmente imposto ao coração.

—Irei, disse elle, irei buscar o marido da mulher que adoro. Venha mais esta punhalada da tua mão, prima.

—-Valha-me Deus!—exclamou ella afflictivamente.—Tu dizes-me coisas que me fazem endoudecer! Pois tu não vês que eu já não posso dar o meu coração a outro em quanto fôr casada com um?

—Vejo que me não amaste nunca, Theodora. Diz a verdade… Nunca me tiveste amor?

—Eu sei cá, primo!… Se me casasse comtigo, tinha-te amor… Assim como casei com o meu marido, que hei de eu fazer agora?

—Matar-me!—disse com vehemencia Lopo, deixando cair os braços, e descendo ao chão os olhos amortiçados.

—Ai! que peccados os meus! exclamou Theodora—Eu não sei o que te hei de fazer, Lopo!

—Diz-me quando queres que eu parta para Lisboa—tornou elle gravemente.

—Então sempre queres ir, primo?

—Ámanhã, hoje, quando quizeres.

—E não te custa?

—E a ti não te custa que eu vá?

—Eu queria que fosses, a vêr se trazias para casa aquelle perdido.

—Irei, já t'o disse.

—Então eu vou buscar-te dinheiro, primo, quanto queres tu levar?

—Nada, prima. Se alguma vez aceitei as tuas franquezas, foi por que tu ignoravas quanto eu te amava, e eras minha proxima parenta, filha de uma prima de minha mãe. Hoje que sabes que te amo, não posso, não me consente a minha honra que receba de ti o mais pequeno favor de dinheiro.

—Então não quero que vás—accudiu ella—que tu não podes ir á tua custa…

N'este comenos, Theodora escuta muito attenta um rumor de campainhas, e brada:

—É uma liteira! Será o meu homem?

Corre a uma janella; o primo vae depoz ella: affirmam-se na liteira que desce uma congosta, e reconhece Calisto Eloy, não pela figura; mas por que uns rapazes vinham adiante gritando que era o fidalgo. Theodora espede tres ais, que pareciam de ave nocturna, e perde os sentidos. Lopo amparou-a nos braços, foi sental-a n'uma cadeira incourada de espaldar alto, e desceu ao pateo a receber nos braços o primo Calisto de Barbuda.

XXX

*Como ella o amava!*

O morgado previu o seguimento funesto da desabrida recepção e despedida que deu ao mestre-escola.

A sua felicidade era d'aquellas que o possuidor receia, a cada hora, perder; e o desaccordo com sua mulher podia redundar-lhe em dissabores grandissimos. De todos, o de que elle mais se temia,—o dissabor por excellencia monstruoso—era a vinda de Theodora a Cintra, a isso aguilhoada por o professor de primeiras lettras, azedado pelo desprezo. Envergonhava-se elle, além de muitas outras vergonhas, que a morgada de Travanca lhe apparecesse em Cintra com a cintura do vestido sobre o estomago, com as ancas desprovidas de balão, com a cara incavernada n'um chapéo de 1832, que lá chamavam barretina, de immensas orelhas de palha amarellada pelo rodar dos annos. Era-lhe aviltante o caso aos olhos de toda a gente, e especialmente aos de Iphigenia.

Para prevenir esta e outras calamidades, saiu Calisto, caminho de Caçarelhos, quatro dias depois de Braz Lobato, e afim de encurtar tempo, embarcou em o vapor, e do Porto para cima accelerou as jornadas, repousando poucas horas. Contava elle anticipar-se ao mestre-escola. Chegou tarde; mas o coração da esposa estava ainda aberto.

—Tua senhora desmaiou de alegria, primo—disse-lhe Lopo de
Gamboa—estava chorando comigo quando ouvimos a guizalhada da liteira.
Muito te quer a nossa santa prima? Boas as fizeste por lá… Olha que o
patife do mestre-escola veiu contar tudo!

—Já chegou?!

—Hoje ás cinco da tarde.

—Que disse?

—Contou que tens lá em Cintra uma mulher teúda e manteúda…

—Que infame embusteiro!—clamou o fidalgo—Chama-me um lacaio, que lhe vou mandar cortar as carnes, com um tagante!

Merecia-o! Mas quem deu cá o lacaio? É coisa que ainda cá não vi!

Assim dialogando, entraram á sala em que D. Theodora estava ainda muitissimo intalada de soluços.

—Então que é isto, Theodora?!—perguntou brandamente Calisto, pondo-lhe as pontas dos dedos na face.

Ergueu-se ella arrebatada, e pendurou-se-lhe ao pescoço exclamando:

—Meu Calisto, meu Calisto, cuidei que te não tornava a enxergar!

—És tola, és tola, prima!—disse elle, assás incommodado com o apertão do abraço—Pois eu não havia de tornar?! Quem te metteu essa na cabeça?

Theodora entrou a encarar no homem muito de fito, e rompeu n'um choro desfeito.

—Que tens tu?—perguntou elle.

—Como tu estás mudado! não me pareces o meu homem!… Corta essas barbas; por alma de tua mãe, corta-me essas barbas, que pareces o diabo, Deus me perdôe!…

Calisto sorriu-se, com um profundo tédio de sua mulher. N'aquelle instante alanceou-o mortalmente a saudade de Iphigenia. Aquella casa de Caçarelhos e a mulher pareceram-lhe um retalho do inferno, d'aquelle inferno alagado e frio de que falla o padre A. Vieira.

Começou a passeiar na sala, e a despedir baforadas de anciada respiração do peito. A mulher não lhe despregava os olhos das barbas, e de vez em quando arrancava um ai das entranhas.

—A fallar verdade—observou Lopo de Gamboa—estás um homem completamente differente! E o caso é que pareces muito mais novo! Já nem andas corcovado, nem tens aquella proeminencia da barriga. Olha os ares de Lisboa o que fazem, primo Barbuda!

Calisto exprimia o seu nojo de tudo aquillo, sorrindo-se. Tirou da algibeira um charuto, e accendeu um phosphoro. Eis que a mulher rompeu em mais desentoada choradeira, dizendo:

—O meu homem a fumar!… Que feitiçaria te fizeram, Calisto!…

—De maneira, disse o morgado vencido pela impaciencia, de maneira que me recebes com choradeiras, e observações estupidas, Theodora! Ora acabemos com esta feia comedia, e manda-me preparar jantar, que preciso comer e dormir.

Saiu Theodora cabisbaixa da saleta, e Lopo de Gamboa despediu-se, pedindo-lhe que tolerasse com generosidade as tolices de sua prima, que tudo aquillo n'ella era rudeza e bondade do coração.

—Bem sei, bem sei…—disse Calisto Eloy, e recolheu-se á sua bibliotheca, a principiar uma carta, que dizia:

«Minha querida Iphigenia.

Não te asseguro tres horas da minha vida, se me disserem que hei de aqui viver tres dias. Não é enôjo, é peior, é horror o que me faz tudo isto! Deixa-me pedir coragem ao teu retrato. Ó imagem da filha do meu coração, salva-me, resgata-me, arranca-me d'este tumulo! Ó consoladora d'esta agonia sem nome, vale-me, tem mão n'esta vida, que me foge…»

Entrou Theodora esbofada de dar ordens, de cortar o presunto, de ir á cesta dos ovos, de andar á pilha da mais gorda gallinha.

