The Project Gutenberg eBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01

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Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01

Author: Alexandre Herculano

Release date: June 22, 2005 [eBook #16111]
Most recently updated: December 11, 2020

Language: Portuguese

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OPÚSCULOS POR ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 01 ***

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OPUSCULOS

POR
A. HERCULANO

SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.

QUESTÕES PUBLICAS

TOMO I

                                 LISBOA
            EM CASA DA VIUVA BERTRAND & C.ª—CHIADO, N.º 73

M DCCC LXXIII

IMPRENSA NACIONAL

*ADVERTENCIA PRÉVIA*

Havia annos que os meus velhos editores e amigos, os fallecidos Irmãos Bertrands, admiraveis typos dessa modesta austeridade e dessa nobre honradez, em todas as relações da vida civil, que eram gloriosa tradição da classe burguesa, e que a burguesia destes nossos tempos, ensanefada já de ouropeis fidalgos, não parece inclinada a manter com excessivo ciume; havia muito, digo, que os meus editores instavam comigo para que ajunctasse em volumes alguns opusculos, escriptos por mim e publicados por elles em diversas conjuncturas, cujas edições se achavam de todo esgotadas. Na sua opinião, eu devia incluir tambem nessa collecção outros opusculos, que, ou impressos avulsamente por minha conta, ou inseridos em publicações periodicas, tinham feito certo ruido, e não se encontravam já no commercio. Entendiam igualmente que nesta compilação de trabalhos sobre assumptos tão variados poderiam introduzir-se quaesquer outros ainda ineditos, que me não parecessem indignos de virem a lume, o que, no seu modo de ver, daria certo realce á publicação que se propunham, e em cujo exito confiavam.

Apesar das ponderações que me faziam homens tão experimentados nas cousas da imprensa, hesitei muito tempo em acceder aos seus intuitos. Após largos annos consumidos na vida agitada das letras, em que o meu baixel mais de uma vez fora açoutado por violentas tempestades, tinha, emfim, ancorado no porto tranquillo e feliz do silencio e da obscuridade. Olhava com uma especie de horror para as vagas revoltas da immensa lucta das intelligencias, contraste profundo da vida rural a que me acolhera. Depois, o espirito sentia bem a propria decadencia, cujos effeitos a interrupção dos habitos litterarios devia aggravar. Reflectia, sobretudo, no tedioso de rever escriptos, parte dos quaes remontavam a tempos assás distantes. Podia, na verdade, devia talvez, deixá-los passar como estavam, no que respeita á maior ou menor exacção das doutrinas, porque a pretensão á infallibilidade é sempre ridicula no individuo, e eu nunca tive tal pretensão; mas era indispensavel castigá-los em relação á fórma. O methodo, o estylo, a linguagem, as condições, em summa, da arte de escrever são, no mundo das letras, o que a boa educação, a cortesia, as attenções, o respeito para com os usos recebidos são no tracto civil, o que os ritos são nas sociedades religiosas. No ente que cogita, a idéa póde e ha de variar com o decurso do tempo, com a ampliação dos horisontes do pensamento. Sobrepõe-se gradualmente a verdade ao erro, e ainda mal que, outras vezes, é o erro que succede ao erro, quando não á verdade. Aprender quasi sempre é esquecer; affirmar quasi sempre é negar: esquecer o que aprendemos; negar o que nós proprios affirmámos. É por isso que, no meio de milhões de duvidas, cada geração lega á que lhe succede poucas verdades incontrastaveis, e que a lentidão do progresso real é um bem triste e desenganador dynamometro da tão limitada potencia das faculdades humanas. Não assim pelo que toca ás formulas externas das manifestações do espirito. O incompleto, o barbaro, o vicioso, o tolhido, o desordenado, o obscuro não são o revolutear do oceano das idéas: são simplesmente ignorancia ou preguiçoso desalinho, mais ou menos indesculpaveis.

Ora a revisão de escriptos de tão diversas epochas, ainda limitando-me ao exame da contextura e execução, repugnava-me. Era renovar o tracto com as letras no que ha nellas menos attractivo, na questão da fórma. E todavia, sem esse trabalho preliminar, não podia decentemente satisfazer os desejos dos meus editores, desejos que o ultimo d'elles, pouco antes de fallecer, ainda vivamente manifestava.

Mas, o que era na realidade esta repugnancia ao trabalho, embora fosse um trabalho ingrato? Era o egoismo dos annos derradeiros; o amor á quietação da intelligencia, que, no outono da vida, é em nós como o prenuncio da completa, da eterna paz. Para vencer esta enfermidade dos espiritos cançados e gastos, cumpre que surja nelles um incitamento poderoso, uma necessidade instante. Foi, porém, este incitamento ou esta necessidade que, a final, nasceu para mim, justamente das condições da vida rural.

Para o velho que vive na granja, na quinta, no casal, como que perdidos por entre as collinas e serras do nosso anfractuoso paiz, ha na existencia uma condição que todos os annos lhe prostra o animo por alguns mezes, doença moral, mancha negra da vida rustica, facil de evitar nas cidades. É o tedio das longas noites de inverno; das horas estereis em que o peso do silencio e da soledade cai com duplicada força sobre o espirito. Para o velho do ermo, nesses intervallos da vida exterior, a corrente impetuosa do tempo parece chegar de subito a pégo dormente e espraiar-se pela sua superficie. A leitura raramente o acaricia, porque os livros novos são raros. A decima visão da mesma idéa, vestida do seu decimo trajo, repelle-o, não o distrahe. As convicções ardentes, as alegrias das illuminações subitas, as coleras e indignações que inspiram e que, na mocidade e nos annos viris, enchem a cella do estudo de turbulencias interiores, de arrebatamentos indomaveis, de debates inaudiveis, de lagrymas não sentidas, de amargo sorrir, cousas são que se desvaneceram. Matou-as o gear do inverno da existencia. Desfallece-lhe o animo, mal tenta embrenhar-se na selva das cogitações, engolfar-se nas ondas dos pensamentos, que, em melhor idade, lhe roubavam á consciencia os ruidos longinquos e confusos das multidões, e aquella especie de zumbido obscuro que ha no silencio profundo, e as passadas tenebrosas da noite, e o surgir e o galgar do sol ao zenith, emquanto a penna inspirada arfava, deslisando sobre o papel, semelhante á véla branca da bateirinha, que, ao refrescar do vento, vai e vem de margem a margem, atravez da ria. Não: para o velho não ha a febre da alma que devora o tempo. Sente-o gotejar no passado, como os suores da terra que cáhem, lagryma após lagryma, pela claraboia de galeria deserta na mina abandonada. É verdade que a natureza compensa o esmorecer e passar do vigor e da actividade intellectual com a propria somnolencia do espirito, voluptuosidade da velhice, ameno e dourado pôr-do-sol, que se refrange no espectro da sepultura já vizinha e o illumina suavemente. Mas o dormitar do entendimento, para ser deleitoso enleio, exige o movimento externo e as singelas occupações e cuidados da vida campestre. Sem isso, e é isso que falta muitas vezes nas interminaveis noites de inverno, a inercia da intelligencia, que vagueia no indefinito sem o norte da realidade, vai-se convertendo pouco a pouco em intoleravel tormento; tormento no qual ha, por fim, o que quer que seja da céllula circular e esmeradamente branqueiada, onde o grande criminoso é entregue, sósinho, á euménide da propria consciencia. N'esta extremidade, por mais somnolenta e obscurecida que esteja a mente, por mais que ella ame o repouso, o trabalho do espirito, ainda o mais arido, é preferivel, cem vezes preferivel, ao fluctuar indeciso no vacuo.

Foi por isto que comecei a ajunctar os disjecta membra de uma grande parte do meu passado intellectual; a accrescentar, a cortar, a corrigir, a completar. Vencido o primeiro inverno, vi desapparecerem os marcos negros juncto dos quaes cumpria que longamente me assentasse ao cabo de cada um dos poucos estadios que ainda me restam a transitar pela estrada da vida. Que esta confissão ingenua sirva para ser absolvido da especie da correria que, apesar dos mais firmes propositos, faço, ainda uma vez, na republica das letras.

Os escriptos aqui reunidos, os quaes, na sua maior parte, foram inspirados por impressões momentaneas, perderam o interesse que lhes provinha das circumstancias que os provocaram; mas, ainda assim, podem ficar como marcos milliarios que ajudem a assignalar as luctas e o progresso das idéas em Portugal no decurso de mais de trinta annos que as datas d'esses escriptos abrangem. Naquellas luctas o auctor dos seguintes opusculos teve largo quinhão, e se, como é possivel, nem sempre a razão esteve da sua parte, esteve-o sempre a convicção. É do que lhe parece hão-de dar testemunho a propria contextura e o proprio estylo dessas composições, que não vinham só da intelligencia, que vinham muitas vezes tambem do coração. A demasiada vivacidade, a talvez exaggerada energia, com que frequentemente ahi são expostas e defendidas taes ou taes ideas e combatidas outras, revelam a indole impetuosa mas sincera de quem escreveu essas paginas. Foi, porventura, este o melhor titulo do auctor á benevolencia publica largamente manifestada; benevolencia que encontrou ainda em muitos que estavam longe de commungar com elle nas doutrinas para as quaes buscava ou obter o triumpho ou adquirir sectarios.

Ordenando esta compilação, não me adstringi nem a conservar rigorosamente a ordem das epochas a que esses varios escriptos pertencem, nem a distribui-los precisamente conforme a sua indole. Adoptei um termo medio, que me facilitasse ao mesmo tempo o trabalho de revisão, e me habilitasse para ir successivamente publicando qualquer volume á medida que o coordenasse. N'uma grande variedade de assumptos, o espirito não se amoldaria a reconsiderá-los nem pela ordem das datas, nem pela identidade da materia. A intelligencia é caprichosa, e duplicadamente caprichosa na sua decadencia. Attendendo em geral á natureza dos diversos opusculos, entendi que podiam dividir-se em tres categorias—Questões publicas—Estudos historicos—Litteratura.—Estas tres categorias constituirão tres series separadas, servindo-lhes apenas de nexo o serem uma collecção geral das minhas opiniões, quer em questões litterarias ou historicas, quer em questões sociaes. Assim, um volume seguir-se-ha a outro da mesma ou de diversa serie sem inconveniente para a publicação, e sem se tornar necessario que, n'um trabalho tedioso e frequentemente interrompido, a attenção se dirija por muito tempo e sem desvio para idéas até certo ponto congeneres ou pelo menos analogas.

Ajunctando aos titulos dos opusculos as datas em que foram escriptos, o auctor teve em mira habilitar o leitor para o julgar com justiça. Sem querer no minimo ponto fugir á responsabilidade das suas opiniões, entende que a responsabilidade será ora maior, ora menor, se porventura se attender á epocha em essas opiniões foram manifestadas. O decurso de trinta a quarenta annos, no turbilhão, cada vez mais rapido, em que hoje as idéas passam, modificando-se, transformando-se, é um periodo que corresponde a seculos nos tempos em que o progresso humano era sem comparação mais lento. As doutrinas, as apreciações criticas, os systemas, os livros quasi que envelhecem tão depressa como o homem. O pensamento que ha vinte annos parecia uma verdade nova póde hoje parecer apenas um problema não resolvido, e até um erro condemnado; a observação profunda de então ser hoje trivialidade; a critica subtil, que levou um raio de luz a certos recessos obscuros dos factos, achar-se incorporada e transfigurada em apreciação mais complexa que illumine dilatados horisontes. Por isso, a data de cada um dos opusculos contidos nos seguintes volumes é um dos elementos indispensaveis para estes serem avaliados com justiça e imparcialidade. Nem sempre fugimos á pressão das idéas que se manifestam ao redor de nós, e muito faz aquelle que algumas vezes sabe elevar-se acima das preoccupações ou dos interesses da epocha em que escreve.

Não se associarão a estas considerações, que sollicitam a indulgencia, algumas instigações do amor proprio? Suspeito que sim. Nos seguintes escriptos ha, em mais de um logar, idéas, previsões, affirmativas, negações que não raro grangeiaram para o auctor as qualificações de temerario, de paradoxal, de visionario. Em certos casos, o decurso do tempo encarregou-se de decidir de que lado estava ou a perspicacia ou a boa razão: em alguns, o paradoxo, a visão, foram-se lentamente insinuando em outros espiritos, e mais de uma vez o visionario primitivo veio a achar-se como sumido na turba de tardígrados visionarios. Que o facto não contribuisse para se datarem estes opusculos ninguem o acreditaria, nem eu pretendo negá-lo. Chamarão uns a isso orgulho: chamar-lhe-hão outros vaidade. E uns e outros terão razão. A vaidade e o orgulho que são, senão duas especies de um genero unico de fraquezas? O vaidoso é o que chama o mundo para espectador do seu orgulho: o orgulhoso é o que se colloca a si como unico espectador da propria vaidade. Symptomas varios de enfermidade identica: manifestações diversas de uma só miseria do coração humano.

A VOZ DO PROPHETA

1837

INTRODUCÇÃO

1867

Depois da epocha em que o seguinte opusculo foi publicado e dos factos que lhe deram origem, têem decorrido mais de trinta annos. Os homens que intervieram nesses factos dormem já, pela maior parte, debaixo da terra. Com raras excepções, restam apenas alguns dos que eram mais moços. O auctor da Voz do Propheta pertence a esse numero. Contava vinte e seis annos naquelle tempo.

O homem de hoje póde julgar imparcialmente o escripto do homem de então. O animo tranquillo póde avaliar a paixão que o inspirou. Aquelles a quem esse verbo ardente feria viram no auctor um partidario que friamente calculava os resultados politicos das suas palavras. Injustiça ou erro; o mesmo que havia da parte delle em ver nos homens que forcejavam por dirigir a revolta de 1836, por fazer sair desse facto um governo regular, grandes criminosos. A verdade era que, n'uns davam-se ambições, mas ambições talvez nobres; n'outros houve, de certo, o sacrificio das proprias sympathias, o silencio imposto ás proprias convicções, para que a revolta não degenerasse em anarchia. Em muitos desses individuos, apparentemente revolucionarios, havia o patriotismo reflexivo, e até a abnegação, emquanto em nós, os que os aggrediamos com a sinceridade da indignação, havia, por amor exagerado aos bons principios, uma colera que em muitas cousas offuscava a razão. A Voz do Propheta representa esse estado dos espiritos.

Hoje a exageração sincera do insulto, a invectiva hyperbolica, inspirada, não pelo calculo, mas pelas irritações da consciencia, mal se comprehende. Neste crepusculo da vida publica, tão favoravel ás prostituições do cidadão, como o crepusculo do dia ás prostituições da mulher; nesta epocha de extrema agonia, iniciada pela proclamação dos interesses materiaes acima de tudo, fórmula decente de sanctificar o egoismo, porque para cada individuo o interesse material alheio é apenas um interesse de ordem moral; agora que a boa educação dos homens novos mudou a linguagem politica, e vai arrojando para os archaismos historicos a lucta face a face, a punhalada pelos peitos; agora que a strychnina da allusão calumniosa e amena, o enredo tortuoso, a traição ridente vão expulsando da arena das facções as objurgatorias, rudes na substancia e na fórma, a Voz do Propheta é, sem duvida, uma composição agreste e brutal. Inutil como exemplo e modelo, servirá todavia como amostra do que eram as malevolencias da geração cujos raros representantes, hoje quasi estrangeiros no seu paiz, não tardarão a ir esconder no tumulo as ultimas grosserias que deturpam a suavidade dos costumes e as tolerancias de toda a especie dos cultos filhos de barbaros.

Os homens que em 1837 se aggrediam violentamente na imprensa e no campo tinham, de feito, habitos e sentir diversos dos actuaes. As febres politicas eram então ardentes, indomaveis, porque derivavam de crenças. Naquella epocha havia, como houve sempre, belforinheiros da politica; mas constituiam a excepção. O geral era gente baptisada com fogo e com sangue nas duas religiões inimigas do absolutismo e do liberalismo. Chamo-lhes religiões, porque o eram. A guerra civil, que terminara em 1834, tivera muitos dos caracteres das antigas cruzadas. Sobretudo nos primeiros impetos della, haviam-se practicado actos de abnegação, de constancia, de valor e de soffrimento sobrehumanos, ao passo que se perpetravam outros de bruteza e ferocidade inauditas. A maior parte delles, factos obscuros, individuaes, reiterados cada dia, cada hora daquelle prolongado paroxismo de grandiosa barbaria, não os registou, não os registará nunca a historia, talvez. E todavia, é isso que explica a proceridade da estatura moral dos homens daquelle tempo, estatura a que não chegaram, nem provavelmente chegarão as gerações subsequentes. Sem paixões violentas e exclusivas, não ha as energias que assombram. Então a existencia e os commodos e gosos della eram tão casuaes e transitorios, as privações e dores de tão completa vulgaridade, que dar a vida ou tirá-la aos outros pouco mais significavam do que acções indifferentes. Diante do fanatismo politico, a reflexão que discrimina o bom do mau, o justo do injusto, quasi que era puerilidade. Podia ceder-se, e não raro cedia-se, a instinctos generosos para com o adversario: a justiça em apreciá-lo moralmente, ou em respeitar-lhe os direitos, isso é que se tornara difficil.

Taes eram os homens que, depois de esmagarem a monarchia absoluta, vinham, emfim, a aggredir-se mutuamente na imprensa e no campo. A revolta, desmembrando o partido liberal, constituia dous partidos violentos, daquella violencia a que estavam affeitos e cujo embate devia produzir males profundos e em parte irremediaveis.

Esta scisão, logo depois da victoria, era difficil de explicar fóra de Portugal. Aqui entendia-se, embora derivasse de um facto injustificavel. A harmonia de opiniões, a unidade de crenças e intuitos dos vencedores dissipava-se, porque realmente não existia senão nas suas relações negativas. Negava-se, combatia-se o passado. Era no que havia accordo. As apparencias de união e conformidade creara-as a grandeza do perigo. A phalange é e será sempre o mais poderoso instrumento de guerra, moral e materialmente. Embora, porém, houvesse diversidade de doutrinas, o que havia mais era contraposição de interesses. Para as primeiras se manifestarem e tenderem ao predominio bastavam a liberdade da palavra oral e escripta, e a discussão parlamentar. Aos segundos, dada a impetuosidade e impaciencia da ambição humana, sobretudo nas raças latinas, não bastava nenhuma liberdade. Recorreu-se ao illegal, ao tumultuario, e a revolta de septembro de 1836 appareceu.

Quem a preparou e fez surgir? Não sei. Ostensivamente, os seus auctores foram a plebe de Lisboa e alguns soldados que se negaram a dispersar os amotinados. Os individuos que, depois de consummado o facto, tomaram nas mãos as redeas do governo, recusaram para si a paternidade daquelle féto político. Creio que, affirmando-se innocentes, falavam verdade; senão todos, ao menos alguns. Fugir, porém, á responsabilidade de uma situação, que aliás se busca fortalecer e constituir, é indirectamente condemná-la; é dizer não com a consciencia; sim com os labios. A sentença daquelle motim lavravam-na os mesmos que forcejavam por convertê-lo n'uma cousa grave. Por outra parte, o que me parece evidente é que os governos que cahem como cahiu o que existia, embora simulem de vivos, estão já moralmente mortos.

E o governo de então estava-o. Por grandes que os seus serviços ao paiz houvessem sido durante a lucta, o seu proceder depois da victoria não o abonava. Havia quem fizesse sentir isso, quem até desmesuradamente o exagerasse. Exageravam-no, sobretudo, os vencidos. Emquanto durou o ruido das armas, os lamentos destes não se ouviam; mas quando o estrondo cessou, e asserenaram os terrores, os queixumes foram-se convertendo em invectivas colericas, e tambem em accusações não raro ou justificadas ou plausiveis. A liberdade da palavra falada e escripta tinha-se conquistado não só contra os defensores da censura e do absolutismo, mas tambem para elles. Nas expansões da sua dor e do seu despeito, no pouco ou muito que essas expansões contribuiram para o descredito dos homens que mais cordialmente odiavam, tiveram os vencidos occasião de reconhecer que a liberdade humana, ruim em these, sobretudo para a salvação eterna, póde, em tal ou tal circumstancia, não ser absolutamente má.

Os depositarios do poder executivo tinham, porém, adversarios mais perigosos. No gremio liberal houvera homens, alguns de dotes não vulgares, que, ou por despeitos pessoaes, ou por falta de animo para affrontarem os trabalhos e riscos de commettimento desigual, ou finalmente por obstaculos independentes do seu alvedrio, tinham ficado extranhos á guerra civil, sumidos em escondrijos na propria patria, ou acoutados na terra estrangeira para escaparem aos impetos da tyrannia. Desaccordos nascidos no exilio entre alguns destes ultimos e os homens de valia de quem o Duque de Bragança se rodeiara quando emprehendia a guerra da restauração, não tinham feito senão medrar e azedar-se progressivamente por diversas causas. Estes desaccordos, que pareciam pouco importantes emquanto durou a contenda, apenas essa epocha tormentosa cessou, tornaram-se mais graves, porque os individuos que se haviam conservado como extranhos á lucta em que se lhes conquistava uma patria, tinham amigos e parciaes numerosos entre os que pelejavam e venciam. Constituido o regimen parlamentar, as malevolencias, mais ou menos latentes, converteram-se em hostilidade acerba. Esta hostilidade podia ter, e tinha em parte, motivos maus; mas, contida no ambito constitucional, era, até certo ponto, bem fundada e util.

Os estadistas, que, cercados durante annos de espantosas difíiculdades, souberam superá-las exercendo o poder, eram indubitavelmente homens de alta esphera. Podia reputar-se problematica a virtude de um ou de outro: a capacidade e a firmeza não podiam disputar-se a nenhum delles. Affeitos a reger o paiz com o vigor de uma dictadura, inevitavel emquanto durara a guerra, e com as formulas militares, custava-lhes esquecerem-se dos habitos dessa epocha, confundindo mais de uma vez, na praxe da administração, as duas idéas oppostas, de paiz libertado e de paiz conquistado. Por outra parte, os que muito haviam padecido queriam gosar muito, e o reino, devorado por discordias intestinas superiores ás proprias forças e exhausto de recursos, via comprometter o futuro da riqueza publica por larguezas, não só desacertadas, mas tambem juridicamente injustificaveis. Homens que teriam legado á posteridade nomes gloriosos e sem mancha, e que, mais modestos nas suas ambições materiaes, seriam vultos heroicos na historia, pagaram-se como condottieri mercenarios, ao passo que outros, depondo as armas e voltando á vida civil, exigiam ser revestidos de cargos publicos para exercer os quaes lhes faltavam todos os predicados; homens cujo unico titulo era terem combatido com maior ou menor denodo nas fileiras liberaes ou haverem padecido nas masmorras os tratos da tyrannia. A grande, a séria, a profunda revolução que se fizera no meio do estrondo das armas levara de envolta com os dizimos, com os bens da corôa, com as capitanias-mores, com toda a farragem do absolutismo, os antigos officios, moeda que por seculos servira para pagar algumas vezes meritos reaes, muitas mais vezes, porém, prostituições e villanias. Mas as funcções publicas, os empregos vieram supprir essa moeda, tomando não raramente cunho analogo, e distribuindo-se com a mesma justiça e cordura. Estes e outros erros e abusos que o governo commettera, ora por impulso proprio, ora para satisfazer as influencias preponderantes com que o poder tem de transigir, necessidade fatal do regimen parlamentar, e um dos maiores defeitos da sua indole ainda tão imperfeita, engrossaram rapidamente, com os muitos desgostosos e indignados, a parcialidade que na origem representava antes malevolencias pessoaes do que antinomia de doutrinas.

Foi por isso que a revolta de septembro, se não achou eccho pelo paiz, também não achou nelle repugnancia manifesta, e pôde na capital constituir-se e tomar em poucos dias a importancia que não tinha em si. A consciencia da propria impopularidade, o inesperado dos acontecimentos, talvez, até o tedio e cansaço de aggressões continuas, haviam feito titubeiar os membros do governo decahido, tornando-os inhabeis para séria resistencia, emquanto os seus adversarios aproveitavam o successo com a energia de inimizades encanecidas e de ambições até ahi não satisfeitas.

Os homens que entenderam ser do seu interesse ou do interesse do paiz fazer surgir daquelle estado anormal uma situação regular viram que a primeira necessidade era elevar o motim á altura de uma revolução. Faltava o assumpto. O derribar um ministerio não o subministra. Basta para isso a acção mais ou menos lenta, mas segura e pacifica, da liberdade da palavra, da imprensa e do voto. O povo que com estes recursos não sabe tirar os seus negocios das mãos de quem lh'os gere mal, é um povo ou que ainda não chegou á maioridade ou que já se arrasta na senilidade. Urgiam, porém, as circumstancias. Á falta de outra cousa, proclamou-se irreflexivamente a constituição de 1822 com as modificações que decretassem as futuras constituintes.

Tinha-se, pois, feito uma revolução para obter um projecto, um texto de discussão constitucional? Se o intuito dos amotinados fôra só derribar os ministros, o facto era excessivo, injustificavel e portanto illegitimo e criminoso; se porém o motim, nobilitado em revolução, tinha por alvo alterar as instituições, não menos digno de reprovação se tornava, porque era um crime inutil. A Carta encerrava em si o processo da propria reforma, processo aliás prudente, regular, exequivel. Partir da constituição de 1822, acervo de theorias irrealisaveis, se theorias se podiam chamar, de instituições talvez impossiveis sempre, mas de certo impossiveis n'uma sociedade como a nossa e na epocha em que taes instituições se iam assim exhumar do cemiterio dos desacertos humanos, era mais que insensato. A revolução, reconhecendo a necessidade de reformar o codigo que restabelecia, condemnava-o, e condemnava-se.

Parece-me que me não engano se disser que, em geral, aos liberaes mais illustrados e sinceros a nova situação politica repugnava altamente. Ponderavam que a mudança das instituições politicas de qualquer paiz por via de uma revolução é sempre um abalo profundo cheio de riscos, e que mais de uma vez, longe de produzir o bem, tem conduzido as sociedades á sua ruina. Sem rejeitar de modo absoluto as revoluções como elemento de progresso, é certo que ellas são um meio extremo. Só, talvez, a necessidade de combater o despotismo as justifique, porque só debaixo de tal regimen são impossiveis quaesquer outras manifestações da opinião publica, e não existe campo diverso onde a lucta do direito contra a força, das idéas novas contra os velhos abusos possa travar-se. Em 1836 essas manifestações não tinham porém obstaculo algum, e o campo onde as doutrinas podiam debater-se, os interesses contrapor-se, os partidos digladiar-se, era amplissimo. Se em taes circumstancias uma revolução fosse legitima, quaes seriam aquellas em que se lhe negasse a legitimidade?

Depois, nas proprias relações politicas, o espirito humano não se dirige unicamente pela reflexão. As paixões e affectos modificam e alteram as suggestões do raciocinio; porque o homem imprime necessariamente em todos os actos da vida as condições do seu ser. A favor da manutenção da Carta não militava só a boa-razão; militavam affectos, e affectos profundos. A Carta havia sido o grito de guerra do campo liberal em lide de um contra dez. Havia sido, digamos assim, a traducção moderna do Sanctiago! de Affonso I, do S. Jorge! do Mestre d'Aviz. Nas reminiscencias indeleveis de muitos de então, (bem poucos hoje) estavam ainda os vivas á Carta proferidos por labios que iam cerrar-se na morte, quando as bayonetas inimigas desciam inexoraveis sobre o peito ou sobre o ventre dos nossos soldados feridos e derribados[1]. Em nome da Carta se tinha desfeito o triangulo fatal do patibulo, e quebrado o ferrolho da masmorra e da enxovia, em nome della se tinham aberto para os foragidos as portas da patria que davam para os desertos do desterro, do desterro que é sempre solidão e desventura. A Carta fora como a estrella polar da esperança nos dias, tão longos, da fome, da nudez, das tempestades, do desalento. Vivia depois como envolta na saudade desses dias, acre e quasi dolorosa saudade, que nós os velhos ainda sentimos, mas que será provavelmente uma cousa inintelligivel para as gerações novas.

A razão, pois, e o sentimento falavam a muitos energicamente em favor das instituições annulladas. Falavam tambem a favor dellas a consciencia e a dignidade humanas. Tinham jurado manter essas instituições milhares e milhares de homens; milhares e milhares de homens as tinham nobremente mantido com o sangue, com as privações, com a resignação illimitada no sacrificio. Podem valer pouco os juramentos politicos; póde, até, ser absurdo o juramento em geral. Mas a quebra de promessas solemnes e espontaneas, seja qual for a sua formula, será sempre uma villania emquanto tiverem culto a honra e a lealdade.

Taes eram os principaes incentivos que induziam grande numero de liberaes a constituirem um partido hostil á nova ordem de cousas. A denominação de cartista, que esse partido adoptou, não correspondia rigorosamente ás causas da sua existencia, nem aos seus intuitos ou á sua indole. Mas representava até certo ponto isso tudo, ao mesmo tempo que era conciso, e facilmente comprehensivel para o vulgo. O cartista não reputava todas as instituições, todos os preceitos da Carta como a mais alta manifestação da sabedoria humana. Nesta parte os liberaes eram em geral eclecticos. Tanto o partido da revolução, como o anti-revolucionario nenhum tinha em si unidade completa de principios; nem entre um e outro havia senão antinomias parciaes quanto ás doutrinas de direito politico. No primeiro, que tomava por base das ulteriores reformas uma constituição democratica, exagerada até o despotismo das turbas, havia individuos para quem, como o tempo mostrou, as theorias da democracia ainda mais moderada eram altamente odiosas, ao passo que outros forcejavam por chegar, senão á republica, ao menos a instituições republicanas. No partido cartista dava-se o mesmo phenomeno. Todas as modificações do governo representativo tinham ahi fautores; tinham-nos, talvez, até, as doutrinas do absolutismo illustrado. A meu ver, a distincção profunda e precisa entre o cartismo e o septembrismo consistia em negar o primeiro o principio da revolução, dentro das instituições representativas livre e solemnemente adoptadas ou acceitas pelo paiz, e em affirmá-lo o segundo. Tudo o mais em ambos os campos era fluctuante e vago.

É essa a explicação de um facto que os homens daquelle tempo poderão testemunhar recorrendo ás proprias reminiscencias. Alistaram-se nas fileiras cartistas talvez mais individuos que haviam sido adversos aos ministros derribados, do que amigos e parciaes seus, ao passo que alguns destes abraçavam sem hesitar a revolução. De uns e de outros se deve crer que preferiam nobremente as suas opiniões aos seus interesses, ás suas affeições ou inimizades pessoaes. Para muitas dessas opiniões havia logar em ambas as parcialidades. Os que, porém, só attendiam á moralidade e cordura dos actos de administração ordinaria, lançavam-se, por via de regra, na revolução; os que, sem desattender taes questões, sem approvarem corrupções ou iniquidades a que eram extranhos e que tinham condemnado, remontavam a mais elevadas considerações de ordem moral e politica, abraçavam o cartismo. Não falo dos especuladores que se resolviam conforme as vantagens que se lhes antolhavam n'um ou n'outro campo. O proceder destes taes tinha na consciencia publica então, como depois, como sempre, uma qualificação conhecida.

Mas, dir-se-ha, como nessa epocha se disse, que entre o cartismo e o septembrismo se dava uma distincção mais radical e profunda. A Carta, outorgada por D. Pedro IV, representava o direito divino dos reis; era uma concessão de senhor, em vez de um pacto social, ao passo que a constituição de 1822, derivada da soberania popular, era a consagração das doutrinas democraticas. Considerada a esta luz, a revolução adquiria as proporções de um facto gravissimo, porque assentava a liberdade em novos fundamentos, e vinha a ser um passo gigante dado na estrada do progresso politico.

Na epocha, quasi exclusivamente liberal, em que se passavam aquelles successos, a resposta do cartismo a estas allegacões parecia facil. Não sei se o seria agora; agora que se tem achado e demonstrado, segundo parece, não prestar para nada o liberalismo. As intelligencias vigorosas da mocidade hodierna têem aberto caminho a theorias ou novas ou rejuvenescidas que nós os velhos de hoje e moços de então ou ignoravamos ou suppunhamos estereis, e talvez pueris, e de que sorriamos, quando alguns engenhos que reputavamos tão brilhantes como superficiaes, buscavam, evangelisando-as, jungir por meio dellas as turbas, más porque ignorantes, odientas porque invejosas, espoliadoras porque miseraveis, ao carro das proprias ambições. A questão da soberania popular não era precisamente o que preoccupava mais os entendimentos, cultos, mas tardos, daquelle tempo, e a democracia não apaixonava demasiado os animos, sobretudo os animos dos que haviam pelejado desde os Açores até Evoramonte as batalhas da liberdade, ou padecido na patria durante cinco annos, sem o refrigerio sequer de um gemido tolerado, as orgias do despotismo. Uns tinham visto de perto a face da democracia; tinham-na visto por entre a selva de oitenta mil baionetas que fora preciso quebrar-lhe nas mãos para a liberdade triumphar; tinham-na visto nas chapadas e pendores das collinas que circumdam o Porto, até onde os olhos podem enxergar, alvejando-lhe nos hombros os cem mil embornaes preparados para recolher os despojos da cidade da Virgem, da cidade maldicta, rendida e posta a sacco; outros haviam-na visto de machado e de cutello em punho, mutilando e assassinando prisioneiros inermes e agrilhoados. O liberalismo achara a catadura da democracia pouco sympathica. Restava a soberania popular. Essa funccionara durante cinco annos e dera mostra de si. A soberania do direito divino, repartindo com ella o supremo poder, provava que não era tão ignorante como a faziam. Tinha litteratura. Applicava, modificando-o, o verso:

Divisum imperium cum plebe Caesar habet.

As classes inferiores constituiam então, como hoje, como hão de constituir sempre, a maioria do paiz, e foi a esta maioria que ella entregou os direitos que cedia. Era a legitimidade consagrando outra legitimidade. Amavam-se, comprehendiam-se ambas. É que entre as extremidades ha contacto ás vezes. A democracia americana cuida ter inventado a lei do Linch. Puro plagio. Inventou-a em Portugal a soberania popular. Havia uma differença. Na America a plebe prende, julga, condemna á morte e executa; em Portugal o direito divino reservara para si o tribunal excepcional e o privilegio do cadafalso. Modesta no exercicio do supremo poder, a soberania popular limitou-se á prisão, ao espancamento, á multa, elevada, quando occorria, até o confisco. Se o incendio, o estupro, o assassinio se ingeriam ás vezes nesses actos judiciaes, era por simples casualidade. Manchas, tem-nas o sol. O mercador, o artista, o industrial, o professor, o proprietario urbano e o rural, o homem de letras, o cultivador, o capitalista, todas as desigualdades sociaes, todos esses attentados vivos contra a perfeita igualdade democratica conservaram por muito tempo dolorosas lembranças do amplexo das duas soberanias.

O liberalismo, que durante a contenda fora um pouco aspero para com a democracia, mais de uma vez tambem, empregara sacrilegamente a prancha do sabre e a coronha da espingarda para cohibir o excesso de zêlo administrativo e judicial da soberania popular. A brutalidade do liberalismo obrigara esta a abdicar após a abdicação da soberania de direito divino. Os dogmas, pois, em que se estribava a constituição de 1822, e contra os quaes protestava a historia, ainda palpitante, dos ultimos annos, eram inefficazes, porque os tornava impotentes a heterodoxia das consciencias. Duvido de que nesses rudes tempos de positivismo liberal elles obtivessem uma só conversão sincera.

O amor do real e do evidente era um dos grandes defeitos dos homens de então. O cartismo argumentava: «Que nos importa, dizia, d'onde veio a Carta? A questão é se ella consagra a liberdade humana e a cérca de garantias. É deficiente? É defeituosa? Esperemos que a razão publica, a torrente da opinião force os poderes do estado a completá-la, a corrigi-la. A opinião illustrada largamente preponderante é irresistivel nos governos livres. O que não é irresistivel é a opinião de alguns ou de muitos que benevolamente se encarregam de interpretar pelo proprio voto o voto commum, o voto dos que têem capacidade para o dar.—«Não se reputaria louco, accrescentava o cartismo, o representante de uma familia outr'ora opulenta, mas reduzida á miseria por espoliação remota, que, ao vir, por impulso espontaneo, o descendente do espoliador restituir-lhe os bens extorquidos, repellisse aquelle acto de nobreza e virtude, achando desar recuperá-los pacificamente? E se tal desar existiu; se a outorga da Carta e a tacita acceitação do paiz não podiam, aos olhos da metaphysica politica, elevá-la á altura de um pacto social, os immensos sacrificios que o restaurá-la, depois de abolida, custou á parte mais illustrada, mais rica, mais activa e laboriosa da nação, ás forças vivas da sociedade, e as torrentes de sangue e de lagrymas que serviram de sacro encausto á assignatura do paiz não valeriam bem o plebiscito da maioria inintelligente, o plebiscito daquellas classes inferiores que pelejaram até o ultimo extremo, senão com valor, de certo com ferocidade, para conservar essa monstruosa e horrivel soberania que a servidão lhes trouxera?

Tem passado trinta annos depois daquella epocha; as paixões tempestuosas de então fizeram silencio, e o cartismo e o septembrismo são dous cadaveres sepultados no cemiterio da historia. O auctor da Voz do Propheta contempla tão placidameute o seu opusculo como se mão extranha o houvera escripto. A experiencia e os desenganos fazem-no sorrir daquellas coleras, daquellas hyperboles dos vinte e seis annos. Quantos erros, quantas ignorancias em muitas das suas opiniões desse tempo! E todavia, ainda os sentimentos que inspiravam o cartismo no seu berço lhe parecem nobres e elevados, as doutrinas que constituiam a sua essencia solidas e justas. É innegavel que o credo democratico, em que os adversarios se estribavam, tem desde essa epocha adquirido numerosos sectarios. O velho liberalismo passa de moda. O dogma da soberania popular, proclamado como supremo direito, substitue o unico direito absoluto que elle reconhecia, a liberdade e os fóros individuaes. Isso passou: agora a igualdade civil, que era um consectario do dogma liberal, transfere-se para o mundo politico, e um nivel imaginario passa theoricamente por cima de todas as desigualdades humanas, perpetuas, indestructiveis. A paixão da liberdade esmorece, porque a absorve e transforma a da igualdade, a mais forte, a quasi unica paixão da democracia. E a igualdade democratica, onde chega a predominar, caminha mais ou menos rapida, mas sem desvio, para a sua derradeira consequencia, a annullação do individuo diante do estado, manifestada por uma das duas formulas, o despotismo das multidões, ou o despotismo dos cesares do plebiscito.