Correu a abraçar-se outra vez n'elle com mais possante enthusiasmo, emquanto o marido com um braço a cingia ao peito, e com o outro escondia o retrato.

—Meu Calistinho—suspirava a esposa palpitante—meu amado marido, não tornes mais para Lisboa, eu não te deixo sair mais de tua casa!…

—Que remedio senão ir, Theodora!…—disse elle—Sou obrigado por esta desgraçada posição de deputado a assistir mais algum tempo na capital.

—Não é isso, não é isso!—clamou ella, saindo-lhe dos braços, que a largaram facilmente—Bem sei o que é…

—Sabes o que?—interrompeu com violentada placidez o marido—Sabes as calumnias que te veiu contar o Braz, o villão que se vingou como canalha por lhe eu não alcançar o habito de Christo! É o que faltava! pendurar a imagem da cruz n'um peito cheio de tanta porcaria!… Então que te disse elle?…

—Que tinhas lá outra… e que te viu a passeiar com ella.

—Viu-me a passear com uma nossa parenta, viuva de um general. Quem disse ao javardo que esta senhora era minha amante? Hei de perguntar-lh'o diante de ti. Manda-o chamar á minha presença.

—Agora mando! que o leve a breca!—disse Theodora com alegre aspecto—Como tu vieste, foi o que eu quiz; agora, pilhei-te cá, e não te deixo ir embora. Mas tu has de cortar estas barbas, sim? e não estejas a fumar por isso, que me fazes embrulhar a estomago, não?

O tom e gesto caricioso, com que ella dizia isto, não moveu medianamente o esposo. Impava de zangado e aborrecido dos languidos amorinhos com que a meiga senhora se lhe quebrava langorosamente nos braços.

—Eu preciso escrever umas cartas que ainda hoje hão de ir para Miranda, disse elle, afastando brandamente a esposa. Vae-te embora, e logo conversaremos.

Theodora estava n'um d'aquelles elevados gráos de amoroso sentimento, em que a mulher menos esperta conhece, que é desamada. Repellida d'aquelle modo, ainda as lagrimas lhe vidraram os olhos; mas o despeito seccou-as.

—Não me podes vêr á tua beira! disse ella com altiveza. Vê-se mesmo na tua cara que me aborreces! Ainda agora chegaste, e já estás a fallar na ida para Lisboa. Escusavas então de cá vir. Mal haja a hora em que saiste d'esta casa. Já não tenho marido!…

N'este ponto, não pôde represar as lagrimas. Acocorou-se no chão a chorar, com a cara mettida entre os joelhos.

Calisto saltou da cadeira n'um empuchão de raiva, e passou á sala immediata, gesticulando com phreneticos sacões de braços.

Que diabo vim eu aqui fazer? dizia entre si o desesperado.

O demonio da expiação já andava ás cavalleiras do homem. A saudade de Iphigenia era uma serpente de fogo que lhe abafava os respiradouros das goelas.

XXXI

*Vence o demonio! choram os anjos!*

Para distrahir-se do supplicio de alguns dias, Calisto Eloy, sem consultar a esposa, entretinha-se a ajuntar os cabedaes, espalhados por mão de lavradores, e a remir alguns foros, que sommaram consideravel quantia.

Theodora presenciava com suffocada ira as diligencias do marido, e acautellava o sacco das peças de duas caras, que trouxera de casa de seu pae, thesouro antigo na familia de Travanca, trazido por seu bisavô, governador do Brazil. Era um dos soberanos gosos de Theodora addicionar mais uma peça de D. Maria e D. Pedro III ás mil e duzentas que seu bisavô reunira. Bem que o marido respeitasse sempre aquelle peculio, Theodora receiava muito que os respeitos d'outro tempo não podessem nada agora com elle, e dispoz-se a resistir a todo trance ao sacrilegio.

Não carecia o morgado de lançar mão de alguma verba do patrimonio de sua mulher: tinha muito que explorar no propriamente seu, antes de alienar alguma das quintas; no entanto, quando a consorte abespinhada lhe disse que as peças eram d'ella, e não cuidasse elle que as havia de levar, Calisto encarou na mulher com tal enchente de odio, e logo desprezo, que lhe voltou as costas para lhe não redarguir.

D'ahi em diante, nas quarenta e oito horas que o morgado se deteve em Caçarelhos, baldaram-se as tentativas conciliatorias de Theodora. Fechado no seu quarto, que elle desde a chegada fizera propriedade sua exclusiva, ou encerrado na bibliotheca, onde escrevia monologos saturados de lagrimas, em vão a esposa o espreitava pelos orificios das fechaduras, e lhe assoprava suspiros dignos de mais humano marido.

No dia da partida, a despedaçada senhora experimentou um ataque de eloquencia. Entrou com o almoço no gabinete do marido, e bradou:

—Então que é isto? Entendamo-nos.

—Isto quê?

—Sempre vaes para a vida perdida?

—Vou hoje para Lisboa—respondeu serenamente Calisto Eloy, dobrando em massos os titulos de sua casa.

—E então da tua mulher não queres saber mais nada?

—Minha mulher fica em sua casa, e eu vou cumprir os meus deveres como deputado.

—Mas eu não quero saber d'isso.

—Então que queres tu saber, prima Theodora?

—Quero saber a lei em que hei de viver.

—Vive na lei de Deus.

—E tu na do diabo, ein?

—Berra pouco.

—Hei de berrar o que eu quizer.

—Pois berra, que eu não te hei de ouvir muito tempo.

—Se isto é assim, quero separar-me.

—Separa-te.

—Vou para o meu morgadio de Travanca.

—Pois vae.

—Cada qual fique com o que é seu.

—Pois sim. Leva d'aqui o que fôr teu.

A desesperação de Theodora augmentava á medida que a fleugma do marido lhe cravava o dardo do desengano no coração ainda fiel. Começou a pobre mulher a saltar no pavimento, sem proferir sons articulados. Expedia uns grunhidos roucos, que fizeram pavor a Calisto. Este feiíssimo tregeitar desfechou n'um insulto nervoso, com symptomas epilepticos.

A commiseração feriu as estragadas entranhas do morgado. Foi apanhar a mulher do chão, reteve-lhe os braços que escabujavam, e levou-a d'alli para um leito, onde a deixou entregue ás criadas e ao primo Lopo de Gamboa, que vinha entrando.

Passada a crise, Theodora ardia em febre, e dava pouco tino das pessoas que a rodeavam. Pareceu-lhe, porém, sentir um beijo nas costas da mão esquerda; e, olhando apressada na supposição de que era o marido, viu o rosto lastimoso do primo Lopo, que lhe disse a meia voz:

—Esquece o ingrato, prima!… Guarda a tua vida para quem te ama!…

Calou-se, porque entrava uma criada com um chá de sidreira e macella.
Tomou elle das mãos da criada a chavena, e ministrou o charope a
Theodora, que o foi bebendo com muitos vágados da cabeça desfallecida
para sobre a espadua de Lopo, que se ageitára para amparal-a.

Á hora final Calisto entrou ao quarto, e não se commoveu. Disse algumas breves e seccas palavras de despedida, acrescentando que fechado o segundo anno da sua legislatura, viria para casa.

Theodora ainda balbuciou:

—E deixas-me assim doente, homem?

—Esse incommodo é passageiro, prima. Logo que tu reflexiones um pouco, levantas-te curada. Mal da patria, se os deputados casados obedecessem aos caprichos das mulheres, que lhes impedem irem onde o dever os chama. Pensas assim, porque foste educada rusticamente. Era minha tenção tirar-te d'aqui, levar-te para terra de gente, dar-te alguma educação, para depois te poder levar comigo para qualquer terra culta; vejo, porém, que desatinas e te fazes creança n'uma edade impropria de ciumes.

—Olha que não és mais novo que eu!—bradou ella.—Tens quarenta e quatro e eu quarenta.

—Está bom, está bom—obviou elle—não discutamos edades. O que se segue é que ambos envelhecemos: razão de mais para justificar a toleima dos teus zelos e desconfianças… Não posso demorar-me, que já ahi está a liteira, e a jornada de hoje é muito grande. Adeus. Primo Lopo, olha tu se dás juizo a tua prima, e manda-me no que quizeres em Lisboa.

—Parece-me que me não pões mais os olhos, Calisto!—clamou ella com profunda angustia.

—Adeus, adeus, minha tola; não penses em tal.

E saiu alegre como o encarcerado da prisão de longos annos. As azas candidas de Iphigenia sacudiam-lhe do espirito saudades e remorsos.

XXXII

*A virtude de Theodora em paroxismos*

Em outubro d'aquelle anno, a friza dezeseis do theatro de S. Carlos expoz uma cara desconhecida de todos, excepto de alguns raros rapazes da nata social que a tinham visto de relance, entre as aves e flores de Cintra.

Era Iphigenia, a formosa do novo-mundo, que uns chamavam a feição genuina da Circassia, outros a romana herdeira do perfil correcto das Faustinas e Fulvias; e os mais circumscreviam a sua admiração á mulher dispensando-se de lhe esquadrinhar o typo.

De feito, Iphigenia era belleza das que sómente se assimelham propriamente a si.

Ao lado d'esta mulher estava um homem, cuja nobre e fidalga presença abonava e encarecia a qualidade da dama: era o morgado da Agra de Freimas, Benevides de Barbuda.

A opinião publica da platéa e camarotes estava ou duvidosa ou indecisa. Aqui dizia-se que Iphigenia era parenta do cavalheiro, além desdouravam-lhe a posição, sem comtudo os rostos se voltarem corridos do escandalo.

Iphigenia, á saída do theatro, entrava n'uma luxuosa caleche tirada por hanoverianos soberbos. Calisto Eloy apertava a mão da dama, e entrava n'outra sege. A caleche parava na rua de S. João dos Bem Casados, no pateo de um palacete; o morgado apeava da sege em frente do hotel inglez, a Buenos-Ayres.

As pesquizas sincavam n'esta diversidade de paragens. Sabia-se que o deputado frequentava o palacete a horas em que se visitam senhoras cerimoniosamente. Sabia-se que morava alli a viuva do general Ponce de Leão, o qual morrera no serviço do Brazil. A pouco e pouco, a maledicencia ajuntou á admiração o respeito.

Uns parentes do general, porventura filhos d'aquelles que se entre-lembravam de terem sido procurados por uma viuva, levaram os seus cumprimentos ao palacete de S. João dos Bem Casados. Iphigenia fez-lhes saber pelo seu escudeiro que lhes agradecia a delicadeza e a honra do parentesco. E mais nada.

Ora, Calisto Eloy, sem embargo da seriedade e gentil compostura de sua pessoa, não podia de todo poupar-se ao riso de certas pessoas da platéa. Estava alli gente que o ouvira fulminar no parlamento o theatro lyrico, e nomeadamente a Lucrecia Borgia. Estava quem se lembrasse d'aquellas calças de polainas assertoadas de madre-perola, e do farfalhoso colete, e das pantalonas axadrezadas do aljubeta Nunes & filho. O doutor Liborio, do Porto, principalmente, ainda estomagado da reprimenda, saboreava a vingança, indigitando-o á hilaridade dos camaradas parelhos em nascimento, asnidade e estylo.

N'uma noite, Iphigenia reparou na attenção e nos sorrisos de um grupo. Ao voltar a vista para seu primo, encontrou os olhos d'elle, com uma tempestade sobranceira, que era o avincado profundo da testa. Andava por alli n'aquella fronte sangue de Traz-os-Montes, sangue de Barbudas.

Calisto estremara o doutor Liborio de Meirelles, entre a roda dos peraltas, que bebiam da garrafeira do paternal tendeiro, prodigalisada ao filho das esperanças suas e da patria.

N'um intervallo, saiu Calisto Eloy do camarote, e como não encontrasse no portico nem nos corredores o risonho deputado portuense, entrou á platéa.

Avisinhou-se de Liborio, que o encarou com semblante de côr incerta.

—O collega por aqui?—disse o doutor—Reminiscencias me não acodem de havel-o visto na platéa!

Calisto, sem o fitar no rosto, respondeu:

—Venho vêr as dimensões das suas orelhas.

—Como assim!…—balbuciou Liborio.

—Tenciono puchar-lh'as até á bocca, no proposito de tapar com ellas um riso alvar que vossa mercê tem, e que me incommoda grandemente. Veja lá se a operação lhe convém aqui ou lá fora.

—Não comprehendo a razão do insulto!—disse Liborio.

—Será lá fora—concluiu Calisto e saiu.

A gente, que rodeava o doutor portuense, comportou-se bem: cada qual, dizia de si para comsigo, que, se o caso fosse com elle, o provinciano enguliria a injuria com uma balla; assim, como não era com elles o caso, Calisto mereceu a Deus a felicidade de não ser varado de ballas.

O que passa como certo é que Liborio nunca mais desfranziu um riso voltado para a friza de Iphigenia.

N'uma d'essas noites, estava na friza fronteira á de Calisto a familia
Sarmento. Adelaide não despregava o occulo de Iphigenia, salvo quando
Catharina lh'o tirava da mão, para lh'o assestar.

Calisto exultava em delicias incomparaveis. Era a vingança, a carapinhada dos deuses n'um meio dia de julho, a vingança de amador menoscabado. Este cuidar que se vingam, mulheres e homens, é inepcia de marca maior, a que não houve esquivar-se aquelle sujeito de condição muito ajuizada se o confrontamos com outros, a quem o amor aleijou de todo em todo.

Reparou Calisto que no camarote de Duarte Malafaia, marido de D. Catharina Sarmento, entrara um sujeito que lhe não era desconhecido. Examinou-o com o binoculo, e reconhecera aquelle D. Bruno de Mascarenhas, a quem elle se apresentara na qualidade de anjo Custodio de D. Catharina. Sorriu-se o morgado para dentro por que lhe já não ficava bem indignar-se por dentro nem por fóra. A esposa de Duarte, segundo parecia, raro relance de olhos desfechava sobre o perturbador da sua consciencia de outro tempo. O morgado entendeu que a esposa regenerada reincidira na velha culpa. Enganara-se.

Permanecia ainda o salutar effeito da façanha moralisadora de Calisto Eloy. Bruno era odioso a Catharina: o anjo advogado dos maridos a estava sempre lustrando com as lagrimas do arrependimento. Não sei se o morgado da Agra levará ao desconto do juizo final duas acções que pesem tanto como esta na balança.