O partido cartista tinha por si as grandes e recentes recordações, a consistencia politica, os bons principios que representava, e, sobretudo, o sensato e practico das theorias que predominavam entre os seus membros. Mas a eiva moral quasi que lhe começou no berço. O seu primeiro erro foi adoptar por chefes os homens eminentes que, pela gerencia dos negocios em situações difficilimas, tinham concitado contra si, como succede quasi sempre e a quasi todos, a animadversão publica, talvez a da maioria daquelles mesmos que acceitavam agora a sua direcção politica. Deviam honrar-se taes homens, embora muitos dos actos da sua administração não podessem defender-se, porque esses actos eram bem pequeno desconto aos immensos serviços que a liberdade lhes devia. Tomá-los, porém, por guias era acceitar uma parte da sua responsabilidade; era polluir a pureza das doutrinas com as manchas da fraqueza humana; era, sobretudo, arriscar que a irritação das paixões e os intuitos de desaggravo dirigissem o procedimento de um partido novo e cheio de vida, que só deveriam inspirar a razão tranquilla e a applicação logica das proprias doutrinas. Deste primeiro erro nasceram as tentativas infelizes de contra-revolução. Essas tentativas não podiam reputar-se crime, porque o elemento revolucionario tinha entrado como formula politica no direito publico do paiz, mas eram altamente illogicas em relação á índole e ao symbolo do cartismo. Por outro lado, o governo da revolução mostrava-se, ao mesmo tempo, tolerante para com as opiniões e energico em cohibir excessos. Por isso o partido cartista podia contar com a victoria incruenta que na urna lhe havia de dar o paiz; victoria para os principios, e não desaggravo para as paixões irritadas. Que este resultado era seguro, provaram-no os factos. Vencido na guerra civil, desauctorisado e moralmente enfraquecido, o cartismo viu triumphar em grande parte as suas idéas na contextura da constituição de 1838, votada por umas constituintes onde os vencidos estavam representados por insignificante minoria. Era a condemnação solemne da revolução, lavrada por um parlamento eleito debaixo da influencia della. O que no novo codigo politico parecia mais opposto á indole da Carta era a organisação da segunda camara, e todavia o cartismo adquiria por aquelle meio uma arma poderosa para de futuro reformar constitucionalmente o que havia mau na recente organisação de um dos corpos colegislativos, de modo que nem se restaurasse o absurdo pariato hereditario e illimitado, nem a assembléa conservadora significasse apenas a interposição de uma parede entre duas porções de parlamento unico. Uma vez que o senado procedia simplesmente da eleição, logo que o cartismo obtivesse a preponderancia eleitoral, dominaria completamente em ambas as camaras. Dentro em dous annos, de feito, o predominio do cartismo era indubitavel.

O ulterior procedimento deste partido estava estrictamente determinado pela sua origem e pelo seu passado. Como vimos, não era tanto a sua indole menos democratica, o seu apego á liberdade e aos direitos individuaes com preferencia a tudo, que o caracterisavam. Sans opiniões, erradas opiniões, havia-as tanto n'um como n'outro campo. O que constituia a essencia do cartismo era a lealdade ao juramento; a lealdade viril no cumprimento da palavra dada pelo homem honrado quando a dá no pleno uso do seu alvedrio. Os cartistas tinham feito tudo quanto materialmente podiam, mais do que moralmente deviam, para supprimir a revolução. Não o tinham conseguido, e ella fechara o periodo da sua duração, protestando na lei politica decretada pelas constituintes contra a propria origem, contra a sua razão de ser. A constituição de 1838 era um campo neutro onde todos se podiam encontrar pacificamente e procurar, sem sair da legalidade, o predominio das respectivas opiniões.

E o cartismo entrou naquelle campo. Quando o paiz viu os homens que tão tenazmente haviam mantido a fé que deviam ao seu juramento, jurarem solemnemente o novo pacto, acreditou que falavam verdade, e que o cyclo das revoluções terminara. Passados tempos, a urna provava aos cartistas, de modo indubitavel, que nas classes influentes, nas forças vivas da sociedade, a preponderancia era sua. No fim de tres annos podia-se dizer que o triumpho moral do cartismo estava consummado. O poder e o futuro pertenciam-lhe.

Um facto inopinado veio então desbaratar todos os calculos, desmentir todas as previsões. Uma grande parte, ou antes a maioria desse partido, cuja essencia era a lealdade a solemnes promessas, e a execração das revoluções no seio de um paiz livre, hasteou subitamente a bandeira revolucionaria, substituindo ao motim da plebe o unico motim peior do que elle, o da soldadesca. Quebrando inutilmente o seu ultimo juramento, derribava a constituição do estado e proclamava o restabelecimento da Carta pura, que, sem os acontecimentos de 1836, os mesmos homens que a achavam agora um codigo perfeito teriam constitucionalmente modificado. É que á victoria dos principios faltava um laurel, o desaggravo do amor proprio offendido. O partido cartista suicidava-se juncto, ao altar da vaidade, e amortalhava-se a si proprio, morrendo, no estandarte da revolução.

Depois houve muitos que continuaram a chamar-se cartistas, porque os vocabulos são propriedade dos homens, e a propriedade, conforme o velho direito, consiste na faculdade de usar e abusar. Era como os graus e veneras das ordens de cavallaria extinctas. Enfeitam, mas correspondem ao nada. Symbolos vãos sobre um sepulchro. Para a historia, como a historia ha-de ser quando de todo houverem calado as paixões dos que intervieram nessas tristes luctas, o cartismo tinha expirado com a restauração da Carta.

[Nota de rodapé 1: Assim vi morrerem alguns soldados do 5.° de caçadores e voluntarios da Rainha no temerario reconhecimento de Vallongo, que precedeu a batalha de Ponte-Ferreira.]

A VOZ DO PROPHETA

PRIMEIRA SERIE

Et irruet populus, vir ad virum, et unusquisque ad proximum suum: tumultuabitur puer contra senem et ignobilis contra nobilem.

ISAIAS, III-5.

I

O Espirito de Deus passou pelo meu espirito, e disse-me: vai, e faze resoar nos ouvidos das turbas palavras de terror e de verdade.

E eu obedecerei ao meu Deus no meio dos punhaes de assassinos.

Povo!… breve soará a tua hora extrema: tu mesmo a assignalaste no decorrer dos tempos.

O anjo exterminador vibra sobre ti a espada da assolação, e tu danças e folgas ebrio das tuas esperanças.

Essa terra que pisas crês que é um solo remido por tuas mãos: repara porém; olha que é um sepulchro.

Amplo é o sepulchro de um povo: dentro em breve tu ahi calarás para sempre.

Creste-te forte, porque sabes rugir como a panthera: mas somente Deus é grande.

Encheste o vaso das tuas iniquidades; elle trasbordou, e a terra ficou polluida.

Maldictos os nomes dos que accenderam o volcão popular; nomes abominaveis perante o céu e a terra.

Portugal foi pesado na balança da eterna justiça, e a Providencia retirou a mão de cima delle.

Derribem-se os altares, cerrem-se as portas dos templos: Deus já não acceita os sacrificios, nem ouve as preces deste povo, senão como uma expressão de escarneo.

E como o aquilão varre a folha secca do outono, o sopro do Senhor varrerá da face da terra esta raça corrompida e immoral.

II

O que tem ouvidos para ouvir ouça: o que tem olhos para ver veja: o que tem coração para se contristar, contriste-se.

O povo tinha a liberdade e quiz a licença; tinha a justiça e quiz a iniquidade: o povo perecerá.

Desgraçado daquelle que anda fóra dos caminhos do Senhor: correndo despelado por despenhadeiros, sentir-se-ha por fim baqueiar no fundo de um precipicio.

Porque a lei e a virtude foram postas no mundo para proveito do homem, não para proveito de Deus.

Quando uma nação quebra todos os laços sociaes, della será todo o damno.

Para as turbas o cheiro do sangue é perfume suave; o roubo gloriosa conquista.

E ellas se fartarão de sangue e de rapinas com a voluptuosidade atroz do anthropophago que se banqueteia com os membros semivivos do seu semelhante.

Porque a plebe desenfreiada é como o phantasma do crime, como o espectro da morte, como o grito do exterminio.

Horrível é o aspecto do empestado, que, entreabrindo o lençol que lhe servirá de mortalha, descobre as pustulas, donde mana a podridão e o cheiro da sanie, e que por entre os labios amarellos e os dentes cerrados deixa fugir o som rouco do estertor.

Mas para o homem honesto, que contemplar uma scena das raivas da plebe e ouvir as suas blasphemias e vir as faces hediondas dos homens dissolutos, será como allivio a asquerosidade das chagas, o halito podre e o rouco estertor do empestado.

III

E o povo continúa a dançar em roda do seu mesmo sepulchro.

E as outras nações meneiam a cabeça em signal de compaixão.

Os tyrannos sorriem e dizem por escarneo aos homens virtuosos: ide, e dae a liberdade ás turbas: erguei á dignidade de homens livres servos devassos e educados no lodo: elles vos pagarão com a unica moeda que guardam em seus thesouros.

A relé popular é chamada as fezes da sociedade, não porque é humilde, não porque é pobre, mas porque é vil e malvada.

O sabio e o virtuoso indigentes são mais nobres do que os grandes da republica, do que os dominadores da terra.

O ferrete da abjecção e da infamia estampa-se em qualquer fronte sem excepção de berço, e aos que trazem este signal de reprovação é que a philosophia chama escoria da sociedade.

A medida por que Deus conta os graus dos meritos da vida é a da pureza de coração; é a do aperfeiçoamento da intelligencia.

Os typos das diversas alturas a que sobe o espirito humano na carreira indefinita da perfeição formam como uma pyramide, cuja base assenta no fundo de um tremedal, cujo ápice se esconde no interior dos céus.

Muitos nasceram no infimo da pyramide e subiram a grande altura: outros de grande altura desceram a mergulhar-se no lodo.

E tanto a uns como a outros julgará a immutavel justiça de Deus.

IV

Os soldados da liberdade morreram nos combates da patria e misturaram o seu sangue com o sangue dos satellites da tyrannia: os seus ossos alvejam nas serras e nos valles, como alvejam as ossadas dos servos com quem combateram.

Foi sasão essa de abundante messe de almas puras para o céu. Consolem as lagrymas dos justos as cinzas desses valentes.

Eram apenas um punhado; a morte ceifou os mais delles; o resto já não tem força senão para pranteiar sobre as ruinas da patria.

E o vidente pranteiará com elles, porque o Senhor lhe amostrou o futuro.

Se os homens do desterro e das tempestades podessem levantar-se da sua jazida, a terra de antigas glorias ainda seria salva: mas elles dormem o perpetuo somno do repouso.

E foi o ultimo leito honrado em que portugueses se reclinaram no seu dia extremo.

Felizes os que então se despediram do sol e misturaram com a terra o pó que lhes emprestara a terra.

Os dias dos que restamos não eram ainda contados; porque nossos erros pediam a punição do opprobrio.

O Senhor nosso Deus é justo; curvemos a cabeça diante da sua
Providencia.

V

Formosos eram os tempos em que pelejavamos pela liberdade do povo; tão formosos, quão negros estes em que a plebe peleja pela licença.

As nossas armas vomitavam a morte: semeiava-a tambem o inimigo pelas nossas fileiras: e nós estavamos firmes nos pincaros das montanhas, ou, descendo, faziamo-las resoar debaixo de nossos pés.

E arrojando-nos aos contrarios, as bayonetas reluziam á luz do sol; e o tinido dos ferros encontrados, e o clamor dos feridos, e o estampido dos tiros reboavam pelas quebradas dos valles.

Quando a victoria, embora sanguinolenta, nos coroava a fronte, o triumpho era para nós um delirio; porque o combate fora de homens valentes.

Na historia do soffrimento humano a mais bella pagina é a historia do nosso soffrimento. Nem a peste, nem a fome, nem a desesperação de todo o humano soccorro dobraram a robustez de corações ousados.

Porque pelejavamos por uma causa justa, e Deus estava comnosco.

Por serranias agrestes e aridas combatemos debaixo de sóes ardentes, e as entranhas mirravamse-nos de sede: tinhamos os labios resequidos como a urze já morta, e humedeciamo-los com as lagrymas da dor, e supportavamos a sede.

Encostados a mal construídos vallos e cercados por quarenta mil soldados, vigiavamos pelas noites longas e tenebrosas do inverno. A chuva cahia-nos em torrentes da atmosphera densa sobre os membros mal-vestidos, e o oeste sibillava em nossas armas.

Ou se as cataractas do céu se vedavam, o frio leste trazia-nos o seu sopro envolvido nas geadas dos montes penhascosos.

Cruelissimas eram estas entre as noites crueis desse tempo; porque ao redor de nós tudo estava devastado, e não havia um unico tronco para alimentar a fogueira do arraial.

E o frio recalcava a vida toda no coração do soldado; e elle sem um lamento soffria o rigor de noite dilatadissima.

A fome apresentou-se diante de nós: medonho era o seu aspecto: os membros desfalleciam-nos e as armas por vezes nos cahiam das mãos.

Mas o amor da patria estava vivo em todos os corações. A Providencia infundia-nos valor, e soffremos sem murmurar a fome.

Gloria a Deus!—Os ultimos portugueses saíram illesos da prova. Os antigos cavalleiros os receberam como irmãos lá onde são com o Senhor.

Bemaventurados os que deixaram esta terra de lagrymas, porque não viram que o seu sangue fôra derramado em vão.

VI

E depois dos combates íamos sepultar os mortos.

No campo da batalha abria-se uma grande cova, e simultaneante se lançavam nella os cadaveres de amigos e de inimigos.

Porque além do limiar do outro mundo calam todos os humanos odios.

E o tecto de terra estendia-se sobre os muitos que ahi dormiam no mesmo jazigo.

E algum pranto derramado sobre o pó revolto, e as preces da igreja proferidas pelo sacerdote consolavam os extinctos.

Plantava-se a cruz sobre a gleba para consagrar a memoria dos mortos; para pedir a esmola da oração ao que passasse, e para lhe annunciar que todos os que alli repousavam eram irmãos por Jesu Christo; eram irmãos pelo sepulchro.

Perdoavamos para sermos perdoados: perdoavamos porque eramos fortes.

VII

Alevantou-se a plebe, e logo commetteu um crime.

Agitava-se e ondeiava pelas ruas com clamor inintelligivel; arrastava-a o espirito das turbulencias civis.

Um homem inerme passou por entre os amotinados: era um dos votados ao exterminio: muitos tiros e golpes partiram do meio da turba, e o homem cahiu exangue e sem vida.

E arrastaram até o cemiterio publico, ao som de injurias e risadas, esses restos que a morte sanctificara. As maldicções do odio mais profundo param á beira do tumulo. A maldicção popular, essa é que não parou ahi.

Soterraram por meio corpo o cadaver e cuspiram naquellas faces lividas aonde já não podia subir do coração o rubor, e que os olhos cerrados não podiam já mundificar com lagrymas.

E esse homem assassinado e arrastado e cuberto da escuma fetida da gentalha, fora um dos que salvaram o povo do cutello dos tyrannos.

Plebe: commetteste um assassinio, e serás julgada. A ferro morrerá o que ferir com ferro: disse-o o Propheta do Golgotha.

Deixaste acaso a face da tua victima descuberta para monumento do crime?

Quizeste porventura desafiar a eterna justiça, e convocar a combate o
Regedor dos mundos?

Se na tua maldade e soberba assim o pensaste, sabe que baldada foi a profanação da sepultura.

Se nos confins da terra sumisses o morto; se o escondesses nos abysmos do oceano; se o arrojasses na cratera de um volcão encendido, lá Deus o havia de divisar.

Porque todo o gemido do moribundo resoa até o throno do Eterno.

Preparae-vos, vermes, se tanto ousaes: porque o Senhor se erguerá sobre os orbes, e o estridor da setta exterminadora sibillará atravez do Universo: ella se cravará na terra que pisaes e passareis como o fumo.

Ai daquelle que, impenitente, acordar ao som da ultima trombeta tincto no sangue injustamente derramado de algum de seus irmãos!

Em verdade vos digo que para esse já não ha perdão, mas só o ranger de dentes e o bramir sempiterno.

VIII

Povo! Onde estão os teus sabios, os teus generaes, os teus nobres, os teus abastados, os teus homens virtuosos!

Os timidos escondem-se diante da tua sanha: os valentes, não podendo combater com as turbas, erram no oceano á mercê das tempestades.

E é a segunda vez que se affrontam com ellas por amor da liberdade e da lei.

Deus proverá os foragidos, como provê de sustento os animaes que vagueiam na terra e as aves que cruzam os ares.

E os timidos que, ouvindo o rugido da plebe, se embrenham por antros de serranias, por profundezas de bosques, confiem tambem no Senhor.

Porque delle vem a salvação para os bons no dia da cólera e do castigo.

Que os perseguidos se consolem lembrando-se dos proprios erros, porque ninguem se isenta da culpa, e antes remi-la neste valle do desterro, do que além da sepultura.

O que padece não deve queixar-se, nem rebellar-se contra a Providencia: porque essa queixa inspira-a a soberba.

Que é um homem em comparação de uma cidade; uma cidade em comparação de um povo: um povo em comparação do genero humano; o genero humano em comparação do Universo?

E que intelligencia é capaz de medir a distancia que vai do primeiro ao ultimo?

Milhões de milhões de vezes menos importa a existencia de um individuo na somma das existencias, do que na pyramide de Cheops o mais miudo grão de argamassa importa á solidez do monumento.

Emquanto vive na terra, o homem é um atomo na immensidade: grande será depois da morte no reino do céu; grande ainda entre os bramidos do inferno.

Porque para elle existe a eternidade só então: só então comprehende a omnipotencia de Deus.

IX

Cinco annos em nome do Evangelho uma parte do povo perseguiu seus irmãos, e cobriu-os de opprobrio.

Em nome do Evangelho pregoou-se o odio, a vingança, e o perjurio: em nome do Crucificado pregoou-se o incendio, o roubo, o sangue e o exterminio.

Mas o dia da punição chegou, porque as lagrymas da innocencia orvalharam o seio de Deus.

Elle estendeu o seu braço, suscitou os ousados, e conduziu-os de milagre em milagre. Então os impios dobraram a cerviz altiva.

As nossas victorias foram de homens fortes; mas a robustez de animo vinha-nos daquelle que é fonte e origem de toda a humana virtude.

Vestia-se então a maldade dos trajos puros da religião para perpetrar impunemente crimes: hoje abriga-se á sombra da arvore sancta da liberdade para assolar a terra da nossa infancia.

Ai dos maus, porque os olhos do Todo-poderoso lhes vêem nus os corações em toda a hediondez da sua perversidade!

A justiça celeste nunca dorme, como na alma do criminoso nunca se cala o remorso.

E a hora da tribulação e das angustias chegará para os malvados; e elles amaldicçoarão o ventre materno e os peitos que os amamentaram.

X

Povo! os que hoje saudas como numes, ámanhã fa-los-has em pedaços, e arrastarás pelas ruas os seus cadaveres cobertos de feridas e pisaduras.

Porque, bem que tarde, conhecerás que elles te hão enganado.

Prometteram-te abundancia, e achar-te-has faminto; prometteram-te liberdade, e achar-te-has servo.

A licença mata a liberdade; porque se livremente opprimes, livremente podes ser oppresso; se o assassinio é teu direito, direito será para os outros assassinar-te.

Se a força, e não a moral, é a lei popular, quando os tyrannos tiverem mais força, legitimamente podem pôr no collo do povo um jugo de ferro.

Ministros da tyrannia são os que suscitaram a lucta das facções, os que deram o primeiro grito da revolta, os que accenderam a guerra civil;

Porque a nação se dilacerará, e enfraquecida passará das mãos da plebe para as mãos d'algum despota que a devore.

Lembrae-vos da Serpente, que enganou nossos primeiros paes: foi com palavras sonoras, com promessas de gloria e de ventura que ella perdeu a ambos.

Dado que para vós não houvesse liberdade e elles vo-la offerecessem á custa de perpetuo damno, devieis tê-los por vossos destruidores.

Porque a liberdade não é tanto um fim como um meio: quer-se a liberdade não tanto para as nações serem livres, como para serem felizes.

Que importa o respeito de propriedade ao que nada possue? Que vale a liberdade da palavra para o que só tem de proferir maldicções e queixumes? Que monta que os vossos pares vos julguem, se o odio das facções nos fez inimigos uns dos outros?

Sem concordia, inevitavel é que o edifício social desabe: e porventura nascerá a concordia do meio das sedições?

XI

Se no coração de algum dos concitadores da anarchia existe vislumbre de virtude, ai delle! Ai delle, se a sua alma é inteiramente negra!

Porque de qualquer dos modos um abysmo está cavado debaixo de seus pés: na estrada do arrependimento o da vingança popular, no seguimento do crime o da justiça de Deus.

Elles revelaram á multidão o segredo da sua força, e as turbas os levarão diante de si.

O leão ruge livre na arena, e o conductor que o desatrellou cumpre que mais ligeiro lhe preceda na carreira, aliás será o primeiro que elle desfaça entre as garras.

Aquelles que hoje são o amor das turbas serão chamados por ellas para presidirem a conselhos de sangue, a longos dramas de destruição e de angustias.

E se a consciencia lhes clamar com a voz do remorso, e se tremulos quizerem retroceder, a plebe lhes dirá—ávante!

E se ousarem implorar piedade para com as victimas do desenfreiamento e da barbaridade, rir-se-ha a plebe, e gritar-lhes-ha—ávante!

E se, aterrados da altura do precipicio, voltarem atrás um passo, este passo será o extremo: a plebe os anniquilará.

Elles encheram o calice das amarguras publicas: os justos o beberão aos tragos; mas as fezes serão para os escanções do banquete popular.

A salvação unica do instigador de revoltas e uniões está em admittir todas as consequencias dellas.

E então forçoso lhe é tornar-se conspicuo no crime e revolver-se no sangue.

Mas qual será a eternidade de tal homem?

Deus não deu palavras ás línguas da terra para o dizerem. É esse um dos mysterios do inferno.

XII

Temo as horas caladas da noite, e o coração aperta-se quando o somno me pesa sobre as palpebras amortecidas:

Porque para mim o somno não é repouso, e os phantasmas das sombras são mais crueis do que as crueis realidades do dia.

Deus converteu a sua voz no meu pensamento e collocou nos meus labios o grito da sua colera.

O seu verbo desfará a minha alma, como o ar aquecido dilatando-se dentro do vaso o desfaz em fragmentos.

O espanto cerca-me no meio das trevas, e o futuro está parado diante de mim como um pesadello eterno.

Em um momento reune o Senhor na minha alma as dores com que por largos dias gemerá esta desventurada patria.

E, em sonhos, oro ao Deus de nossos paes; mas na sua ira o Altissimo repelle as minhas preces; e acordo debulhado em lagrymas.

Este acordar arremessa-me á vida actual, a esta atmosphera de depravação, ao meio do deshonesto tumultuar de um povo corrompido.

E a oração, que em sonhos ousara levantar a Deus, cahe gelada na terra ao som das pragas e blasphemias da turba desenfreiada.

XIII

Eu vi uma visão do futuro, e o Senhor me disse: vai e revela-a na terra.

Como em panorama immenso, um reino inteiro estava diante dos meus olhos.

E nas duas cidades mais populosas delle homens de má catadura começavam de agglomerar-se nas praças e a trasbordar pelas ruas.

E nos campos e nas aldeias outros homens com aspecto de reprobos começavam tambem a apinhar-se nos passos das serras, nas assomadas das montanhas e nas clareiras das florestas.

E tanto nas faces dos filhos dos campos, como nas dos habitadores das cidades adivinhava-se o grito de exterminio que bramia no fundo dos corações.

Os magotes de serranos fundiram-se n'uma só turma; e o mesmo succedeu aos das cidades.

E cada uma das turmas se converteu em uma besta-féra, que se assemelhava ao tigre.

Agigantada era a sua estatura, e na fronte de uma lia-se—Fanatismo—e na da outra—Desenfreiamento.—

Com os olhos tinctos em fel e sangue, correram então os dous monstros um para o outro, ergueram-se em pé e estenderam as garras.

No mesmo instante abriram-se os céus: dous grandes cutelos afiados e dous fachos encendidos cahiram juncto das alimarias ferozes.

E nas laminas dos cutelos estavam escriptas com letras de fogo as palavras seguintes—Maldicção de Deus.

E cada uma das alimarias segurou com a esquerda um dos fachos, e com a direita um dos cutelos.

A das cidades arrojou o seu facho sobre os campos, e os campos ficaram em um momento áridos e ermos.

E a outra sacudiu o seu sobre as duas cidades, e subito no logar onde ellas foram estavam dous montões de ruínas.

Depois, combatendo por largo tempo e atassalhadas de golpes, cahiram e renderam os espiritos.

Então as lagrymas me offuscaram os olhos; porque bem entendia o que significava a visão.

Mas enxugando-os, tornei a lançá-los para o logar da peleja.

E vi uma solidão safara e negra, sobre a qual a perder de vista para todos os lados alvejavam milhares de ossadas.

E em cima dellas estavam assentados dous espectros gigantes. Chamavam-se
Assolação e Silencio.

XIV

Era uma noite serena, e, ao clarão da lua, a sombra de templo antigo estirava-se no terreiro contiguo.

Os sinos dormiam nos campanarios das torres erguidas, e tudo estava calado no ambito do monumento religioso, herdado aos homens impios deste seculo pelos homens crentes dos tempos que foram.

Atravez das esguias e ponte-agudas janellas da igreja transverberava na praça a luz amortecida das alampadas penduradas ante as capellas desertas.

Era a hora em que se passam cousas mysteriosas por adros e cemiterios, e em que vagueiam pela terra os mortos condemnados a assim cumprirem com sua justiça.

N'um angulo do terreiro estava eu. Não sabía que mão me tinha para alli arrastado; mas era a mão de Deus.

Ao longo de uma rua que naquelle logar desembocava vinha ondeiando um turbilhão negro, cujo rugido era semelhante ao rugido do pinhal da montanha em noite tempestuosa.

E parecia aquelle grande vulto um fragmento do cahos, a quem, de todos os elementos de harmonia e de ordem, só o Creador concedera o movimento.

E chegou o tumulto diante da igreja e espraiou-se por toda a praça, e houve profundo silencio.

E um homem alevantou a voz no meio do tropel, que pendia de seus labios, e disse:

«Vós sacudistes o jugo dos poderosos, e o nome de rei e o titulo de nobre são palavras sem significação na linguagem de nação regenerada.

O povo que jazia no lodaçal alevantou-se como gigante de prodigiosa altura, e estendendo os braços, estreitou os palacios dos abastados e dos potentados: os pannos dos muros vacillaram nos seus fundamentos de marmore e de granito, e começaram de desmoronar-se e baqueiaram por terra.

E o gigante popular riu-se e assentou-se em cima de montões de ruinas.
Foi este dia dia de sempiterna gloria.

Mas os monumentos da credulidade e do fanatismo de nossos paes ainda assoberbam a cidade dos homens livres. A hypocrisia abriga-se á sombra dos altares e invoca, talvez contra nós, um Deus que não existe.

O unico Deus de corações generosos é a liberdade. Quando cumpre, o altar della é o cadafalso: o seu sacerdote o algoz: o seu culto verter o sangue dos tyrannos.

A religião que tem por fundamento a humildade e a abnegação de si é a religião dos servos.

É por isso que nossos paes foram servos.

Amaldicçoemos, pois, o nome dos que nos geraram e derribemos a obra da superstição.

E cada um daquelles precítos amaldicçoou seu pae. Os cabellos erriçaram-se-me de horror.

Então a turba arrojou-se ao portal do templo, e os largos ferros dos machados scintillavam erguidos e faziam estourar as portas. Pelas naves da igreja retumbava um gemido longo e sonoro.

E o terreiro ficou esgotado dessas ondas de povo, vertidas pelo ádito da velha cathedral dentro de seu amplo recincto.

Como os vermes se arrastam vagueiando pelos membros do cadaver, assim os homens do sacrilegio se espalharam, arremessando-se aos altares e a todos os logares onde reluzia a prata ou o ouro.

E cuspindo sobre a hostia do Cordeiro, pisavam-na aos pés e motejavam do
Crucificado.

E despido o templo das riquezas alli depositadas em testemunho da piedade de seculos, os impios saíram delle carregados de despojos.

Depois, accendendo fachos, lançaram-lhe fogo por todos os angulos, e breve as chammas se ergueram ao céu com espantoso ruido.

O estalido das pedras que se desconjunctavam, e o fragor das abobadas desabando, e o estridor do incendio, que trepava em espiraes pelas columnas e se estendia em lençoes vermelhos, lambendo a face dos muros, e o ultimo gemido dos orgãos era a orchestra deste sarau popular.

E a plebe folgava de roda, e embriagava-se, passando de mão em mão as taças do vinho espumoso, e tecendo danças com as mais vis prostitutas.

Tal foi o sonho do futuro que o Senhor me enviou n'uma noite de agonia.

XV

O anjo das predicções mudou então na minha alma a scena do porvir.

Á mesma hora, á mesma luz da lua, estava eu no logar onde vira o povo quebrar as portas do sanctuario; onde vira os homens dissolutos transpor a ultima barreira que os separava dos tigres, e lançar de si o ultimo signal que os distinguia dos espiritos das trevas.

Dos fustes truncados das columnas do templo pendiam hervas bravias, e nos muros semi-rotos enlaçava-se a héra.

Nos campanarios afumados pelo incendio haviam as aves nocturnas construído os seus ninhos: ao cahir das trevas, em vez dos sons religiosos dos sinos, despenhavam-se lá dos cimos das torres os pios melancholicos da poupa solitaria.

E no meio do terreiro surgia o que quer que era negro e que não se assemelhava a nenhuma obra da natureza, a nenhuma obra das mãos do homem feita para o uso da vida.

Approximei-me. Era o patibulo.

Um vulto humano pendia do alto delle e volteiava para um e outro lado á mercê da brisa da noite.

E tinha as faces disformes e os olhos espantados, e da bôca meia aberta gotejava-lhe a espaços o sangue.

Eu estava com os olhos cravados nelle, e não os podia despregar do homem do patibulo.

E involuntariamente cahi de joelhos: as preces pelo morto íam-me a romper dos labios. Sentia ardente a fronte e batia-me o pulso rapido e com força.

Á primeira palavra de oração que proferi, um estremeção agitou o cadaver do justiçado.

E sem mecher os beiços murmurou sons inarticulados: depois proferiu algumas palavras: a sua voz era a de um ventriloquo.

Cala-te!—disse o cadaver.—A eternidade é já minha. Deus riscou-me do livro da vida: maldicto seja o seu nome!

Fartei-me de crimes na terra: por isso fui condemnado.

A minha existencia foi como um halito de pulmoens ralados: a minha voz nunca ensinou senão a destruição.

Hypocrita da liberdade, pregoei a anarchia e a licença, como os hypocritas da religião pregoam a intolerancia e o exterminio.

Fui eu o que nas trevas preparei a discordia dos homens livres; que suscitei o primeiro dia de furor popular.

Colloquei em frente dos amotinados alguns mancebos, em cujo seio havia fragmentos de virtude, mas cuja ambição era cega.

Porque bem sabia eu que a plebe immoral anniquilaria todos os que não fossem tão dissolutos como ella.

Deixei na arena dos bandos civis todos os meus émulos, e abandonei o paiz que de futuro devia ser minha prêa.

Quando voltei, o povo tinha feito pedaços os seus idolos de um dia, e havia-os sumido debaixo dos pés das turbas.

Era então que começava o meu imperio. Ai dos que eu tinha arrolado no livro da morte! Nenhum ficou sobre a terra.

Milhares deixaram a cabeça debaixo do cutelo do algoz: milhares volteiaram no cadafalso por noites de luar, como agora eu volteio.

E este baraço que ora me sobreleva do chão ainda o achei aquecido do collo da minha ultima victima.

Fartei a sede de vingança e de sangue que mirrava o meu coração, e morri seguro de que deixava atraz de mim a campa cerrada em cima de todos os virtuosos.

O tyranno do céu folgue embora em me ver no inferno: ao menos pude apagar o seu nome na terra que me deu o berço.

Um brado meu desmoronou os templos: o sacerdocio desappareceu; a oração calou para todo o sempre.

Agora tambem eu passei; porque na senda do crime o povo com uma passada vence o caminho de um seculo, e eu era apenas um homem.

Os que empolgaram o poder, que me foi arrancado, não os tinha ainda conhecido, porque se arrastavam hontem em regiões obscuras; aliás ter-me-hiam precedido em descer aos abysmos.

Aqui, dando um longo gemido, o suppliciado calou; os olhos fecharam-se-lhe, e a cabeça pendeu-lhe para o peito.

Emquanto falara, bem conheci quem era; mas o Senhor me ordenou não revelasse o seu nome.

XVI

O anjo das predicções mudou o espirito dos meus sonhos.

Era por noite fria de inverno: n'uma quadra desadornada de palacio meio arruinado jazia um homem em pobrissima enxerga.

No seu rosto estava pintada a doença e a fome, as bagas do suor da morte transudavam-lhe da fronte, e dos olhos fugia-lhe a lagryma extrema do moribundo.

Os farrapos que vestia não o resguardavam do frio; e o homem tremia, e os dentes batiam-lhe uns contra os outros.

E no seu delirio o misero soltava palavras cortadas.—Agua! agua!—dizia; porque a sede lhe roía as entranhas. E não havia quem lhe desse um pucaro de agua.

Tribunos da plebe, dae-me um pouco de pão. Ah! bem negro que seja! que tambem eu sou do povo.—E lançava os olhos para os seus farrapos.

Fui nobre e rico; mas esquecei-vos disso! Perdoae-me, porque nada me resta: tão pobre sou como o mais humilde mendigo, que d'antes estendia a mão para o ultimo dos meus servos.

E o homem sorria, e o seu riso significava a desesperação da sua alma.

Depois olhou para um crucifixo que estava encostado á parede, e estendeu para lá os braços.

Mas não havia quem lhe unisse ao peito a imagem do Salvador: não havia um sacerdote que lhe desse o extremo vale.

Então deixou descahir os braços, fechou os olhos, e morreu. Sobre o cadaver ir-lhe-ha amontoando o tempo as ruinas dos paços que lhe herdaram seus paes.

E será esta a campa republicana do homem que foi nobre e abastado.

XVII

O anjo das predicções mudou o espirito dos meus sonhos.

Era o dia da lucta das facções: era um dia de ampla carnificina.

E o demonio do meio-dia pairava sobre a cidade do sangue, e blasphemava do Senhor.

O povo corria furioso e tumultuava; e os tiros e golpes soavam pelas praças, pelas ruas e pelas encruzilhadas.

O gemer dos feridos, as pragas dos vencidos, e as ameaças dos vencedores conglobavam-se em rumor semelhante ao arquejar de volcão.

As portas dos edificios estouravam pelos gonzos e fechaduras, e a plebe clamorosa entrava de tropel até o mais recondito das habitações.

E o ulular das mulheres, e o vagido dos infantes e o chôro dos velhos rompiam por entre o clamor da matança.

Mas a lascivia e o punhal breve punham o sello do silencio nas frontes de inteiras famílias.

No recontro das diversas parcialidades os irmãos assassinavam os irmãos, os filhos assassinavam os paes.

Porque á voz das sedições, o povo tinha quebrado, depois dos laços sociaes, os vinculos da natureza.

E o roubo, a dissolução, a morte e o incendio estavam assentados nos quatro angulos de uma cidade outrora populosa e rica.

Estas eram as divindades que adorava a plebe nos dias da licença e do furor.

XVIII

O anjo das predicções mudou o espirito dos meus sonhos.

Nas abas de uma serra das provincias do norte ainda as casinhas de pequena aldeia alvejavam certa manhã ao despontar o sol.

E nas assomadas dos montes, e nos comoros dos outeiros ondeiavam os cimos dos pinhaes agitados pela viração matutina.

A aldeia e os campos que a rodeiavam eram, no meio deste paiz assolado, como o vulto da esperança erguido sobre a lousa do sepulchro.

E os habitantes pacificos do valle não sabiam que as tempestades politicas trovejavam além das suas montanhas.

Mas nesse dia souberam-no para morrerem. O raio da furia popular fulminou-lhes a destruição.

Bandos de soldados negrejavam em ondas descendo para a planicie; e os primeiros raios do sol espelhavam-se nas suas armas.

E seguiu-se mais uma scena de carnificina, como tantas que eu tinha visto em meus sonhos do futuro. O ultimo abrigo da felicidade neste mal-aventurado paiz foi reduzido a cinzas.

Os velhos morriam abraçados aos troncos dos carvalhos e castanheiros, seus veneraveis amigos da infancia, que tinham testemunhado a ventura de seis gerações inteiras.

Os moços cahiam combatendo pela salvação dos paes, das esposas e dos filhos; mas, inexpertos nas armas, levemente eram vencidos da soldadesca feroz.

Na ermida do presbyterio buscaram as mulheres indefensas guarida contra os assassinos; porque as desgraçadas não sabiam que a religião tinha fugido desta terra dos crimes.

Alli, ante o altar do Senhor, foram vilipendiadas e saciaram a bruteza dos filhos da dissolução.

E no dia seguinte, nos soutos e nos pinhaes da encosta ouvia-se tão somente o murmurio das ramas; e no meio do valle fumegava um monte de cinzas.

XIX

O anjo das predicções mudou o espirito dos meus sonhos.

N'uma vasta sala estavam congregados muitos homens de aspecto feroz e em cujos olhos faiscavam as coleras immensas dos bandos civis.

Chamavam-se estes homens os legisladores, os eleitos do povo.

Vans denominações eram essas: a lei residia na vontade mudavel da plebe; e elles eram em grande parte mandados para aquelle recincto pela parcialidade que então triumphava.

De roda, em balcoens erguidos, agitava-se a plebe tumultuosa.

Alli se lavravam os decretos de exterminio: e era, ouvindo-os, que as turbas victoriavam os homens do sangue.

Mas, se aos labios de algum assomava uma palavra de humanidade, e se ousava proferi-la inteira, os gritos de traição e de morte recalcavam-lhe das faces para o coração esse impensado impeto de piedade.

Neste dia pelejavam as parcialidades nas ruas para decidir quem tinha direito de commetter mais crimes: era dia de abundante colheita para o sepulchro e para o inferno.

Mas ao recincto, outrora chamado o sanctuario das leis, não chegava o clamor do combate: porque ahi a discordia excitava alaridos e, sacudindo o seu facho, encendia os animos de uns contra outros, Luctavam tambem as parcialidades lá dentro.

Na praça publica a victoria convertia a final o que naquella assembléa se chamava minoria facciosa em irresistivel maioria. A plebe soberana annunciou-o aos legisladores, fazendo estourar a golpes de machado as portas da immensa quadra, onde o vozeiar não era de ardentes debates, mas sim de pugilato infrene. A turba-rei precipitou-se como torrente: o tumulto ondeiou pela sala espaçosa, e houve um momento de ancia e de silencio.

Então os punhaes reluziram erguidos e desceram com força; e os gritos e as pragas e as blasphemias misturaram-se com o estertor dos moribundos.

E a plebe nos balcoens batia as palmas, e dizia entre risadas:—viva!

Tal foi a ultima scena de meus sonhos; e nada mais me revelou o Senhor.

XX

O Filho do Homem comprazia-se em ensinar a sabedoria por meio de parabolas: na parabola está a philosophia do povo.

Um agricultor possuia certo campo que não produzia senão fructos enfezados; porque o solo se havia tornado sáfaro por falta de cultura durante largos annos.

Porém ainda, aqui e acolá, pela extensão da veiga, vecejavam algumas arvores e cepas de boas castas, e que só de maltractadas pareciam bravias.

E este agricultor morreu, deixando o campo de seus paes a tres filhos que tinha; e estes tractaram entre si ácerca do que deviam fazer da herança paterna.

E o mais velho disse:—Respeitemos a memoria de nossos antepassados, e deixemos aos que de nós vierem o campo que herdámos do mesmo modo que o recebemos:

Porque se não diga que menoscabamos a prudencia dos velhos e que pretendemos ser mais avisados do que foi nosso pae.

Elle viveu, posto que pobre, tranquillo: vívamos como elle viveu.