Passaram dois mezes sem que D. Theodora escrevesse ao marido. Embargada no leito pela enfermidade, que a poz em começos de phtisica, a pobre senhora, esteiada no amparo da piedade, fazia penosas promessas a santos da sua particular devoção, pedindo-lhes a amizade e restituição do marido. D'esta feita, pelo que a gente está vendo, os santos não levaram a melhor da legião de demonios que resaltam dos olbos de uma brazileira galante. Não obstante, a protecção dos privados do céo valeu-lhe o levantar-se da cama, e convalecer-se com leite de jumenta e oleo de figados de bacalhau. Mas o coração estava ainda, e cada vez mais encancerado; a saudade crescia consoante a ausencia e desprezo do marido se augmentava.

Por ventura, aquelles santos tão rogados estavam em volta d'ella a defendel-a das tentações do primo Lopo. Já Theodora o repulsava desabridamente, quando se via no risco de ser abalada em sua fidelidade. A pervicacia, porém, do astuto negociador de seus vilissimos interesses, servidos por infames lagrimas e exclamações compungentes, alguma vez a surprehendeu quasi desprotegida do escudo celestial.

Mas—honra á virtude que cae mais tarde que o costume!—honra á virtude de Theodora, que lhe punha sempre diante dos olhos, nas conjuncturas perigosas, a imagem do marido, e de sua mãe e avós todas esposas immaculadas!

Passemos a esponja por sobre Penelopes e Lucrecias.

Começou Calisto a receber cartas de sua mulher. Algumas, que abriu, não pôde digeril-as. Como a dôr sincera não costuma ser eloquente, nem a orthographia da filha do boticario exprimia com certeza as singelas lastimas de Theodora, o cru marido queimava as cartas para desmemoria eterna.

XXXIII

*Escandalos*

Abriram-se as camaras.

A opposição espantou-se de vêr o deputado por Miranda conversando muito mão por mão com os ministros. O abbade de Estevães ousou perguntar ao seu collega, amigo e correligionario, de que rumo estava. Calisto respondeu que estava de rumo em que o pharol da civilisação alumiava com mais clara luz. O antigo desembargador do ecclesiastico redarguiu com admoestações benevolas. O morgado sorriu-lhe na cara veneranda, e disse-lhe:

—Meu amigo, abra os olhos, que não ha martyrologio para as toupeiras. As idéas não se formam na cabeça do homem; voejam na athmosphera, respiram-se no ar, bebem-se na agua, coam-se no sangue, entram nas moleculas, e refundem, reformam e renovam a compleição do homem.

—Segue-se que está liberal?—perguntou o pavido abbade.

—Estou portuguez do seculo XIX.

—Apostatou!—disse com pesar mui entranhado o padre—Apostatou!…

—Da religião dos nescios.

—Mercês!—accudiu o abbade.

—Sem direitos—retorquiu o sardonico Barbuda.

Não tornaram a fallar-se, até um dia do anno seguinte em que o padre, despachado conego da sé patriarchal de Lisboa, aceitou o parabem e o sorriso pungitivo de Calisto Eloy.

Na primeira votação importante para o ministerio, Calisto Eloy defendeu o projecto que era vital para o governo, e fez-se desde logo necessario á situação. Orou por vezes, com seriedade tal de principios, que não servem para romance os seus discursos. Explicou a profissão da sua nova fé, respeitando as crenças politicas dos seus antigos correligionarios. Disse que escolhia o seu humilde posto nas fileiras dos governamentaes, por que era figadal inimigo da desordem, e convencido estava de que a ordem só podia mantel-a o poder executivo, e não só mantel-a, senão defendel-a para consolidar as posições, obtidas contra os cubiçosos de posições. Reflexionou sisudamente, e fez escola. Seguiram-se-lhe discipulos convictissimos, que ainda agora pugnam por todos os governos, e por amor da ordem que está como poder executivo.

Preparava Calisto um projecto de lei para a abolição dos vinculos, quando recebeu a seguinte carta de Lopo de Gamboa:

«Primo e amigo.

Recommendaste-me que désse juizo a tua senhora e minha prima. Contra paixões não ha conselhos. Tu lá o sabes por theoria e experiencia, como eu que não tenho dado máo burro ao dizimo, um coisas de coração.

Préguei-lhe prudencia, conformidade e paciencia. O abbade tambem lhe citou exemplos admiraveis de esposas sanctificadas pela ingratidão dos maridos. Não conseguimos nada. Cada vez te ama com mais furor. Diz que te ha de ir buscar ás entranhas da terra e aos abysmos do bárathro. Isto vae de galhofa; mas eu tenho sincera pena da nossa pobre prima. Desculpo-te, porque és homem, porque amas outra mulher, e porque esta realmente, deve pouco á formosura e graças. Não sou de ambages: digo o que sinto.

Contou-me o primo Gastão de Villarandêlho que te vira em S. Carlos, e comtigo no camarote uma deidade arrebatadora. Se é essa a rival da Theodora, quem ousará chamar-te ao caminho da probidade conjugal?! Já agora, só milagre. Nas nossas edades, meu amigo e primo, amores que entram, não ha juizo purgativo que os ponha fóra do corpo.

Vamos agora ao que importa.

Está tua senhora resolvida a ir procurar-te a Lisboa. Tenho tido mão d'ella; mas já não posso. Como lhe não respondeste á carta, desesperou-se, declarou-te guerra de morte, e tens que vêr com uma mulher furiosa. Fiz-lhe vêr que póde ser mal recebida e desprezada. Responde que quer esganar quem lhe roubou seu marido. Está doida; mas quem ha de contel-a?! Alguns parentes nossos dão-lhe razão: é o diabo isto; espicassam-n'a, e ella volta-se contra mim, dizendo que sou um patife como tu. Isto é bonito!

Em divorcio não quer que lhe fallem. Diz que quer o seu homem e não ha tiral-a d'aqui.

Prevejo os crueis desgostos que te vae ahi dar, além das vergonhas. Disse-lhe que não fosse, sem se vestir ao estylo das senhoras de Lisboa. Não quer. Apparece-te ahi gothicamente vestida, com o fatal vestido do casamento, e o fatal chapéo, que é um monstro de palha. Ha dois annos te dizia eu que vestisses tua mulher senhorilmente. Respondias-me que os melhores enfeites de uma virtuosa são as virtudes. Agora, atura-a. Se ella ahi fôr vestida de virtudes, diz lá a essa gente que se não ria d'ella.

E se tu tens de a vêr a testilhas com essa diva, que em quanto a mim não é casta? Então é que ellas são, primo Barbuda! Sobre arranhaduras, escandalo! A tua posição seria feita ludibrio da canalha. Os jornaes a fustigarem-te, e tu com a cabeça perdida! Eu imagino-me na tua situação, e tenho horror.

Que has de tu fazer n'estes apertos? Tens uma boa cabeça; mas eu estou mais a sangue frio para te aconselhar. O meu parecer é que sáias de Lisboa com essa dama, e vás para onde Theodora não te veja o rasto. Olha que vae com ella o tio Paulo Figueirôa de Travanca, besta finoria que ha de dar comtigo, se te não esconderes a bom recado.

A lealdade impoz-me o dever de te dar esta má noticia. Mais má seria, se t'a levasse tua senhora. Sei que outra pessoa te faria reflexões inuteis; mas eu tenho obrigação de conhecer os homens. No entanto, faz o que teu bom juizo te suggerir.

  Teu primo muito dedicado
  Lopo

No dia seguinte, Calisto Eloy pediu licença á camara para retirar-se por algum tempo de Lisboa, a cuidar de sua saude.

Ao outro dia embarcou para França.

Perguntava-lhe Iphigenia, contente da repentina deliberação:

—Porque é isto, primo? Nunca me fallaste em visitarmos Paris!

—Quiz dar-te o prazer da surpreza. As melhores coisas, muito pensadas antes de possuidas, desmerecem quando se possuem.

Partiram.

No palacete da rua de S. João dos Bem Casados, ficou governando os criados, aquella sr.^a D. Thomazia Leonor, que fôra já desde Cintra, recebida como dispenseira e aia de Iphigenia.

XXXIV

*Perdida!…*

Para leitores entendidos na perversidade humana, a carta de Lopo de Gamboa é uma refinada e suja barganteria, estudada e escripta com um despejo não vulgar em bachareis d'aquelles sitios. Aquelle homem, se tivesse nascido em terras onde ha a centralisação dos biltres, morria com um nome para lembrança duradoura. Assim, nascido n'aquellas serras, onde não apégou ainda romancista de medrança, se o eu não transplantar para a corja dos birbantes das minhas novellas, o homem escorrega lá da serra no inferno, sem que a execração publica o cubra de maldições.

Repulso do coração da prima, que incessantemente se estava entregando á protecção dos santos, mudou o plano das insidias, incitando-a a procurar o marido em Lisboa, como ultimo desengano e final affronta. Convinha-lhe que a pobre mulher afogasse em lagrimas as ultimas e mais entranhadas raizes da sua pureza.

Em companhia de um velho inexperiente e credulo, o honrado Paulo de Figueirôa, que nunca saira das ruinas solarengas de Travanca, metteu-se D. Theodora a caminho de Lisboa. Deu um geito ás abas do chapéo que se entortara na canastra esquecida, lavou as fitas e a palha com chá da India, arejou o bafio do vestido de veludo que embolecera no inverno passado, e d'este geito entrajada se encaixotou na liteira, defronte do tio, que tinha a sinceridade de achar sua sobrinha muito bonita, vestida assim á moderna.

Nas differentes villas que atravessou até ao Porto, D. Theodora prendeu o espanto publico. Muita gente, aliás urbana, ria-se a cair. Onde parasse a liteira, o gentio fazia-lhe roda, e queria saber d'onde vinha aquella creatura incomparavel. Theodora, á entrada de Penafiel, a pedido respeitoso do liteireiro, tirou o chapéo e cobriu a cabeça com um lencinho de tres pontas. Ainda assim, o vestido de veludo côr de ginja dava nos olhos. Os padres de Penafiel, quando avistaram a liteira, cuidaram um momento que vinha alli alguma preeminencia ecclesiastica, como cardeal, ou coisa assim. A desharmonia do lencinho com o vestido offendia o bello ideal, e a symetria esthetica das damas da terra, as quaes ao verem-na saltar da liteira para o pateo da estalagem com o chapéo na mão, similhante a um cabaz de cavacas das Caldas, soltaram grande estrallada de riso. As meninas da estalagem, condoidas do aspecto doentio e honesto da viandante, informaram-se da qualidade da pessoa, e romperam no louvavel excesso de se insinuarem na fidalga, para lhe pedirem que se vestisse de outra maneira.

Accedeu sem repugnancia Theodora. As risadas francas do povo haviam-na amolecido. O velho tambem votou pela reforma dos trajos. E, como alli pernoitasse e deliberasse esperar o dia seguinte, deu tempo a que a provessem de chapéo rasoavel, e vestido com o competente paletó de seda, nas quaes coisas collaboraram todas as modistas da terra. Regenerada pelo vestido, parecia outra. As meninas pentearam-lhe os opulentos e negros cabellos a Stuart, segundo ellas disseram. Descobriram-lhe a fronte bem talhada. Deram-lhe umas lições de pisar e arregaçar-se, para a desacostumarem de ir com os pés sobre a orla do vestido, ou mostrar os calcanhares na andadura. O mirinaque foi um golpe certeiro no desaire da fidalga de Travanca. Ella mesma, olhando em si, dizia no secreto da sua consciencia illustrada em Penafiel:

—Eu assim estou melhor, a fallar verdade!

O tio Paulo torcia um pouco o nariz ao mirinaque, dizendo:

—Pareces-me uma boneca de roda de fogo! Tens aleijados os quadris, salvo tal logar! Mas, se é moda, deixa-te ir assim, menina até Lisboa; porém, quando entrares em casa, manda espetar esses arcos n'um pau, para espantar os pardaes da sementeira.

Como o velho fidalgo desejasse vêr o mar, resolveram ir para Lisboa no vapor. Theodora, quando principiou a enjoar, pediu os sacramentos; animada, porém com as risadas de outras senhoras, convenceu-se de que não era mortal a sua afflicção.

Hospedaram-se no cáes do Sodré. D. Theodora, não obstante a anciedade em que ia de avistar-se com o marido cuidou em reparar as forças com um dormir d'aquelles que a Providencia concede ás consciencias puras e ás pessoas que desembarcam enjoadas.

Paulo de Figueirôa saiu para a rua, no intento de informar-se da residencia de Calisto. Porém, como encontrasse na rua do Alecrim um macaco encavalgado n'um cão, que trotava a compasso de realejo, deixou-se ficar pasmado no espectaculo; depois, foi subindo até ao largo das Duas Egrejas, e quedou-se a ouvir um cego de oculos verdes que pregoava e referia o successo negro de um homem que matára seu avô. Terminava o cego, offerecendo a noticia impressa, onde tudo estava declarado. Comprou o fidalgo da Travanca a pavorosa noticia, e esteve largo tempo a soletral-a, sentado á porta da egreja do Loreto.

Terminada a leitura, o velho disse entre si:

—Isto é má terra! Tomara-me eu d'aqui para fóra!… Os netos matam os avôs!…

Chamou um gallego, que o guiou ao palacio das côrtes. Perguntou ao porteiro se estava lá dentro o deputado Calisto Eloy, morgado da Agra de Freimas.

—Não sei—disse mal encarado o funccionario.

—Eu sou tio d'elle; faça favor de lhe ir dizer que está aqui o tio
Paulo de Figueirôa.

—Não posso lá ir—volveu o porteiro, mais brando.—Peça áquelle sr. deputado, que ahi vem que lh'o diga.

Paulo dirigiu-se a um sujeito de exterior sacerdotal. Era o abbade de
Estevães.

—Essa pessoa está fóra de Lisboa, creio eu—disse o deputado—pelo menos pediu licença ás camaras para retirar-se.

—Iria para casa?—perguntou o velho.

—Creio que não. Então o senhor é tio d'elle!

—Sou tio d'elle em terceiro gráo, e sou irmão do pae da esposa d'elle.

—Pobre senhora! Murmurou compassivamente o padre.—Ella perdeu um excellente marido e o partido legitimista um strenuo defensor.

—Então meu sobrinho—atalhou Paulo—já não é legitimista?!

—Qual! fez-se um malhado acerrimo. Está com esta gente, e demais a mais fez-se governamental!…

—Oh! que maroto!…

—E tudo isto, meu caro senhor, deve-se á desmoralisação de uma mulher, que lhe tirou o juizo e a dignidade, e lhe ha de dar cabo da casa. Apresenta-se com ella nos theatros, e tem-na em palacete com carruagem montada, e lacaios e estado de princeza. E a pobre senhora lá na provincia a economisar as rendas, que elle está por cá delapidando!…

—Minha sobrinha veiu comigo—observou o velho.