E disse o segundo-genito:—Veneranda é a memoria dos que nos geraram: comtudo tambem se deve acatar a razão, que nos foi dada por Deus.

Conservemos todas as obras do tempo passado; mas melhoremos tudo o que nellas houver ruim.

Ahi estão arvores uteis no meio da nossa herdade: não as derribemos, porque o fazê-lo, além de impiedade, fora rematada loucura.

Porém roteemos os bréjos e sarçaes, adubemos a terra, e procuremos fazer novos plantios adequados á qualidade do solo.

E disse o irmão mais novo:—Que nos importa os que passaram, ou que temos nós com o que elles fizeram?

Nossos paes viveram nas trevas da ignorancia; e por isso todas as suas obras são loucura e vaidade.

A luz e a sciencia só veio ao mundo em nossos dias, e só a propria sabedoria póde fazer-nos felizes.

Comecemos pois por arrancar deste agro todos os vestigios de antiga cultivação: não verdeça nelle nem uma unica planta.

E depois buscaremos arvores extranhas de fructos saborosos e sementes uteis, e a nossa herdade causará inveja a todos os vizinhos.

Cada um dos irmãos estava firme em seu proposito, e os servos e os familiares bandeiaram-se em tres partidos.

E luctaram uns com os outros, e triumphou a opinião do mais velho.

E o campo mal cultivado, cada vez produzia menos, e a fome veio assentar-se no limiar da porta dos tres irmãos.

O que vendo o segundo-genito, disse aos do seu bando:

Força é que tiremos o poder das mãos dos que nos governam, aliás morreremos todos á pura mingua.

E assim o fizeram; e, posto que a lucta fosse longa e encarniçada, venceram; porque a razão estava da sua parte, e Deus os abençoava.

Então começaram a trabalhar: alimparam as arvores dos ramos seccos e exuberantes; adubaram os campos e prados, e arrancaram as moutas e as plantas nocivas.

E lançaram boas sementes á terra, e quando a seara foi crescendo, começaram de mondar-lhe o joio e as outras hervas damninhas.

Promettia naquelle anno ser excellente a colheita, e no coração dos familiares renascia já a esperança.

Mas o irmão mais novo, possuido do espirito de destruição, colligou-se com os criados devassos e que aborreciam o trabalho continuo a que eram forçados.

E fizeram uma união contra o segundo-genito e tiraram-lhe o mando, valendo-se de muitos clientes do primogenito, os quaes, por via da dissensão entre os dous mais novos, esperavam triumphasse o mais velho.

Lançaram-se então ao campo, destruiram a sementeira, cortaram as arvores, e passaram a charrua por cima dos campos arrelvados.

E buscaram sementes exquisitas e arvores exoticas, e atiraram á terra desalinhadamente com tudo isso, e depois adormeceram.

As arvores, porém, seccaram logo, e as sementes, apenas rebentaram, morreram; porque os imprudentes não haviam estudado nem a natureza do clima, nem as propriedades do solo, nem as regras de agricultar.

E a familia inteira no fim do anno tinha perecido de fome.

XXI

Na terra de Cethim houve um rei que era bom e cheio de liberalidade e valor.

E cançado de reinar, disse em certo dia a seu filho, que ainda era muito moço:

Pesam-me já demais a coroa e o sceptro, e os esplendores do throno não me deslumbram. Vem, e assenta-te nelle.

E o filho obedeceu, e começou de reger os povos por certas leis estabelecidas por seu pae, o qual foi viver em regiões longínquas.

Mas um tyranno alevantou-se com o reino, e o moço principe errou largo tempo por extranhos paizes com os poucos seguidores de sua má ventura.

E o bom rei que descera do throno correu a restituir ao filho a herança que lhe legara.

E a sua espada foi como a de Gedeão; o seu braço come o dos Machabeus.

Então o principe desterrado voltou á patria, reassumiu o sceptro que lhe fora roubado, e a lei e a justiça recobraram o antigo vigor.

Depois o rei virtuoso morreu de puras fadigas, e foi dormir com seus paes: sobre a sua memoria desceram não só as bençãos dos seus soldados, mas tambem as de todos os amigos da justiça e da paz.

Nas trevas, porém, homens corrompidos começavam a tramar dissensões civis; porque pretendiam que os bons soffressem, depois da tyrannia de um unico mau, a tyrannia de muitos homens ruins.

E estes mysterios da corrupção vieram a lume, e a plebe disse um dia ao principe e aos cidadãos pacificos:—A força está em nós, e a força é o direito: obedecei-nos pois, aliás um descerá do throno, outros serão reduzidos a pó.

E tudo calou diante da plebe; porque era verdade que ella tinha a força.

Os nobres, os prudentes, e os homens bons cubriram-se de dó, e no gesto lia-se-lhes a amargura do coração.

Mas o moço rei a quem os turbulentos fingiam acatar, porque descera até elles, mostrou-se contente do seu damno, e engolfou-se nas delicias de que o rodeiaram os algozes da patria.

Foi então que se apagou em todos os animos honestos o ultimo raio de esperança.

XXII

Havia naquelle tempo em Cethim um propheta, em cuja boca posera Deus o verbo da eterna verdade.

E este propheta entrou um dia nos paços do principe e disse-lhe:

Mancebo inconsiderado, emquanto folgas e ris, vai desconjunctar-se debaixo de teus pés o throno que te herdaram teus paes.

Lembra-te de que subiste a elle por cima das ossadas de vinte mil dos teus amigos, regadas pelas lagrymas de cem mil familias.

E não te esqueças de que entre esses ossos jaziam os de teu pae: não maldigas com tuas obras a sua memoria; porque elle foi justificado diante do Senhor.

Crês tu que os homens do nada te perdoarão o teres nascido do sangue dos reis? Enganas-te! Crime para elles é este que nunca te será relevado.

O sorriso que na tua presença lhes aclara o torvo das faces, não o creias de amor: repara, e verás que é o riso infernal do desprezo.

Os filhos da abjecção queriam igualar-se comtigo; não, sendo elles quem subisse, mas sendo tu quem descesse.

As taboas da lei foram feitas pedaços; se o vê-las partidas te apraz ou disso não curas, antes de o patenteiar cumpria-te restituir-nos as vidas e o sangue de nossos irmãos.

Este paiz soffreu tudo por guardar o pacto que jurou, e que também tu juraste: que direito é o teu para approvares que esse pacto seja rasgado? Porque não padecerias alguma cousa a bem dos que tanto padeceram por ti?

Crês, porventura, que é bello e generoso assentares-te em um throno que a relé do povo conspurcou de lodo e de infamia?

A plebe era forte: embora. Mais forte era o tyranno de outrora, e baqueiou por terra.

Devias deixar aos maus a consummação do seu crime e não o sanctificares tu.

Devias confiar na Providencia, e arrojar de ti o manto de ignominia que sobre os hombros te lançavam.

Devias conservar sem mancha o teu nome, porque está ligado ao do que te deu o ser, e este será glorioso até o termo dos séculos.

Nós iremos ajoelhar juncto ao sepulchro de teu pae, e ás cinzas do rei virtuoso pediremos a justiça que não encontramos na face da terra.

Oh, que se fosse possivel alevantar-se elle em pé sobre a campa, um seu olhar te encheria de remorsos; um brado seu fulminaria os perversos!

Taes foram as palavras que o propheta de Cethim disse ao principe mancebo: o que depois aconteceu não o sei eu narrar.

E este é um fragmento da historia de eras que passaram ha muito.

XXIII

A justiça de Deus é grande: maior a sua misericordia.

Para o que se arrepende mana do seio do Senhor fonte perenne de perdão, e as preces do contrito sobem ligeiras até os degraus de seu throno. Depois dos dias de afflicção, elle envia o consolo e quebra em pedaços o vaso da sua colera.

Povo, que vagueias desenfreiado pelas sendas da morte, converte-te á vida, converte-te ao Deus de teus paes.

Elle não se esquecerá dos netos desses fortes que espalharam a luz do seu Verbo entre os mais remotos barbaros, e os teus erros serão esquecidos.

Nossos avós souberam ser livres sem ser licenciosos; souberam ser grandes sem crimes: eterna é a sua gloria.

Ousariamos nós irmos ajunctar-nos com elles no repouso do tumulo carregados das maldicções do Altissimo, e sepultando comnosco a herança do nome português cuberta da execração do universo?

Lembrae-vos de que as cinzas dos cavalleiros de João primeiro; dos valentes de Ceuta, de Tangere e de Arzila, dos conquistadores do Oriente, estão envoltas na terra que pisaes.

E onde quer que ponhaes os pés levantará o passado um grito de reprehensão contra a depravação do seculo actual.

Formosa e pura é a luz do sol neste amoroso clima do occidente: não queiraes convertê-la no facho avermelhado e sinistro que fulgura por cavernas de salteadores e de assassinos.

Unamo-nos, pois, como irmãos, e abraçando-nos uns com outros, cáiam algumas lagrymas de reconciliação sobre esta terra tão regada de lagrymas de amargura; tão ensopada no sangue do fratricidio.

Refloreçamos entre nós a paz e a amizade: tenhamos um nome só, o de portugueses, um só bando, o da patria.

Ainda algum dia estes rogos do propheta serão ouvidos: mas quando, é um segredo de Deus.

A VOZ DO PROPHETA

SEGUNDA SERIE

Iniquitas surrexit in virga impietatis; non ex eis, et non ex populo, neque ex sonitu eorum, et non erit requies in eis.

EZECHIEL, VII-11.

I

Lisboa, cidade de marmore, rainha do oceano, tu és a mais formosa entre as cidades do mundo.

A brisa que varre os teus outeiros é pura como o céu azul, que se espelha no teu amplo porto, semelhante a grande mar.

Trinta seculos tem surgido depois que tu surgiste, e sorvendo milhares de existencias cahiram todos no abysmo do passado.

E tu os has visto nascer e morrer; e sorriste-te, porque julgavas que a vida te estava travada com a vida do universo.

Escondendo nas trevas dos tempos remotissimos a tua origem, dizias ás demais cidades da Europa:—Sou vossa irmã mais velha.

Nobre e rica outrora, quando o Oriente e a Africa te mandavam o ouro das suas veias, os extranhos vinham assentar-se-te ao pé dos muros e abastecer-se com as migalhas cahidas das mesas dos teus banquetes.

Cada um dos teus velhos palacios abrigou já os ultimos dias de um grande capitão; em cada pedra dos teus templos ha uma recordação das virtudes passadas; em muitas lousas de sepulturas nomes que não morrerão.

Nas eras de tua gloria, os monarchas dos ultimos confins da terra se haviam por honrados com chamar irmãos a teus filhos; e filhos teus davam e tiravam coroas.

As tuas armadas aravam as campinas do oceano, e neste nem uma vaga deixou de gemer debaixo das naus do Tejo.

Para as frotas da nova Tyro, os golpes de machado resoavam ao mesmo tempo nos bosques da Europa e da Africa, do Oriente e do Novo-Mundo: os lenhos do Indostão cosidos com os da Nigricia fluctuavam por mares distantes, e sobre elles se hasteiava um signal de terror para o orbe: era o pendão das Quinas.

Então, oh cidade do Tejo, reinavas tu e eras forte, mais do que Roma ou Carthago; mas o imperio e a força vinham-te das virtudes de teus filhos, dos homens a quem sem pudor chamamos nossos avós.

Vivificavam-te o seio um sem numero de bem nascidos espiritos, e eras seminario feracissimo de corações generosos.

Porém, que te resta hoje do antigo esplendor, da gloria de tantos seculos? Um echo do passado nas paginas da historia, o sol puro da tua primavera, os restos dos paços e templos que os terremotos te não consumiram, e o grande vulto das aguas do amplo ádito do Tejo.

II

Mas este echo da historia, que devia ser para ti como um grito de remorso, não ha ouvidos que o escutem, e soa em vão e morre no meio do vozeiar descomposto da plebe:

Mas este céu puro que te cobre, e que testemunhará no grande dia as virtudes de nossos maiores, testificará também perante o Senhor a tua corrupção actual:

Mas este porto, que a liberdade regrada de tres annos começava a povoar de entenas, torná-lo-ha o reinado da licença tão ermo como os extremos dos mares gelados:

Mas pelos palacios de marmore já não retumba a voz dos heroes, e os templos estão desertos: só por lupanares e praças sussurra o clamor dos populares, ou entoando os canticos das orgias, ou tumultuando em assuadas e preparando o dia em que satisfaçam a sede do roubo e do assassinio.

Viuva prostituida, os vicios corromperam-te a seiva da vida, e a gangrena e os herpes corroem-te os membros, que ainda vestes de trajos louçãos, mas onde a morte se encarnou ha muito.

Formosa ainda no aspecto, assemelhas-te ao sepulchro do evangelho, alvo e polido no exterior, mas cheio de podridão e negrura.

Nova Jerusalém, a dextra do Senhor vergou pesando-te os crimes e, como a antiga, saberás se por ventura são asperas as angustias que o Omnipotente manda aos povos no dia da sua justiça.

Rapida é a carreira do malvado pelos atalhos do crime: porque esses atalhos levam, de despenhadeiro em despenhadeiro, ao abysmo da perdição.

Breve empallidece o outono as folhas das arvores; breve as desprende dos troncos; breve as espalha e some, arrebatando-as sobre as azas dos ventos.

Esse curto praso bastou ao povo para esgotar os thesouros da misericordia divina, que os erros e culpas de seculos não haviam podido empobrecer.

Os feitos portentosos de dous annos de combates civis foram amaldicçoados pelo povo em uma noite de sedição, e a arvore da liberdade cerceiada juncto da terra.

E as esperanças de salvação e de felicidade passaram como o sonho matutino que se desvanece ao alteiar do sol.

III

Como a antiga Jerusalém se afundou em mar de crimes, assim a moderna Sião, a grande cidade do occidente, se mergulhou em torrente de perversidades.

E a maldicção celeste que sumiu aquella d'entre as nações pesará ainda mais rijamente sobre a desgraçada Lisboa, sobre esta caverna de vicios e de desenfreiamento.

Á roda dos muros de Solima apinhavam-se os cavalleiros de Babilonia, e as tendas de Nabuchodonosor estavam assentadas ao pé da torrente de Cedron.

E as catapultas arrojavam pedras sobre os eirados do templo, no cimo do Moria: os arietes batiam os baluartes, que vacillavam até os fundamentos, e o granizo das settas sibilava, passando por entre as mal defendidas ameias.

E ao longe scintillavam os ferros das lanças e o bronze dos elmos e dos cossoletes, e ouvia-se o nitrir dos cavallos.

Surgira o dia extremo para a cidade das maravilhas, para a reproba Solima. E d'alli a um anno, sobre as ruinas della estava assentado um velho.

Era o propheta de Anathot, que, em cima da ossada dos palacios e do templo, entoava uma elegia tremenda, a elegia da sua nação.

IV

Tambem o dia em que, entre os vestigios da cidade maldicta, algum vate levante um grito de agonia, um grito de desesperança, não tardará a chegar.

Porque Deus ergueu-se no seu furor, e mandou descer sobre este paiz o anjo do exterminio.

Mais cruel será o teu castigo, oh terra do meu berço, do que o de Jerusalém: porque ella pereceu a mãos de extranhos, e seus filhos morreram defendendo os lares paternos.

Mas a ti é um matricidio popular, é a febre ardente das sedições que te vae arremessar ao sepulchro.

Os teus muros converter-se-hão em circo: pelas praças e ruas pelejar-se-hão pelejas como de gladiadores, combates como de mastins e feras.

Porque o temor de Deus saiu do coração do povo, e entraram nelle todas as raivas do inferno.

Aspero é para o que morre assassinado não poder clamar ao céu justiça contra o seu matador.

E neste mau caso cahirá o povo; porque serão as suas proprias mãos que lhe rasgarão as entranhas: será elle quem lavre a sua sentença de morte.

Elle se amaldicçoará a si, e o remorso e a desesperação de toda a humana piedade lhe dobrarão as agonias do passamento.

V

Os que pelejaram contra os tyrannos purpurados mal sabiam que lhes quebravam o sceptro de ferro, para metter a espada da assolação na dextra de tyrannos cobertos de vermes e farrapos.

Mal pensavam que uma raça corrupta não conhece outra estrada senão a da servidão ou a da licenciosidade.

A nação, esmagada pelos reis, tinha muito tempo gemido debaixo da propria miseria.

Mas surgiu um principe que deu a liberdade ao povo e que veio morrer para lh'a restituir, quando elle vilmente a deixou baqueiar por terra.

E estes homens, que pouco antes haviam dobrado o joelho perante o despotismo, mostraram-se tão orgulhosos e insolentes, quanto, até então haviam sido abjectos e timidos.

E n'uma orgia popular fizeram resoar gritos insultuosos nos ouvidos daquelle que duas vezes os libertara, e invocaram-lhe a morte. Nesse momento longe estavam os seus soldados, e muitos delles arquejavam moribundos no campo onde se pelejou a ultima batalha da patria.

Em verdade vos digo que tal crime é dos que Deus não perdoa; porque a ingratidão é a mais horrenda de todas as perversões humanas.

Elles apressaram o repouso do tumulo para o salvador da republica: mas o nome de parricidas será o que sobre a jazida lhes escreverá a historia.

VI

O sonho da liberdade, o sonho da minha juventude, esta fonte da poesia e de acções generosas, converteu-se para mim n'um pesadello cansado.

Digno era o povo de compaixão quando estava em ferros, e por bom feito se tinha entre as almas puras o affrontar-se o homem com a morte pela salvação dos seus semelhantes:

Porque, subindo ao patibulo ou expirando entre o estrondo das armas, a voz da consciencia assegurava ao que fenecia as lagrymas e as bençãos dos vindouros, e que algum dia cyprestes se plantariam na terra que lhe bebesse o sangue.

Mas isto era crer na virtude popular: era apenas um sonho, e a consciencia mentia.

A corrupção estava no amago das existencias. A arvore da vida social carcomiu-a a servidão. Cumpria que as tempestades politicas a derribassem; que os vermes da sociedade lhe roessem e desfizessem os troncos.

E estes vermes são as turmas de uma plebe invejosa, que incessantemente trabalham na grande obra da publica destruição.

Almas virtuosas, que nos paizes ainda escravos preparaes no silencio a queda dos tyrannos, não apresseis o grande dia da emancipação popular.

Porque nesse mesmo momento sereis amaldicçoados pelos que salvastes, e cubertos de escarneos e de injurias, sabereis que a plebe lança em poucos mezes mais crimes na balança da eterna justiça do que os tyrannos ahi hão lançado por seculos.

VII

Certo dia, o conde de Avranches entrava nos paços de Affonso quinto, e os cortesãos calumniavam sem pudor o bom duque de Coimbra, o salvador da republica.

E o conde disse-lhes:—mentis, como desleaes; e aos melhores tres de vós prova-lo-hei á lança e á espada: innocente e justo é o mui nobre filho de meu senhor e rei, Dom João de excellente memoria.

E ninguem ousou responder ao velho cavalleiro da Garrotéa; porque bem sabiam que a sua consciencia era pura e o seu montante pesado.

D'ahi a alguns dias elle provou o dicto. Na batalha de Alfarrobeira, sobre um montão de cadaveres, cahiu defendendo a innocencia e bom nome do seu desventurado amigo.

Onde estavam os do valente capitão da nova Diu, do rei soldado da patria, quando o vulgacho no meio da praça publica, assentado no seu lodaçal mandava derrocar as leis, as recordações e a gloria d'uma nação inteira?

Onde estavam os amigos de D. Pedro, quando a memoria do grande homem era amaldicçoada na condemnação da sua obra; quando sobre as suas cinzas a dissolução cuspia escarneos; quando a liberdade morria ás mãos da licença popular?

Quem se ergueu, seguro em boa consciencia, para lançar a luva em defesa da justiça, e dizer ás turbas:—sois desleaes e mentis?

Ninguem! Todas as espadas ficaram embainhadas. Em Portugal já não ha um cavalleiro. Na batalha de Alfarrobeira morreu o conde de Avranches, e a sua espada foi sepultada com elle.

VIII

Quando os reis se assentavam em thronos de ferro; quando a lisonja os rodeiava de prestigios, e o terror estava assentado ás portas dos seus palacios, era bello e generoso affrontar-se o homem com a tyrannia e menoscabar as dores dos supplicios.

Então era ousado o propheta, quando, nos paços de Balthasar, lia nos muros, escriptas pela mão de Deus, palavras de condemnação.

Eram sublimes os martyres, quando perante os cesares davam testemunho do evangelho, e escarnecendo dos apparelhos de morte, se deitavam tranquillamente sobre a cruz da agonia.

Era bello ouvir o poeta de Florença trovejar contra a prostituta Roma, denunciar ao mundo a corrupção e os crimes dos pontifices do Tibre, e comer no desterro um pão eivado de lagrymas e esmolado por estranhos.

Era bello, quando nós, assentados sobre os gelos do Norte, saudavamos do desterro a terra que nos deu o berço, e vinhamos, fracos pelo numero, mas fortes de coração, lançar as nossas baionetas na balança da Providencia, onde a tyrannia tinha tambem lançado as suas.

Tudo isto era bello e generoso; porque então os pequenos gemiam oppressos debaixo dos pés dos grandes, e ao homem justo incumbia fazer resoar na terra a voz da eterna justiça, o grito da liberdade.

Mas hoje que a plebe reina e, como ampla voragem, ameaça tragar a virtude, a liberdade, a justiça e todas as recordações sanctas do passado, para o homem de boa consciencia sê-lo-ha, tambem, o morrer.

Sê-lo-ha o bradar no meio das turbas, e derramar sobre ellas a condemnação, que Deus confiou em todos os seculos aos labios do innocente e virtuoso.

Sê-lo-ha chegar aos tribunos populares, apontar-lhes para o céu, e apresentar a cabeça ao cutello dos lictores.

IX

Povo, hoje és tu quem impera, e absoluto é o teu poder; porque te dizes unica fonte delle.

Toma, pois, em tuas mãos a vara do magistrado, e assenta-te uma vez mais no teu throno, amassado com sangue e pó.

Vem assentar-te, e julga-nos, a nós, que tu maldizes, e aos tribunos, aos instigadores de tumultos, que cobres de amor e de bençãos.

Porque isto diz o Senhor Deus: se a plebe julgar com justiça, a plebe ainda será salva.

Desça o terror da tua vingança sobre o coração do que te houver offendido; volvam-se no pó as frontes onde tu achares estampado o ferrete do crime.

Recorre as acções da nossa vida, recorre as obras passadas das vidas dos teus tribunos, e por preço do perdão de Deus, julga-nos com justiça.

Quando tu jazias na servidão, e os grilhões, encarnando-se-te nos pés e nos pulsos, te roçavam pelos ossos, peleijavamos nós por te salvar; derramavamos o nosso sangue por ti.

Por ti viamos o irmão e o amigo morder o pó dos campos de batalha, e calavamos; sentiamo-nos descahir de fome, e não soltavamos um queixume.

Porque guardavamos os ais para o silencio das trevas. Soldados da patria, ousariamos acaso queixar-nos diante da luz do sol?

E elles, que faziam, emquanto as nossas noites eram veladas debaixo de um céu de ferro e de fogo, emquanto os nossos dias se consumiam entre o sibilar dos pelouros?

Elles? Nos lupanares e tabernas de paizes extranhos, folgavam nos banquetes da embriaguez; reclinavam-se no leito da prostituição.

Elles? Cubriam-nos de insultos, chamavam loucura e vaidade á nossa nobre ousadia, e riam-se do juramento que faziamos de morrer ou dar a liberdade a nossos irmãos.

Elles? Buscavam por todas as vias semeiar a zizania e os odios, damnar a nossa causa sancta, e fazer-nos perecer debaixo das ruinas de uma cidade illustre.

Eis o que elles fizeram em proveito da patria. No meio do foro, diante de teu tribunal terrivel, descubra quem o ousar o peito, e mostre e conte as cicatrizes das feridas que recebeu pela salvação da republica.

Um só delles as mostrará; porque esse foi valente e amigo da virtude.
Anjo de luz, porque te despenhaste no abysmo?

A historia escrevia o teu nome na pagina das bênçãos: tu mesmo o riscaste e o foste escrever na pagina das maldicções………………. …………………………………………………………….. ……………………………………………………………..

X

Porém, debalde invocariamos justiça perante o tribunal popular; porque o povo é abastado de injustiça e ingratidão.

Os que estão cubertos de cicatrizes, os que foram longamente saciados de angustias por salvá-lo seriam condemnados, e os tribunos, os concitadores da anarchia, cujas obras unicas tem sido conduzir a patria ao abysmo da perdição, seriam absolvidos, seriam abençoados.

Embora: a nossa consciencia está tranquilla, e no grande dia é Deus quem a todos nos julgará.

Houve um propheta outrora em Israel, e chamava-se o Filho do Homem.

E este propheta amava os humildes e os pobres, e reprehendia os poderosos.

E condemnava os hypocritas da religião, e por isso era abominado pelos grandes e pelos sacerdotes.

Mas respeitava as leis, e ensinava a obediencia: mandava que se pagasse o tributo das duas drachmas do templo, e o tributo de Cesar.

E affeiava aos populares os seus vicios e abominações; e por isso era tambem malquisto da gentalha.

E, condemnado á morte pelos poderosos, o povo, a quem tinha trazido a luz e a vida eterna, o povo, que elle tanto amava, cubria-o de opprobrios.

E podendo salvá-lo do supplicio, antepunha-lhe um grande criminoso, e clamava aos algozes:—Pregae-o na cruz, e cáia o seu sangue sobre a nossa cabeça e sobre a cabeça de nossos filhos.

E este propheta era o Messias, era o redemptor do genero humano, era o filho de Deus.

Consolem-se, pois, aquelles que sobre os hombros tomaram o odio dos tyrannos por amor do povo, e a quem o povo paga com injurias e pragas.

Como Jesu-Christo, os hypocritas e os oppressores das nações abominam-nos: como a Jesu-Christo, o vulgacho cobre-nos de affrontas, e pede para nós aos seus tribunos a condemnação e o supplicio.

E que nos cumpre fazer para seguirmos em tudo o exemplo do Justo assassinado, do Deus que nos deixou na terra o consolo e a esperança?

Pedir morrendo ao Eterno Pae o perdão de nossos perseguidores e, como o divino Mestre, lançar á conta da ignorancia as culpas de corações corruptos.

Imitando o Salvador na cruz, seja um pensamento de benção o nosso pensamento extremo; porque o derradeiro suspiro do christão deve ser um murmurio de affecto grande para os que o amaram, mas ainda maior para os que o odeiaram e perseguiram.

XI

E ainda uma vez, filhos da perdição, ainda uma vez vos falarei em nome do Senhor nosso Deus.

Que foi o que fizestes assassinando as esperanças da salvação publica, derribando a sancta tradição da patria?

Até no crime fostes apoucados. Porque não se ergue um de vós, perverso, mas sublime, como o archanjo das trevas, e diz:—fui eu o concitador do motim popular, fui eu o primeiro que clamei «quebrem-se as taboas da lei?»

Louvaes a sedição, chamaes-lhe obra illustre, e nenhum de vós acceita a gloria de ser o bem-feitor do seu paiz?

Quando combatiamos pela liberdade gravavamos os proprios nomes em nossas armas, e o inimigo que ousasse vê-las de perto, ahi os lería inteiros.

Não combatiamos nas trevas; e os nossos capitães diziam ao mundo:—Vede:—e mostravam a face diante da luz do sol.

Hypocritas, que enganaes o povo, credes porventura que tambem enganareis o Senhor e que, semelhantes á prostituta que engeita o fructo de seu crime, engeitareis diante delle a obra da vossa iniquidade?

Não! Lá se levantarão os nossos e os vossos filhos, para quem preparaes berço de miseria, vida de amargura e morte de desesperação.

E elles testemunharão contra vós na presença do Altissimo: e haverá ahi choro e ranger de dentes.

XII

Ambiciosos, que desvairaes o povo, o Senhor leu no fundo dos vossos corações e revelou-me o que ahi está escripto!

A cubiça do mando e do ouro é o vosso amor de patria; a vossa ancia de liberdade a sêde de tyrannia.

Merecedores de jazer perpetuamente na escuridade, e ermos de virtude e de sabedoria, não podendo fulgir com luz celestial, tentastes romper as trevas de vossos caminhos com o clarão torvo do inferno.

E a serpente vos emprestou a sua vã sciencia, as suas corruptoras palavras, e alumiados por fulgor de morte, alguns vos creram illustrados pela luz que mana do throno de Deus.

Mas os que foram enganados vos amaldicçoarão no dia em que patenteardes a hediondez das vossas intenções, e o Pae de misericordia lhes perdoará um erro de intelligencia.

Eis o que diz o Senhor:—Vós sois os assassinos da republica, mas debaixo das suas ruinas ficarão tambem esmagadas as vossas frontes, e os vossos membros quebrantados e sumidos.

Tambem vós tereis quem maldizer na hora do passamento: os dias futuros justificarão o Verbo de Deus.

XIII

Os soldados que arrastavam o Justo ao Golgotha, quando o povo de
Jerusalém pedia o sangue innocente, poseram sobre a cabeça do Filho do
Homem a inscripção—Este é Jesus rei dos Judeus.

Porque o povo não sabe commetter um crime, sem, afora o crime, blasphemar e escarnecer da virtude.

Assim os tribunos da plebe, depois de rasgarem o pacto social, disseram por irrisão:—Reuna-se o conselho dos anciãos, dos sabios e dos prudentes, e façam-se leis para o regimento da republica.

Como se não houvesse ahi lei; como se os eleitos do povo não tivessem sido expulsos pela relé e separados uns dos outros.

Então os malfeitores rodeiaram a urna onde d'antes os cidadãos podiam livres lançar o voto da sua consciencia.

E todos os bons se afastaram dessa urna; porque a mão do crime a tinha collocado no templo, e á roda della sómente sussurravam ameaças de morte.

E por isso os nomes que d'alli sairam foram nomes opprobriosos ou desconhecidos, e como extranhos no meio de nós.

Um erro trouxe outro erro, e o punhal passou da praça para o templo, e houve ahi mysterios das trevas, mysterios de perversidade.

E homens imberbes, ignorantes e ignobeis ir-se-hão assentar no conselho dos legisladores, no logar destinado para os velhos, para os sabios e para os homens virtuosos.

Mas a plebe ahi estará também, com seu gesto hediondo, como um espectro de terror, como a imagem do supplicio nos ultimos dias de um criminoso depois da sua condemnação.

Ella ahi estará; e o seu grito será mais alto que o das consciencias, se é que podem consciencias falar no conselho de homens corruptos.

Ella ahi estará; e as leis serão feitas por ella; porque errados vão os que pensam que o povo larga jámais o poder que a imprudencia ou a maldade lhe depositaram nas mãos.

Homens a quem a dissolução social vestiu a toga de senadores, para debaixo da campa levareis nas frontes duplicado o ferrete da infamia e do aviltamento.

Nellas vo-lo escreveu uma eleição fraudulenta, em que votou o punhal do assassinio e o obulo da embriaguez, preço porque a plebe vendeu aos tribunos o exercicio de um direito que não era seu e que ella tinha roubado por noites de sedição.

E nellas vo-lo estampará tambem o grito insultuoso do vulgacho que vos ergueu do pó para sanctificardes a sua rebellião, para serdes cumplices nos seus decretos de morte, e para depois vos quebrar em pedaços, como um vaso fragil quando se torna inutil.

XIV

De fel e de trabalho me cercou o Senhor. Esta é uma das suas visões, que elle me enviou em espirito.

N'um campo extensissimo estava eu, e cerrava-se-me o coração, como traspassado do frio do terror. Era ao cahir das trevas.

Havia por ahi sepulchros, mas sepulchros semelhantes a dorsos de montanhas: havia por ahi cyprestes, mas cyprestes seculares como o universo, e cujos cimos avultavam como a espessura de um bosque primitivo.

O sitio em que eu estava era o cemiterio das nações e dos seculos.

Sobre muitos desses tumulos espantosos já tinha cahido a campa; já o musgo e as sarças lhes dissimulavam as juncturas, e o estellio e o áspide passavam por cima, rangendo como as folhas seccas.

Outros havia lá que ainda estavam abertos, e tinham as lousas erguidas sobre uma das bordas, juncto da qual um anjo derramava lagrymas. Jaziam nestes muitos seculos de nações modernas.

Algumas sepulturas ahi estavam inteiramente descubertas e ainda alvejantes, como collocadas de pouco em meio do campo sancto: nem lousas estavam ao pé dellas.

Mas ao longe ouvia-se como o gemido de eixos que vergavam e de homens que altercavam e que pareciam trabalhar em uma obra de Deus.

E este gemido era semelhante ao do oceano revolto, e o borborinho soava como o clamor de milhões de vozes.

Na frente de cada um dos jazigos estava escripta a historia do povo ou do seculo que lá repousava ou que lá devia cahir.

E algumas destas inscripções eram antigas e meio gastadas, e de roda tinham esculpidos symbolos de gentilidade.

Apenas sobre uma dellas estava gravado o nome de Jehovah; mas fechavam a campa sete sellos, cuja lenda era:—até a consummação dos seculos.

E mais alguns monumentos ahi se erguiam, já cubertos com a lousa final: e em cima delles estava plantada a cruz, e a inscripção acabada.

Juncto destes ajoelhei e derramei lagrymas: eram sepulchros das raças que educara o evangelho: dormiam lá irmãos meus.

E os reinos e as republicas da idade media eram os que nesse logar estavam sepultados: áquelles tinham-nos anniquilado loucuras e tyranias de reis; a estas a licença e a corrupção popular.

XV

Lá estava tambem o monumento da nossa patria.

E nelle repousavam os cadaveres de muitos seculos.

E a historia de cada um destes lia-se na face da pedra, escripta pela mão do archanjo que velava o sepulchro e que forcejava por suster a campa, que já pendia, como para os encubrir á luz.

E esta era a lenda sepulchral:

Deus escolheu para si a nação do extremo occidente, e a benção do
Altissimo desceu sobre o berço della.

E passou glorioso o primeiro seculo da sua existência, rico de combates e victorias: elle herdou ao seguinte a cruz plantada nos coruchéus dos alcorões, e uma raça valente e virtuosa, que defendesse a terra conquistada.

«De incremento e prosperidade foi o segundo seculo; e posto que ahi houvesse dias de turbação, o povo cresceu; porque o Senhor o abençoava.

E na terceira era soou em paiz extranho uma voz que falava de servidão. O povo português lançou mão da espada e da lança, e em vinte combates provou a sua independencia, e que o Deus dos exercitos fora o Deus de seus paes.

E na quarta era chegou a idade viril da republica: a sua estatura assemelhava-se á de um gigante, os seus braços aos de um athleta.

E na quinta ella estendeu a mão para o oriente, e aferrando centenares de povos, metteu-os debaixo dos pés.

Então commetteram-se crimes, a corrupção estendeu-se, e a face do Senhor turbou-se.

Aqui na inscripção seguia apenas um nome de poeta, o depois uma longa beta negra. Esta significava que de infamia e servidão fora a sexta idade da republica.

E a lenda tumular proseguia:

Surgiu um dia o povo, e quebrando os grilhões que tyrannos estranhos lhe haviam lançado, açacalou de novo a sua espada esquecida, e combateu quasi um seculo.

E recobrou a independencia, senão a liberdade.

D'aqui ávante, falava o letreiro de existencias e de largos annos; mas de existencias sem gloria, e de annos semelhantes apenas á decrepitude de homem que foi robusto.

E havia ahi guerras e victorias e leis: mas as victorias coroavam o general e não o soldado, porque o soldado era servo: as leis eram talvez justas, mas desciam do throno dos reis sem a sancção popular, e o povo dobrava o joelho.

E isto era impio. O servo que acceita sê-lo é só meio-christão. Do evangelho deriva a liberdade, como condição impreterivel do homem, responsavel por seus actos perante Deus. A liberdade póde rasgar-se do evangelho; não separar-se delle.

Depois lia-se o nome de um rei; e este nome era grande e honrado, como os dos antigos reis portugueses, e a sua historia estava escripta no monumento da eternidade. Após esta, seguiam-se algumas palavras de esperança.

E d'alli por diante a pedra estava em branco; porque a oitava era da republica ainda não tinha adormecido juncto do umbral do passado.

XVI

E eu meditava em silencio, e o meditar era amargo para o meu coração.

Subito senti um ruido remoto, semelhante ao ruido de bosque sacudido pelo vento e granizo.

E divisei por entre os cyprestes um vulto, que se approximava da clareira onde estava a sepultura, e as suas passadas, posto que apressadas, soavam como se fossem de pés de bronze.

E chegou. Fitando os olhos no vulto, descortinei uma figura humana de desmesurada altura.

A sua cabeça tinha muitas faces e muitos olhos: do tronco saía-lhe uma grande multidão de braços.

E com todas as suas linguas proferia palavras immundas e blasphemas, e maldizia a religião e a justiça.

E vinha salpicado de sangue.

E parou diante do monumento.

Ficou immovel por algum tempo; depois, como excitado por um accesso de raiva infernal, procurava aluir o sepulchro.

Mas a immutabilidade do passado era a immutabilidade delle. Tinha-o posto alli a mão de Deus.

Então o vulto começou a raspar a inscripção, mas as letras cada vez mais se avivavam. Lá do intimo soou um longo gemido.

E o vulto soltou uma praga tremenda, e transpoz a borda do sepulchro; e estava em pé dentro delle.

E começou a afundar-se nas trevas; e estendendo os braços, os braços lhe ficavam hirtos.

E nos olhos, que até alli chammejavam furor, já fluctuavam lagrymas de homem que morre.

E descia, e descia!

E quando a fronte lhe topetava com a borda, a campa escapou das mãos do anjo, que trabalhava por sustê-la, e cahiu dando um som profundo.

E a face do sepulchro, abaixo da inscripção, tingiu-se de negro até o rez da terra.

E as ultimas palavras, palavras de esperança, converteram-se em outras tão horríveis, que a minha lingua não ousa proferi-las.

E a visão desappareceu.

XVII

Reprobo sería aquelle que, vendendo seu pae por preço de opprobrio, o entregasse á servidão de extranhos.

Reprobo, mil vezes réprobo, sería tal homem; porque este crime fôra mil vezes mais negro do que o parricidio.

Quem, por noite tempestuosa, o acolheria debaixo de tecto hospitaleiro?
Quem, vendo-o mirrado de sêde, lhe offereceria um pucaro de agua?

Ninguem: porque o seu hálito inficionaria o ar que respirasse: os seus labios empestariam o vaso por onde bebesse.

No seu leito de morte, que sacerdote ousaria dizer-lhe:—Eu te absolvo em nome do Deus que perdoa? Nenhum: e o que o dissesse mentir-lhe-hia; porque nos thesouros da piedade divina não ha resgate para semelhante divida.

Mas que é este crime, comparado ao daquelle que vende a patria? Esse, não vende o progenitor sómente: vende a familia, os ossos de avós, a fonte do baptismo, a cruz do cemiterio; vende as saudades, os affectos e as esperanças de todos os seus irmãos.

E todavia, nos conciliabulos dos tribunos proclama-se que no anniquilamento está o segredo da nossa futura grandeza. Rebeldes de sete seculos, seremos applaudidos e respeitados no mundo, quando, de joelhos perante os nossos orgulhosos senhores, fizermos penitencia do glorioso delicto de mais de vinte gerações de antepassados!