—Veiu? Coitada da infeliz senhora! Quanto desejava eu poder ir comprimental-a; mas como estou indisposto com o sr. Barbuda, não quero que elle me julgue capaz de irritar sua consorte com os meus despeitos. Pois senhor, se sua sobrinha quizer vêr a pompa e luxo com que está vivendo a manceba de seu marido, que vá á rua de S. João dos Bem Casados, e veja o palacio, que está ao cimo da rua, onde lá os visinhos dizem que mora a chamada «fidalga brazileira».

—Faz favor de tornar a dizer?—pediu Paulo desenrolando o nastro de uma enorme carteira escarlate, para fazer nota da residencia da brazileira.

—Se eu lhe prestar de alguma coisa, aqui estou como principal amigo que fui do desgraçado sr. Calisto Eloy—ajuntou o abbade de Estevães.

Ao fim da tarde d'este dia, D. Theodora, que fremia de raiva desde que o tio lhe revelou as informações do padre, entrou com o velho n'uma sege de praça, por lhe dizerem que era muito longe a rua de S. João dos Bem Casados.

Apeou á porta do palacete, que um logista lhe indicou. Perguntou ao criado, que lhe fallou por um postigo da cavallariça, se estava em casa o sr. Calisto.

—Não mora aqui—disse o lacaio.

—Mora aqui!—teimou D. Theodora.

—Já lhe disse que não mora aqui—recalcitrou o criado.

—Então aqui não está uma mulher viuva?

—Mulher viuva?

—Sim.

—Está lá em cima uma mulher viuva, que é a governante da casa.

—Essa mesma é que eu quero vêr, disse D. Theodora.

—Quem lhe hei de eu dizer que a procura?

—Diga-lha que é uma pessoa.

—A este tempo estava já na janella a sr.^a D. Thomazia Leonor, cuja attenção fôra chamada pelo desabrimento do dialogo.

—Quem é a senhora?—perguntou a viuva do tenente.

D. Theodora impertigou o pescoço, e como visse uma mulher de touca parda, e já avelhentada, conjecturou que fallava com uma criada.

—Quero fallar á senhora viuva.

—Abra a porta, José—disse D. Thomazia ao criado.

—Subiu a fidalga com o tio, entraram na sala de espera, que já estava aberta, e d'ahi a pouco entravam n'outra sala, que era a das visitas.

D. Theodora olhava em de redor de si por sobre aquelles riquissimos setins e marmores, e dizia intallada:

—Olha o meu dinheiro por onde anda!…

Paulo benzia-se e murmurava:

—Parece o palacio do rei!

D. Thomazia demorara-se a mudar de touca, de cazebeque e botinhas.
Entrou na sala com o garbo de lisboeta, e disse a D. Theodora:

—Eu desejo saber com quem tenho a honra de fallar.

—Então a senhora é que é a viuva?

—Eu é que sou a viuva do tenente de infanteria 13, João da Silva Gonçalves. Dar-se-ha caso que v. ex.^a seja uma prima que meu marido tinha na provincia do Minho?

—Não sou quem a senhora pensa.

—Então tem a bondade de dizer…

—Pois a senhora é que é a tal pessoa?…—tornou Theodora, já menos raivosa, que espantada do depravado gosto do marido.

—Que pessoa? não sei de quem v. ex.^a falla.

—A amasia de meu marido…

—Amasia de seu marido!… Cruzes!… a senhora veiu enganada… Eu sou uma viuva honrada; chamo-me Thomazia Leonor. Quem é o marido da senhora?! Isto tem graça!…

—Meu marido é o deputado Calisto Eloy.

—Ah!—exclamou Thomazia—Então v. ex.^a é esposa do sr. morgado…

—Já me conhece?!…—disse sorrindo ferozmente Theodora.

—Agora tenho a honra de a conhecer; mas eu não sou a pessoa que v. ex.^a procura. Bem vê que sou uma mulher de edade, e por desgraça estou aqui n'esta casa da prima do sr. morgado como dispenseira, e aia da fidalga.

—E que é da tal fidalga?

—Anda a viajar pela Europa.

—Onde é a Europa?—perguntou D. Theodora colerica.

—A Europa é este mundo por onde anda a gente, minha senhora—respondeu promptamente a viuva.

—Mas é longe onde está a tal prima de meu marido?

—Muito longe: elles já embarcaram ha seis dias… Deus sabe onde elles estão agora.

—Pois foram os dois?—bradou Theodora, sacudindo murros fechados.

—Foram sim, minha senhora.

—E quando voltam?

—Quem sabe!… Os fidalgos não disseram nada: póde ser que passem alguns mezes lá por fóra.

—Raios os partam!—vociferou Theodora.

—Deus os defenda!—emendou Thomazia—Pois v. ex.^a deseja tanto mal a seu marido, que é um anjo, e a sua prima, que é um serafim!…

—A minha prima?!—ululou a morgada.

—Sim, minha senhora; pois tão prima é ella do marido de v. ex.^a como sua.

—Ella o que é, sabe que mais? é uma desavergonhada, e tudo que aqui está é meu, foi comprado com o meu dinheiro.

—Seria—disse Thomazia algum tanto enfadada—seria, mas eu não tenho nada com isso, minha senhora. A sr.^a D. Iphigenia Ponce de Leão entregou-me a sua casa, quando foi viajar: hei de entregar-lh'a como a recebi; e v. ex.^a lá se avenha com seu marido, quando elle voltar. D. Theodora Figueirôa, empuchada por impulsos dos nervos, corria de angulo para angulo o salão. De uma vez, olhou por entre duas portadas mal fechadas para o interior de outra sala, e exclamou:

—Olhe, meu tio! olhe que riqueza aqui vae!

Deu um pontapé nas portadas, e entrou, bradando:

—O meu dinheiro! o meu dinheiro!…

Era ali o sumptuoso gabinete de leitura e musica de D. Iphigenia. Ornavam as paredes dois retratos a corpo inteiro: Calisto Eloy com a farda de fidalgo cavalleiro; e Iphigenia trajada de amazona.

—Olha o meu marido!—clamou Theodora—aquella é a tal mulher? perguntou á espantada Thomazia.

—Aquella é a sr.^a D. Iphigenia.

—Vou rasgar aquelle diabo!—berrou a morgada, puchando uma cadeira para trepar.

—Isso alto lá, minha senhora!—acudiu irada a dispenseira—V. ex.^a não estraga coisa nenhuma. E, se continua n'esse disparate, eu mando chamar o cabo da rua para a pôr lá fóra.

—Pôr-me a mim lá fóra?! bradou Theodora!

—Sim, minha senhora, que isto não são termos. Nem me parece senhora! cá em Lisboa acções d'estas só as praticam as peixeiras.

Paulo foi ao pé da sobrinha, e disse-lhe:

—Theodora, vamos. A mulher tem razão, porque é criada da casa e tem de dar contas.

—Não sou criada; sou aia da fidalga—corregiu a viuva, offendida nas dragonas do seu defunto tenente.