São homens destes que as turbas insensatas victoreiam!

Cegou Deus a intelligencia do povo, porque o quer perder; porque o afastou de sob as azas da sua Providencia amorosa.

E por isso a visão do sepulchro me foi mandada, e vi cerrar-se a campa da eternidade em cima da derradeira epocha da monarchia de Valdevez, de Aljubarrota, e de Montes-Claros.

XVIII

Povo desvairado, doe-te de ti proprio. Sabes, acaso, a quem os homens das trevas pretendem submetter-te e a teus filhos e netos?

Dir-to-hei, oh povo, para que nos futuros momentos de afflicção não digas ao Eterno:—Senhor, salva-me, porque eu não soube o que fiz!

Odio de sete seculos te separa desses futuros senhores: vinte batalhas, em que os teus cavalleiros venceram os seus, jazem não vingadas nas suas recordações.

Houve tempo em que elles poseram o pé no collo de nossos maiores, e a vida destes foi durante esse periodo tecida de amargura e de infamia.

Então, além do oceano, nos campos de tua gloria, sentia-se um ruido incessante. Eram as tuas fortalezas que desabavam; eram as tuas naus que se affundiam; era o teu poder que expirava.

Nas veigas, o arado ficava esquecido no meio do sulco, e no prado e no monte os novilhos mugiam debalde pelo seu guardador:

Porque os mancebos eram levados a combater em paizes remotos, para sustentar a tyrannia de seus senhores, e, novo genero de ludibrio, tambem oppressos, quinhoavam as maldicções lançadas sobre os oppressores da sua patria.

Á viuva e ao orphão era arrebatado o obolo do tributo, e este ia accumular-se nos cofres dos extranhos e servir, depois, ao luxo e á devassidão.

O soldado hespanhol estava em pé, encostado á lança, juncto ás ameias de nossos castellos, e o escravo português que passava ao sopé dos muros pregava os olhos no chão, e a dor acabrunhava-lhe o espirito.

As cidades foram saqueiadas, os patibulos ergueram-se, os homens de valor e virtude derramaram-se pela face da terra.

Mas os portugueses lembraram-se um dia de que o eram, e levantando os braços para o céu, com os grilhões que lh'os roxeiavam esmagaram os craneos dos oppressores estrangeiros.

E breve os campos da Hespanha talados, as suas aldeias arrasadas, os seus valentes postos á espada, pagaram injurias de sessenta annos.

E na terra adubada com cinzas e sangue se lançaram sementes de malevolencia perpetua entre as duas nações.

Ai de nós, ai da patria, se o leão da Iberia podesse rugir solto pelas nossas montanhas, e vir acoutar-se debaixo de nossos tectos!

E isto é o que pretendem os destruidores da liberdade, os suscitadores da anarchia.

Saúde pois o povo os tribunos e obedeça-lhes, emquanto elles não consumam a sua abominavel obra; emquanto o não entregam, como um rebanho de ovelhas, nas mãos dos seus futuros algozes.

Nós, os que não nascemos para a servidão, ergueremos as campas de nossos paes, e ricos com estes restos queridos, iremos depositá-los debaixo do cypreste do desterro.

Não, o hespanhol orgulhoso não calcará as cinzas dos nossos valentes, embora possua esta terra corrupta e serva; embora venha riscar da face della todos os monumentos dos seculos da nossa gloria.

XIX

Tal é, oh povo, o futuro que para ti guardam os teus tribunos no thesouro de maldade de que são ricos os seus corações.

Tu gemerás captivo e não ousarás queixar-te; e as orações e as lagrymas das tuas noites de tribulação e vigilia não romperão os céus, tornados para ti de bronze.

Eis porque os filhos da perdição suscitaram no teu seio o grito da guerra civil: foi para que a espada da fratricidio devorasse os teus fortes, e se fartasse e embriagasse com o sangue delles.

Para que, inerme e enfraquecido, estendesses os braços ás cadeias e curvasses o joelho ante aquelles de quem receberam o preço da tua liberdade.

Acaso poderão negá-lo?—Não: porque o mysterio da iniquidade foi revelado, e a voz que o patenteiou era bem alta, e resoava desde o Tejo até as alturas dos Pyrenéus.

Crê, agora, plebe illudida, crê que os homens que te vendem a extranhos, melhor te venderiam a um tyranno domestico.

Crê que se homens taes fossem a unica barreira alevantada entre ti e aquelle que nós expulsámos e tu maldisseste em teus hymnos populares, semelhante dique fora facilmente transposto pela torrente das vinganças do despotismo.

Que um pouco de ouro se espalhasse, e as comportas que rebatem o oceano de sua cólera seriam por elles abertas de par em par, para te mergulharem em um pélago de agonias.

Tu os verias até combater por soldar o sceptro de ferro que quebrámos, se nessas almas mesquinhas houvesse valor para escutar o silvo do pelouro, para ver o lampejar da espada erguida.

Ouvi-los-hia protestar que as suas mãos estavam puras do sangue vertido nas luctas da liberdade, nas luctas de um contra dez; que entre si e esse cantinho de Portugal revolvido durante um anno pelas bombas e granadas, varrido pela metralha, fustigado pelo granizo das ballas, visitado longamente pela fome e pela peste, tinham mantido com esmero a moderada distancia que medem as solidões do oceano.

E falariam verdade; e sería porventura o unico dia da sua vida hypocrita em que assim o fizessem.

XX

N'uma visão ajuncta Deus o passado e o futuro; porque para elle não existem nem espaço nem tempo. Visão, pois, do Senhor foi a que se me representou.

Parecia-me ver uma grande cidade: rodeiavam-na antigos muros e baluartes, cruzavam-se ruas estreitas e tortuosas dentro do seu ambito, semelhantes á rede do pescador, e, por entre uma selva de edificios humildes, surgiam, aqui e acolá, torres ponteagudas subtilmente lavradas, e templos alumiados por frestas esguias ornadas de vidros corados, que reflectiam o sol occidental em espectros de luz variadissima.

Grande numero de cavalleiros corriam pelas praças, e iam armados de elmos e saios de malha e grevas de aço, que scintillavam, e nos seus olhos e faces assomavam espíritos valorosos.

E os campos circumstantes estavam cultivados, e a cruz plantada em todos os termos dos caminhos e em todas as encruzilhadas.

E conhecia-se nos rostos dos homens que passavam pela cidade e pelos campos que em seus corações havia virtude e contentamento.

E proxima desta povoação estava outra muito mais aprazivel no primeiro aspecto: as suas ruas eram espaçosas: aformoseiavam-na os jardins e hortos, e surgiam no meio della nobres e opulentos edificios.

Viam-se ainda ahi alguns templos, mas arruinados e solitarios, e como que monumentos da queda de toda a crença.

E os campos que se dilatavam ao redor della estavam áridos e ermos. Nem uma só cruz lá se descobria.

E os homens passavam silenciosos uns por outros. Das almas, turbadas por paixões tempestuosas e por crimes, subiam-lhes ás frontes annuviadas, em ondas de sombras, os escuros pensamentos.

E estas duas cidades eram a imagem dos tempos que foram e dos tempos que hão de ser.

XXI

E na cidade do passado os coruchéus e eirados dos seus apinhados edificios eram para os meus olhos, que divisavam tudo quanto se passava no interior dos aposentos, como o crystal translucidos.

Em uma das quadras de um desses edificios estava um velho, e derredor delle suas filhas, que o cercavam de amor.

E ao canto via-se um arnez, por muitas partes falsado e roto, e um elmo abolado e com as enlaçaduras quebradas. Só ahi faltava uma espada.

E quando eu considerava este velho guerreiro rodeiado dos seus e as alfaias e os adornos desta habitação tranquilla; quando bebia o halito de paz que tudo ahi espirava, um mancebo armado entrou na sala: na cincta trazia mettido um estoque largo e curto, espada do homem valente, cujo punho em cruz lhe assentava sobre o coração.

E dos labios das donzellas partiu um grito: este grito dizia que o mancebo era seu irmão. Abraçando-o, os olhos se lhes arrasavam de lagrymas.

O velho ergueu a cabeça e olhou com aspecto severo para o soldado, que se aproximou de seu pae, como se estivera perante o seu juiz.

Fronteiro d'Africa!—disse o ancião—posso acaso abençoar-te como filho, ou cubriste de infamia o meu nome e a minha espada? Quaes foram teus feitos no serviço da patria, da religião e do rei?

E o moço, calado, desenlaçou a couraça e, afastando as roupas que lhe cubriam o peito, mostrou as cicatrizes de golpes da lança do arabe e do alfange mourisco.

E o velho, alevantando-se tremulo, contava-as, e as lagrymas também lhe banhavam o rosto, e depois apertou o filho entre os braços por largo tempo.

D'ahi a pouco, armas ainda não ferrugentas estavam encostadas ás do ancião no angulo da sala, e afóra ellas, via-se lá uma espada.

E esta familia era feliz; porque havia ahi virtude, honra e amor filial e fraterno.

Mas esta parte da visão passou, como um sonho formoso; como os homens virtuosos dessas epochas, sobre os quaes dorme o silencio dos tempos que já não são.

XXII

E o espirito de Deus collocou-me sobre a moderna cidade.

E aos meus olhos estavam patentes os segredos domesticos e a vida intima da sociedade, e observando-os, o coração me desfallecia á vista de tantas abominações.

Via a corrupção em quasi todas as familias; crimes em grande numero dellas; temor de Deus quasi em nenhuma.

E clamei ao Senhor na minha afflicção, e disse-lhe:—Oh meu Deus, porque abandonaste este povo?

E dos céus me foi respondido:—O povo é que abandonou os caminhos da salvação e se afastou de sob as azas da piedade divina.

O perjurio foi sanctificado pelos que se chamaram eleitos do povo, e este os victoriava quando elles assim quebravam o mais forte vinculo social, e preparavam a quéda da republica.

A religião avíta apresentou-se ás portas do senado, pedindo a esses homens soberbos a deixassem subsistir neste paiz desgraçado, para enxugar lagrymas de desditosos e ser a ultima esperança daquelles que perderam todas as outras.

Porém, como prostituta vil, a religião de nossos paes foi coberta de motejos, e, entre risadas, lançada fóra do sanctuario das leis.

E houve ahi quem dissesse:—Que temos nós com Deus?—E as turbas approvaram o dicto.

E o Dominador dos orbes respondeu:—Nada terei comvosco!

E o universo tremeu a estas palavras, que logo foram escriptas no livro da morte.

Ai daquelles que romperam o pacto do Creador com a creatura: ai daquelles por cuja bôca falou o espirito das trevas. A blasphemia cahirá sobre a cabeça dos blasphemadores; e o sepulchro lhes dirá onde é a patria dos que motejam de Deus!

E esta voz de cima acabrunhou-me o coração; porque não sabia como desculpasse perante a Providencia os peccados do povo. O anáthema estava lançado, e a consciencia me dizia que o céu tinha sido justo: nem ousei implorar outra vez a misericordia divina.

Então olhei para a cidade que me ficava debaixo dos pés, onde sussurrava um ruido de vida, mas ruido semelhante ao de mar procelloso e ameaçador de naufragios.

E só descobri rixas e bandos civis, e assassinios atraiçoados e dissoluções, e o roubo e a embriaguez.

O filho passava por juncto do feretro materno, que homens pagos levavam com escarneos ao campo do esquecimento, e perguntava o nome desse cadaver.

Juncto ao leito de pae moribundo, as filhas entregavam-se á prostituição, e ao velho, morrendo, era ultimo sentimento o do opprobrio.

Longa era esta scena de crimes, e parecia-me que fechava os olhos para não ver tão horrivel espectaculo. Neste momento a visão desvaneceu-se, e achei-me banhado em suor frio e repassado de amargura.

E por impossivel tinha que tão negro futuro houvesse nunca de verificar-se: mas subito ouvi muitas vozes que diziam:—Guerra á religião do Christo!

Então cri na visão que o Senhor me enviara, e apagou-se-me na alma o ultimo clarão de esperança.

THEATRO-MORAL-CENSURA

*1841*

Quando, vencidas difficuldades que pareciam insuperaveis, o theatro parece renascer entre nós na sua parte litteraria; quando, até, se affiguram grandes probabilidades de vermos alevantar um edifício consagrado á arte dramatica, onde este genero de litteratura possa ficar a salvo daquella especie de ergastulo hediondo e triste a que poseram por irrisão a alcunha do Theatro Normal; Gerião, cuja ossada se esphacela debaixo da sua triplice face de taberna, de emunctorio das ruas, e de prostibulo; quando todos os homens de letras e todos os que as amam forcejam para que nesta formosa arte vamos algum dia emparelhar com as outras nações, nenhuma questão que venha a suscitar-se acerca do assumpto será insignificante ou indifferente, porque nella interessam a vida intellectual do paiz, a sua civilisação e o seu bom nome litterario. Mas se essa questão, além de importar á arte dramatica, envolver o interesse da moral publica, considerá-la e dar opinião sobre ella é obrigação daquelles a quem Deus deu intelligencia para a comprehender e razão para a avaliar. Ora, enquanto se forceja para elevar e restaurar litteraria e até materialmente o theatro nacional, vemos o drama decahir, prostituir-se moralmente cada vez mais. Cresce todos os dias a indignação da gente honrada contra os espectaculos que sobem á scena, orgias da arte, se arte se pode chamar a quadros onde ha, não o sublime de paixões mais ou menos perversas, o sublime do horrível, mas o torpe, o asqueroso dos vicios mais vis. Cumpre que a imprensa seja orgam desta indignação; que busque a origem e o remedio do mal. A sua mais alta missão é contribuir para que a sociedade se melhore e civilise, e o theatro pode ser um poderoso instrumento de civilisação.

Mas como desempenhará a imprensa este grave dever? Como se opporá a que o theatro seja uma eschola de corrupção, devendo ser um logar de puro e innocente deleite? Como fará rasgar por uma vez esses cartazes, que, affixados nos logares públicos, só trazem á memoria, pelos titulos dos dramas que annunciam, as taboletas dos alcouces romanos desenterrados em Pompeia? Fulminará os desgraçados histriões, machinas de aleijar as verdadeiras obras d'arte, e de peiorar semsaborias; títeres de carne e osso, incapazes de comprehenderem a sua nobre arte, e de resistirem ao estragado gosto de quem os dirige, e não sei se diga, ao mais estragado da plateia? Não: deixae-os; porque são existencias inertes, impalpaveis para a imprensa, traça do drama, da linguagem, do senso commum; pagos para roer as concepções da intelligencia sobre quatro taboas velhas, ao passo que o caruncho os vai imitando na substancia destas. Deixae-os, pelo amor de Deus! Punirá com o açoute do epigramma os empresarios e directores dos theatros? Ainda menos. Um empresario é um individuo inexplicavel e inclassificavel: é uma abstracção de todas as idéas, de todas as crenças, de todos os affectos: a sua éthica é o livro de razão, o seu evangelho o da caixa; o seu culto o da cruz, mas da cruz dos cruzados novos; o seu destino, além do sepulchro, o limbo. Não acrediteis na possibilidade de os constranger a despregarem os olhos destes tres objectos, que, junctos aos farrapos dos bastidores e ao oleo fétido das lanternas do proscenio, constituem o seu universo. Deixae-os tambem; que para elles, que não querem, nem sabem, nem podem ler, a imprensa é como se não existisse, e as suas reprehensões mais amargas, as suas ironias mais pungentes não os distrahirão um momento da contemplação beatifica das moedas que rende em cada noite um estabelecimento industrial de prostituição para familias honestas. Seja quem for o empresario de qualquer theatro, não se abalance a imprensa ao louco empenho de convertê-lo. Que pessoa tentou jamais educar e instruir um surdo-mudo-cego de nascimento?

Contra quem pois alevantará a imprensa a sua voz solemne? Contra as auctoridades propostas aos espectaculos dramaticos? Não; porque posto que revestidas de um poder arbitrario, acima dellas ha tambem o arbitrio, que lhes inutilisa a energia moral, quando tentam usar della a bem da decencia publica; e porque, impossibilitadas de julgar por si essa alluvião de asquerosidades que diariamente sobem á scena, e além disso obrigadas por lei a ouvir sobre cada uma dellas o parecer de tres censores, que podem julgar bem ou mal, não se lhes ha de lançar em conta uma culpa que não é sua. Nenhum homem de alguma gravidade se quizera submetter a passar dias, mezes e annos inteiros quasi asphyxiado n'uma atmosphera de sandices, pelos mais avultados proveitos do mundo, e muito menos gratuitamente, como servem os inspectores do theatro.

Quem resta por tanto para accusar? Os censores?—Parece-me ouvir a muitos daquelles que acham mais commodo invectivar individuos do que avaliar instituições, dizerem que sim. Eu todavia respondo:—Não; mil vezes não! Brevemente se verão os fundamentos da minha negativa.

Não sendo, porém, culpados nem os histriões, nem os bufarinheiros de rosalgar moral chamados empresarios, nem os inspectores, nem os censores, onde estará a causa de um mal de que todos se queixam, e a que ninguem busca o remedio nos thesouros inexgotaveis da reflexão e do raciocinio?

Essa causa está n'uma instituição anachronica, absurda, insensata, attentatoria da liberdade intellectual do engenho humano, e além disso, perfeitissimamente inutil.

O mal não vem dos homens: vem das cousas: vem de uma parvoice legal: vem da censura prévia.

O remedio só lh'o póde dar um parlamento que queira pensar cinco minutos nesta materia.

Á luz politica, a censura prévia applicada ao theatro é um attentado tão flagrante como applicada á imprensa. Todas as constituições existentes e possiveis consagram a liberdade do pensamento e a livre communicação das idéas. O theatro é, como a imprensa, como as artes plásticas, um meio de communicação. Uma representação scenica é um livro impresso em tantos exemplares quantos são os espectadores, com a unica differença de que estes exemplares se apagam acabada a sua leitura. O principio da liberdade do espirito é tanto ou mais sancto que o da liberdade da terra: não soffre excepções, porque, se as soffresse, desceria da categoria de principio para a classe das regras transitorias da vida civil. Onde quer que appareça a censura, onde quer que se aninhe esta irmã gémea da inquisição, ha uma quebra nos foros da independencia do homem, ha uma insolencia do passado contra a dignidade social da geração presente. Seja para o que for, a censura é um impossivel politico.

Contra o impossivel não ha razões de utilidade. As mais evidentes considerações de conveniencia deveriam cahir diante da immutabilidade dos principios; porque não ha meio termo entre o renegar do progresso humano, e o respeitar sempre e em toda a parte os elementos fundamentaes das sociedades modernas.

Mas existem, porventura, taes conveniencias? A censura do theatro—dizem os defensores dessa cópula sacrilega e bestial de uma instituição cadaver com as instituições vivas e actuaes—é uma necessidade: melhor é prevenir que castigar: o castigo dos que abusarem deste modo de publicação não impedirá que elle tenha já produzido a corrupção: sem censura póde, até, attentar-se contra a segurança do Estado: no anno de tal em Paris, em Bruxellas, na Haya, emfim não sei onde, um drama recheiado de maximas subversivas produziu tal assuada, tal motim, tal revolta.—Eis as excellentes razões, pouco mais ou menos, com que se defende a existencia de um absurdo.

Estes argumentos são a apologia, não da censura do theatro, mas de toda a censura; da censura do drama, como do livro ou do jornal; e ainda mais destes; porque o exemplar da publicação scenica deixa de existir apenas cahe o panno; mas do livro ou do jornal impressos, embora sequestreis os volumes ou os numeros não vendidos, os exemplares derramados do primeiro golpe lá ficam no dominio publico; milhares de individuos os lerão, e com tanto maior avidez quanto mais severa houver sido contra elles a condemnação dos tribunaes.

A desculpa da prevenção nos attentados legaes contra os principios vai mais longe: vai até a inquisição, se quizermos ser logicos. Um homem é conhecido por suas opiniões anti-religiosas: este homem é imprudente, voluntarioso, ousado: nada mais facil, mais provavel que o vermo-lo cahir na culpa de não respeitar a crença do Estado, de a insultar publicamente. Á cautella, creae-me uma inquisiçãosinha illustrada; uma inquisição progressiva, arejada, sem polés, nem potros, mas preventiva e paternal, onde o incredulo, entre sermões, pão negro arraçoado e agua benta, seja inhibido de commetter um crime, previsto na lei politica do mesmo modo que o abuso da liberdade de escrever e de falar. Apostolos da censura prévia, em nome da logica, dae-me a sancta inquisição.

Deixemos, todavia, as duas bagatellas dos principios e da logica. Venhamos ao campo da experiencia. A censura ahi está. Que tem ella feito, não digo já entre nós, que palpamos todos os dias os bellos effeitos da instituição; mas na França, na Belgica, na Hespanha? Onde tem impedido a prevaricação do theatro? Respondei-me.

É um dos argumentos mais triviaes e mais lastimosos que se fazem a favor desta monstruosidade inutilissima o exemplo da França. D'antes, em Portugal, para fazer uma lei, o que se indagava era se ella convinha ao paiz. Ha annos a esta parte entendemos que era mais judicioso ver se convinha aos outros povos. Esta abnegação completa da intelligencia nacional poderá conduzir-nos ao céu pelo caminho da humildade; mas tem-nos arrastado cá na terra a muita vergonha legal.

A verdade é que em França os homens independentes e illustrados clamam tambem contra a censura prévia do theatro, porque é attentatoria e inutil. Quereis a prova da sua inutilidade no vosso paiz modelo?—Ahi a tendes á mão. D'onde nos vieram as Torres de Nesle, as Proesas de Richelieu, e todas as mais prostituições litterarias da nossa pocilga dramatica, chamada theatro normal? Vieram-nos dos repertorios dos theatros de Paris: atravessaram pela censura de Mr. Taylor ou dos seus delegados, como em Portugal passaram sans e escorreitas pela censura do Conservatorio. Lá, como cá, a censura é um phantasma de que todos se riem, e que só serve para descarregar os hombros dos empresarios, auctores, e traductores dramaticos da responsabilidade moral e legal dos seus envenenamentos litterarios.

É realmente uma das pequices mais desmarcadas falarem-nos das commoções populares excitadas n'uma plateia. Quando a revolução vai assentar-se nos bancos do theatro, não busqueis a sua origem nas palavras energicas do poeta: buscae-a na frouxidão ou na maldade do poder. Sob um governo forte e justo, uma revolução no theatro não passaria de comedia representada áquem do proscenio. Mas, além disso, onde achaes os exemplos de semelhantes factos? Justamente em alguns dos paizes onde existe censura prévia. Como o capitão de Luiz de Camões, que não cabia em nada, sancta gente, vós não cahis em que esse argumento é uma punhalada na vossa querida censura?

Donde vem a impotencia da censura? De ser uma cousa anachronica, morta, fétida, inintelligivel. Ao censor que respeita a inviolabilidade dos principios repugna o impedir a representação de um drama; porque não crê que o seu arbitrio possa substituir os jurados; que se possa executar uma lei evidentemente contraria á lei fundamental do estado. Pelo que, porém, toca ao que não crê nessas cousas, o aborrecimento inevitavel que lhe traz o desempenho de um dever tedioso, de que não tira nem honra nem proveito, ou o receio de attrahir odios de homens mais ou menos poderosos, para o que não são triviaes entre nós o valor e a consciencia, faz com que ou deixe de ler, ou leia essas miserias e as approve. Se algum ha que não reflectisse no absurdo da instituição, e que tenha energia bastante para lhes pôr o seu veto censorio, lá ficam os empenhos e os respeitos humanos para fazerem escrever no rotulo do boião immundo de peçonha litteraria: passe e venda-se por dóses de 480 réis.

É este o fado de todas as leis, de todas as instituições contradictorias com as idéas e principios capitaes de qualquer seculo. São cadaveres, em que a força legal opera os phenomenos que produz no corpo morto a pilha voltaica; visagens de terror para os circumstantes, falsos movimentos de vida, mas que todos sabem não passarem de joguetes de physica.

Fazei uma lei para o theatro em harmonia com a lei politica da nação, com os principios eternos da liberdade intellectual, e salvareis a moral e a decencia publica, que a vossa ridicula censura deixa todos os dias impunemente affrontar.

Constitui um jurado especial composto dos membros das corporações litterarias, homens que tem uma intelligencia para pensar, uma reputação de probidade, de litteratura, e de gravidade que perder. Ahi tendes um avultado numero de individuos respeitaveis na Academia das Sciencias, na Eschola Polytechnica, na Eschola Medico-cirurgica, na Eschola do Exercito, no Conservatorio e em todos os mais estabelecimentos litterarios. Confiae-lhes a defensão da moralidade. Os espiritos fracos, mas honestos, ahi julgarão sem temor; porque a sua sentença será collectivamente sabida, mas individualmente secreta. Ahi, quando a occasião do julgamento legal chegar, a causa já estará julgada e sentenciada pela opinião publica, e esta opinião fará tremer os juizes, se porventura entre elles houver algum de mais larga consciencia, ou que seja capaz de esquecer-se, por affeição ou por odio, da sua grave e importante missão.

Fazei que o processo seja rapido. Haja um procurador especial contra os delictos dramaticos em offensa da moral publica. Seja o inspector dos theatros; seja quem vos parecer. Se faltar á sua obrigação, puni-o.

A penalidade da lei seja severa. Por mais severa que a imaginemos, será sempre branda em comparação da que cabe ao ladrão matador; e eu não sei resolver qual besta-fera é mais damninha, se um assassino do corpo, se um envenenador do espirito, que assassina as almas inexpertas das mulheres e da mocidade, surripiando-lhes ainda em cima alguns cruzados novos.

Desenganae-vos de que as formulas constitucionaes são mais efficazes que as molas carunchosas do absolutismo.

Ficae certos de que os jurados não terão de vibrar o golpe da punição mais do que uma vez. O primeiro empresario que, sem remedio, tiver de ir dormir por um anno aos paços de S. Martinho, e de practicar a generosidade de mandar algumas dezenas de moedas para o Asylo de Mendicidade, ou para a Casa dos Expostos, tirará a todos os empresarios, presentes e futuros, o fino gosto de offerecerem no theatro ao publico indignado espectaculos que affrontariam um alcouce.

Que a censura prévia é inutil, os factos tem-no sobejamente provado. Se-lo-ha uma lei constitucional? Não o creio. Se assim acontecesse, a nação portuguesa não fora uma sociedade corrompida; fora uma nação perdida. Nesse caso cumpriria deixar á Providencia de Deus convertê-la ou anniquilá-la.

OS EGRESSOS

*PETIÇÃO HUMILISSIMA A FAVOR DE UMA CLASSE DESGRAÇADA

1842*

Não sei se todos aquelles que passam os largos serões do inverno, não nos theatros, nem nos banquetes profusos, nem nos bailes esplendidos, mas em aposento de poucas varas em quadro, rodeiados de alguns livros e a sós com o seu pensar silencioso; não sei, digo, se a todos esses acontece o mesmo que a mim, quando o som do chuveiro subito, o silvo do vento, e o bramido do mar, quebrando lá ao longe nos rochedos da marinha, lhes vem toldar a serenidade do tão suave calar nocturno e as imagens que transitam lentas no kaleidoscopo da imaginação. Aquelles brados da natureza, que parece gemer angustiada, nem uma só vez deixam de despenhar-me do meu tão formoso universo das idéas no mundo das realidades. A vida actual obriga-me então a tomar por uma das suas estradas dolorosas, e como ao pobre judeu errante, esse bradar da natureza, envolto no fustigar da chuva, no sibillar da ventania e no rumorejar longinquo das ondas, repete-me de continuo:—Ávante! ávante!»

O que nesses caminhos muitas vezes se encontra é o clarão que illumina e o clarão que deslumbra; é a sciencia que se entrevê, separada de nós pela insufficiencia das forças do espirito; são profundezas ennevoadas em que a razão se precipita e vai revoluteando até se incrustar n'um macisso de trevas quasi tangiveis; é o desconsolo de trocar, de noite a noite, o crer pelo duvidar, o duvidar pelo descrer; é aprender laboriosamente pouco, desaprendendo dolorosamente muito; é substituir pela observação e pelo raciocinio opprimidos no finito, no existente, a poesia que nos leva mansamente embalados atravez das suas creações infinitas; é consumir a brevidade da vida em esforços não raro inefficazes para alcançar a verdade, que além da morte, nos espera tranquilla nas amplidões do tempo sem fim.

Foi n'uma destas noites procellosas, emquanto eu buscava a verdade do passado, que a imaginação insoffrida, como que a furto, me transportou das realidades que foram para uma triste realidade que é.

Aproximava-se a meia noite. Tinha acabado de ler uma das bullas do violento Innocencio III contra o não menos violento Sancho I de Portugal, inserida nos registos daquelle digno successor de Gregorio VII, volumosos registos, onde ha muito que aprender ácerca da vida social de nossos maiores e das obscuras luctas da liberdade burguesa, tronco antigo das modernas revoluções populares, que tambem tem as suas arvores de costado, como a aristocracia de berço.

Ao anoitecer o céu estava toldado, a terra humida, e o ar tepido com o bafo vaporoso do sul. Mas era mais tarde que a tempestade, como o ladrão nocturno, queria fazer o seu gyro por entre as habitações dos homens.

Era, pois, já bem tarde. Subitamente a chuva fustigou as vidraças: o primeiro bofar do vento fez ramalhar as arvores meias calvas; e senti-o que se abysmava debaixo das arcarias de pedra.

Por momentos imaginei que uma especie de demonio familiar me batia á porta. Dir-se-hia que viera assentado no dorso eriçado do tufão. Pareceu-me que me affundia diante dos olhos as visões do passado, e que, entre risadas, me chirriava aos ouvidos.—Ávante pelos caminhos do presente; ávante, sonhador de abusões».

Obedeci: o meu espirito cahiu no mundo presente, presente na sua mais rigorosa data, uma noite pessima do mez de novembro do anno do Senhor de 1842.

Lá fóra passava o temporal desfeito. Affigurou-se-me que, levado nas azas delle, corria por agra e longa estrada das nossas provincias do norte. Os robles baixos e reforçados, cuja vida, contrahida ao cêpo pela mão do homem, lhes converte os topos em hydrocephalos monstruosos, assemelhavam-se aos renques de dolmens druídicos da Bretanha. Quando as nuvens, no seu curso precipitado, abriam alguma fenda passageira, por onde a lua golfava instantaneo clarão na terra, via-os fugir para traz de mim negros, hirtos, nus, como cadaveres tisnados de cousa que já vivera. Parei. Ao longe, a fita alvacenta da estrada, coleando por entre os linhares e milharaes, refrangia de quando em quando o luar fugitivo da superficie alagada das baixas, e depois, alçando-se, como o collo do cysne, sobre um outeiro, sumia-se no viso delle, ao curvar-se para o pendor opposto. A dilatada fileira dos robles era o que unicamente se alevantava da terra por um e outro lado. Pareceu-me, porém, que um vulto distante vinha pela estrada do lado do outeiro: era um vulto humano, que ora se encobria na sombra de nuvem negra que passava chuvosa, ora se desenhava na claridade transitoria do céu. Aproximou-se vagarosamente, e chegou ao pé de mim: passando, os seus vestidos roçaram-me por uma das mãos: eram frios e molhados. Seguiu ávante, sem reparar em mim, que não podia despregar os olhos d'elle. Os seus passos eram arrastados e tremulos, vergado o corpo, a fronte nua e calva. E eu olhava para elle fito. A chuva começou de novo a cahir cerrada e escura. O vulto encostou-se então a um dos robles da estrada, como buscando abrigar-se; e na cerração da saraiva que sobreveio, ouvi-lhe um gemido.

Foi um gemido inexplicavel de desalento e agonia.

«É mentira:—dizia comigo, tentando quebrar o feitiço daquelle pesadello de homem acordado.

E quebrei-o: e era mentira. «Girei n'um circulo vicioso—pensava eu—.
Parti do ideal para chegar ao ideal atravez da realidade.»

E de feito, como o leitor facilmente acreditará, estava no meu gabinete, com um tinteiro e algumas folhas de papel diante de mim, tendo do lado esquerdo o segundo tomo das epistolas de Innocencio III, e da direita o terceiro volume da Monarchia Lusitana de Fr. Antonio Brandão; isto é, da esquerda um papa ao mesmo tempo intractavel e astucioso; da direita um frade modesto e sincero; e como personalisados nelles, o mau e o bom anjo, que nos seguem sempre e por toda a parte.

De resto, a chuva cahia, mas era lá fóra. Eu estava enxuto e secco, tanto, quasi, como a alma de um politico: estava bem, agasalhado, commodamente. Só a luz do candieiro é que se tornara escandalosamente mortiça.

Ergui o braço para a espivitar, e a cabeça para ver se a minha obra era boa. Não sei se nestas palavras abuso das reminiscencias biblicas. Os theologos o dirão.

O meu fiat lux foi cumprido. O candieiro despediu um clarão brilhante, que alagou todo o aposento.

Nunca eu tivera practicado este acto de omnipotencia! N'uma porta fronteira, que dava para outro aposento desalumiado, estava o vulto que vira no meu desvaneio de homem acordado; estava ahi, immovel, triste, afflictivo, como a imagem do innocente suppliciado que apparecia todas as noites sobre o bofete do celebre auctor da Ulissea.

E a figura avultava lá: e eu olhava para ella sem pestanejar. Oh que se vós a víreis!

Era um ancião veneravel: tinha a fronte suave e pallida sulcada profundamente dessas rugas horisontaes, que são como as ondas que vem morrer nas margens exteriores do oceano tempestuoso dos pensamentos: o seu olhar era esse olhar manso, agasalhador, indulgente, que em certos velhos nos fascina e subjuga, e que nos faz dizer a nós os moços:—Quem me dera ser teu filho!» Nas faces cavadas aninhava-se-lhe a fome ou a penitencia…

«É a fome!—bradei eu, pondo-me em pé; porque, correndo a vista ao longo da barba branca do ancião, vi que esta lhe cahia sobre o escapulario negro de monge benedictino.

Mas a visão desapparecera de novo: e apenas me pareceu ouvir soar ao longe uma voz cava e debil, como a que sáe de peito consumido por febre pulmonar, que recitava estas palavras do Psalmista:

Judica me Deus, et discerne causam meam, et a gente non sancta et ab homine iniquo et doloso erue me.

O meu circulo vicioso não existia. Cahira das idealidades do passado no mundo real, e ahi, n'uma das realidades mais torpes, mais ignominiosas, mais brutaes, mais estupida e covardemente crueis do seculo presente, que diante de Deus, que o vê e o condemna, ousa gabar-se de grande e generoso e forte; mas em cuja campa o christianismo e a philosophia escreverão algum dia unicamente este letreiro:

—Aqui jaz a ultima era dos martyres.—

E pûs-me a scismar.

Erue me! Erue me!—O Senhor te resgatará, pobre monge; porque não tarda a bater a hora em que durmas tranquillo na terra fria e humida, fria e humida como a estamenha que te cobre. Queiras tu de lá perdoar-nos!

E lançando os olhos em volta, perguntava a mim mesmo:—Porque possuo eu os commodos da vida, o pão do corpo e o pão do espirito, e porque perdeu elle tudo isso? Que bem tenho eu feito ao mundo? Que mal lhe havia elle feito?

Á fé, que a minha consciencia não achou uma unica resposta cabal a tão simplices perguntas.

A lembrança do frade velho atormentou-me toda a noite. A imaginação não m'o pintava já na passagem escura, onde surgira pela segunda vez: via-o na idéa, e ahi, encostado ao roble, procurando conchegar os membros inteiriçados na cogulla encharcada, e resguardar a cabeça calva ao abrigo do robusto madeiro. Errante e mendigo como o rei Lear, o monge não tinha, como elle, para o guiar na solidão e na procella a caridade de um truão.

É que hoje não ha truões. Este seculo é um grave, sério e cogitador assassino.

De quantos anciãos veneraveis será a historia a historia do meu benedictino?

«Mas elles têem pão: os soccorros publicos…» Olé, homens grandes, silencio!

Qual é o juro legal de cem milhões? São cinco.

Quanto dizeis vós que atiraés dos vossos balcões dourados aos hélotas da sciencia e do sacerdocio? Uma quota diminuta dessa quantia.

Cahiu também a arithmetica debaixo das ruinas do passado? Se é assim, dizei-o. Supprimamos a arithmetica. O que não fica supprimido é a palavra—mentira!

Mentistes; porque a somma de que falaes existe apenas em palavras mais torpemente hypocritas que as da serpente tentadora de nossa primeira mãe, as que se escrevem nas paginas de um orçamento.

E a realidade? A realidade é a minha visão; é que o monge, o sacerdote, se converteu em mendigo.

Silencio, outra vez, homens grandes! Tambem eu nasci nesta terra, e o sangue ainda me não esqueceu o caminho das faces.

E se nós, geração do progresso e da philosophia, nos envergonharmos de ser deshonestos, e dissermos:—Dê-se uma fatia de pão ao que morre de fome!» Mais; se dissermos:—Pague-se um juro modico dos valores que nos apropriámos?»

Se o fizermos, em logar de sermos mil vezes uma cousa, cujo nome não escreverei aqui, sê-la-hemos só novecentas e noventa e nove; porque teremos restituido a millesima parte do que loucamente havemos desbaratado.

O homem não vive só de pão. Di-lo um livro que vós nunca lestes, mas que nem por isso tem deixado de ser por dezoito seculos o abrigo, a doutrina, a crença e a consolação de innumeraveis milhões de individuos.

Calculastes jámais quanto é insolente, atroz, diabolico, chegar a um velho, tomar-lhe nas mãos todas as suas affeições, todos os seus habitos de largos annos, todas as suas esperanças mais queridas, e despedaçá-las e calcá-las aos pés, e dizer-lhe depois:—Dar-te-hei um bocado de pão?» Prometter pão aos setenta annos!… Feita a quem esperava morrer abraçado com o passado; que reportava a elle o presente e o futuro; cujo viver intimo era só de memorias, essa promessa materialista e de escarneo bastaria para deshonrar-vos. Que nome, porém, se dará aos que nem essa mesma cumpriram?

Quaes podiam ser as affeições de antigo monge habitador de um d'esses mosteiros solitarios espalhados pelas provincias, e afastados do tumulto das grandes cidades? As suas affeições existiam todas dentro dos muros do claustro: era a cella caiada e limpa; era a enxerga do seu catre; era a banca de pinho em que meditava e lia; era a poltrona tauxiada em que se assentava; era a estamenha do seu habito; eram as suas sandalias de peregrino; era a arvore da cerca, fronteira da janella, onde o rouxinol cantava na madrugada; era o crucifixo do seu oratorio; era a lagea da crasta, debaixo da qual dormiam seus irmãos mais velhos, aquelles que antes delle haviam seguido o caminho do Calvario, e donde pareciam chamá-lo para o seio de Deus, quando os seus passos vagarosos soavam por cima da pedra. Nisso, e em mil cousas como estas estavam postos o seu amor, os seus affectos, as suas saudades, os seus desejos. Era o seu mundo esse; e a vida, serena, calada, melancholica, balouçava-se-lhe suavemente nessas affeições do retiro. Porque lhe despedaçastes tudo isto? Quanto vos renderam a enxerga, as sandalias, a lagea do sepulchro e o crucifixo?

Pobre velho! Pobre velho!

«Mas nós, acudireis, não podiamos calcular essas cousas, nem cremos em affectos moraes. Temos cabeça, mas falta-nos coração, como convém a homens politicos. Os frades eram um elemento da sociedade antiga que cumpria annullar. Fizemo-lo. E então?»

Então roubastes Satanaz.

Pois Satanaz era um demente, que vos désse palacios, carruagens, banquetes, prostituições, embriaguez, poderio, a troco de uma alma inteiramente morta para os affectos; que não comprehendesse nem a dor moral, nem as harmonias suaves que ha entre o universo e o homem? Uma alma sempre em noite, e na qual nunca penetrasse a saudade mysteriosa do céu? De que lhe serviria para comvosco a sua terribilissima herança de uma eternidade de tormentos?

Ah… deixae-me dizer tudo isto; porque a imagem do velho benedictino está gravada na minha alma como um remorso; e sinto lá fóra a chuva que lhe açouta as faces ardentes de febre, o tufão que lhe revolve as cãs venerandas, a torrente que lhe alaga os pés descalços. As lagrymas do sacerdote, só, mendigo, nú, esfaimado, são uma tremenda maldicção contra nós, maldicção que ha de cumprir-se.

A arte moderna parece ter achado os mais poderosos meios de excitar a compaixão e o terror: tudo quanto a arte antiga tinha pathetico e terrivel sentimo-lo hoje frouxo e pallido. Se hoje, porém, houvesse engenho capaz de traduzir em palavras humanas o drama horribilissimo das ultimas agonias da vida monastica em Portugal, aquelle que lesse uma só vez esse livro monstruoso e incrivel poderia depois, ao deitar-se, conciliar o somno com o Leproso de Aosta, com o Fausto, com o Manfredo, ou com os Últimos dias de um sentenceado.

Quando em 1834 se extinguiu o antigo e celebre cenobio de Sancta Cruz de Coimbra, aconteceu ahi um facto que póde, até certo ponto, dar uma idéa das primeiras scenas do negro drama que ha oito annos começou a passar ante os olhos daquelles que ainda não abnegaram de todo a humanidade e o pudor. Expulsos os cenobitas, e inventariados os bens do mosteiro pelos commissarios desta obra brutal, quasi por toda a parte brutalmente executada, ainda uma cella daquelle vasto edificio ficava occupada por um dos seus antigos habitadores. Era um velho de oitenta annos, a quem o tropego, o quasi morto dos membros embargavam o caminhar, e que por isso não podia seguir seus irmãos. Entrando no aposento, encontraram o cenobita deitado no seu catre humilde, em cujo topo pendia o crucifixo que, talvez por sessenta annos, tinha visto a seus pés consumir-se na meditação, nas preces e na penitencia aquella dilatada vida. Estava só o ancião, e o silencio que o rodeiava apenas era interrompido pelos gorgeios de uma avesinha, que pulava contente ao sol n'uma gaiola pendurada da abobada. O velho parecia pensativo, como se adivinhasse que era chegada para elle a hora do martyrio.

As passadas dos que entravam moveram-no a volver os olhos: correu-os por aquelles rostos desacostumados: depois tornou-os a abaixar. Que lhe importavam os homens do seculo? Elle não os conhecia.

Disseram-lhe então que era necessario sair d'alli.

«Porque?—perguntou o cenobita.

«Porque os frades acabaram:—replicou o mais eloquente e discreto dos verdugos, como se exprimisse a idéa mais simples e trivial deste mundo.

«Porque os frades…: repetiu em voz baixa o velho, sem concluir. Os labios não podiam levantar de cima do coração o resto daquella phrase monstruosa: ella lh'o havia esmagado.

Um sorriso estupido passou pelas faces estupidas de alguns dos circumstantes. No gesto espantado do cenobita liam elles a grandeza do esforço com que associavam o proprio nome á obra prima do seculo.

E com razão. O triturar assim um coração de oitenta annos era feito que excedia em heroicidade todos os que haviam practicado dous cavalleiros portugueses, que, lá embaixo na igreja, continuavam a dormir nos seus leitos de pedra um somno de muitos seculos, e que se chamavam Affonso Henriques e Sancho Adefonsíades.

Os olhos do ancião ficaram enxutos. Só accrescentou:—Mas para onde hei de eu ir?»

«Para casa dos vossos parentes:—acudiu o philosopho.

O cenobita correu a mão pela fronte calva, e respondeu:—Já não tenho parentes na terra: todos me esperam no céu».

«Então ireis para a de algum amigo.»

«O unico amigo meu que ainda vive é aquelle!»

E apontava para a avesinha.

«O frade irá pois morar na gaiola do pintasilgo:—rosnou por entre os dentes um dos algozes, que tinha fama de gracioso. Não quiz, porém, communicar aos outros tal idéa. Tudo estouraria de riso.

Alguem, que estudava ahi perto esta scena de progresso moral, não pôde, todavia, continuar os seus graves e terriveis estudos. Precisava de ar, de luz, de ver o céu. Atravessou ligeiro o longo dormitorio, e desceu a quatro e quatro os degraus das extensas escadarias. As lagrymas rebentavam-lhe como punhos.

Á portaria de Santa Cruz as primeiras palavras que ouviu foram, que a municipalidade acabava de fazer um calvario no fundo de uma petição, escripta em vasconço por certo doutor affamado, na qual pedia ao governo lhe atirasse aquelle osso do mosteiro de sete seculos, para o roer até os fundamentos, e construir no sitio d'elle, não me lembra ao certo se um espogeiro, se uma sentina.

Era o estudo do progresso artistico após o estudo do progresso moral.

Quantos destes factos dolorosos se passaram naquella epoclha por todos os ângulos de Portugal! Poderia contar-vos mil, e cada um delles fora uma nova scena de agonia. Os martyres primitivos morriam nos eculeos, nas garras das feras, nos leitos de fogo; não eram, porém, condemnados a assentar-se em cima das ruínas de todos os seus affectos, clamando ao Senhor durante annos: Erue me! Erue me!

Fizestes uma cousa absurda e impossível: deixastes na terra cadaveres vivos, e assassinastes os espiritos.

Ao menos que esses cadaveres não sintam traspassá-los o vento que sibilla nas sarças, a chuva que alaga as campinas, o frio que entorpece as plantas e os membros dos animaes.

Pão para a velhice desgraçada! Pão para metade dos nossos sabios, dos nossos homens virtuosos, do nosso sacerdocio! Pão para os que foram victimas das crenças, minhas, vossas, do seculo, e que morrem de fome e de frio!

Cumpri aos menos a vossa brutal promessa. Podem n'essas almas ser profundas as trevas, e todavia respeitardes as regras mais triviaes de uma probidade vulgar.

Senão, que os pobres monges inclinem resignados a fronte na cruz do seu martyrio, e alevantem uma oração fervorosa ao Senhor para que perdoe aos algozes, que nella os pregaram. É este o exemplo que na terra lhes deixou o Nazareno.

Mas que se lembrem os poderosos do mundo de que a oração de Jesus na hora suprema da agonia foi desattendida do Eterno. E comtudo, Jesus era o seu Christo.

Que olhem para essa nação que fluctua ha dezoito seculos no pégo da sua infamia, maldicta de Deus, e apupada pelo genero-humano, sem nunca poder submergir-se nos abysmos do passado e do esquecimento.

Que se lembrem do proprio nome, do nome de seus filhos, de que ha justiça no céu, e na terra a posteridade.

Se nos seus corações restam vestigios de crenças humanas, que meditem uma hora, um minuto, um instante nisso tudo. Das profundezas de tal meditar surgirá uma idéa, que lhes fará manar da fronte o suor frio da morte; porque será uma idéa tenebrosa e terribilissima.

*DA INSTITUIÇÃO

DAS
CAIXAS ECONOMICAS

1844*

I

A origem das caixas economicas, embora imperfeitamente organisadas, como todas as instituições nos seus começos, remonta apenas aos fins do seculo passado, e a Allemanha e a Suissa foram os primeiros paizes que as viram nascer. Hamburgo possuia uma em 1787, e a de Berna, instituida só para os creados de servir, appareceu em 1789. Seguiram-se poucos annos depois a do ducado de Oldemburgo e a de Genebra. Todas as demais, nestes e n'outros paizes, foram fundadas posteriormente, e pertencem ao presente seculo. Em Inglaterra, dizem alguns que a idéa das caixas economicas occorrera primeiramente ao celebre Wilberforce; mas os vestigios dellas que ahi se apontam anteriores a 1810 são de natureza duvidosa ou apenas tentativas obscuras. Data daquella epocha o banco de poupanças (saving's bank) de Ruthwel, fundado por Duncan, e que foi o primeiro que se constituiu naquelle paiz com estatutos publicos e regulares. Os seus prosperos resultados foram poderoso incentivo para a diffusão das caixas economicas. Dentro de sete annos contavam-se no Reino-unido perto de oitenta estabelecimentes analogos, e em 1833 quasi quinhentos, onde 470:000 individuos, pouco mais ou menos, tinham depositado a enorme somma de quasi 16 milhões de libras esterlinas, ou acima de 160 milhões de cruzados, subindo nos quatro annos immediatos o numero dos depositarios a 636:000 e o valor dos depositos a 20 milhões de libras ou mais de 200 milhões de cruzados. Ao passo que estes beneficos institutos cresciam e se multiplicavam na Gran-Bretanha, generalisavam-se e prosperavam tambem no meio das nações continentaes. Em 1838 o numero das caixas economicas subia na Allemanha a 257, e na Suissa a 100. A França, onde só foram introduzidas em 1818, conta actualmente (1844) perto de 300, e na Italia quasi não ha cidade que não possua estabelecimentos desta especie. Á porfia, os governos e os povos tem concorrido para arraigar uma instituição, cuja idéa fundamental é, talvez mais que nenhuma, civilisadora e moral. Como todas as cousas verdadeiramente grandes e uteis, as caixas economicas não tem encontrado uma unica parcialidade politica, uma unica eschola que ouse condemná-las, uma só crença religiosa que as repudie. As monarchias absolutas, os governos parlamentares, as republicas acceitam-nas, promovem-nas. Ao passo que o ministro protestante as aconselha como poderoso instrumento de morigeração e de ventura para o povo, o papa sanctifica esta formosa instituição, abençoando-a e propagando-a nos estados da igreja. Progresso verdadeiro, nascido no meio da terrivel lucta de idéas, de paixões e de interesses em que ha meio seculo se debate a Europa, as caixas economicas não tem custado á humanidade nem lagrymas, nem sangue. Evidentemente uteis por sua natureza; provadas taes pelos principios em que se estribam e pelos seus esplendidos resultados; simples no seu mechanismo, por toda a parte aquelles a quem os seus beneficios são especialmente destinados, os homens do povo, tem-nas comprehendido e abraçado. Simplicidade, clareza, utilidade reconhecida são as principaes condições de todo e qualquer pensamento social que tenda a popularisar-se. As caixas economicas ostentam no mais subido grau estes caracteres de todas as instituições que devem vir a encarnar-se na sociedade e a viver a larga e robusta vida das nações, a vida dos muitos seculos.

Este consenso unanime, não de paizes ignorantes, mas dos que estão na dianteira da civilisação, e ahi, não de uma classe de individuos, mas de homens de todas as jerarchias; tal consenso, dizemos, é o julgamento mais completo, o testemunho mais irrefragavel da utilidade nunca desmentida das caixas economicas. Onde quer que ellas appareceram, a moralidade das classes inferiores e pobres melhorou em breve, e a miseria, perspectiva permanente que o jornaleiro e o assalariado tem diante dos olhos para o ultimo quartel da existencia, deixou de ser para elles uma fatalidade ineluctavel. A sobriedade; a poupança, as virtudes, em summa, de homem do povo deixaram de ser van precaução contra o seu negro porvir de mendicante velhice.

A familia, sobretudo, essa imagem da sociedade e sua origem, que para o obreiro, ás vezes escaçamente retribuido, é, não raro, flagello e maldicção, póde deixar de ser desgraça, ao menos para aquelle a quem ou viva crença religiosa, ou a natural bondade da indole induzem a preferir á satisfação de vicios ignobeis o proprio bem estar futuro e o bem estar de seus filhos.

Que é, pois, a caixa economica, essa arvore que produz taes fructos de benção? É a cousa mais conhecida e trivial. É o mealheiro; é esse velho alvitre de poupados que desde pequeninos todos nós temos visto usar aos pouco opulentos, e que nossos paes e avós já conheceram; é a astucia do pobre para fugir a superfluidades tentadoras (é longa a lista das superfluidades do pobre: encerra quasi todo o necessario do rico) e á custa dellas achar em si proprio soccorro nos dias de inactividade forçada, da carestia ou da enfermidade. É o mealheiro, mas o mealheiro tornado productivo, fecundado pela intelligencia e pelo principio de associação: é uma grandiosa, e por isso singela, invenção do senso commum, que durante muitas eras ficou, por assim dizer, no estado de sementinha perdida, até que a luz do progresso e da civilisação a fez rebentar, crescer, bracejar, florir e gerar fructos preciosos, que della colhem em abundancia as sociedades modernas.

A este baptismo de regeneração, que, bem como ao do evangelho, são principalmente chamados os pequenos e humildes, só tarde nós concorremos. Não que ignorassemos a sua existencia, mas por essa especie de destino mau que nos arrasta após novidades de pouca monta ou contrarias á razão, ao passo que desprezamos o que nas instituições estranhas ha conforme com os nossos costumes ou accommodado ás nossas precisões reaes. Debalde um dos primeiros economistas portugueses[2] propôs ha annos na camara dos deputados a creação das caixas economicas, offerecendo a lei que as devia regular, e mostrando as suas vantagens n'um largo relatorio, onde á vasta sciencia se ajuncta a eloquencia que vem da convicção profunda. Entretidos com theorias, ou com interesses de partidos ou de pessoas, os homens politicos lançaram no esquecimento as boas e sinceras diligencias do deputado que desempenhava uma das mais graves obrigações do seu mandato. Até hoje nada fizeram a semelhante respeito aquelles a quem mais que a ninguem isso incumbia; e se a existencia da primeira caixa economica portuguesa se realisou, deve-se o facto a uma associação particular[3].

É sabido que, por via de regra, as caixas economicas são uma especie de deposito, onde qualquer individuo póde ir ajunctando lentamente e em quantias pequenas ou grandes as sobras da sua receita, salvas das despesas necessarias á vida;—que, em vez de ficarem inertes as sommas alli depositadas, começam logo a produzir juro, o qual, passado um anno, se converte em capital e se accumula ao capital primitivo para com elle produzir novos juros;—que esta accumulação, bem como a formação do capital primitivo, é perfeitamente indeterminada e sem accepção nem excepção de tempos e de quantias, uma vez que não sejam estas inferiores ao diminuto minimo de cem réis;—que o depositante póde quando lhe aprouver levantar o juro ou o principal no todo ou em parte, ou transmitti-lo por testamento ou por successão a seus herdeiros ou legatarios;—que, finalmente, o homem laborioso e poupado tem alli as suas economias seguras pelas garantias positivas que lhe presta uma associação poderosa e respeitavel, em vez de as conservar improductivas e arriscadas no mealheiro domestico, ao qual, suppondo-lhe a indole previdente e poupada que tantas vezes falta ao operario e, em geral, a todos os que vivem de pequenos lucros eventuaes, teria necessariamente de recorrer.

«Com razão se tem apontado, diz De Gerando, a utilidade moral que esta instituição produz, favorecendo as inclinações para o arranjo e economia. Ella é propicia ás virtudes que se ligam com essas inclinações, ou que d'ahi nascem. Excita ao trabalho; habitua o homem laborioso a cogitar; ajuda a desenvolver os affectos domesticos; concorre para multiplicar tanto os estabelecimentos industriaes como as familias, proporcionando meios de formar e conservar o cabedal necessario para abrir uma officina ou ajunctar um dote para casamento; ensina ao pouco abastado como em si proprio póde achar recursos e como se póde remir na miseria, na doença e na velhice. As caixas economicas, ao passo que diminuem o numero dos indigentes, concorrem tambem para nobilitar o caracter do homem pobre e para lhe dar aquella honrada altivez que nasce da maior independencia. Aos que vivem na estreiteza faz-lhes saber quanto é grato o sentimento da propriedade, estabelecendo-lhes uma que é real e que, apesar de modica, fructifica e se perpetua. Além disso, são proveitosas em subido grau á sociedade, porque são conjunctamente symptoma e instrumento da quietação publica.»

Veio o successo justificar as previsões do illustre moralista. Tem-se observado em França e em em Inglaterra, que não ha individuo que tenha feito depositos nas caixas economicas que fosse accusado nunca perante os tribunaes, ao passo que as listas de criminosos feitas em diversas epochas provam que as tres quartas partes dos individuos sentenceados eram pessoas inclinadas ao jogo, ás loterias, ou a bebidas espirituosas.

Os factos citados pelo virtuoso De Gerando são, de feito, as consequencias forçosas da idéa fundamental das caixas economicas. Das classes populares saem, não só absolutamente, mas tambem relativamente, a maior parte dos criminosos. Tem-se attribuido isto á falta de educação nessas classes: sob certo aspecto e até certo ponto a causa é verdadeira; não é, porém, a unica, nem a principal. Se indagamos quaes foram os primeiros passos dos mais celebres malvados, achamos que partiram dos simples roubos até chegarem á maxima ferocidade no crime. Poucos entre os assassinos famosos escreveram logo com sangue as paginas maldictas da historia da sua existência. Na estatistica da criminalidade popular predomina o roubo: é cousa trivialmente sabida, como o é que a miseria das classes laboriosas produz principalmente esse facto. Mas o que a sociedade parece ignorar ou esquecer é que ella é a culpada de que a pobreza do humilde se converta facilmente em miseria; miseria extrema, desesperada, terrivel; miseria que impelle quasi forçadamente pela estrada da immoralidade o homem do povo, para quem os legisladores ha muito inventaram as masmorras, os desterros, os supplicios, em vez de alevantarem barreiras moraes que lhe obstem a precipitar-se no abysmo.

Para o individuo sem propriedade, para o obreiro, o artifice, o creado de servir; para aquelle, emfim, que só tem por capital os proprios braços, e cuja renda é apenas um salario contingente, a imprevidencia e o habito de procurar cada dia os meios de viver esse dia nascem naturalmente da sua situação precaria. Nada espera no futuro, e por isso nada teme delle: probabilidades, contingencias, não as calcula nem previne. Assim, vemo-lo acceitar com facilidade os encargos de pae de familia. Satisfez o appetite momentaneo; que importa o futuro áquelle para quem isso não existe?

Depois vem os filhos, vem a doença, vem a falta de trabalho: as affeições domesticas enraizaram-se no coração do desgraçado. A natureza, a religião, os costumes, tudo lhe diz que esses entes que gerou, que essa mulher a quem se prendeu devem achar nelle o seu abrigo, a sua providencia. Ao passo que a má organisação da sociedade o inhabilita absolutamente para em certos casos poder supprir os seus, a mesma sociedade lhe diz, e diz bem, que nunca os deve abandonar. Desta ordem de cousas, falsa, violenta, contradictoria, resulta que as mais leves tendencias para o crime se excitam e dilatam até chegarem a produzir tristes fructos, cujo desenvolvimento a sociedade crê impedir com as algemas, carceres, grilhetas, desterros e patibulos, emquanto ella propria, com o seu desprezo pelas classes pobres, com a falta absoluta de instituições verdadeiramente moralisadoras e beneficas, alimenta a arvore mortifera que produz as acções criminosas.

II

As caixas economicas são o primeiro e agigantado passo para a solução do problema que as leis ainda não tentaram resolver: as caixas economicas são o contraste, a negação do patibulo. Matam a perversão popular nas suas causas, em vez de a punir nos seus effeitos. Criam o futuro para milhares de individuos que nunca imaginaram tê-lo, creando-lhes o goso da propriedade, e nesta um recurso para a hora da afflicção e escaceza, tão proxima, entre as almas vulgares, da hora do crime. O facto de não apparecer o nome de um unico depositante das caixas economicas nas listas dos sentenceados em França e em Inglaterra é a consequencia natural dos principios em que esta instituição se estriba.

A sua influencia moral vai ainda mais longe. Os vicios são, depois da miseria, a origem de frequentes attentados. O jogo e a embriaguez estão por toda a parte mais ou menos nos habitos do povo: a embriaguez, sobretudo, é para o maior numero de jornaleiros como refrigerio, como prazer licito nos dias de repouso. Quem, todavia, ignora que estes dous vicios são quasi sempre a causa de rixas entre os operarios, de desordens domesticas, e de se aggravar cada vez mais a miseria das classes laboriosas? As caixas economicas guerreiam, geralmente com vantagem, a propensão para as bebidas fermentadas e para o jogo. Inimigas da penalidade feroz e sanguinaria que ainda governa a Europa, não o são menos da taberna, que muitas vezes é a porta fatal por onde o homem de trabalho enceta o caminho que tantas vezes o conduz ás galés, ao desterro e, até, á morte.

Mas, dir-se-ha, como podem as caixas economicas desarreigar os vicios inveterados do povo? Como correrá este a depositar nos escriptorios das caixas a exigua quantia que ia applicar á embriaguez e ao jogo? A esta pergunta responde a experiencia dos paizes onde esta especie de depositos estão instituidos e vulgarisados ha certo numero de annos. A principio a concorrencia era diminuta e lenta; mas cresceu gradualmente, e vai tomando hoje um incremento que passa além de todas as previsões dos amigos da humanidade.

Entre nós mesmos ha um triste exemplo de como o povo, quando descortina ainda a mais duvidosa perspectiva de melhorar a sua condição, dá de barato o satisfazer os outros appetites para correr após essa incerta esperança. São as loterias o exemplo: é exemplo essa deploravel invenção de especular com a cubiça e com o desejo ardente que as classes menos abastadas tem de conquistarem, seja como for, fortuna independente.

É de ver a ancia, diriamos quasi o delirio, com que o vulgo concorre a lançar no sorvedouro das loterias quantos reaes lhe sobram do que lhe cumpre gastar nas mais estrictas precisões da vida. Muitos ha que até cortam pelo necessario a si e á família para o irem dar a devorar á loteria, a essa fatal banca de jogo em que se joga á luz do dia, no meio da praça publica, embora haja a certeza de que a grandissima maioria dos que apontam hão de forçosamente perder; circumstancia que caracterisa esta instituição publica de modo, que, se fosse uma especulação particular, os tribunaes puniriam severamente o especulador. Mas o facto demonstra que, apenas clareia algum tanto o negro horisonte do porvir; apenas lá reluz uma esperança tenue, improvavel até, a de um premio avultado, o povo corre para essa esperança; porque antevê as dolorosas consequencias da sua precaria situação e busca esquivar-se a ellas.

É para tornar proficua e moral esta previsão que se instituiram as caixas economicas. Fazendo convergir para si as sobras escaças dos pouco abastados, as quaes aliás se desbaratariam provavelmente em vergonhosos deleites, ou no que vale quasi o mesmo, na loteria, ellas não apresentam esses engodos fementidos, essas promessas mentirosas com que se desperta a cubiça popular; não promettem mil por dez com a condição de, em cem casos, perderem-se noventa e nove vezes os dez e não se obterem os mil. Não! As caixas economicas offerecem unicamente um juro modico, mas constante, e alèm disso a certeza de rehaver o depositante o seu capital, augmentado com o juro, no momento em que delle careça: offerecem uma cousa simples, clara, possivel: não promettem milagres, nem sequer maravilhas; porque o maravilhoso muitas vezes, e o milagroso sempre, nas cousas humanas, são a caracteristica do charlatanismo.

Como os descobridores de thesouros encantados, como os viciosos de loterias, como os alchimistas, os que desenvolveram e applicaram o pensamento desta instituição calcularam tambem com a insaciabilidade da cubiça humana; com a cubiça que póde estar dormente ou subjugada por outros affectos, mas que existe em todos os corações. O primeiro sentimento que deve levar o obreiro, o familiar, o caixeiro, o artifice a ir entregar na caixa economica alguns tostões que forrou do producto do seu trabalho será a idéa de que virão de futuro as occasiões da enfermidade, da falta de occupação ou de outro qualquer contratempo, e a reflexão de que, reservando os sobejos de hoje para as faltas de amanhã é, sem questão, mais judicioso accumulá-los no mealheiro seguro e publico, onde não corre uma hora, um minuto, em que a somma poupada não produza seu lucro, e em que este lucro não se esteja transformando em capital productivo, do que mettê-los no mealheiro particular, que póde ser roubado, e onde, no momento da precisão, nem mais um ceitil se achará daquillo que ahi se metteu. É este o sentimento que, no povo, suscita desde logo a caixa economica, e conforme a experiencia de todos os paizes, basta elle para angariar extraordinario numero de depositantes. Ha, porém, um perigo: quando algum destes tiver accumulado certa quantia que repute sufficiente para occorrer a qualquer apuro inesperado, os costumes viciosos e desordenados que o temor do futuro e a esperança de remedio domaram, hão de provavelmente melhorar-se nessa lucta entre o bem e o mal, e o homem de trabalho voltará aos habitos de desleixo e dissipação que lhe absorviam as suas sobras, e que lh'as tornarão a absorver de novo, e quem sabe se, até, as proprias economias que fizera. Obviamente o perigo é real e grandissimo: ha, todavia, no coração humano tambem a avareza; ha essa paixão, que, ao contrario das outras, augmenta com a posse, radica-se com a idade, arde violenta ainda na penumbra fria do sepulchro. Na instituição das caixas economicas, contou-se com ella. Invenção que toca as raias do sublime é o aproveitar uma paixão má e ignobil para fazer o bem; tornar instrumento da moral e da civilisação a mais indomavel, a pessima entre as nossas propensões. Perigosa, destructiva, anti-social no rico, ella será útil ao pobre, que, sem deshonra, a póde alimentar onde quer que existirem as caixas economicas. E é o que deve succeder e succede. O creado, o jornaleiro, o artifice que insensivelmente se achou transformado em pequeno capitalista e que vê, com o decurso do tempo, engrossar os tostões em cruzados, os cruzados em moedas, começa a amar o seu peculio e a fazer sacrificios para o augmentar: esta idéa entranha-se no seu espirito, e não tarda a vir o exame severo das superfluidades e o córte em todas ellas. E fazem-no desafogadamente, porque sabem que no dia ou no instante em que o excesso da poupança os conduza a algum apuro, é-lhes licito ir levantar no todo ou em parte o juro ou o capital que possuem: e se tal aperto se não der, tem a certeza de que, quanto mais depressa ajunctarem um peculio de certo vulto, mais depressa realisarão o sonho constante da maioria dos individuos collocados na precaria situação de assalariados, a existencia independente. Um abrirá a loja de retalho, outro a officina de pequena industria: este irá plantar a vinha no outeiro escalvado; aquelle arrotear o chão baldio na planicie. Cada qual seguirá a senda que a sua inclinação lhe indicar, mas todos pensarão só n'uma cousa, a independencia; a independencia que nasce da propriedade, e que é o mais fertil elemento da moral, da paz e da prosperidade publica.

As considerações que temos feito são geraes; applícam-se a todos os paizes, porque assentam sobre a indole dos affectos humanos, e sobre circumstancias mais ou menos communs nas sociedades modernas. Se, porém, ha nação cujo estado social, cujas tendencias entre as classes inferiores assegurem ás caixas economicas, mais que nenhuma outra, uma acção poderosa em melhorar a condição dessas mesmas classes, essa nação é a nossa.

Em Inglaterra e em França as caixas economicas, apesar das suas grandissimas e innegaveis vantagens, tem apresentado alguns inconvenientes: tal é o de servirem para especulações de gente rica, que, na falta de applicações para os seus cabedaes, alli os vão depositar com os juros compostos que delles devem auferir, sem correrem riscos e sem se onerarem com as despesas de administração. Procurou-se em muitas partes remover este inconveniente, estabelecendo maximos para as entradas e para o total dos depositos de cada individuo; mas esta providencia nem é geral, nem impede que a frequencia das entradas supra a modicidade dellas, e que repartindo uma quantia avultada por diversos membros da propria familia, e fazendo todos estes ao mesmo tempo pequenos depositos em diversas caixas, o abastado venha a abusar de uma instituição cujo fim não é, de certo, locupletá-lo.

Entre nós não existe e difficilmente existirá semelhante perigo. Portugal é um dos paizes da Europa, onde, graças á nossa antiga organisação social e á natureza e condições das nossas industrias, as fortunas são por via de regra mediocres, a propriedade territorial mui dividida nas provincias mais populosas, e por consequencia os capitaes raros e os grandes capitaes rarissimos. Fallecem elles ás applicações, não as applicações a elles. Se a essa limitada força de capitaes que possuimos faltasse o minotauro que os devora quasi todos, a agiotagem, quasi sempre infecunda, com o governo e com os particulares, ainda restavam as necessidades das industrias fabril e agricola, ás quaes por muitos annos não bastarão os que existem, sem que receiemos sirvam para perverter uma instituição quasi exclusivamente destinada ás classes laboriosas e menos abastadas.

Tem-se ponderado que a acção benefica das caixas economicas é impotente contra a miseria do maximo numero de obreiros, isto é, contra a miseria de quasi todos os que pertencem á industria fabril. Nos paizes onde as grandes fabricas são a principal fórma, o mais commum systema da industria, essa observação é infelizmente verdadeira. O aperfeiçoamento das machinas, a concorrencia dos productos nos mercados, a desproporção entre o fabrico e o consumo tem feito descer os salarios a ponto que toda e qualquer economia é impossivel para o operario, que ganha exactamente só o preciso para não morrer de fome. Depois, nos grandes focos de industria fabril, principalmente na Gran-Bretanha, a depravação dos costumes é tão profunda, que, ainda quando a economia não fora materialmente impossível, sê-lo-hia moralmente. Ahi, portanto, as caixas economicas, são, sem duvida, insufficientes para libertar o povo da miseria e da corrupção.

III

Quando a organisação de um paiz é viciosa e contrafeita; quando e onde a propriedade está mal e, digamos até, monstruosamente dividida: onde o capital anda em guerra viva com o trabalho; onde a condição do obreiro é relativamente peior que a do servo da idade media, a caixa economica de certo não póde remediar os effeitos desta situação absurda. Os districtos ruraes da Inglaterra, nomeiadamente os da Irlanda, são victimas de uma constituição da propriedade territorial em que ainda está viva a conquista dos normandos, e nas cidades manufactoras o excesso dos aperfeiçoamentos mechanicos tem gerado o excesso de miseria dos proletarios. Para estes, que pelas fluctuações do commercio externo, tem repetidas vezes largas ferias de trabalho, e se vêem forçados a ir receber a esmola dos soccorros parochiaes; para estes, a quem frequentemente faltam os objectos de primeira necessidade, a caixa economica é como se não existisse. Em tal situação recommendar ao obreiro a economia e a previsão fora cruel escarneo.

Mas que ha entre nós que tenha semelhança com tal estado de cousas? As nossas fabricas são poucas e acham-se ainda longe dos grandes aperfeiçoamentos. Por outra parte, não havendo superabundancia de braços, os salarios são razoaveis. N'uma nação essencialmente agricola a industria manufactora difficilmente preponderará sobre a agricultura. Do modo como a propriedade está constituida, sendo avultadissimo o numero dos proprietarios ruraes, e predominando a pequena cultura pela grande divisão do solo, essa preponderancia é e será por muito tempo impossivel. A supremacia industrial dos ingleses devem-na estes, talvez quasi exclusivamente, a que na Gran-Bretanha a terra, por assim dizer, foge debaixo dos pés ao homem de trabalho. Paiz classico dos latifundios, os possuidores de vastos predios, ou os seus opulentos rendeiros obtem facilmente simplificar as operações da cultura com engenhosos e potentes machinismos, dispensando assim um grandissimo numero de braços, que vão augmentar a offerta dos que a industria fabril utilisa. Essa, forcejando igualmente para os substituir pelas machinas, ao que a obrigam as luctas interminaveis da concorrencia, acceita-os, acceita-os sempre, mas com a condição inevitavel do abaixamento indefinido do salario. Em Inglaterra a agricultura, adiantadissima em extensão, em intensidade, em instrumentos, e em copia de capital movel, está restricta a operar dentro dos limites do solo cultivado. O principal instrumento de producção, a terra aravel, não póde multiplicar-se. Quando a machina ou um novo systema agricola expulsa o operario rural, expulsa-o para dentro das barreiras da industria fabril. Para esta, ao contrario, o espaço onde labora é um dos menos importantes elementos da sua existencia. Para produzir indefinidamente, só carece de uma condição essencial; é a que a faz triumphar da industria das nações rivaes, a do preço inferior ao do producto alheio com igual valor da utilidade. A machina, ou aperfeiçoada ou nova, e a reducção dos salarios, ou o augmento de horas de trabalho, o que é perfeitamente identico, são os seus meios heroicos. Não lhe importa se o instrumento homem se quebra, porque o renovará sem custo no meio das multidões famintas. Vive de produzir barato, e os seus obreiros hão de viver de se afadigarem em procura da morte. Cumpre que a industria inglesa triumphe na batalha incessante que se peleja entre as nações industriaes, batalha onde se não vê o fuzilar da espingardaria, nem se ouve o troar dos canhões, mas descortina-se o revolutear do fumo das chaminés monstruosas e soa o murmurar confuso da machina e do homem que lidam: terrivel batalha, onde não corre sangue, mas corre o suor do trabalho, e depois o suor da agonia.

D'esta situação, exteriormente esplendida e interiormente violenta e dolorosa, estamos nós bem longe. Não receiamos dizer que em Portugal será raro o operario válido que por meio de severa e intelligente economia não possa depositar annualmente na caixa economica alguns cruzados, ou para occorrer a desgraça imprevista, ou para crear um meio de subsistencia na velhice, ou finalmente para adquirir a independencia de proprietario. Com o modo de ser da população portuguesa, póde-se prever que, diffundindo-se pelo reino as caixas economicas, a estatistica destas será bem differente da estatistica das de Inglaterra, e ainda das de França. Nestes dous paizes apenas a quarta parte das quantias depositadas pertence aos operarios, e a classe que predomina como credora dellas é a dos creados domesticos. Entre nós a proporção tem de vir a ser diversa. Os donos de pequenos predios, os seareiros, os creados de lavoura, os operarios, não só de officinas, mas tambem de fabricas, hão de provavelmente predominar. E se assim acontecer, poderemos affirmar que a nação progride largamente no caminho da civilisação material e moral.

Alguém achará, talvez, que estas sinceras esperanças na futura regeneração economica do nosso povo são contradictas pelo facto da perfeita analogia que se dá entre a França e a Inglaterra, em serem tanto n'um como n'outro paiz as mesmas classes as dos depositantes nas caixas economicas. Na França, dir-se-ha, a divisão da propriedade é facilitada até o ultimo ponto pelas leis, e o numero dos pequenos proprietarios é proporcionalmente maior que em Portugal: a agricultura também lá predomina sobre a industria fabril; finalmente a situação do rendeiro e do trabalhador rural é mais semelhante á dos nossos que á dos de Inglaterra. Como, pois, não dão as caixas economicas na Franca resultados estatisticos diversos dos que subministram os saving's banks ingleses? Não se deve concluir d'ahi que não tem a influencia que se lhes attribue, e vice-versa, que no seu progresso ou na sua decadencia não influe nem a situação relativa das classes sociaes, nem o estado da propriedade?

Não. A analogia dos dous paizes na desproporção, contraria á ordem natural das cousas, entre os operarios e as outras profissões, em relação aos depositos nas caixas economicas, tem causas em parte semelhantes, em parte diversas, mas iguaes nos resultados. As fabricas francesas seguem o rapido progresso das inglesas, e nos grandes centros industriaes da França notam-se já em larga escala a miseria e a dissolução das cidades manufactoras da Gran-Bretanha. Lille, Mulhouse, Rheims, Ruão, reproduzem o triste quadro de perversão que apresentam as classes laboriosas em Manchester, Birmingham, Leeds, Glasgow, etc. A pobreza extrema, sem esperança e sem limites, já ahi golfa tambem das caldeiras de vapor. A industria individual tende rapidamente a converter-se na industria, digamos assim, collectiva. A officina desapparece diante da fabrica, o homem diante da machina. A questão de saber se isto é, em absoluto, um mal ou um bem, relativamente aos interesses geraes de qualquer paiz, não a ventilaremos aqui; mas é indubitavel que esse transtorno completo na forma do trabalho torna altamente angustiosa a situação dos operarios, e inhabilita-os para depositarem nas caixas economicas sobras de salarios diminutos e frequentes vezes interrompidos.

Por outra parte, o modo de ser dos bens de raiz em França é exactamente o contrario da indole da propriedade territorial em Inglaterra. O solo inglês é, por assim dizer, um grande vinculo aristocratico; a França um vasto allodio popular. A terra neste paiz está retalhada em cento e vinte e cinco milhões de chãos ou courellas e tende a subdivir-se ainda mais. Dão-se casos já em que o preço da venda de uma parcella de terreno pouco excede o total das despesas necessárias para legalisar a transmissão. Muitos homens pensadores começam a ter serios receios de que a extrema divisão do solo venha a impossibilitar em certas circumstancias uma cultura remuneradora; e ainda os que julgam estes receios infundados confessam a conveniencia de uma lei que, distinguindo na propriedade o seu modo de ser, quando este modo de ser importa á causa publica, do direito do individuo á mesma propriedade, consinta em todas as divisões possiveis deste direito, mas prohiba que se retalhem indefinidamente os pequenos predios. O systema dos quinhões do Alemtejo, que tem uma razão de ser, mas que está longe de ter a importancia que teria quando applicado ás glebas de moderada grandeza, prova que a doutrina que distingue o modo de ser da propriedade do direito de propriedade é reduzivel á praxe. Em França, porém, fora difficil entrar nesta senda que repugna a habitos inveterados da vida civil da nação. No estado actual das cousas alli, o lavrador proprietario ou ainda o simples rendeiro acha facilidade em empregar immediatamente na acquisição de terras as suas economias, sem que lhe seja necessario accumulá-las por largos annos nas caixas economicas. Quatrocentos, duzentos, cem francos que, lhe sobejem, deduzidas as despesas de cultura e domesticas, é quanto basta; lá encontra logo um prado, uma courella, um cerradinho, que comprado e cultivado com esmero, lhe produzirá um lucro maior que o limitado juro da caixa economica: prefere, portanto, aquelle expediente. Para elle esta bella instituição torna-se realmente inutil.

Eis, quanto a nós, a explicação da analogia entre a França e a Inglaterra pelo que respeita á proporção das diversas classes de contribuintes das caixas economicas. A condição dos operarios fabris é semelhante nos dous paizes. Quanto á população rural, essa, em Inglaterra não contribue, porque a sua situação pouco melhor é que a do obreiro da industria, e o proprietario da pequena gleba é uma excepção pouco vulgar; em França, porque é facilimo para os pequenos capitaes o transformarem-se em propriedade territorial. Assim naturalmente explicada, essa analogia não invalida as considerações anteriormente feitas.