—Aia, ou o diabo que é—tornou Paulo—Vem d'ahi, sobrinha—e tirou-a pelo braço, em quanto ella assestava os punhos fechados ao retrato de Iphigenia.

Á saida d'aquella casa, D. Theodora, a consorte fiel, a mulher que fez eclypse nas virtudes conjugaes do Indostão, sentiu quebrar-se o ultimo cabello que a prendia á historia das esposas exemplares.

N'aquella hora funesta, lembrou-se com saudades do primo Lopo de Gamboa.

O patife vencêra!

XXXV

*A felicidade infernal do crime*

Recebeu Calisto Eloy em Paris a minudenciosa narrativa dos factos acontecidos, e escondeu de Iphigenia a carta de D. Thomazia.

Foi tamanha sua vergonha e odio, que d'alli escreveu a Lopo de Gamboa, reagradecendo-lhe o aviso que lhe dera do infame projecto de Theodora; e, lhe asseverava que, depois de tão incrivel e original desaforo, se considerava viuvo, e nunca mais diante de seus olhos consentiria similhante furia. Ajuntava que, na volta para Portugal, ia requerer divorcio, e separação dos casaes, se a esse tempo Theodora se não houvesse recolhido á sua casa de Travanca, sem tocar no minimo dos valores pertencentes ao casal da Agra de Freimas.

Tirante o que, n'esta carta, dizia respeito ao aviso enviado para Lisboa, Lopo leu declamatoriamenle as ameaças de Calisto, e os epithetos injuriosos com que elle castigava a petulancia da mulher. Ao tempo d'esta leitura, superflua já era tão rija catapulta para derrubar a virtude de Theodora.

Quasi impassivelmente recebeu ella os insultos. Cuidou logo em transferir-se para o seu solar, e repartiu entre o velho Paulo e seu primo Lopo, o cuidado da administração dos seus abastosos vinculos. Ora, o primo Lopo, afim de esmerar-se na tarefa que lhe era confiada, mudou a sua residencia para casa da prima, e cuidou de restituir áquelle solar a antiga magestade dos defuntos Figueirôas. Para isto, lhe transmittiu sua prima aquelle caixote das peças, que para alli estavam amuadas, desde que o governador da India voltára com ellas d'além-mar, provavelmente adquiridas com tanta honestidade como agora iam ser esbanjadas.

Graças ás modistas de Penafiel, e, mais ainda, ás meninas da estalagem, D. Theodora Figueirôa affeiçoou-se ao merinaque, e ao feitio e estofo do vestido e paletó. O primo Lopo dizia-lhe, algumas vezes, que ella, em companhia de Calisto, era um diamante bruto; e se n'isto havia encarecimento, até certo ponto o bacharel maravilhava-se do influxo que o trajar exercitava nas fórmas de sua prima. A cintura adelgaçou-se; apequenou-se-lhe o pé; alargaram-se-lhe os encontros; amaciou-se-lhe a cutis; branquearam-se-lhe os braços; escampou-se-lhe a fronte com o riçado dos cabellos; toda ella adquiriu no andar certo requebro e donaire que lhe ia tão ao natural como se tivesse sido educada por salas e adextrada em flexuras da dança! A mulher, com effeito, é um mysterio! Estas methamorphoses aos quarenta annos só podem fazer-se e estudar-se a espelho, cujo aço tem composição dos laboratorios d'aquelle imaginoso chefe dos rebeldes, que Deus despenhou do empyreo, sem todavia o esbulhar dos dons da intelligencia!

E, por sobre tudo isto, para que ninguem duvide da intervenção diabolica n'este caso, Theodora vivia contente, esquecida, feliz!

XXXVI

*Saldo de contas conjugal*

Chegou a Paris a boa nova, desacompanhada de pormenores deshonrosos. Dizia apenas o feitor do morgado que a fidalga se retirara para Travanca, deixando tudo que encontrára, e levando tudo que trouxera. Lopo de Gamboa industriára o feitor na direcção que havia de dar á carta. Faltou-lhe apurar o desvergonhamento ao extremo de continuar correspondencia com o marido de sua prima.

Calisto desandou para Lisboa, prevenindo Thomazia que occultasse de
Iphigenia a indecorosa scena que sua mulher fizera.

Na volta de Paris, o morgado aposentou-se no palacete da brazileira. O passeio á Europa limpou-lhe do espirito as teias: é bom desempoeirar os olhos com a viração salutar dos ares de França e Italia. Lisboa pareceu a Calisto Eloy terra pequena de mais para sacrificios tamanhos. Emancipou o coração, e obedeceu-lhe.

Assistiu ainda o deputado a algumas sessões parlamentares. Floreou os seus discursos com as recordações do progresso industrial no estrangeiro. Enlevou-se nas delicias de França, e não andou por muito longe da phrase arrobada do dr. Liborio de Meirelles na apologia dos esplendores estranhos, e lamentações das miserias da patria.

Providenciou sobre negocios de sua casa, para que os recursos lhe não minguassem nas pompas do seu viver em Lisboa, e começou um doce viver, não mareado de minimo dissabor. Renasceu-lhe no espirito, já livre dos sobresaltos do coração, o amor á leitura de livros modernos, em que se lhe deparavam luzes e idéas, que elle, a furto, conseguia entrever nas litteraturas antigas. Avermelhava-se-lhe o rosto, quando lia o seu discurso ácerca do luxo, e o outro mais tôlo sobre Lucrecia Borgia do theatro lyrico. A sciencia moderna flagellava-o. Tinha elle escripto nos dois primeiros mezes alguns quadernos de papel, no proposito de dar á estampa um livro contra o luxo. Releu com pejo a sua obra, e ordenou a um criado que queimasse o manuscripto. O criado não o queimou. Escondeu-o sem máo intento; e alguma vez saberá o mundo litterario como aquelles papeis vieram á minha mão, e ainda me são deleite e licção de sã linguagem e sãs doutrinas.

Decorreram alguns mezes sem successo que dê capitulo d'algum interesse. Fechado o triennio da legislatura, Calisto Eloy foi agraciado com o titulo de barão da Agra de Freimas, e carta do conselho. Sondou o animo de alguns influentes eleitoraes de Miranda para reeleger-se pelo seu circulo. Disseram-lhe que o mestre-escola lhe hostilisava a candidatura, emparceirado com o boticario. Comprou o barão dois habitos de Christo que fez entregar, com os respectivos diplomas, aos dois influentes. Na volta do correio foi-lhe assegurada a eleição, que, de mais a mais, o governo apoiava.

Por esta occasião, Braz Lobato, religada a amizade antiga, escreveu ao fidalgo uma carta em que, pouco menos de brutalmente, reproduzia os boatos correntes ácerca do procedimento da sr.^a D. Theodora com o seu primo Lopo de Gamboa.

O barão experimentou um mal-estar de especie nova, que se desvaneceu a pouco e pouco, e só mui levemente se repetiu no dia seguinte. Eu creio que o homem aprendêra em Paris dois consolativos versos de Molière:

Quel mal cela fait-il? la jambe en devient elle Plus tortue, après tout, et la taille moins belle?

Averiguei quanto em mim coube o viver interno de Iphigenia e do primo. Convinha-me descobrir amarguras lá dentro, para tirar d'ellas o symptoma da expiação. Não descobri coisa alguma, que não fosse invejavel. O mais que se me deixou vêr de novidade foram duas creanças loiras, lindas, alvas de neve, e amimadas entre Iphigenia e Calisto como dois penhores de felicidade infinita.

Como ali cairam dos pombaes do céo aquellas duas avesinhas, que saltitavam dos braços de um para o colo do outro, não sei. Eu digo ao leitor o que as mães de recem-nascidos dizem aos filhos mais velhos: «vieram de França n'uma condecinha.»

Ouvi rosnar que no sollar de Travanca tambem appareceu um ropolhudo menino, que pelos modos, tambem veiu n'um cêsto de alguma parte. Se não fossem estas remessas prodigiosas de creanças, acabavam duas illustrissimas familias sem posteridade. A natureza é muito engenhosa.

O barão esperava que a mulher morresse, para legitimar os seus meninos, um dos quaes se chamava Mem de Barbuda como seu decimo setimo avô, e o outro Egas de Barbuda como seu decimo oitavo avô.

A baroneza, que, digamol-o depressa, não regeitou o titulo do marido, esperava que o marido se anniquillasse na perdição dos seus costumes, para tambem legitimar o seu Bernabé. Chamava-se Bernabé aquelle gordo menino, gordo que não parecia fructo outoniço de arvore já tão esgravinhada e resêca! O amor é tão engenhoso como a natureza.

*Conclusão*

Deixal-o ser feliz: deixal-o. Calisto Eloy, aquelle santo homem lá das serras o anjo do fragmento paradisico do Portugal velho, caíu.

Caiu o anjo, e ficou simplesmente o homem, homem como quasi todos os outros, e com mais algumas vantagens que o commum dos homens.

Dinheiro a rôdo!

Uma prima que o presa muito!

Dois meninos que se lhe cavalgam no costado!

Saude de ferro!

E barão!

Conjectura muita gente que elle é desgraçado, apezar da prima, do baronato, dos meninos, do dinheiro e da saude.

Eu, como já disse, não sei realmente se lá no recesso dos arcanos domesticos ha borrascas.

Na qualidade de anjo, Calisto, sem duvida, seria mais feliz; mas, na qualidade de homem a que o reduziram as paixões, lá se vae concertando menos mal com a sua vida.

Eu, como romancista, lamento que elle não viva muitissimo apoquentado, para poder tirar a limpo a sã moralidade d'este conto.

Fica sendo, portanto, esta coisa uma novella que não ha de levar ao céo numero d'almas mais vantajoso que o do anno passado.

FIM

*INDICE*

Dedicatoria
I—O heroe do conto
II—Dois candidatos
III—O demonio parlamentar descobre o anjo
IV—Asneiras da erudição
V—Estreia parlamentar de Calisto
VI—Virtuosas parvoiçadas
VII—Figura, vestido, e outras coisas do homem
VIII—Faz rir o parlamento
IX—O doutor do Porto
X—O coração do homem
XI—Santas ousadias!
XII—O anjo custodio
XIII—Regeneração
XIV—Tentação! Amor! Poesia!
XV—Ecce iterum Crispinus
XVI—Quantum mutatus!
XVII—In Liborium
XVIII—Vae cair o anjo!
XIX—Ó mulheres!
XX—Proh dolor!
XXI—O mordomo das tres virtudes cardeaes
XXII—Outro abysmo
XXIII—Tenta o seu anjo da guarda salval-o mediante uma carta da esposa
XXIV—A mulher fatal
XXV—Perdido!
XXVI—E ella amava-o!
XXVII—A saudade e a sciencia em dialogo
XXVIII—Ingratidão de um deputado
XXIX—O demonio em Caçarelhos
XXX—Como ella o amava!
XXXI—Vence o demonio! choram os anjos!
XXXII—A virtude de Theodora em paroxismos
XXXIII—Escandalos
XXXIV—Perdida!
XXXV—A felicidade infernal do crime
XXXVI—Saldo de contas conjugal
Conclusão

*NOTAS*

[1] Bebes bem e vives mal. Fr. Luiz de Sousa confirma este caso, algures, na Vida do arcebispo de Braga.

[2] Nós e nosso rei somos livres, etc.

[3] L. II, Epist. II, v. 51.

[4] O bom vinho alegra o coração do homem.

[5] Marinho escreveu no periodo da usurpação dos Filippes.

[6] Duarte Nunes de Leão ainda via os cavalleiros de bronze cujos cavallos deram o nome ao chafariz. Historiando o reinado de D. Fernando, e a invasão de castelhanos em Lisboa, escreve a pag. 205 e seguintes, da primeira parte da chronica dos reis:

«…E ardeu toda a rua nova, e a freguezia da Madanella e de S. Gião e toda a judaria com a melhor parte da cidade. E para memoria daquelle grande incendio, tomarão h[~u]as fermosas portas da alfandega da cidade para levarem a Castella quando se fossem. E assi quiserão levar h[~u]s cavalleiros de bronze, mui bem feitos, [~q] stavã no chafariz, a que ficou o nome dos cavallos por cuja bocca sahia aquella grossa agua. Mas os cidadãos prevenirão nisso, e os guardarão [~q] lh'os não tomassem, por ser cousa publica, e [~q] sendo levado o terião por affronta. Estes cavallos que… por aquella differença [~q] os antigos tiverão sobre elles os houveram de conservar os governadores da cidade, nestes dias proximos, como poucos curiosos de antiguidades, mandaram sem proposito tirar, donde tantos tempos estiveram.»

[7] Prudencia em tudo.

[8] Sede prudentes como as serpentes, e simplices como as pombas. S. Matt. c. x. v. 16.

[9] Coroemo-nos de rosas em quanto ellas não fenecem.

[10] Gloria aos vencidos.

[11] O orador forrageou os elegantes dizeres, que vão sublinhados, na feracissima seara de um livro do sr. dr. A. Ayres do Gouveia Osorio, intitulado: «A reforma das prisões

[12] Esta chave de oiro do peregrino discurso foi tambem roubada dos thesouros do sr. dr. Ayres de Gouveia, ministro da justiça. Pag. 150, 2.^o vol. da Reforma das prisões.

[13] Não sejas por demasia justo.

[14] Palavras e phrases sublinhadas são plagiatos. O dr. Liborio tinha vasta leitura da Reforma das Cadeias do insigne escriptor, A. Ayres de Gouveia, ministro da justiça, ao fazer d'esta nota (20 de março de 1865, meia-noite).

[15] Já se disse que os primores sublinhados são despejadamente forrageados no livro do sr. dr. Ayres de Gouveia.

[16] A Reforma das Cadeias, part. I, pag. 26.

[17] Ibid., pag. 17.

[18] Antonio Ribeiro dos Santos, 1.^o vol., p. 186.—A. Alexis

[19] É egual o sentir do padre Manuel Bernardes. Diz assim: «Adverte que as varias disposições e accidentes que tocam ao nosso corpo, pegam o seu modo tambem ao espirito… Diversa feição e actualidade tem o espirito de quem vae montado em um formoso cavallo, e o do que vae em um despresivel jumento. Se o teu vestido fôr pobre e roto, repara que o espirito recebe d'aqui alguma disposição differente da que tem quando o vestido é novo e asseado: e assim nas mais cousas. (Luz e Calor. Silva de varios dictames espirituaes.)

[20] Se fores a Roma, vive á moda de Roma.

[21] Creio que os grandes effeitos d'esta narrativa foram detidamente estudados e calculados pelo caminho.

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