Em Portugal o caso é diverso. Entre nós o modo mais commum de possuir a pequena propriedade é a emphyteuse. Para o sabermos não precisamos de estatistica: basta olhar ao redor de nós. Nas provincias do norte, pode dizer-se, talvez, que é rara outra especie de propriedade. Sommados os prazos, os vinculos, as vias publicas, os terrenos chamados nullius, pouco faltaria para ter a medida superficial dessas provincias, e ainda ao sul do reino são por milhares os terrenos emphyteuticos tanto ruraes como urbanos. Os vastos allodios só predominam no Alemtejo, se é que os vinculos lhes não levam a palma. Ora a caracteristica da emphyteuse é ser um meio termo entre o systema de propriedade em Inglaterra, que não passa, na essencia, de uma odiosa e anti-economica aggregação de morgados, e aquelle systema illimitadamente parcellario da França, que suscita as apprehensões dos pensadores. A emphyteuse, collocada no meio destes dous extremos, se for simplificada e constituída de um modo accorde com as idéas e costumes das sociedades modernas, será sempre uma das mais sensatas e beneficas instituições civis, e os seus resultados immensos nas crises sociaes que despontam no horisonte. Radicada nos habitos nacionaes, parece-nos que não corre o perigo de ser abolida; mas se alguem o tentasse e o obtivesse, faria um bem mau serviço ao seu paiz. O prazo fateusim hereditario realisa o desejo, por tantos manifestado em França, de que os terrenos que por successivas divisões desceram a um limitado perimetro, passassem indivisos, sem que por isso deixasse de ser divisivel o direito de propriedade sobre elles.

É n'um paiz assim, se nos não enganamos, que a vantagem da existencia de caixas economicas é immensa. Em geral os prazos de certa grandeza excedem em valor as economias annuaes que qualquer lavrador mediocre ou seareiro pode realisar; mas estas economias, accumuladas por alguns annos, bastarão não raro para a acquisição de um desses prazos, que diversas causas tão frequentemente attrahem ao mercado. Quem conhece os habitos do homem do campo sabe que, poupado durante a maior parte do anno, porque os recursos lhe não sobejam, quasi sempre desbarata uma porção do producto do seu suor na occasião das colheitas. Pagos as rendas, fóros e impostos, reservadas as sementes, provida a sua parca dispensa, acha-se ainda com sobras mais ou menos avultadas. Illude-se então por alguns dias e suppõe-se rico. Quer gosar; e essas sobras, que poderiam constituir lentamente um peculio consideravel, vão-se em luxo e em festas, quando não no jogo, na embriaguez ou na devassidão. Se houvesse, porém, um estimulo de cubiça que lhe excitasse o animo, essas sobras assim malbaratadas converter-se-hiam em capitaes uteis, e tanto mais uteis quanto, pertencendo ao mesmo homem de trabalho, iriam fecundar duplicadamente a terra.

Depois, n'um paiz cuberto de baldios, para promover cuja cultura é impossivel se não olhe seriamente quando posermos treguas á furia das nossas paixões politicas, qual não deve ser o fructo das caixas economicas?! Hoje, se estes baldios se offerecessem gratuitamente, libertando de todos os impostos directos quem os cultivasse, achar-se-hiam, provavelmente, muitos que se aproveitassem do beneficio. Mas, quem seria? Os grandes proprietarios e lavradores e alguns dos raros argentarios que as doçuras do agio não trazem captivos. Os pequenos cultivadores, os rendeiros, os seareiros, aquelles, em summa, que, mais que ninguem, importaria se convertessem em proprietarios do solo, esses justamente é que ficariam no maximo numero excluidos, porque, por mais diminuto que supponhamos o cabedal necessario para o arroteamento de poucas geiras quando é o próprio dono que o faz, sempre deve ser algum, e as classes trabalhadoras não possuem capitaes nem grandes nem pequenos. É evidente, porém, que as caixas economicas, estabelecidas, propagadas, favorecidas por todos aquelles que podem e devem fazê-lo, preparariam os elementos necessarios para, com verdadeira utilidade social, se poder tomar tão importante providencia.

Hoje entende-se que o melhor instrumento de moralisação e de ventura social consiste em derramar entre o povo o desejo da independencia e o amor da propriedade, associando por esse modo o capital ao trabalho em vez de os conservar em mutua hostilidade, como infelizmente os vemos. Se os modestos peculios se forem successivamente alistando no campo do trabalho, este ha de frequentes vezes triumphar dos capitaes, embora de maior vulto, mas combatendo isolados. Supponhamos que o rico concorre com o homem do povo para adquirir a courella, o prazo, a pequena vinha, o pequeno olival que se levou ao mercado. O primeiro calcula que somma lhe será necessaria para instrumentos, para sementes, para pagar aos obreiros que hão de amanhar o predio, e é por este calculo e pelo lucro comparado com o de outras applicações do seu dinheiro, que se regula para determinar o maximo que pode offerecer. O homem de trabalho, porém, que tiver o sufficiente para viver até as primeiras colheitas, e occorrer a poucas despesas prévias que não pode evitar, não compara lucros com lucros, não conta com os obreiros. Dono e obreiro é elle; são-no a mulher e os filhos. O lavor da familia valerá o dobro do trabalho salariado que paga o rico, e o primeiro lucro do trabalhador proprietario será o seu jornal e o dos seus, ganho no proprio campo. Põe o signal de mais, por assim nos exprimirmos, onde o abastado põe o signal de menos. Do operario rural quando trabalha no seu predio costumam dizer os outros: «anda comsigo», expressão admiravel de exacção economica. É isto que explica o phenomeno geralmente observado, de, no mercado, o valor proporcional da propriedade rustica ser na razão inversa da respectiva grandeza. O que não sería, se o homem do campo de humilde condição poupasse tudo quanto desbarata!

Sinceramente confessamos que o unico meio simples, exequivel, pacifico, não de cohibir os abusos do capital pela negação das suas funcções economicas, e pela condemnação da propriedade; mas de o cohibir nos excessos com que muitas vezes opprime o operario, consiste em habilitar este para se transformar de proletario em modesto proprietario. O estabelecimento e o progresso das caixas economicas é o instrumento mais poderoso de quantos se poderiam excogitar para obter, sem offensa de nenhuns direitos e sem convulsões sociaes, tão salutar resultado.

Que, pois, todos aquelles que se condoem das miserias populares: que desejam ver augmentada a prosperidade publica, reformarem-se os costumes, enraizar-se no animo do povo o aferro ao solo natal, protejam por quantos modos souberem esta bella instituição. Exigem-no o christianismo, a philosophia, a moral e a politica. Que as tres grandes forças intellectuaes da sociedade, o sacerdocio do altar, o sacerdocio da imprensa e o sacerdocio da eschola se liguem para esta grande obra de civilisação. Será trahirem a sua missão negarem-se a fazê-lo; porque a idéa a cuja realisacão tendem as caixas economicas é, embora ao primeiro aspecto o não pareça, um consectario do evangelho, da philosophia e da boa politica. Essa idéa é a manifestação da caridade judiciosa, porque se encaminha a combater os vicios e a miseria, e a alargar a esphera da liberdade humana, contribuindo para a assegurar ás classes laboriosas, tantas vezes escravas da necessidade do salario. A liberdade pode facilmente ser theoria, pode ser doutrina proclamada na constituição de qualquer paiz; facto, realidade, só o pode ser onde a maioria dos cidadãos possuam com que serem independentes.

Que a experiencia das nações extranhas nos aproveite; que o pudor do patriotismo nos incite. Já que fomos a ultima nação da raça latina em plantar entre nós esta instituição bemfazeja, não nos deshonremos deixando-a logo definhar. Passariamos aos olhos do mundo attonito por barbaros, e todos os nossos protestos de querermos o melhoramento moral e material do paiz seriam havidos por hypocrisia insigne. Sem civilisar, morigerar e felicitar as classes populares, todo o progresso é futil.

Dirigimos estas ponderações especialmente á classe media e ao clero. Naquella reside a illustração, a riqueza e verdadeiramente o poder; nas mãos deste a preponderancia que dá o predominio sobre as consciencias. Que tanto uma como outro usem da sua influencia para attrahir o povo ao caminho da previsão, da economia e das legitimas ambições e esperanças. Não só elle, hoje rude, pobre e inclinado a vicios ignobeis, lucrará com isso; mas tambem as classes mais elevadas ganharão na paz e ordem publicas, que se irão firmando á proporção que as classes inferiores se melhorarem nos costumes e na ventura domestica. Empreguemos o exemplo e a persuasão: uns poucos de cruzados postos nas caixas economicas não produzirão, de certo, vantagens apreciaveis para o que possue uma fortuna avultada ou ainda mediana; mas fructificarão para o povo, gerando a confiança e despertando nelle o instincto da imitação. Conspiremos todos para esta grande catechese; e que n'um paiz, onde o habito da leitura ainda é limitadissimo, a persuasão oral, as relações de familia ou de dependencia ajudem as diligencias da imprensa nesta obra de alta moralidade. Deus abençoará os obreiros que semeiarem e cultivarem essa rica sementeira de regeneração na terra patria; e o povo, com a sua futura gratidão, dará testemunho da bençam da Providencia.

[Nota de rodapé 2: O sr. Antonio de Oliveira Marreca.]

[Nota de rodapé 3: A associação do Monte-pio geral.]

AS FREIRAS DE LORVÃO

*1853*

A
ANTONIO DE SERPA PIMENTEL

Meu amigo.—Escrevo-lhe do fundo do estreito valle de Lorvão, defronte do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; deste mosteiro melancholico e mal-assombrado como as montanhas abruptas que o rodeiam por todos os lados: escrevo-lhe com o coração apertado de dó e repassado de indignação. Descendo a examinar o archivo das pobres cistercienses, penetrei no claustro por ordem da auctoridade ecclesiastica. Lá dentro, nesses corredores humidos e sombrios, vi passar ao pé de mim muitos vultos, cujas faces eram pallidas, cujos cabellos eram brancos. Esses cabellos nem todos os destingiu o decurso dos annos: a amargura embranqueceu os mais delles. Quasi todas essas faces tem-nas empallidecido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres, fechadas n'uma tumba de pedra e ferro. Estas mulheres ouvem de lá, do seu tumulo, o ruido do burgo apinhado na encosta fronteira, e dividido do mosteiro apenas por um riacho. Naquellas casas de telha-van, negras, gretadas, desaprumadas, com o aspecto miseravel da maior parte das aldeias da Beira, vive uma população laboriosa, que até certo ponto se pode chamar abastada, e a que, pelo menos, não falta o pão nem a alegria. No mosteiro sumptuoso, vasto, alvejante, com um aspecto exterior quasi indicando opulencia, é que não ha pão, mas só lagrymas. Lorvão é peior do que um carneiro onde se houvessem mettido vinte esquifes de catalepticos, sellando-se para sempre a lagea da entrada. O cataleptico, fechado no seu caixão, ouve, sente, tem a consciencia de que foi sepultado vivo. Nas trevas e na immobilidade, o terror, a desesperação, a falta de ar matam-no em breve: a sua agonia é tremenda, mas não é longa. Aqui é outra cousa: aqui vê-se, por entre as grades de ferro, a luz do céu, a arvore que dá os fructos, a seara que dá o pão, e tudo isto vê-se para se ter mais fome. Todos os dias uma esperança duvidosa e fugitiva atravessa aquellas grades de envolta com os primeiros raios do sol: todos os dias essa esperança fica sumida debaixo das trevas que á tarde se precipitam sobre Lorvão das ladeiras do poente. Depois as noites de insomnia; depois o choro; depois, sabe Deus se a blasphemia!

Dez vezes que tenhamos lido o Dante, ao chegarmos á descripção da torre de Ugolino erriçam-se-nos sempre os cabellos. Mas Lorvão é uma torre de Ugolino. A differença está em que no carcere da Divina Comedia havia um homem forte de alma e de corpo, affeito á dor e ás scenas de dôr: aqui ha dezoito ou vinte mulheres na idade decadente, que se affizeram na juventude aos commodos, aos regalos, e até ao luxo compativel com as condições da vida monastica. Lá o fiero pasto acabava, e depois morria-se rapido. Aqui não: aqui ha justamente quanto basta para prolongar por mezes e por annos o martyrio. Dir-se-hia que existe uma providencia infernal para que não falte ás freiras de Lorvão o restrictamente indispensavel para, lento e lento, se lhes irem os membros mirrando n'um longo expirar, debeis e senis.

Imagine, meu amigo, uma noite de inverno, no fundo desta especie de poço perdido no meio da turba de montes que o rodeiam: imagine dezoito ou vinte mulheres idosas, mettidas entre quatro paredes humidas e regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pão para se alimentarem, sem energia na alma, e sem forças no corpo, comparando o passado, sentindo o presente e antevendo o futuro. Imagine o vento que ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidraças que ainda restam no edificio; imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam por cima das lagrymas silenciosas das pobres cistercienses, e as horas eternas que batem na torre. Imagine tudo isto, e sentirá accender-se-lhe no animo uma indignação reconcentrada e inflexivel.

Ha poucos dias passou-se em Lorvão uma scena tremenda. N'um accesso de desesperação, parte destas desgraçadas queriam tumultuariamente romper a clausura; queriam ir pedir pão pelas cercanias. Custou muito contê-las. Tinha-se apoderado dellas uma grande ambição; aspiravam á felicidade do mendigo, que póde appellar para a compaixão humana; que póde fazer-se escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham. A sua voz é demasiado fraca, e os muros de Lorvão demasiado espessos. Gemidos, brados, prantos, tudo é devorado por esse tumulo de vivos. Ao menos, surgiam como Lazaro da sua sepultura.

Gemidos, brados, prantos, nada disso chega aos ouvidos dos homens que exercem o poder nesta terra; nada disso os incommoda. Entretanto, se eu falasse com elles, dar-lhes-hia um conselho. Talvez o ouvissem, porque a minha voz é um pouco mais forte que a das velhas freiras. Era o de enviarem aqui sessenta soldados, formarem as monjas de Lorvão em linha no adro da igreja e mandarem-lhes dar três descargas cerradas. Desapparecia, a troco de poucos arrateis de polvora, um grande escandalo, e resolvia-se affirmativamente um problema a que nunca achei senão soluções negativas, o da utilidade da força armada neste paiz.

Sim, isto era util, porque era atroz; porque era uma festa de cannibaes; porque se gravava na mente dos homens; porque ficava na historia, como um padrão maldicto, para instaurar no futuro o processo desta geração. Mas não era infame, não era covarde; não era o assassinio lento, obscuro, atraiçoado, feito com a mordaça na boca das victimas. Corria o sangue durante alguns minutos: não corria o suor da agonia durante annos. Era uma scena de delirio revolucionario; mas não era um capitulo inedito para ajunctar aos annaes tenebrosos do sancto officio.

A historia recente de Lorvão é simples. Os bens acumulados naquelle cenobio durante dez seculos tinham-no tornado demasiadamente rico. A sua renda annual dizem que orçava por mais de oitenta mil cruzados. Como mosteiro cisterciense, Lorvão dependia dos monges brancos. Cem freiras de que se compunha a communidade, e que viviam opulentamente, gastavam muito, mas não gastavam tudo. Cinco frades bernardos, aposentados n'um palacete contiguo ao mosteiro, consumiam o resto. Eram elles que administravam as grossas rendas da casa. Os banquetes e as festas succediam-se alli sem interrupção. Os hospedes eram continuos. O manto da religião cobria todos os excessos da opulencia. A chronica dos bernardos em Lorvão subministra mais de um capitulo curioso para a historia dos bons tempos que já lá vão.

Até aqui nada ha extranho. Mas os frades entenderam que deviam comer a renda e o capital das cenobitas laurbanenses. Refere-se que certa vez, não sabendo explicar plausivelmente o dispendio de uma verba de 600$000 réis, escreveram n'umas contas irrisorias que mostravam annualmente á abbadessa: Palitos—600$000 réis. Pode ser fabula. O que, porém, não é fabula é que durante muitos annos o dinheiro das decimas que o mosteiro devia pagar esqueceu em Alcobaça, dando-se em conta como pago. Por outro lado as necessidades da casa tinham feito com que suas reverencias empenhassem a communidade em 6:000$000 ou 8:000$000 réis. Os juros desta divida também se não pagaram. Veio o anno de 1833. Desappareceram os dizimos, principal rendimento do mosteiro. Os direitos senhoriaes desappareceram tambem. Os frades, enxotados do seu feudo de Lorvão, sairam d'alli, mandando primeiramente derribar todas as arvores que povoavam aquellas encostas e vendendo as madeiras. Era o ultimo vale que davam a suas irmãs. Ainda assim, ficava ás monjas uma honesta subsistencia. Passado, porém, apenas um anno, o fisco arrebatou-lhes quasi tudo pela divida de 25 contos de réis de decimas, e os credores particulares levaram-lhes depois os demais bens. Restavam-lhes apenas alguns pequenos foros espalhados por diversos districtos, os quaes geralmente lhes são recusados, ou cuja difficil cobrança quasi consome o producto delles. Vacillantes entre a vida e a morte, as freiras de Lorvão prolongam uma existencia de dôr e miseria pendente das eventualidades desse tenue rendimento. Ha um ou dous annos, o governo deu-lhes a esmola de um subsidio: este subsidio, porém, cessou. Ignora-se o motivo. Por ventura alguma secretaria de estado precisava de novos estofos nas suas commodas poltronas, ou os felpudos tapetes das salas ministeriaes tinham perdido o brilho das suas côres variegadas, e cumpria renová-los. São despezas inevitaveis, e é necessaria a economia. Se assim foi, respeitemos as exigencias imperiosas da dignidade governativa. Alta noite, durante o inverno, vinte mulheres curvadas pela inedia e pela velhice podem dirigir-se ao coro, calcando quasi descalças as lageas humidas e frias destes claustros solitarios; mas as botas envernizadas de suas excellencias devem ranger mollemente sobre um pavimento suave, e as suas cabeças, afogueiadas pelas profundas cogitações, reclinarem-se em fofos espaldares. Todavia a magestade das secretarias e os apices da economia não excluem a tolerancia, nem a indulgencia. Faço essa justiça ao poder. Quando a ultima freira de Lorvão expirar de miseria, ou debaixo de alguma dessas paredes interiores do mosteiro que ameaçam desabar, os ministros soffrerão com animo paternal que mãos piedosas vão lançar o cadaver da pobre monja no ossuario de sete seculos, onde repousam as cinzas de milhares de suas irmãs. Depois venderão o edificio e a cerca a algum destes judeus do seculo XIX, a que chamamos agiotas, se algum houver a quem passe pelo espirito ter uma casa de campo em Lorvão.

Meu amigo: se a indignação consentisse o riso, se não se tractasse de uma questão grave e triste, eu riria do afan da imprensa em ventilar os meios de acudir á desgraçada ilha da Madeira. O remedio ha de ser o abandono. Quando vejo a facilidade com que a sorte das freiras de Portugal se tornaria feliz, e considero o estado de Lorvão, de Cellas, e de tantos outros mosteiros, como hei de esperar que remedeiem um mal cuja cura é mil vezes mais difficil?

Na secretaria da justiça encontram-se as provas de que a renda dos bens que ainda possuem os conventos do sexo feminino em Portugal excede a 200:000$000 réis, e todavia ha centenares de freiras que morrem á mingua. São dous factos que não carecem de commentario. É a manifestação mais eloquente de que não ha governo nesta terra. Existem mosteiros, cujas habitadoras vivem na opulencia, e onde o superfluo se desbarata de um modo escandaloso. Não digo quaes. E para que apontá-los? Aposto meia moeda, uma moeda até, contra mil acções da companhia Hislop, que se lembravam logo de reduzir esses mosteiros á mendicidade para fazerem com o rendimento delles sessenta coroneis e duas secretarias de estado novas. Antes assim como está. Defendiam-nos mais, e administravam-nos mais. Deus nos livre disso!

É certo, porém, que para as freiras de Lorvão viverem tranquilamente os seus ultimos dias, bastava que nos homens do poder tivesse existido um leve instincto de equidade. Os frades de Alcobaça roubaram 25:000$000 réis a Lorvão. Eram responsaveis por elles. A sua responsabilidade passou para o fisco seu herdeiro e successor. As decimas de Lorvão deviam ir buscar-se aos bens de Alcobaça, logo que se provasse que Alcobaça espoliara fraudulentamente Lorvão. Averiguou-se o facto? Não. O fisco executou as freiras, e recebeu duas vezes a mesma divida. Onde houvesse moralidade na administração publica practicava-se isto?

Mas porque o importuno com esta larga historia? Não é, meu amigo, só para desabafo: é para lhe pedir um favor. Supponha que viu, como eu vi, as faces enrugadas e pallidas das monjas de Lorvão, por onde as lagrymas se penduravam quatro a quatro, emquanto vozes convulsas descreviam scenas do longo drama de miseria de que este sepulchro de vivos tem sido theatro durante vinte annos: supponha que olhava para estas janellas mal reparadas, para estas paredes verdoengas, cujo aspecto produz um sentimento inexplicavel de frio, apesar do calor da atmosphera n'um dia de julho; para as alfaias roçadas e poídas; para os proprios trajos das freiras; que lia em tudo isso, repetida por cem modos, uma palavra só: infortunio, infortunio, infortunio! Que fazia? Com o seu coração, com os seus principios, e redactor de um jornal que tem largas sympathias, sentia-se grande e forte pondo a sua penna eloquente ao serviço da desgraça e da fraqueza. Faça-o, meu amigo; faça-o! Peça esmola para as freiras de Lorvão, que foram ricas e felizes na mocidade, e que na velhice tem fome. A velhice é sancta! Ponha esse contraste do passado e do presente perante os olhos dos opulentos e ditosos, para que se lembrem com alguns cruzados das pobres que gemem debaixo destas abobadas escondidas no meio dos montes ladeirentos e agrestes do concelho de Penacova. Ao governo não peça nem diga nada; deixe esses homens ao seu destino; deixe-os estofar poltronas e dormir nellas. Deus e os vindouros hão de julgar-nos a todos.

Se entender que esta carta de uma testemunha ocular póde servir de thema ás suas considerações, publique-a. O homem que vê o que eu vi e abafa no peito o grito da indignação ou é um malvado ou um covarde, e eu espero não merecer jámais nenhum desses titulos. Imprima esta carta no todo ou em parte, se quizer; porque folgarei com isso. O que importa é ver se obtemos despertar a compaixão publica a favor destas infelizes.

Auctorisando-o, porém, a publicar as idéas que me assaltaram ao presenciar o espectaculo atroz e repugnante que está diante de mim, advirta que não ha nisso nem virtude, nem audacia. Incommodam-me mediocremente as coleras de certa gente, e a malevolencia ou antes o odio della é titulo que aprecio, porque creio que ha de honrar perante a posteridade quem quer que o possuir, se é que este paiz não caminha fatal e irremediavelmente á dissolução social.

DO ESTADO

DOS
ARCHIVOS ECCLESIASTICOS DO REINO
E DO
DIREITO DO GOVERNO
EM
RELAÇÃO AOS DOCUMENTOS AINDA NELLES EXISTENTES

PROJECTO DE CONSULTA

SUBMETTIDO Á
SEGUNDA CLASSE DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS

*1857*

Senhor.—Manda V. M. que a Classe de sciencias moraes, politicas e bellas-letras da Academia Real das Sciencias de Lisboa consulte sobre as representações dirigidas a V. M. por diversas corporações ecclesiasticas, que recusara obedecer á portaria de 11 de setembro de 1857 pela qual se ordenou a entrega de certos documentos antigos pertencentes aos cartorios dessas e d'outras corporações, para serem depositados no Archivo nacional da Torre de Tombo, onde tem de ser examinados, a fim de se transcreverem aquelles que se reputarem dignos de entrar na collecção dos Monumentos Historicos de Portugal, que esta Classe está publicando, e que se tornou pela ultima lei do orçamento uma obra verdadeiramente nacional, visto que a sua existencia se estriba hoje n'uma providencia legislativa.

Examinando a portaria de 11 de setembro e as representações que ella suscitou, a Classe não póde deixar de deplorar que um acto do poder executivo em que só transluz o amor das letras e o patriotismo illustrado e circumspecto do Governo de S. M. encontrasse resistencias, ás quaes se buscaram pretextos, que nem sequer tem o merito de plausiveis, e que ao mesmo tempo envolvem affirmativas erroneas de doutrina e de facto, que esta Classe, pertencendo a um dos primeiros corpos scientificos do paiz, não deve deixar sem correctivo, até porque foi ella, não só quem sollicitou a transferencia d'aquelles documentos, mas também quem aconselhou a sua conservação no Archivo geral do reino, circumstancia esta que, diante de inexplicaveis resistencias, a forçam, bem contra sua vontade, a dar as razões que a moveram a suggerir esse ultimo arbitrio ao Governo de V. M.

Dos papeis transmittidos á Classe por soberana resolução de V. M., comparados com as communicações dos commissarios encarregados da recepção dos antigos pergaminhos indicados pela Classe, resulta que nenhum prelado diocesano recusou entregar os documentos que foram pedidos dos archivos das respectivas mitras, ou de outros immediatamente dependentes dos mesmos prelados. Provaram assim que comprehendiam, como o Governo e o Parlamento o haviam comprehendido, a magnitude e o valor do trabalho que a Academia emprehendera, provando igualmente que o episcopado português não degenerou, e que o baculo pastoral dos Caetanos Brandões, dos Cenaculos, dos Avellares, dos Lemos, dos S. Luiz não cahiu em mãos indignas delle. A Classe compraz-se em poder dar um testemunho de agradecimento em nome das letras a quem tão nobremente sabe conciliar a dignidade do caracter episcopal com o reconhecimento do direito do Governo, e com o sentimento da gloria litteraria que resulta para o paiz da publicação dos seus monumentos historicos, empreza que já é devidamente apreciada, não só entre nós, mas tambem pelos homens competentes de outras nações da Europa.

Do mesmo modo resulta dos documentos officiaes remettidos pelo Governo á Academia e das communicações dos agentes desta, que umas corporações se mostraram promptas a obedecer ao Governo, que outras desobedeceram, limitando-se a declarar oficialmente aos agentes da Academia o motivo do seu proceder, e que outras desobedeceram e representaram a V. M. Vê-se d'aqui que entre ellas ha desacordo sobre a extensão dos respectivos direitos, e que algumas entendem, e bem, como os prelados maiores, que o Governo não ultrapassou os limites das suas attribuições.

Para poder apreciar devidamente os fundamentos da resolução tomada por algumas das corporações de mão-morta, de que resultaria tornar-se impossivel a continuação de um trabalho que hoje a lei fórça o Governo e a Academia a realisar, cumpre expor o estado da questão e reunir as objecções ao cumprimento da portaria de 11 de setembro, oferecidas nas diversas representações recebidas pelo Governo e communicadas á Academia, e nas respostas que foram dirigidas officialmente ao agente desta nas provincias do norte. Não podendo qualificar-se o acto das corporações que recusaram fazer a entrega sem recorrer a V. M., senão de pura e simples desobediencia, a Classe abstem-se de indicar qual deva ser em tal caso o procedimento do executivo, encarregado de cumprir as resoluções do poder legislativo. O Governo de V. M. sabe perfeitamente qual é neste caso, não só o seu direito, mas tambem o seu dever. Todavia a Classe não póde deixar de se fazer cargo dos motivos de recusa que directamente lhe foram dados, e conjunctamente d'aquelles sobre que é mandada consultar.

A Academia pela Classe de sciencias moraes, politicas e bellas letras sollicitou a vinda a Lisboa dos documentos anteriores ao anno de 1280 que existiam, não só nos cartorios dos extinctos mosteiros, mas também nos das corporações de mão-morta não abolidas, pedindo ao mesmo tempo, para maior segurança desses documentos, e para evitar uma responsabilidade que lhe era inutil tomar, que fossem depositados no Archivo geral do reino, aonde os academicos encarregados da publicação dos Monumentos Historicos podiam, sem incommodo grave, ir fazer a escolha e os mais trabalhos necessarios ácerca dos que se achasse que deviam entrar naquella collecção. A Classe possuia já a este tempo um inventario succinto de todos os documentos anteriores a essa data, que ainda existem nos archivos dos districtos centraes e septemtrionaes do reino, e que montam a alguns milhares. Este inventario fora feito por um commissario da Academia com auctorisação do Governo, nos annos de 1853 e 1854.

A correspondencia deste commissario, no desempenho das funcções que lhe tinham sido commettidas, e em conformidade das instrucções que lhe haviam sido dadas, fez conhecer á Classe qual era o deploravel estado da maior parte dos cartorios, não só das corporações extinctas, mas tambem das existentes. A perda de antigos documentos, quanto ao passado, era já immensa, e podia prever-se qual seria quanto ao futuro, conservando-se as cousas no estado em que se acham. Convencida de que fazia um bom serviço ao paiz aconselhando o Governo a que conservasse no Archivo geral do reino os documentos chamados a Lisboa, depois de examinados e utilisados litterariamente, a Academia não hesitou em fazê-lo; absteve-se porém de fundamentar com os factos de que adquirira conhecimento um conselho, na verdade não pedido, mas que o seu caracter de corpo litterario official lhe impunha o dever de dar em materia de sua competencia. Procurava assim evitar ás corporações existentes o desgosto que a narrativa de certos factos, que podiam vir a ser publicos, devia causar-lhes, e ao mesmo tempo precaver a continuação de perdas irreparaveis. Entretanto, como o fim que então se propunha, e que hoje se propõe, era o estudo e escolha desses documentos para continuar o trabalho que encetara, deixou ao prudente arbitrio do Governo ponderar se conviria mais restituir os documentos enviados á Torre do Tombo, se conservá-los alli, propondo a V. M. a resolução mais conveniente.

A portaria de 11 de setembro de 1857 não é outra cousa senão a reproducção deste pensamento da Academia, abraçado pelo Governo de V. M. Expondo summariamente as razões que ha para se conservarem de futuro na Torre do Tombo os documentos pedidos, o ministro dos negocios ecclesiasticos e de justiça limitou-se comtudo a ordenar em nome de V. M. a entrega delles, reservando para tempo opportuno resolver se devem ser alli conservados ou restituidos aos cartorios das corporações. Vê-se, pois, que nessa parte as representações eram licitas, e é até possivel que as ponderações a favor da restituição fossem de ordem tal que movessem o animo de V. M. a ordená-la. Isto, porém, não dispensava as corporações de obedecerem quanto á entrega e ao deposito temporario no Archivo nacional, que era por então o que preceptivamente se estatuia. Quanto a este ponto, nenhuma opposição plausivel se poderia fazer, e as recusas dirigidas officialmente ao commissario da Academia constituem nessa parte, como já se notou, uma desobediencia formal.

E esta desobediencia é tanto mais grave quanto é certo que se o Governo de V. M. não procurasse reprimi-la, della resultaria, não só a impossibilidade de se cumprirem as resoluções do Parlamento, mas tambem grande descredito para qualquer ministro que tolerasse semelhantes obstaculos á continuação de uma empreza que, por nos servirmos da phrase de um de dos maiores sabios da França, constituirá um dos títulos mais gloriosos do reinado de V. M.

A Classe lamenta que taes resistencias venham de corporações parte das quaes são compostas de individuos em quem se deve suppor maior ou menor educação litteraria, e que, em relação á sociedade civil, são verdadeiros funccionarios publicos. Não era por certo de esperar que, tanto nas representações dirigidas a V. M., como nas respostas dadas ao agente da Academia, se encontrasse tão singular esquecimento do direito publico antigo e moderno do paiz, transtorno tão completo das boas doutrinas, tão inexacta exposição de factos, e até accusações tão offensivas contra a Academia, que V. M. relevará por certo que esta Classe, repellindo-as, seja talvez sobradamente severa.

As ponderações feitas e os factos allegados, tanto nas representações dirigidas a V. M., como nas respostas officialmente dadas ao commissario da Academia, resumem-se no seguinte:

Diz uma das corporações que não pode convir na alheação dos antigos documentos do seu cartorio, porque na maxima parte são comprovativos de contractos onerosos, e quando o não sejam, illustram esses contractos, e que a portaria de 11 de setembro alheia a favor do Archivo da Torre do Tombo documentos que são propriedade da mesma corporação.

Diz outra: que a portaria encerra uma determinação inteiramente nova e contraria á practica até hoje seguida.

Declara ao mesmo tempo, n'um officio ao commissario da Academia, que para o exame de qualquer documento no seu archivo é indispensavel licença regia e uma ordem do prelado ordinario; mas que para se tirarem documentos seriam necessarias ou uma lei que dispensasse as formalidades do esbulho da propriedade, ou sentença do poder judicial.

Outras duas corporações limitam-se a dizer em officios ao dito commissario que a portaria de 11 de setembro offende o direito de propriedade, e que recusam a entrega por terem representado sobre esse assumpto ao Governo de V. M., representações que esta Classe não póde apreciar porque não lhe foram communicadas.

Duas corporações monasticas do sexo feminino declaram, emfim, não poderem entregar os dictos documentos por causa dos inventarios dos seus bens a que se está procedendo por ordem do Governo, em virtude de resolução de Cortes.

As outras corporações mostram-se todas promptas a obedecer ás ordens de
V. M.

Senhor, os membros da Classe de sciencias moraes, politicas e bellas letras não podem deixar de dizer a V. M. com o respeito devido ao chefe do estado, mas com a liberdade de homens de letras, que é impossivel acumular mais desvarios do que os que se lêem nos documentos acima substanciados. Elles provam peremptoriamente a necessidade de uma profunda reforma no systema da educação do clero, e de vigilancia da parte do Governo sobre o modo como são providos os beneficios ecclesiasticos.

Predomina, em geral, nos documentos que temos presentes uma certa somma de idéas, não sabemos se astutas, mas sem duvida falsas. É uma dellas a confusão dos bens administrados pelas corporações com os titulos primitivos dos mesmos bens, confundindo-se igualmente esses titulos primitivos com os actuaes; os que podem ter uma utilidade practica na administração ou no foro com os que só em casos rarissimos servirão para fortificar ou esclarecer o testemunbo d'est'outros. Posses immemoriaes, tombos incomparavelmente mais modernos do que os pergaminhos anteriores ao seculo XIV, contractos de epochas posteriores, mais ou menos recentes, eis os verdadeiros documentos de uso practico, que se conservam nos cartorios das corporações. E se esses pergaminhos antigos tem a utilidade material que se lhes attribue, as corporações devem possuir índices regulares que apontem em substancia o objecto, a indole d'elles e os logares onde se acham nos respectivos cartorios: depois, devem abundar os exemplos de casos nos quaes ellas os hajam utilisado nos ultimos vinte ou trinta annos. Exija o Governo de V. M. aquelles índices; peça a enumeração especificada destes casos, que por certo não ficará edificado da verdade das allegações nesta parte.

Ainda admittindo todas as inexacções de direito e de facto apinhadas nas representações e officios sobre este assumpto, ha uma circumstancia que torna a denegação absoluta e completa das corporações ao cumprimento da portaria de 11 de setembro, não só um acto de vandalismo litterario e de desprezo pela gloria da nação, mas tambem uma verdadeira espoliação feita ao paiz. Na epocha a que pertencem os documentos exigidos, não existia archivo especial do rei ou do estado, o qual só começou no tempo de D. Fernando I. Os diplomas de alta importancia, cuja existencia se desejava conservar para a posteridade, manda-vam-se depositar nos cartorios dos cabidos e dos principaes mosteiros, chegando-se aponto de se ordenar esse deposito no proprio corpo do diploma. É um facto este que as corporações desobedientes tinham obrigação de não ignorar. Depois, os prelados, os cabidos, as ordens ecclesiasticas e militares exerciam, como donatarios da coroa, actos que importavam manifestações de soberania, e contractos em que rigorosamente esses corpos não figuravam senão como representantes do poder publico: taes eram os foraes instituindo municipios e comprehendendo provisões de direito publico local; taes eram os contractos por que se transformavam os terrenos reguengos em jugadeiros, as quotas de fructos em rendas certas, etc. Os documentos desta ordem não respeitam ás corporações; respeitam ao paiz, como aquelles que os antigos monarchas confiaram á guarda do clero. Suppondo que ellas tivessem direito a negar a entrega dos que exclusivamente lhes dizem respeito, poder-se-hia tolerar que tambem sequestrassem impunemente os documentos da nação por um capricho inexplicavel, ou antes explicavel de mais?

Ha, pouco, Senhor, que examinando-se por ordem desta Classe os restos que escaparam do rico archivo do mosteiro de Aguiar, conservados no Thesouro-publico, ahi se foram encontrar no original muitos documentos politicos e economicos da mais alta importancia relativos aos seculos XIII e XIV. Se ainda existissem corporações religiosas do sexo masculino, como existem do feminino, é natural que, como algumas destas, os monges de Aguiar recusassem obedecer á portaria de 11 de setembro. Toleraria, porém, o Governo que esses documentos importantes para a historia, e talvez para questões actuaes ou futuras com a Hespanha ácerca de limites, ficassem sepultados e inuteis nas tristes solidões do Cima-Coa? E tolerá-lo-hia só porque alguns frades suspicazes e ignorantes receiassem que o conhecimento dos velhos pergaminhos do seu cartorio podesse servir para lhes contrariar interesses materiaes de cuja legitimidade a consciencia os fizesse duvidar?

As difficuldades, Senhor, que se oppoem agora á realisação do empenho da Academia e ao cumprimento da lei já em parte surgiram quando se ordenou que os cartorios das corporações fossem franqueiados ao simples exame de um commissario da mesma Academia. Houve recusas formaes; houve subterfugios dilatorios. Indagou-se o motivo disto, e soube-se que se receiava fosse utilisado o exame a que se procedia em beneficio dos colonos ou proprietarios com quem as corporações tem litigios sobre direitos dominicaes; porque a algumas d'ellas, ou a todas, custava a comprehender que se gastasse tempo em decifrar esses pulverulentos e afumados diplomas sem algum interesse material. Note-se agora a infeliz coincidencia entre a resolução administrativa que chama a Lisboa os documentos de antigos tempos, e a que ordena um inventario dos bens de certas corporações de mão-morta, e achar-se-ha facilmente, em suspeitas não menos insensatas que as primeiras, a explicação mais plausivel das resistencias que apparecem por esta parte.

Os cartorios dos corpos de mão-morta tem sido sempre considerados como cousa publica. Uma das corporações reconhece-o formalmente no officio que dirige ao commissario da Academia, affirmando a necessidade de licença regia, e determinação do prelado, para qualquer extranho examinar os documentos do seu archivo. De certo um particular não precisaria de licença regia para facultar a qualquer o uso do seu cartorio ou para deixar sair delle quaesquer titulos. Tanto se consideravam esses archivos como dependentes do Estado, que os seus documentos mereceram sempre uma especie de fé publica. Em muitos delles, até, existiam e existem chartularios, geral e impropriamente denominados Tombos, e feitos em diversas epochas, desde o reinado delrei D. João II até o delrei D. João V, em que se contém traslados dos documentos antigos, precedendo provisões regias, pelas quaes se dá a estas copias o mesmo valor dos originaes, para dellas se passarem certidões. Esses actos do poder supremo não provam só a consciencia que o Governo tinha da incapacidade ordinaria dos membros das corporações, e dos tabelliães desses logares para lerem os antigos diplomas: provam tambem o caracter publico de taes archivos; porque não nos consta que provisões de semelhante natureza se passassem nunca a favor de cartorios particulares. Embora o poder civil désse a sua sancção ás disposições canonicas relativas á conservação dos documentos dos corpos de mão-morta; embora prohibisse, como mais de uma vez prohibiu, a saída delles do respectivo archivo, essa prohibição está justamente demonstrando que elle poderia ordenar o contrario, se entendesse que convinha mais guardá-los n'outra parte. Foi por isto que no reinado de D. João V se proveu a favor da Academia de Historia, para que se lhe facultasse o conhecimento e copia de todos os documentos das corporações de mão-morta, que foram obrigadas a transmittir inventarios de todos elles á mesma Academia. Foi por esse fundamento juridico, que nos estatutos da universidade (L. 2, tit. 6, cap. 3) se determinou que os cartorios dos mosteiros e das cathedraes estivessem patentes aos professores de direito patrio, para lerem, estudarem, extractarem, copiarem, ou fazerem extractar e copiar todos os documentos que entendessem serem uteis ao ensino das leis patrias e da sua historia, disposições que não se estenderam, nem podiam estender, ainda debaixo do absolutismo ferrenho daquella epocha, aos cartorios particulares. É, finalmente, á vista de tal jurisprudencia e de taes exemplos, que na portaria de 11 de setembro o Governo ordena se facilite á Academia o uso desses diplomas, reservando para si o direito, que indubitavelmente lhe pertence, de resolver sobre o modo mais conveniente da sua futura conservação.

Mas, diz uma das corporações desobedientes, que foi no proprio archivo della que Brito e Brandão tomaram notas dos documentos ahi existentes; que o guarda-mór Lousada copiou os mais curiosos e mandou as copias para a Torre do Tombo; que alli se tiraram traslados dos mais importantes para o Archivo de Historia Portuguesa; que a corporação possue no seu seio um paleographo capaz de trasladar tudo, embora não seja tão habil como os da capital; que não convem que os documentos andem de mão em mão; emfim, que a Academia não restituiu integralmente os documentos recebidos por ella, uma unica vez que lhe foram confiados.

A Classe desejava, Senhor, nesta consulta não empregar uma unica phrase que não fosse moderada; mas, vendo accusados, se não os membros actuaes da Academia, ao menos os que os precederam, de falta de probidade, e sabendo que essa accusação vai directamente cahir sobre homens tão eminentes por sciencia e virtudes como D. Francisco de S. Luiz, Trigoso e outros varões, cujos nomes são veneraveis para o paiz e para as letras, teme não saber reprimir sempre os impetos de indignação diante das calumnias vertidas sobre as cinzas de individuos que não se podem defender, mas que os academicos de hoje, posto valham menos do que elles, não devem, nem querem deixar sem pleno desaggravo.

A corporação que, desobedecendo ao Governo, mostra desconhecer o antigo e o moderno direito publico destes reinos, não foi feliz querendo dar licções á Academia sobre materias de sua competencia, e increpá-la de menos probidade. Se esta virtude tivesse faltado aos seus antigos membros ácerca de documentos publicos, não seria o melhor meio de preservar os actuaes de semelhantes delictos pôr-lhes diante os nomes de Brito e Lousada, que passaram a vida, não tanto a distrahi-los, como a forjá-los e a falsificá-los. Curiosas devem ser as memorias por onde consta á corporação desobediente que o escrivão Lousada (despachado por ella guarda-mór da Torre do Tombo) mandou para alli copias dos documentos mais curiosos do seu cartorio, do que aliás nenhuns vestigios restam no Archivo geral do reino. Dos que se remetteram para o Archivo de Historia Portuguesa nada tem que dizer a Classe, porque não lhe consta que tal archivo exista ou existisse nunca no mundo. Póde ser excellente o paleographo que essa corporação inculca á Academia; mas a Classe emprehendeu um trabalho demasiado serio, para exigir dos membros encarregados da publicação dos Monumentos Historicos a conferencia pessoal das copias destinadas á publicação com os respectivos originaes, depois de terem apreciado quaes merecem ver a luz publica. Estes trabalhos preliminares, assás tediosos e longos, não podem os socios effectivos ir fazê-los a 50 ou 60 legoas da capital, porque tem aqui outros deveres que cumprir, e por isso não aproveitam o offerecimento. Se o sincero, honesto e judicioso Brandão teve a simplicidade de se fiar em copias subministradas pelas corporações e nos paleographos habeis dellas, pagou bem caro a sua imprudencia, não havendo, talvez, senão um ou dous documentos, dos publicados por integra na 3.ª e 4.ª Partes da Monarchia Lusitana, que esteja devidamente correcto. Quando, finalmente, esta Classe pede, não que venham para a sua secretaria os documentos que pretende examinar e transcrever, mas que se depositem na Torre do Tombo, para onde os remette directamente a pessoa encarregada de os receber, e onde não ha perigo de se extraviarem, nem de serem presa de algum incendio; quando esta Classe prefere á propria commodidade ir alli preparar e dirigir os trabalhos de que está incumbida, temendo os riscos que de outro modo poderiam correr esses restos dos abundantes monumentos historicos que outr'ora possuimos; quando, depois, aconselha ao Governo que os conserve cuidadosamente naquelle archivo, o ponderar-se que não convem que os antigos documentos andem correndo de mão em mão é uma verdadeira inepcia.

Desde o começo desta consulta e no proseguimento della, a Classe forcejou e forcejará sempre por não designar nomeiadamente nenhuma das corporações a que se refere. Move-a a isso um sentimento de generosidade. É todavia forçada a fazer uma excepção quando se tracta da honra do instituto de que forma parte, e da boa fama dos que precederam os signatarios deste papel nas cadeiras que hoje occupam. Na sua representação dirigida ao digno prelado metropolitano, para ser presente ao Governo, o cabido da sé de Braga accusa a Academia de não ter integralmente restituido varios documentos que, por ordem do mesmo Governo, lhe haviam sido confiados. Dos registos da Academia consta, com effeito, que para uso da commissão de Cortes foram chamados a Lisboa, em 1836, varios monumentos do cartorio daquelle cabido; mas dos actos officiaes, junctos por copia á presente consulta, se vê, 1.°, que a Academia pediu um codice e cinco documentos avulsos do mesmo cartorio, indicando o logar onde estes se achavam, e um volume manuscripto do archivo da mitra; 2.°, que foram remettidos pelo cabido o codice e tres dos cinco documentos pedidos, declarando o presidente da corporação que não fora possivel encontrar os outros dous, nem na gaveta onde deviam estar, nem nas diversas gavetas que diligentemente se examinaram; 3.°, que em 1840 foram devolvidos á secretaria do reino para voltarem a Braga o manuscripto da mitra, e bem assim o codice e os tres pergaminhos avulsos que tinham vindo do cabido. A restituição foi, portanto, integral. Esses actos officiaes, que a Classe leva á presença de V. M., não são, porém, só importantes para desfazer uma calumnia: são-no igualmente para provar com quanta razão a Classe aconselhou que os antiquissimos documentos chamados agora a Lisboa fossem conservados no Archivo geral do reino. De cinco pedidos pela Academia, indicando ella o logar onde se achavam, apenas tres existiam naquella conjunctura, porque nem alli, nem nas outras gavetas, se acharam. Di-lo o chefe da corporação; e das suas explicações se deduz que tambem não havia indice do cartorio, nem registo por onde constasse como haviam sido distrahidos. Se da historia, porém, dos cinco diplomas, pedidos casualmente, houvessemos de tirar illações para o resto do archivo capitular, infeririamos que dous quintos dos seus pergaminhos têem sido desencaminhados, apesar das constituições synodaes e das excommunhões fulminadas contra os dissipadores dos titulos da cathedral, excomunhões que poderiam gerar nos animos sérias apprehensões sobre o destino além da campa dos conegos até então fallecidos, mas que teriam sido impotentes para salvar da rapina ou do desleixo os primitivos e veneraveis monumentos da antiga metropole da Galliza.

Ainda, em relação áquella remessa de documentos, faz o reverendo cabido bracharense uma severa increpação á Academia, de que esta Classe não sabe, Senhor, defendê-la, mas para esquivar a responsabilidade da qual se offerece em holocausto. O codice e os tres pergaminhos voltaram a Braga á custa do cabido! É um successo que talvez perturbasse gravemente a economia da fazenda capitular. Liquide-se aquella divida, e a Classe restituirá integralmente o frete dos dous codices e dos tres pergaminhos, como fica provado que se restituiram essas preciosidades.

Se nas suas representações ao Governo, por intervenção do prelado, o reverendo cabido de Braga calumniou a Academia, no officio ao agente desta calumniou todos os poderes publicos. Diz ahi o reverendo cabido que, para se lhe tirarem os documentos de que se tracta, precisa-se de lei precedente que dispense as formalidades do esbulho da sua propriedade, ou sentença do poder judicial que o convença de que a deve largar. Estas poucas phrases, senão são filhas da hallucinação ou de incrivel ignorancia, são um grave insulto a todos os corpos do Estado. O cabido offende o Governo, porque lhe attribue um acto de espoliação, quando a portaria de 11 de setembro não é senão uma providencia administrativa ordinaria, e que honra por mais de um modo o mesmo Governo. Offende o poder legislativo, porque o suppõe capaz de fazer leis inconstitucionaes e absurdas. O legislador nem mantem, nem dispensa formalidades no esbulho, porque nunca póde determinar o esbulho. Quando estatue a expropriação por utilidade publica, estatue sempre a compensação. Offende o poder judicial, porque presuppõe que elle póde ordenar a alguem por sentença que largue a propriedade que é sua. Quando o magistrado julga que o individuo deve perder o que possue, é justamente pelo motivo contrario; é porque se convence de que o individuo retem o que não é seu; e nesse caso, não tira, mas defende a propriedade.

Somos chegados, Senhor, a um ponto, ácerca do qual a Classe de sciencias moraes, politicas e bellas letras tem, por mais de um modo, o dever de lançar neste papel algumas considerações; porque se tracta de um assumpto que é da sua competencia, como corpo official scientifico. O pensamento de qualificar a portaria de 11 de setembro como um acto exorbitante do Governo contra a propriedade não se manifesta só nas phrases acima citadas: revela-se tambem, mais ou menos expressamente, na linguagem de outras corporações desobedientes. Na opinião dellas, os antigos pergaminhos dos respectivos cartorios são uma cousa em que o Governo não póde tocar, sem quebra do direito constitucional que garante a propriedade dos cidadãos; porque esses pergaminhos são os titulos dos bens que possuem, os quaes as dictas corporações de mão-morta suppõe gratuitamente que são uma propriedade sua, analoga á de qualquer individuo ou associação civil.

A Classe disse já e mostrou como muitos dos documentos de que se tracta, pela sua natureza, pelo sua origem, e por factos historicos sabidos e certos, pertencem pura e simplesmente ao Estado; disse e mostrou já como os cartorios das corporações de mão-morta se consideraram sempre archivos publicos; disse e mostrou como os pergaminhos anteriores a 1280 não são nunca, ou quasi nunca, documentos de uso practico nos litigios ou nas duvidas administrativas que podem suscitar-se ácerca de alguns desses bens; e quando o fossem, nem a portaria de 11 de setembro ordena definitivamente a sua retenção na Torre de Tombo, nem o Governo, supposto que de futuro assim o ordenasse, deixaria de prover do modo que estabelece naquella portaria. As corporações obteriam gratuitamente, quando necessarios, transumptos authenticos, fórma unica em que elles costumam figurar na tela judicial. Uma ou outra corporação póde achar no seu seio ou na localidade onde reside um paleographo legalmente habilitado para authenticar os traslados de antigos documentos; mas, na maior parte dos casos, dada a necessidade de taes copias, elles teriam de vir a Lisboa para serem decifrados e reduzidos os seus transumptos a fórma authentica. Qual seria, porém, mais seguro para os velhos pergaminhos, e até mais barato para as corporações; isto, ou as providencias a que se refere a portaria de 11 de setembro?

As corporações falam da propriedade dos pergaminhos, confundindo-a com a de quaesquer outros bens moveis ou de raiz. Os antigos documentos são ou foram titulos de propriedade, o que é diverso. Para qualquer cousa ser materia de propriedade precisa de ter um valor de utilidade; servir aos fins e necessidades do homem. Não sendo como prova de dominio, elles de nada servem ás corporações; e a não ser como monumentos litterarios ou historicos, não tem nenhum valor real. Por este lado as corporações estão bem longe de poderem utilisá-los. Como prova do dominio, nem o Governo quer destrui-los, nem guardados no Archivo nacional ficam menos seguros do que no seio das corporações, antes incomparavelmente mais. Depois, não é o Estado padroeiro de todas essas cathedraes, collegiadas e mosteiros desobedientes? Não teve elle sempre o direito de suprema inspecção sobre o cumprimento dos deveres que resultam para esses corpos das condições da sua fundação e instituição? Não lhe incumbiu sempre vigiar sobre a conservação e uso dos bens unidos aos mesmos corpos? Não deriva immediatamente desse direito o de providenciar do modo mais conveniente sobre a fiscalisação daquelles bens, e de chamar a si os titulos delles quando entender, e sobretudo quando se provar, que esses titulos são tractados com desleixo, ou que podem ser conservados em melhor ordem ou com maior segurança, ou finalmente quando precisar delles para verificar se se tem dado abusos que o mesmo Governo possa e deva corrigir? Se as corporações crêem que os documentos que lhes pedem ainda tem o valor de titulos, em virtude de que direito recusam obedecer á portaria de 11 de setembro?

E preciso, Senhor, dizer por uma vez a verdade inteira. As corporações recalcitrantes, por um capricho insensato, talvez por insinuações perfidas, e provavelmente por apprehensões infundadas de que o conhecimento dos diplomas e chartularios que se lhes pedem possa ser nocivo aos seus interesses como administradoras de rendas e direitos dominicaes, aparentam por esses velhos pergaminhos, inintelligiveis e indifferentes para ellas, um zêlo, um affecto que realmente não sentem. Foi isto que as arrastou a invocarem o direito de propriedade, a falarem de tal direito em relação aos bens que desfructam. Póde o Governo tolerar, toleram os bons principios que as corporações se digam proprietarias dos bens que usufruem? Até aqui a Classe provou por diversos modos o desarrazoado e illegal das resistencias que suscitaram esta consulta, ainda dada a situação de proprietarias, em que as corporações pretendem collocar-se. No caso presente, o antigo direito publico derivado dos antigos principios, das prerogativas do poder supremo como então se concebia, e até o direito canonico relativo ao padroado, bastariam para legitimar o acto practicado pelo Governo e justificar as intenções manifestadas na portaria de 11 de setembro. Mas esta Classe tem de ir mais longe. Desde que se querem estender as actuaes garantias politicas dos cidadãos a corporações de mão-morta, por um sophisma grosseiro; desde que se proclamam doutrinas subversivas que mutilam a acção do poder publico, a Classe tem, pela sua indole, pelos fins da sua instituição, o dever restricto de protestar contra erro tão perigoso. São as corporações que a fórçam ao cumprimento de uma obrigação desagradavel.

A propriedade, Senhor, é um direito preexistente ás sociedades, visto derivar da necessidade que tem o individuo de satisfazer aos fins racionaes para que foi creado. O direito de propriedade estriba-se na lei natural, porque é inherente á natureza do homem. Desde que este direito se não collocar acima das leis positivas, quer constitucionaes quer civis, e anteriormente a ellas, a sociedade acceitará um elemento de dissolução e de morte. Se é o legislador que cria esse direito; se este não o precedeu no mundo, elle póde também crear o direito contrario. Reduz-se tudo a uma questão de conveniencias moraes e materiaes e de opportunidade, e tanto é possivel existir só a propriedade commum, como existir a individual, ou, para exprimir a mesma idéa com diversa formula, tanto é possível a não propriedade, como a propriedade. D'aqui nasce que esta é primordial e principalmente individual. A idéa de propriedade collectiva, como regra, como principio, depois de andar por seculos ao serviço de um despotismo espoliador; depois de attribuir ao chefe do Estado o dominio imminente e aos subditos uma posse e um dominio incompletos, quando o sentimento da liberdade e a razão esclarecida por tal sentimento collocaram os direitos dos cidadãos á sua verdadeira luz, veio, apesar de velha e gasta, pôr-se á mercê das escholas socialistas e communistas. Como em mechanica dizia Archimedes, dêem a estas esse ponto nas regiões do direito, e ellas revolverão o mundo.

A propriedade commum nas associações civis voluntarias não é senão uma forma especial de manifestação da propriedade individual, que lhe muda os accidentes sem lhe alterar a essencia. Dissolvida a associação, a propriedade toma immediatamente os caracteres da individualidade. Não assim nas corporações de mão-morta, cuja existencia depende do poder publico. Ha, por certo, propriedades collectivas; taes são os bens nacionaes de uso commum dos cidadãos; mas esta especie de propriedade, estribando-se puramente na lei, supprime-se, desapparece, transforma-se, accumula-se, tambem á mercê da lei, e é por isso que se denomina propriedade legal. As instituições garantem a propriedade individual, a do cidadão, aquella que se funda n'um direito acima das leis e anterior a ellas. Não podem ir além sem serem antinomicas comsigo mesmas; sem darem ao legislador a funcção de crear e não a de extinguir; sem confundirem o absoluto com o condicional.

Os membros das corporações de mão-morta não gosam menos que outros quaesquer cidadãos da garantia constitucional pelo que respeita á sua propriedade particular. Não lhes é applicavel, porém, a mesma garantia quanto á propriedade collectiva que desfructam, porque essa propriedade é apenas legal. São proprietarios, como membros d'uma associação? N'esse caso, porque não podem alienar; porque não podem testar; porque não se resolverá em propriedade individual esse cumulo de bens, na hypothese de deixar de existir a corporação? É que a sua existencia não deriva da natureza; deriva do direito positivo. Assim, era com sobrada razão que um publicista dizia: «Do mesmo modo que a suppressão de uma corporação não é um homicidio, a revogação da faculdade que lhe foi concedida de possuir bens de raiz não é uma espoliação». Pessoas facticias, a lei póde destrui-las, como as creou; e se a sua existencia é precaria, como é que possuem por um direito absoluto? Comprehende-se que o clero hierarchico desfructe uma porção de bens que o Estado não revocou a si. Como classe de funccionarios, de ministros de uma religião dominante, e por consequencia official, podem ser retribuidos, no todo ou em parte, por este modo: é um systema bom ou mau; mas é um systema que presuppõe a doutrina de que os bens que administram não são propriedade sua e de que nem sequer usu-fructuarios são por direito proprio. Porque recebem corporações e individuos pertencentes á jerarchia da igreja, e cujas congruas estão fixadas, apenas complementos d'essas congruas pelo Thesouro, quando os redditos dos chamados bens ecclesiasticos subministram parte d'ellas? Tractando-se de materias temporaes, se a propriedade ecclesiastica é o mesmo que a propriedade individual, donde provêm a desigualdade que resulta de uma retribuição desigual, que o clero acceita sem murmurar? Se é por se attender só a que tenham a congrua sustentação, porque não será esta calculada tambem em relação aos bens patrimoniaes do sacerdote funccionario? Aquelles que hoje invocam o seu direito de propriedade como sendo analogo aos dos cidadãos têem já reconhecido, pelo facto proprio, que entre as duas cousas não existe paridade.

Mas se nos lembrarmos, Senhor, da origem e historia dos bens ecclesiasticos em Portugal, quanto mais deploraveis e imprudentes não acharemos as doutrinas invocadas pelas corporações desobedientes, em damno da gloria e das letras patrias! Verdadeiramente, entre nós, aos bens d'esses gremios só quadraria uma qualificação repugnante comsigo mesma, a de propriedade anti-legal. Começaram cedo neste paiz, nos principios do seculo XIII, as leis de amortisação, e já antes el-rei D. Sancho I, escrevendo a Innocencio III, affirmava o seu direito de privar o clero dos bens que possuia para lhes dar uma applicação em seu entender mais util. Renovadas successivamente as leis de amortisação, foram tantas vezes vilipendiadas e infringidas pela prepotencia do clero quantas de novo promulgadas. As corporações julgavam-se então tanto acima do legislador quanto parece julgarem-se hoje acima do Governo. Sem recorrer a outros monumentos das varias phases d'essa permanente revolta de um dos corpos do Estado contra o direito publico do reino, basta abrir successivamente os tres codigos que, um após outro, regeram este paiz desde o seculo xv até os nossos tempos, para vermos que os verdadeiros titulos dos bens usufruidos pelas corporações não são tanto os antigos pergaminhos que ellas recusam largar da mão para utilidade commum, como o desprezo insolente de leis que os nossos monarchas nunca tiveram força para tornar effectivas. As Ordenações affonsinas, as manuelinas e as philippinas reproduzem sempre o direito antigo, que prohibia ás corporações de mão-morta possuir bens de raiz, mas a clausula pela qual se perdoava a desobediencia passada perdia tudo; porque provava a impotencia da lei, e abria campo a novos abusos, que se tornavam a perdoar para se tornarem a repetir. O melhor titulo de propriedade que as corporações podem invocar ácerca dos bens que desfructam é este. V. M. apreciará a sua legitimidade.

Resta unicamente, Senhor, á Classe de sciencias moraes, politicas, e bellas letras desempenhar um dever que desde o principio d'esta consulta reconheceu incumbir-lhe. É o de dar a razão por que aconselhou ao Governo que conservasse no Archivo da Torre do Tombo os documentos mais antigos e preciosos das corporações tanto extinctas como existentes, depois de utilisados pela Academia. Não foi, Senhor, um conselho dado de leve: foi a triste convicção de que, sem isso, os vestigios e as memorias authenticas das gerações que passaram irão gradualmente desapparecendo, como até aqui tem desapparecido. Nos logares onde se acham, os antigos pergaminhos e chartularios não são entendidos nem apreciados, nem resguardados de um modo conveniente contra os accidentes que possam sobrevir-lhes: não ha ordem racional na sua arrumação, nos raros casos em que estão n'alguma ordem: não ha indices aos quaes se possa recorrer quando é necessario consultá-los. Por quasi todos os archivos se encontram pergaminhos nas costas dos quaes se escreveu a palavra fatal inutil. Inutil quer dizer que não serve a algum interesse material da corporação. Em regra, é no meio d'estas inutilidades que se vão achar os documentos historicos mais importantes. Quaes tem sido, porém, os effeitos d'aquella qualificação, quaes continuarão a ser, facil é adivinhá-lo. N'alguns cartorios a phrase é latim, tambem escripta nas costas do diploma, soa igualmente como sentença de condemnação. Acham-se frequentemente pergaminhos (e destes muitos n'um cartorio onde tal barbaridade não era de esperar), cuja leitura quiz fazer algum curioso inhabil, cubertos de aguadas de galha, que avivaram momentaneamente as letras sumidas, mas que depois formaram uma só mancha negra, onde não tornará a ser possivel decifrar uma unica palavra. Grande parte dos cartorios dão, ao simples aspecto dos seus documentos, as provas de que durante annos estiveram, e de que estão ainda expostos á chuva, ao passo que não ha um só que se possa dizer ao abrigo dos incendios. As abobadas arejadas e enxutas, debaixo das quaes se guardam a parte antiga e ainda uma grande porção das addições modernas do Archivo Nacional, uso adoptado tambem por alguns mosteiros da congregação benedictina, que sabia tractar objectos destes, porque sabia entendê-los e apreciá-los, não existem em nenhuma parte. É esse um dos factos que mais instantemente exigem a conservação na Torre do Tombo dos já tão rareiados documentos dos primeiros dous seculos da monarchia e dos que a precederam. A imprevidencia de collocar cartorios em logares não convenientemente isolados fez com que n'uma noite perecessem inteiros os quatro archivos mais ricos de monumentos da Beira Alta, os de Salzedas, Tarouca, S. Pedro das Aguias e S. Christovam de Lafões, bem como o incendio da Casa-pia, do Porto deu aso a perderem-se (dado que perecessem nas chammas, o que é controvertido) quasi todos os cartorios monasticos do Minho, que constituiam a parte mais importante das riquezas do paiz n'este genero. O celebre incendio do Thesouro, que tambem foi fatal a esta especie de documentos, é outro grande exemplo da imprudencia que ha em não conservar archivos cuja perda é irreparavel em edificios isolados ou pelo menos abobadados.

Expostos aos lentos effeitos da humidade e a serem devorados pelas chammas, os antigos documentos das corporações nas provincias estão, além d'isso, sujeitos ás devastações das guerras civis e estrangeiras. Explicam estas em grande parte o não se acharem em quasi nenhumas camaras do reino documentos originaes anteriores ao reinado de D. Diniz. Nas tres provincias do norte, esta Classe apenas pôde descubrir a existencia de um no cartorio da camara de Bragança. Sabemos, todavia, que ainda certo numero d'elles existia nos fins do seculo passado. Não teria sido mais util para o paiz, e até para as proprias municipalidades, que o Governo tivesse feito recolher esses antiquissimos pergaminhos no Archivo geral do reino? Quando el-rei D. Manuel mandou expedir os foraes novos, recolheram-se alli as cartas constitutivas e os privilegios annexos a ellas, respectivos aos concelhos a quem se concediam aquelles foraes novos. É por isso que, em parte, os seus primitivos titulos de liberdade ainda hoje existem. E que é feito de tudo o mais que lá ficou? Desappareceu completamente.

A estes accidentes accresce a deterioração permanente que o desleixo e a ignorancia produzem. No cartorio de certa corporação, lançado pela janella fóra durante a guerra peninsular por alguns soldados franceses, e de que só uma pequena parte foi recolhida, achou-se ainda em 1853 incrustado nos pergaminhos o lodo em que estiveram mergulhados durante alguns dias; tal tinha sido o desvelo da corporação ácerca dos monumentos que salvara. Não sabemos se é das que bradam contra a offensa feita ao seu direito de propriedade. Em outro archivo de um corpo de mão-morta, os documentos antigos tinham sido lançados em monte na divisão inferior de um armario humido, cujo pavimento era de tijolo. Alli haviam apodrecido até a altura de duas ou tres pollegadas, constituindo, quando se examinaram em 1853, uma massa negra e compacta. Salvaram-se apenas os que tinham cahido na parte superior d'aquelle acervo, aonde a podridão ainda não chegava. Outra corporação pediu tempo ao commissario da Academia para lhe tornar accessivel o cartorio. Estava este n'um aposento sem vidraças, e pelas roturas das janellas os passaros tinham estabelecido alli a sua residencia habitual. Era preciso desimpedir aquella nova especie de estabulo de Augias. A maior parte das corporações, cujos archivos se examinaram n'esse e no seguinte anno, não poseram obstaculo algum a que os documentos de que se tomava nota fossem separados e emmassados á parte, como se fez. A razão era simples. Tanto importava aquella disposição como outra qualquer, visto não existir ahi ordem nem indices. Cartorios ha, e dos mais notaveis, onde se adoptou a distribuição corographica, mas esta distribuição era e é apenas parcial, e necessariamente incompleta. Os documentos que por algum resumo ou declaração externa, postos no verso do pergaminho, ou que por serem modernos podiam facilmente classificar-se como relativos a tal ou tal propriedade, collocaram-se nos massos respectivos. Todos aquelles, porém, cujo conteúdo se ignorava, ou que refugiam a este systema imperfeitissimo, assignalados ou não com o ferrete de inuteis, foram amarrados em feixes e atirados para o fundo de armarios, onde ficaram jazendo por dezenas e dezenas de annos, cubertos de pó e condemnados ao esquecimento e a lenta ruína. Em um d'estes cartorios, depois de se ter concluido o seu exame, achou-se uma gaveta, em logar pouco apparente, na qual, debaixo de um monte de caruncho, se encontraram 40 a 50 bullas originaes expedidas pela maior parte do decurso dos seculos XII e XIII. Talvez durante 50 ou 60 annos ninguem tivera noticia da existencia d'aquelles diplomas.

Certa corporação clerical teve a singular idéa de enquadernar os seus pergaminhos avulsos. Era um arbitrio devido, segundo parece, á fecunda imaginação de uma communidade franciscana, cujos documentos primitivos se acham n'uma repartição de fazenda da provincia cosidos n'um volume, podendo ler-se apenas parte de cada um d'elles. A corporação, porém, encontrara uma difficuldade imprevista em aproveitar o alvitre dos frades. Os sellos pendentes eram um obstaculo a essa obra meritoria. Cortaram-nos, ensacaram-nos, e hoje mostram innocentemente aquelle monumento de sabedoria. Os sellos, sobretudo os dos diplomas pontificios, esperam pela trombeta final do archanjo para se unirem aos respectivos corpos, porque só a trombeta final poderá operar tal maravilha.

Esta mesma corporação possuia um chartulario dos mais conhecidos na nossa litteratura historica. Esse chartulario tinha saído do archivo, por ordem do prelado maior, havia quasi vinte annos, para se tirarem delle copias de varios documentos, de que se carecia para objecto litterario. Quando em 1854 a Academia mandou examinar os cartorios provinciaes, o seu commissario perguntou pelo celebre codice. Fôra elle que tirara aquellas copias quasi vinte annos antes. Disseram-lhe que existia bem guardado. Pediu-o: apresentaram-lhe uma copia moderna. Observou que esse volume não passava de um bom ou mau transumpto do manuscripto de que se tractava. Não se conhecia outro! O commissario da Academia recordou-se, porém, de uma circumstancia: as copias tiradas por elle tinham sido feitas em certa livraria vizinha. Teria esquecido alli o codice? Era um desleixo de vinte annos, absurdo, vergonhoso, incrivel, mas por isso mesmo, probabilissimo. Propôs que se buscasse, ou antes, offereceu-se elle proprio a procurá-lo. Acceitou-se a offerta. Não se enganava. O precioso chartulario vivera desterrado vinte annos, emquanto o seu pouco leal Sosia lhe usurpava as homenagens daquella corporação erudita.

No fasciculo já impresso dos Monumenta pertencente á serie intitulada Scriptores foi inserido um chronicon, cujo original existe no archivo de uma das corporações ecclesiasticas que representam a V. M. contra a portaria de 11 de setembro. Havia duas edições discordes entre si, e ambas inexactas, como depois se viu. Quando se colligiam os monumentos destinados a entrar naquelle fasciculo, buscou-se obter o codice original para restabelecer a verdadeira licção. Era impossivel. As excommunhões contra a extracção dos documentos do cartorio onde elle existia obstavam a isso. O anjo percuciente velava á porta do cartorio com a espada de fogo na mão. Á Academia, porém, repugnava manter n'um trabalho serio, e feito com consciencia, o texto incorrecto. Favoreceu-a uma circumstancia imprevista. A vigilancia do anjo percuciente fora entretanto illudida. Pessoa particular obtivera por esse tempo que o codice viesse a Lisboa. Empregaram-se então meios indirectos para alcançar copia exacta do chronicon. Mas voltou o codice ao logar d'onde saíra? Esta Classe ignora qual foi o seu ulterior destino.

É tempo, Senhor, de colher as vellas ao discurso. Parece-nos que o Governo de V. M. fica habilitado para despachar as supplicas das corporações conforme a justiça e as conveniencias publicas. A Classe tem a consciencia de que, tanto nas suas sollicitações como nos seus conselhos, procurou sempre conciliar o zelo com a circumspecção, e que não deu neste negocio um único passo que não signifique o cumprimento de um dever. Resta ao Governo cumprir o seu. Se no assumpto que se debate ha lucta entre o amor das cousas patrias e um egoismo pueril, entre a sciencia e a ignorancia, entre a luz e as trevas, não julga esta Classe que o reinado de V. M. seja a epocha mais propicia para a victoria da barbaria contra a civilisação.

Deus guarde a vida de V. M. como o paiz e as letras hão mister.

A SUPPRESSÃO

DAS
CONFERENCIAS DO CASINO

1871

A

J.F.

Teve v. s.ª a bondade de me remetter o discurso que o sr. Anthero do Quental proferiu ou devia proferir no Casino (da sua carta não infiro claramente se o facto chegou a verificar-se) o que, com os discursos dos oradores que o precederam, deu aso a serem tolhidas pelo governo aquellas conferencias. Pede-me v. s.ª que leia o discurso e lhe dê a minha opinião sobre o seu conteúdo e sobre o procedimento da auctoridade. Nesta vida positiva que hoje vivo, pouco é o tempo que me sobeja para a leitura, nem, a falar verdade, o espirito se inclina muito para esse lado. Depois, as suas perguntas referem-se a assumptos graves, e até abstrusos, que, porventura, não cabem na capacidade da minha intelligencia. Accresce que geram em mim tristeza as nossas questões publicas, e com o egoismo de velho fujo de pensar nellas. Apesar, porém, de tudo isso, forcejarei por fazer uma excepção a favor deste discurso, por certa sympathia que sinto pelo auctor, não obstante a profunda divergencia que ha entre as nossas opiniões. É, talvez, porque no seu caracter me parece descobrir uma destas indoles nobremente austeras que cada vez se vão tornando mais raras. Revela o trabalho que me remette as precipitações e os impetos proprios da idade de quem o delineou. Só os annos nos curam desse defeito. Quizera eu que o sr. Anthero do Quental conhecesse melhor a doutrina e a tradição verdadeiramente catholicas, porque havia de ser menos injusto com o catholicismo, embora não fosse menos severo, ou talvez o fosse ainda mais, com os padres.

Quanto á prohibição das conferencias, que quer que lhe diga? É peior que uma illegalidade, porque é um desproposito; e na arte de governar, os despropositos são ás vezes peiores que os attentados. O que sería escutado e em grande parte esquecido por cem ou duzentos ouvintes será agora lido e meditado por milhares, talvez, de leitores. Diz-me que se tomou por pretexto da suppressão das conferencias o desaggravo da religião offendida. Erro deploravel. Idéa perseguida, idéa propagada: lei perpetua do mundo moral, perpetuamente esquecida pelo poder. Por certo, o governo tem obrigação de manter a religião do Estado, como tem obrigação de manter todas as instituições do paiz. Mas o respeito pela inviolabilidade do pensamento entra tambem no numero das suas obrigações. E quando a religião do Estado e a liberdade do pensamento collidem, é aos tribunaes judiciaes que cumpre dirimir a contenda. O discurso oral é manifestação da idéa, como o é o discurso escripto. Não se póde supprimir o orador, como se não póde supprimir o escriptor. Para um, como para outro, ha a responsabilidade e a punição.

Depois, creio pouco que o sr. Anthero do Quental, apesar da sua clara intelligencia, e da auctoridade moral que lhe dá a integridade do seu caracter, seja assás poderoso para derribar o catholicismo, a religião de S. Paulo e de S. Agostinho, de S. Bernardo e de S. Thomás, de Bossuet e de Pascal. O perigo, não absoluto, mas relativo, está n'outra parte. Aggredido pela frente, o catholicismo póde applicar a si, melhor que o protestantismo, o verso do bello hymnario de Luthero.

Ein feste Burg ist unser Gott.

Não se toma a fortaleza divina; mas póde ser minada e alluida por uma guarnição desleal. É este actualmente o grande perigo que a ameaça: não são os discursos do Casino. A situação da igreja assemelha-se hoje áquella em que se achava no IV seculo, quando o arianismo, no dizer de S. Jeronymo, triumphava por toda a parte, e até o papa Liberio adheria á formula ariana do conciliabulo de Sirmio e acceitava como orthodoxa a heresia. Esta situação tristissima da igreja é cousa um pouco mais grave para a religião do Estado do que todas as hostilidades imaginaveis dos seus adversarios leaes.

Que me seja licito fazer uma pergunta, que vai maravilhá-lo. Existe ainda entre nós o catholicismo proclamado instituição social pela Carta? A resposta que eu proprio darei a esta pergunta ainda, porventura, o maravilhará mais. Existe apenas na fé perseverante, mas silenciosa e triste, de alguns fieis, que deploram os destinos preparados á igreja por um clero geralmente faccioso e sem convicções. Hoje a igreja, se podesse perecer, correria grande risco de não completar o vigesimo seculo da sua existencia. Dar-lhe-hei nesta carta a razão do meu dicto, embora isso a torne, talvez, demasiado longa; mais longa, por certo do que eu desejaria.

Caracter fundamental do catholicismo verdadeiro, do catholicismo que nos inculcaram na infancia, era a immutabilidade, a perpetuidade e a universalidade dos seus dogmas e das suas doutrinas na successão dos tempos, caracter precisamente descripto no celebre Commonitorium de Vicente de Lerins. Nessa crença, tão incomprehensivel seria a suppressão de um dogma antigo, como a addição de um dogma novo, ou (para me servir de phrase de um theologo eminente do seculo XV) nessa crença não se tinha por menor heresia affirmar ser de fé o que não o era, do que negar que o fosse o que era [4]. Nisto consistia practicamente a immensa vantagem do catholicismo sobre as seitas dissidentes, indefinitamente variaveis, fluctuantes, subdivididas de dia para dia, gerando as mais desvairadas aberrações religiosas. Além disso, a igreja tinha leis que a regiam desde os seculos primitivos e que só os parlamentos christãos, os concilios, podiam alterar, quando essas alterações não fossem de encontro ás tradições apostolicas, e a que todos os membros da sociedade catholica, desde o papa até o mais obscuro entre os fieis, eram obrigados a obedecer. Depois, na economia da sua administração interna, nos ritos, e em outras manifestações accidentaes do culto, cada igreja nacional, e até cada provincia ecclesiastica, tinha os seus usos e liberdades especiaes, que a igreja universal consentia, porque o que constitue verdadeiramente a unidade é a unidade da fé. Governo parlamentar, maximas fundamentaes dominando atravez dos seculos a legislação canonica, direito commum conciliando-se com o respeito ás autonomias, ninguem superior á lei, a fraternidade humana, a tolerancia material ao lado da intolerancia doutrinal; em summa, uma grande parte das conquistas da civilisação moderna são apenas velhas conquistas do christianismo transferidas para a sociedade temporal. Cuidando aportarem a praias ignotas, os publicistas mais de uma vez tem plantado padrões de descobrimento em regiões onde, embora occultos pelos musgos e sarças, os padrões da cruz estão plantados ha mais de mil e oitocentos annos.

Sem duvida, durante a idade media, grande numero de abusos se tinham introduzido na disciplina, no mechanismo da sociedade catholica. Houve sempre homens grandes e virtuosos que luctassem contra esses abusos, mas nem sempre alcançavam moderá-los e mormente vencê-los. Na epocha dos concilios de Constança e de Basilea,[5] os dous ultimos concilios sinceros e livres que a historia ecclesiastica memora, sorriu para a igreja uma esperança de reforma; mas essa esperança desvaneceu-se em breve. Os abusos adquiriram novo vigor quando o renascimento veio substituir as tendencias christans pelas tendencias pagans, e se tornaram possiveis papas como Alexandre VI e Leão X, mais devotos da trindade de Momo, Venus e Baccho do que da trindade evangelica. Então, em logar da reforma, veio a revolução: veio Luthero. O catholicismo, mutilado, tornou-se fragmento, embora grandioso fragmento. A resistencia á revolução gerou, porém, a assembléa de Trento. Trento exprime um facto notavel. A igreja servira, seculos antes, como de typo á sociedade temporal: a sociedade temporal, onde as liberdades da idade media tinham cedido já o campo ao absolutismo victorioso, reflectiu na reorganisação da igreja. Como o absolutismo trouxera vantagens na vida civil, trouxe-as tambem na vida espiritual; mas, tanto aqui como alli, essas vantagens foram bem modestas comparadas com os males que derivavam da nova contextura da sociedade religiosa e da sociedade temporal; tanto aqui como alli, um abuso derribado era o prenuncio de muitos que íam pullular. Esses abusos, quer antigos quer modernos, ingeridos na sociedade christan, invadiam sempre mais ou menos as igrejas nacionaes. Mas, no meio da decadencia exterior, a essencia do catholicismo—o dogma—mantinha-se intacta. O symbolo salvo pelo concilio de Nicéa e pelos esforços de S. Athanasio continuou até nós immutavel. Na propria disciplina, o poder temporal, quando nisso interessava, reprimia as tendencias abusivas de Roma, e até, não raramente, o episcopado, momentaneamente desperto, recordava-se da sua instituição divina. Novo Encelado, revolvia-se debaixo da enorme pressão do papado e, batendo com as algemas nos degraus do throno pontificio, fazia-o estremecer. Travavam-se ás vezes luctas sérias entre os dous absolutismos. Ambos tinham por alliado o céu. Tu es Petrus, allegava o papa: Per me reges regnant, redarguia o rei. Pasce oves meas: acudia o papado. Omnis potestas a Deo: repunha o absolutismo. Roma, por via de regra, não levava a melhor, sobretudo quando os bispos, ou por conveniencia ou por convicção, se associavam ao poder temporal, o que era frequente.

Ao promulgar-se a Carta, Portugal achava-se nesta situação religiosa. A Carta, convertendo o catholicismo em instituição politica, adoptava-o como elle existia no paiz—essencia e fórma; dogma e disciplina. Disse o legislador que a religião catholica apostolica romana continuaria a ser a religião do reino: não disse que essa instituição seria uma cousa nova, fluctuante, mudavel, conforme approuvesse aos jesuitas ir supprimindo ou annexando dogmas á doutrina catholica, mediante o assenso ou inconsciente ou incredulo do papa e do episcopado. O que continúa não é o que vem de novo; é o que existe no acto de continuar. Ora os factos estão desmentindo esta doutrina irrefragavel. Desde a promulgação da Carta tem-se realisado gradualmente uma revolução na igreja catholica. Com assombro da gente illustrada e sincera, vimos transformar em dogma uma superstição dos seculos de trevas, rendoso mealheiro de franciscanos, tinctura de pelagianismo, aproveitada hoje para aviar receitas na botica de S. Ignacio, a immaculada conceição de Maria, dogma que forçadamente conduz ou á ruina do christianismo pela base, tornando inconcebivel a Redempção, ou á deificação da mulher, á mulher-deus, á mulher redemptora, recurso tremendo nas mãos do jesuitismo, que, lisonjeiando a paixão mais energica do sexo fragil, a vaidade, o converte em instrumento seu para dilacerar e corromper a familia, e pela familia a sociedade. Depois, ludibrio desses homens de trevas, vemos o papa, celebrando uma especie de concilio disperso, mandar perguntar pelas portas dos bispos que tal acham aquelle appendiculo á fé catholica. Os bispos, pela maior parte, encolhem os hombros ou riem-se, dizem-lhe que está vistoso, e vão jantar. Depois, os que falam em nome do pontifice, tendo tornado virtualmente absurdo, por inutil, o sacrifício do Golgotha para a redempção da humanidade, ou dando ao Christo um adjuncto na sua obra divina, divertem-se em negar no Syllabus os dogmas, um pouco mais verdadeiros, da civilisação moderna, e tendo elevado o erro, apenas tolerado, e ainda mal que tolerado, nos dominios do opinativo, a dogma indisputavel, e sanctificado assim uma opinião peior que ridicula, convidam a sociedade temporal á guerra civil. É a Companhia de Jesus na sua manifestação mais caracteristica. Os principios da Carta, como os de todas as constituições analogas, são condemnados, anathematisados, exterminados in petto. É a communa de Paris, prefigurada em Roma, a arrasar e queimar, em vez de edificios, todas as conquistas do progresso social, todas as verdades fundamentaes da philosophia politica. Ao concilio vagabundo segue-se então o concilio parado. É que falta ao Syllabus a sancção divina. Dar-lha-ha a infallibidade indossada pelo episcopado ao papa ou á sua ordem. Ajunctam-se não sei quantos bispos, muitos bispos; uns reaes, outros pintados: agremiam-se; e o papa pergunta ao gremio, em vez de o perguntar a si mesmo, se é infallivel. Os bispos tornam a encolher os hombros ou a rir-se, dizem-lhe que sim, e vão ceiar. O papa infallivel, que não sabía se era fallivel, fica emfim descançado, e os bispos ceiados, dormidos e desappressados do visum est Spiritui Sancto et nobis do concilio apostolico de Jerusalem, transferido definitivamente para a Casa-professa, voltam a annunciar aos respectivos rebanhos essa nova correcção das erroneas doutrinas da primitiva igreja.

Taes são os deploraveis e incriveis successos que temos presenciado. O jesuitismo converte o infeliz Pio IX n'um Liberio ou n'um Honorio, induzindo-o a subscrever heresias, e a grande maioria dos bispos, creando na igreja uma situação analoga á dos tempos em que o arianismo dominava por toda a parte, e abandonando a maxima sacrosancta da immutabilidade da fé, tornam-se em arautos e pregoeiros dos desvarios de Roma. As novidades religiosas vem perturbar as consciencias, e o marianismo e o infallibilismo quasi levam o christianismo de vencida na igreja catholica. Ninguem vê isto; ninguem sabe disto. É que, em Portugal, os que ainda crêem em Deus e na divina missão de Jesus, sem crerem na conceição immaculada nem na infallibilidade do summo pontifice, pelo seu diminuto numero e pela tibieza que é geral em todas as crenças, não tem nem força, nem resolução para arrostar com as iras do beaterio neo-catholico. O governo, esse vê só o Casino, ouve só os discursos do Casino. Aquillo é que ameaça subverter a religião, a monarchia e a liberdade. Dedit abyssus vocem suam. A voz do abysmo são aquelles quatro ou cinco mancebos que vão falar de cinco ou seis questões desconnexas a cem ouvintes, metade dos quaes provavelmente não entendem a maior parte do que elles dizem, o que tambem é muito possivel me succedesse a mim.

Isto é simplesmente, macissamente, indisputavelmente ridiculo.

O que é grave em si, e como tendencia, e como symptoma, é a intervenção da policia preventiva nessa questão: é a policia violando um direito anterior á lei positiva, o direito da livre manifestação das ideas, direito exercido por individuos que se apresentam franca e lealmente adversarios do catholicismo e acceitam sem tergiversar a responsabilidade e a penalidade que possam corresponder ao seu acto. O governo parece ignorar que o bom ou mau uso dos direitos absolutos está acima e além das prevenções da policia. Dizer-se que se respeita a liberdade do pensamento, sob a condição de não se manifestar, é pueril. Na manifestação é que reside a liberdade, porque só os actos externos são objecto do direito, e a liberdade de pensar em voz alta é um direito originario, contra o abuso do qual não póde haver prevenção, mas unicamente castigo. Menos essencial é o direito eleitoral ou a garantia do jury. Traz aquelle não raro violencias, corrupções, tumultos: traz esta pela indulgencia, ás vezes pela venalidade, frequentemente pelo temor, audacia nos maus, frequencia nos crimes. A propria religião dá pretextos ao fanatismo, e o fanatismo tem escripto a sua historia com lagrymas e sangue na face dos seculos. Pois bem: supprimi o eleitor; supprimi o jurado; supprimi a religião; supprimi tudo, pelos perigos que de tudo podem advir. Fique só a prevenção e a policia.

O seu amigo Anthero do Quental podia fazer dez, vinte, cem conferencias contra o catholicismo, comtanto que não perturbasse a paz publica, e o governo podia querelar d'elle dez, vinte, cem vezes. Di-lo o artigo 363.° do codigo civil. Não assim a respeito das novidades que tem alterado a indole da igreja catholica. Aqui não se tracta do modo como um cidadão exerce um direito inauferivel: tracta-se do modo como funccionarios publicos, segundo a jurisprudencia recebida, exercem as suas funcções. Visto que assim se entende a Carta, os prelados diocesanos e o seu clero são funccionarios, não só porque o poder temporal lhes dá uma intervenção maior ou menor em assumptos de competencia civil: são funccionarios publicos no proprio ministerio sacerdotal; porque, convertida a religião em instituição politica, os ministros d'ella são agentes e executores da lei constitucional, justamente na esphera espiritual; absurdo, na verdade, grande, mas corollario ineluctavel de outro absurdo maior, a interpretação que os reaccionarios e ainda alguns liberaes dão ao artigo 6.° da Carta.

Eram acaso dogmas em 1826 o immaculatismo e o infallibilismo? Quem ousaria affirmá-lo? Era em 1826 um dos caracteres essenciaes do catholicismo a perpetuidade da fé e a sua identidade atravez dos seculos? Ninguem se atreveria a negá-lo. Os proprios restauradores de velhos erros, agora convertidos em dogmas, fazem esforços desesperados para os filiarem nas tradições da igreja. São esplendores do céu que andavam nublados. Acceitavam-se, porventura, antes dessa epocha as maximas do Syllabus contradictorias com as leis do reino, com o seu direito publico? Já notei que nem o proprio absolutismo acceitava aquellas que o contrariavam quando, dispersas, não se pensava ainda em compaginar essa especie de mappa estrategico da campanha contra a civilisação. O absolutismo tinha o placet regio para repellir as invasões de Roma e os proprios erros de doutrina em que Roma, ou antes os successores de Pedro, podiam, como elle, não perpetuamente, mas temporariamente, cahir; e o absolutismo usava amplamente desse recurso. Era uma praxe sanctificada pelo simples senso commum, pelo direito que tem todo o dono de casa de examinar as doutrinas que os vizinhos lhe inculcam á familia. D'ahi derivou a legitimidade da convocação dos primeiros concilios ecumenicos pelos imperadores romanos.

A historia do placet ou exequatur é por toda a parte rica de peripecias. Nos ultimos seculos, o rei e o papa eram dons duellistas de supremo cavalheirismo e esmerada educação. Das mutuas delicadezas, dos apices de benevolencia não omittiam um só ao encetarem qualquer lucta. Quasi que sentiam um pelo outro mutua ternura. O rei beijava, cá de longe, o pé do papa: lá de longe, o papa estendia para o seu filho predilecto a benção apostolica. A questão, que se iniciava pela recusa do placet, terminava, de ordinario, por ser intimado o nuncio para sair da corte em vinte e quatro horas, e por ser o paiz posto em interdicto. Chamava-se então a isto, na phrase dos homens de estado e dos jurisconsultos, concordia do sacerdocio e do imperio.

A Carta, transformando a religião em instituição politica, manteve felizmente o beneplacito a que estavam sujeitas sem excepção todas as letras apostolicas de caracter generico. Digo, felizmente, porque, em vez de se dar ao artigo 6.° da Carta uma interpretação racional, e que não esteja em antimonia com as garantias dos cidadãos e com as maximas mais indubitaveis das sociedades livres, dá-se-lhe, com acceitação commum, um valor monstruoso e illiberal. Racionalmente, a instituição de uma religião do Estado n'um paiz livre não póde significar senão uma homenagem á crença da grande maioria dos cidadãos, homenagem representada pela manutenção do sacerdocio e do culto a expensas do Estado, pelo singular privilegio de ser este culto o unico publico, e pelas demonstrações de respeito para com a religião da sociedade que se exigem de todos os cidadãos. Ao lado disto, n'um paiz livre, não póde deixar de ser escrupulosamente mantida a plena liberdade da consciencia, e removida completamente a mistura dos actos e formulas religiosas com as phases e com os actos da vida civil em que tal mistura produza annullação de direitos ou da igualdade de direitos. Com semelhante garantia, e nesta situação transitoria entre o antigo predominio de uma crença exclusiva e tyrannica e a distincção precisa entre o estado e a igreja, que tem de vir a formular-se definitivamente nas sociedades futuras, as prevenções do § 14.° do artigo 75.° da Carta seriam excessivas, e até, porventura, desnecessarias. Mas, quando se quer que a existencia de uma religião do Estado importe para a universalidade dos cidadãos o dever de se conformarem com os preceitos della em todos aquelles actos da vida exterior que taes preceitos possam abranger, e se dá a uma crença religiosa, isto é, a certa norma das relações entre o homem e Deus, os caracteres e a natureza de uma norma das relações entre o homem e a sociedade, é obvio que se attribue á religião uma indole mundana, temporal, derivando unicamente a sua auctoridade e a sua força coactiva de ser instituição politica, e essa força e auctoridade hão de manter-se, interpretar-se, applicar-se, circumscrever-se, pelos mesmos meios e pelo mesmo modo por que se mantem, interpretam, applicam e circumscrevem as das outras instituições analogas.

Supposta a theoria da coacção religiosa, supprimir na constituição a doutrina do beneplacito seria absurdo, porque seria impossivel sem ella impor aos ministros a responsabilidade por tolerarem qualquer infracção do artigo 6.° da Carta, quando a infracção procedesse de abusos da curia romana, de excessos do poder espiritual, do mesmo modo que seria impossivel impor-lha recusando-lhes a inspecção dos actos do clero official, ainda relativos ás suas funcções puramente sacerdotaes. É certo que o direito de beneplacito é um dos erros feios anathematisados no Syllabus; mas tambem é certo que no Syllabus está anathematisado um bom terço dos artigos constitucionaes da Carta.

Tendo, pois, os ministros por dever a manutenção da crença official na sua integridade, nem mais nem menos, e possuindo os meios que lhes faculta a constituição para desempenharem esse dever, como é que os governos d'esta terra tem defendido, em relação ás aggressões do poder espiritual, a instituição politica da religião do Estado? De um modo, que, se a responsabilidade ministerial fosse entre nós cousa séria, e não uma phrase inventada para os ambiciosos em disponibilidade darem vaias aos ambiciosos em exercicio, receio muito que a maioria dos nossos ministros, ha vinte e cinco ou trinta annos a esta parte, tivessem corrido grande risco de severo castigo. Essas loucuras practicadas no centro da unidade catholica, a que já me referi, reproduzem-se entre nós. A historia da igreja portuguesa nos ultimos annos é uma contradicção permanente com a Carta. Altera-se o dogma e busca-se alterar a disciplina. Nas pastoraes, nos pulpitos, na imprensa infallibilista inculcam-se novidades no regimen da igreja e novidades de crença. Os missionarios e uma parte do clero curado repetem ao povo quantas semsaborias se espriguiçam por essas vastas charnecas das allocuções que os jesuitas assignam com o pseudonymo de Pio Nono. Os principios que são hoje condições essenciaes da existencia politica da nação portuguesa apontam-se ao povo ignorante como invenções do diabo. Missões dos agentes do jesuitismo, umas ineptas, outras astutas, instillam por toda a parte o veneno do ultra-montanismo extremo, e corrompem o elemento social, a familia, sobretudo pela fraqueza mulheril. Vemos bispos que protegem esses agentes, e que os applaudem; parochos que os acceitam para que elles façam o que, em diverso sentido, fora dever seu fazer. É uma conspiração permanente, implacavel contra a sociedade. As resistencias nascidas no seio do proprio clero são difficilimas, senão impossiveis. O que tentasse levantá-las seria esmagado. Os antigos institutos monasticos, que pela emulação, e pela seriedade e profundeza dos seus estudos, se contrapunham ao jesuitismo e á sua sciencia facciosa e dolosa, desappareceram, e se hoje se restaurassem entre nós, succederia o que succede quasi por toda a parte: ir-se-lhes-hia encontrar a roupeta de S. Ignacio debaixo da cogulla benedictina ou augustiniana. O presbyterado, que é como a burguesia da igreja, e no seio do qual se encontram já muitos sacerdotes moços, ao mesmo tempo crentes e illustrados, não tem força para readquirir nos negocios da sociedade christan o quinhão de influencia que a disciplina primitiva lhe dava. E, todavia, só uma especie de presbyterianismo orthodoxo e simplesmente disciplinar tornaria agora possivel dar-se algum remedio á ruina da igreja; porque talvez esses homens novos quizessem e soubessem congraçá-la com a sociedade moderna. Infelizmente, porém, á abdicação dos bispos nas mãos do papa, começada ha seculos e consummada no nosso tempo, tem correspondido a servidão cada vez mais profunda dos presbyteros. Ao procedimento do episcopado póde applicar-se a phrase de Tacito «omnia serviliter pro dominatione». Tudo o que tende a dar a menor sombra de independencia ao clero inferior irrita o ciume dos prelados. Sirva em Portugal de exemplo a pertinaz resistencia que se tem feito ás transferencias de parochos sem a intervenção episcopal. De certo as tradições disciplinares do velho catholicismo não favorecem essas mudanças; não é, porém, a quebra dos canones que incommoda os prelados; e, senão, digam se viram já algum delles indignado de o transferirem para sé mais importante ou mais pingue sem a intervenção do concilio provincial, embora o consorcio entre o bispo e a sua igreja não seja menos sério do que o é entre o presbytero e a sua parochia. O que os magôa é que o simples clerigo possa obter a minima vantagem sem que propriamente lh'a deva; que não dependa delles sempre e em tudo. As aspirações desta succursal da Casa-professa a que ainda hoje se chama igreja docente resumem-se n'uma formula breve: perfeito absolutismo na jerarchia sacerdotal, tendo por cuspide um summo sacerdote, como Deus infallivel. Roma homologou, substituindo-o á constituição da igreja, o instituto da Companhia, porque assim são mais precisos e pontuaes os movimentos estrategicos do exercito ultramontano sob o commando do geral dos jesuitas, e o pensamento da assembléa celebrada em Trento ha trezentos annos tende sempre, com mais ou menos fortuna, á sua completa realisação. O absolutismo na igreja é como o prodromo do absolutismo na sociedade civil, sanctificado pelo Syllabus com os anathemas á liberdade. Depois, fundindo-se ambos n'uma ultima evolução, a sua synthese definitiva seria o poder illimitado e omnimodo do papa, do pontifice-deus, sobre a existencia interior e exterior, espiritual e temporal dos povos; seria a monarchia universal, o despotismo theocratico sonhado pela ambição de Gregorio VII.

Fora necessario estar inteiramente obcecado para não ver que a revolução que de ha muito se ía preparando no seio do catholicismo, que hoje se realisa, e cujo termo tem necessariamente de ser fatal para a igreja ou para a liberdade, se espraia já, onda após onda, entre nós, sem encontrar resistencia da parte dos poderes publicos, e nem sequer a resistencia collectiva do partido liberal, que faz travesseiro para dormir do destino das gerações futuras. Na Allemanha, no paiz da força e da vida moral, da sciencia e da consciencia, as audacias de Roma perturbam e concitam os animos, e o velho catholicismo arma-se para o combate. Nós não pensamos nessas insignificancias: nós elegemos e somos eleitos. Que importa o resto? Loco libertatis esse coepit quod eligi possumus, dizia Tacito dos romanos corrompidos. Os povos, como os individuos, assentam-se indifferentes e serenos no atrio da morte quando lhes chega a quadra fatal do idiotismo senil.

E todavia, a questão é ao mesmo tempo simples e grave.

Tem o governo negado o exequatur aos documentos emanados, a bem dizer, diariamente da chancellaria apostolica, donde resultam alterações no dogma e na disciplina da religião official, ou em que são aggredidos os princípios do actual direito publico português? Tem o governo imposto aos prelados a obrigação de lhe submetterem as suas pastoraes antes de serem publicadas, de modo que quaesquer novidades religiosas ou politicas não sejam propagadas pela auctoridade do alto clero? Tem o governo advertido este de que os pulpitos dos templos fundados pela nação, em eras mais ou menos remotas, protegidos pelas leis, e mantidos á custa do Estado, não podem servir de instrumento para a ruina do mesmo Estado? Se tem feito isto e não tem sido obedecido, o governo é responsavel por não haver coagido os seus funccionarios ecclesiasticos a respeitarem as instituições e as leis do paiz. Se não o tem feito, é réu de traição contra a Carta. Nenhum parlamento impôs essa responsabilidade, é certo; nenhum, provavelmente, a imporá. Sei isso, e sei porquê. Não é, todavia, menos verdade que ha vinte e cinco ou trinta annos o clero está infringindo a Carta, se o artigo 6.° della significa o que o mesmo clero e tanta outra gente pretende que signifique. O bispo, o parocho, o missionario, que propalam doutrinas tendentes a alterar a religião do paiz, ou que offendam o pacto social, tumultuam. Esses homens estão em manifesta rebellião, rebellião, não porque condemnem as instituições em linguagem mais ou menos violenta, o que, se fossem simples cidadãos, constituiria apenas um delicto commum sujeito á apreciação dos tribunaes, mas porque aproveitam a força moral que lhes dá o seu caracter sagrado e a sua condição de funccionarios do Estado para, ao mesmo tempo, inficionarem com extranhos erros a religião de nossos paes, que, immutavel, deve continuar a ser a religião official, e para alluirem pelos fundamentos a monarchia representativa.

É racionalmente possivel semelhante situação? Ha de soffrer-se a anarchia, porque se agita, não nas ruas e campos, mas sob os doceis episcopaes, no pulpito e no confessionario? Fizeram-se os governos para proverem nos grandes perigos sociaes como este, ou para estarem espreitando ás fisgas das portas se algum mancebo mais ou menos imprudente, mas sem pensamento reservado, sem compromissos occultos com conspiradores estrangeiros, expoem as suas opiniões, embora erradas, a uma assembléa pacifica, pouco numerosa, e pouco attenta, provavelmente, á substancia do discurso, mas curiosa da belleza da fórma? Pois a consciencia timorata da policia a escrupulisar de ouvir impiedades e a pôr, para as cohibir, o bengalão do quadrilheiro no logar das fórmulas judiciaes é cousa que se tolere? Quando taes enormidades fossem licitas, não se deveria dar ás exuberancias sinceras da mocidade mais importancia do que tem realmente. Ha verduras da intelligencia, como ha verduras de coração. Nas indoles energicas, nos cerebros vastos é que ellas são maiores. Ha a esperar nessas intelligencias os effeitos do tempo e das cogitações. Da inepcia ou da hypocrisia é que nada ha a esperar. Quando as tempestades moraes, as longas e acres tristezas da existencia e os profundos desenganos do mundo tiverem devastado aquellas almas, não será raro que se vá encontrar o impio dos vinte cinco annos, lá pela tarde da vida, assentado ao pé da cruz, a scismar no futuro e em Deus. Não quer dizer isto que os devotos fervorosos de vinte annos sejam provadamente hypocritas. A convicção religiosa póde ser mais precoce e mais viva neste ou naquelle espirito. Todavia, sempre será bom verem se lhes descobrem debaixo da burjaca piedosamente mal talhada o cabeção de jesuita.

Mas que ha de fazer o governo? Cumprir o seu dever. Compellir o clero official a respeitar as doutrinas da Carta, recusar o beneplacito a tudo que venha de fóra alterar a religião do paiz, a religião como ella era em 1826, e obstar a que os prelados acceitem e promulguem como dogmas erros de fé, como direito a quebra dos canones, como doutrina catholica as blasphemias contra as maximas fundamentaes da sociedade civil. O governo tem arbitrio para conceder ou negar o exequatur ás decisões conciliares ou ás letras apostolicas quando não collidirem com a constituição do reino. As que forem hostis a esta, é obvio que ha de rejeitá-las, combatê-las, annullá-las. Podem em Roma inventar o que quizerem, proclamar o que lhes convier, anathematisar o que lhes parecer. Em Portugal é que nada disso póde ser admittido, se repugnar ás instituições politicas de que forma parte a religião do Estado. Nas proprias resoluções synodaes ou pontificias que não se contraponham á Carta, mas de applicação geral, e que, portanto, hão-de obrigar a generalidade dos cidadãos nas suas relações religiosas, a simples acceitação do governo não basta: é necessaria, para terem vigor e obrigarem, a acceitação do parlamento.

Mas, dir-se-ha, os ministros não são theologos nem canonistas para aquilatar os actos e doutrinas recentes da igreja ou do seu chefe, afferindo-os pelas tradições religiosas do paiz. Oh sancta simplicidade! Os ministros são tudo o que é preciso que sejam para serem ministros. Ninguem os recruta para isso. Mas ainda ao mais insciente ministro, dado que as facções não possam dispensá-los de serem profundamente ignorantes n'estas materias, uma experiencia facil ensinará se o neo-catholicismo é ou não o mesmo que o catholicismo de nossos paes. Se não é, cumpre extirpá-lo das regiões officiaes, porque a manutenção do pacto social o exige. Os reaccionarios que, em nome da Carta, não admittem a minima tolerancia para as divergencias religiosas que por qualquer modo se manifestem, devem, por maioria de razão, ser os primeiros a applaudir a severidade do governo.

E a experiencia é simples. Em encyclicas, em livros, em publicações periodicas, em pareneses de missionarios são apodadas de erros, de blasphemias e de heresias grande parte das doutrinas contidas na Carta. Diante destas aggressões contra os principios liberaes, os ministros podem talvez esquecer que ha tribunaes e juizes. Se faltam ao que, em rigor, é dever seu, eu, pelo menos no foro intimo, estou quasi tentado a perdoar-lhes. A laxidão neste caso confunde-se um tanto com a tolerancia, e a tolerancia nunca se me affigura demasiada. Bom fora que ella désse tambem uma volta pelo Casino. O que me parece de mais é que o governo abandone a defesa moral, aliás tão facil, dos principios que são hoje o fundamento da sociedade civil. O clero official não póde recusar, sem previamente resignar as suas funcções, o ser instrumento do governo nessa modesta e legitima defesa. É obvio que a antiga religião que, pela Carta, continuou a ser a religião do reino era e é perfeitamente accorde com aquelles principios. Sem isso, a Carta não seria só absurda; seria practicamente impossivel. Ou o artigo 6.°, como na praxe se interpreta, matava o resto, ou o resto matava o artigo 6.° As liberdades patrias, os direitos e garantias dos cidadãos, o mechanismo do governo representativo conciliam-se, portanto, com a nossa crença. O pacto social é a consagração de todo esse conjuncto de instituições. A sua coexistencia, a sua harmonia são indispensaveis sob o regimen da Carta.

Quando pois, neste paiz, a malevolencia reaccionaria declara a religião inimiga da sociedade moderna, não se refere á religião de Portugal, e se o seu intuito é referir-se a ella, calumnía e insulta a crença nacional. Nesse caso, cumpre que os bispos, os parochos, em summa, todos os funccionarios ecclesiasticos desaggravem a fé offendida e esclareçam o povo para que o erro não possa transviá-lo. É para servirem a religião que a sociedade lhes confere honras, proventos, exempções, auctoridade; e a unica religião que elles tem de ensinar, servir e defender é a que coexiste e se harmonisa ha perto de meio seculo com as instituições da Carta. É o direito e é o dever do governo compelli-los a que o façam. É necessario exigir delles manifestações positivas, e que os bispos, parochos e professores publicos de theologia declarem falsas e subversivas todas as doutrinas, sejam de quem forem, venham donde vierem, que tenderem a tornar contradictoria a religião do reino com as condições impreteriveis da sociedade actual estatuidas na Carta.

Que o governo exija isto, e espere o resultado.

Outra experiencia.

Em 1826 a theologia, a historia ecclesiastica, os ritos, os canones ensinavam-se na universidade, nos seminarios, nos cursos de estudos das congregações e das ordens monasticas. As dioceses tinham os seus catecismos, pelos quaes os parochos e mestres educavam a infancia na doutrina catholica. Os prelados de então acceitavam esses compendios, expositores e catecismos; ordenavam-nos, até. O ensino, portanto, das sciencias ecclesiasticas e a doutrinação dos fieis eram necessariamente conformes com a religião catholica seguida pelo paiz. Atenhamo-nos, pois, aos catecismos, aos compendios, aos expositores, aos livros, em summa, por onde se ensinaram as sciencia ecclesiasticas e se educou o clero e o povo desde o principio deste seculo até a promulgação da Carta. Declare-se que todas as doutrinas, ou desconhecidas nesses livros, ou contrarias ás que elles encerram, ou a que se dê uma interpretaçao ou um valor differentes dos que se lhes davam então, ou são heterodoxas ou erroneas, quer se refiram ao dogma, quer á moral religiosa, quer á disciplina. Teremos assim a certeza: primeiro, de que continúa a ser religião do reino a que d'antes era; em segundo logar, de que essa é a crença catholica apostolica romana de que fala a Carta. Os bispos eram então, como o foram sempre, os principaes juizes da fé, e os papas os chefes visiveis da igreja pela sua primazia. Pio VI ou Pio VII valiam bem Pio IX. Nunca, porém, nessa epocha Roma lançou sobre nós sequer uma suspeição de heterodoxia, e fossem quaes fossem as divergencias entre a curia romana e a igreja portuguesa ou o governo português em assumptos disciplinares, nunca se proferiu contra nós a accusação de scisma. Estavamos, pois, pelas nossas tradições e doutrinas perfeitamente no seio da igreja. Mantendo exclusivamente o dogma catholico, nem mais, nem menos, como a igreja no-lo ensinou a nós os velhos, e conservando-nos, em relação á disciplina, onde estavamos, estamos indubitavelmente no gremio dessa igreja; porque a religião é immutaveí, a religião não se aperfeiçoa. O criterio supremo do catholicismo está resumido na celebre maxima: Quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est.

Diga o governo isto aos bispos, aos cabidos, ás escholas de theologia e de canones, aos parochos, aos commissarios de estudos, aos mestres primarios. Envolva-se no manto da sua ignorancia. O seu criterio é apenas o do senso-commum. Mantem a religião da Carta, porque lhe não é licito manter outra sem crime, e conscio da propria incompetencia, recorre a um meio seguro de não errar. Imponha o ensino de ha cincoenta ou sessenta annos em materia religiosa, e vigie pelos seus agentes se alguem exorbita das doutrinas de então e se atraiçoa com o ensino oral o ensino escripto. O imperante fará nisto não só o papel de mantenedor da Carta, mas tambem o de bispo externo; fará o mesmo que nos seculos aureos do christianismo faziam os imperadores romanos com applauso dos Padres da primitiva igreja.

O tumulto que ha-de alevantar este procedimento, aliás tão simples e razoavel, sei eu. Verá, meu amigo, o que vai. Verá a reacção a inquietar na jazida com seus furiosos clamores as cinzas dos nossos mais veneraveis prelados dos fins do seculo XVIII e dos principios deste seculo, dos magistrados mais integros, dos professores mais sabios, dos mais abalisados jurisconsultos e theologos, e até a memoria de algumas das congregações religiosas que desappareceram, para os accusar de jansenismo, de gallicanismo, de philosophismo. Verá o que succede ao clero regular que foi, aos benedictinos, aos augustinianos, aos oratorianos. Referindo-me á congregação do Oratorio, não falo do pequeno hereje ruivo, o terrivel padre Pereira de Figueiredo. Esse tem de ha muito recebido o seu quinhão de anathemas maranathas. Tudo pedreiros-livres. Os reaccionarios hão-de provar até a evidencia que o artigo 6.º da Carta não diz o que diz. Quidquid dixeris, argumentabo. Hão-de provar que o verbo continuar significa em rigor ser substituido, substituido o catholicismo da biblia e da tradição, o catholicismo de nossos maiores, pelo neo-catholicismo, com os seus dogmas de nova fabrica e materia velha, com as suas maximas anti-sociaes, com as suas pretensões á restauração do papado como o concebiam Gregorio VII ou Bonifacio VIII, e com a moral asquerosa dos casuistas do padre Lainez substituida á do evangelho de Jesu-Christo.

É uma lucta, pois, que eu aconselho ao poder civil? De certo. Os governos fizeram-se para luctar quando é necessario manter as instituições do paíz. O direito está da sua parte. Se o artigo 6.° da Carta tem a significação e a latitude que se lhe dá, é indispensavel que se dê igual valor e extensão ao § 14.° do artigo 75.° Cumpre que o clero official venha a uma situação definida e precisa. Ou o Syllabus ou a Carta. A questão reduz-se a isto.

Mas a acceitação prestada pela maioria dos bispos ás definições ex cathedra do pontifice? Mas a adopção do Syllabus pelos prelados como norma de doutrina? Mas as decisões do concilio ecumenico do Vaticano? Sem debater as condições que a tradição exige para terem valor as definições pontificias, e se é ou não pueril a moderna distincção ex cathedra e non ex cathedra, inventada para salvar as contradicções dos papas em materias de fé e de costumes: sem indagar se a adhesão dos bispos representa sempre a adhesão das respectivas igrejas; sem finalmente individuar os caracteres que assignalam a ecumenicidade de um concilio, e até onde obrigam as suas resoluções, quando àcerca destas não houve, ao menos, a unanimidade moral; evitando, em summa, questões abstrusas, origem de interminaveis debates, limite-se o governo a exigir o cumprimento rigoroso do respectivo artigo da Carta interpretado pela reacção. Que mais querem? Os neo-catholicos constituidos em dignidade, exercendo funcções publicas, ficam na plena liberdade interior de crerem o que lhes aprouver: nos actos exteriores hão-de ser catholicos de 1826. Supponho que a theoria é esta. Collidem as infallibilidades papaes? Deixá-las collidir. Admittamos que a boa, a de lei, é a de hoje. Os neo-catholicos estão salvos. Vai para o inferno o Estado quando morrer. Manda-o para alli a Carta. Cumprir e fazer respeitar as instituições e as leis é a missão dos ministros; não o é a salvação das almas. Isso pertencia d'antes á igreja, e pertence hoje, por transacção particular, á Companhia de Jesus.

Que ninguem se assuste com a immensa e omnipotente auctoridade de um concilio ecumenico. A primeira condição da sua força é a certeza de sua ecumenicidade e da liberdade das suas decisões; aliás não passaria de um conciliabulo; de um latrocinio d'Epheso, conforme a phrase dos Padres de Calcedonia. Ainda, porém, que se dê tal certeza, nem por isso o poder temporal fica inhibido de negar o seu assenso ás resoluções synodaes. Figurava de ecumenico o concilio de Trento, e todavia a França recusou constantemente acceitá-lo, sem distincção de dogma ou de disciplina. Havia, até, certa affectação nos actos officiaes em chamar assembléa de Trento ao concilio. Foi infructuoso todo o empenho do clero francez em fazer admitti-lo, porque as barreiras que lhe oppunham ora os reis, ora os tribunaes, eram insuperaveis. E nunca a França foi por isso reputada scismatica, nem os reis christianissimos deixaram de ser os filhos primogenitos da igreja. Era simples a explicação da repulsa. Muitas das resoluções disciplinares do concilio repugnavam aos principios e ás leis que a sociedade temporal reputava uteis ou necessarias á sua existencia. Acceitando o concilio, a sociedade feria-se ou suicidava-se. Era contra o direito natural. Á cautela, repellia tudo, porque nas deliberações do concilio nem sempre era facil discriminar o doutrinal do disciplinar. Nenhum perigo havia naquella rejeição absoluta. Se o concilio não fizera senão confirmar a doutrina catholica derivada das suas duas unicas fontes, a Escriptura e a tradição constante e universal da igreja, a França lá seguia essa doutrina desde remotissimos tempos. Se, porém, o concilio inventara novos dogmas, ou alterara em qualquer cousa a antiga crença, deixava de ser concilio, e rejeitando-o in totum, a França separava-se tanto da igreja universal, como se, por um acto solemne, rejeitasse a Confissão de Augsburgo.

Mas—perguntar-me-ha—póde razoavelmente esperar-se que haja um desses governos a que estamos habituados, com energia e vontade sufficientes para emprehender commettimento de tal ordem? Deve fazer-se neste ponto uma distincção essencial. Hoje, sem duvida, do gremio de qualquer das facções que disputam entre si a ponta da corda que vai arrastando para futuro incerto o corpo enfermo do Estado, não devemos esperar que sáia um governo capaz de reduzir o debate entre o liberalismo e a reacção a estes simples termos. Todas ellas dependem, até certo ponto, do cura na questão eleitoral, questão suprema e talvez unica das facções, instincto de vida que é desculpavel. Ora o cura é o servus a mandatis do bispo, como o bispo é o servus a mandatis do papa, ou para falar com mais exacção, do geral da Companhia. Depois, ha aqui, alli, não se sabe bem onde, o jesuita; o jesuita, que se encontra e sente, sem se ver, em toda a parte, desde os paços até a taberna; o jesuita, que veste gentilmente a farda bordada ou a farda lisa, a casaca ou o paletot, a béca, a loba, preta, roxa, encarnada, ou a grosseira jaqueta do operario; o jesuita, que, se cumpre, é mais impio que Voltaire, ou mais fanatico do que Pedro de Arbués e Torquemada; que é absolutista, democrata, socialista, communista, se a ordem de S. Ignacio interessa com isso; que seria, até, liberal, daquelles celebres liberaes do Syllabus, se hypothese tão abominavel fosse admissivel. Ora o jesuita póde vigiar a urna, morigerar a urna, penitenciar a urna. É pois necessario ao homem d'estado (talvez conheça o typo nacional da especie) manter-se em certa altura de tacto politico para não adivinhar o jesuita, para não crer na existencia do jesuita, dessa singular invenção de certos visionarios. Precisa a patria de que a jerarchia ecclesiastica e a congregação não venham, irritadas, oppor o seu voto, a sua preponderancia, ás benevolencias da urna.

Eis porque é impossivel, por emquanto, travar sériamente a lucta em chão firme. Deixe gritar contra a reacção. Puro formulario. Bem como a responsabilidade ministerial, o epitheto de reaccionario não significa nada, na linguagem dos homens d'estado. É um extracto do vocabulario politico, que a facção decahida mette impreterivelmente na algibeira, quando desce das regiões do poder, para apupar e injuriar cá da rua os de outra facção que para lá subiram. De resto, amor e respeito omnimodo e universal á congregação. Se algum dia, porém, a gymnastica das ambições deixar de ser o espectaculo mais divertido destes reinos e passar de moda, ha uma reflexão gravissima a que antes de tudo tem de attender-se. N'um paiz, onde, por ignorancia do clero inferior e má-fé ou desleixo dos prelados, as maiorias incultas crêem nas bruxas, nos feitiços, nas mulheres de virtude, nas almas penadas, na permutação de milagres por ex-votos de cera, e onde, falando geralmente, as minorias intelligentes e instruidas buscam estonteiar-se, supprimir uma voz interior que fala de Deus, com a indifferença ou com o scepticismo, o clero, jesuita ou não-jesuita, ha-de forçosamente exercer certa influencia, que, por mais que elle se desconsidere ou o desconsiderem, não será facil destruir. Para combater essa influencia, quando nociva, a incredulidade superciliosa não é a melhor das armas, porque a incredulidade é a negação de uma tendencia natural do homem, a religiosidade; é o espirito violando-se a si proprio. As multidões não podem ser, não serão nunca incredulas. Onde e quando lhes faltar a boa doutrina, seguirão a má. Nas almas incultas a precisão da crença ha-de sempre satisfazer-se. Por uma lei psychologica, o crer tenaz suppre nellas o crer reflexivo das intelligencias privilegiadas. Não tem arte, nem sciencia para oblitterar em si uma condição humana, o aspirar, com maior ou menor ardor, ao infinito, ao immortal. Se deixardes sair de todo pela porta o catholicismo christão, entrar-vos-ha pela janella o que ainda cá falta do moderno catholicismo do beaterio, com os seus intuitos dissolventes, com as suas extravagancias dogmaticas da immaculidade e da infallibilidade, e com as blasphemias sociaes do Syllabus.

Mas, radicalmente, a questão não é nem com os governos de hoje, nem com os homens de hoje. Na escripturação da primeira entre as companhias commerciaes do mundo, a Companhia de Jesus, nós os velhos, e ainda uma ou duas gerações dos que tem nascido depois de nós, fomos já levados, como perda redonda, como valores incobraveis, ao livro de conta de ganhos e perdas. Do que se tracta sériamente nas especulações da Casa-professa é da infancia; daquelles que hão-de receber as primeiras impressões moraes e religiosas de mães filiadas nas associações de diversos feitios e nomes, sob qualquer das epigraphes da mulher-deus, da mulher redemptora. Decorridos mais alguns annos, os symptomas do mal serão cada vez mais visiveis. Então a imminencia do perigo ha-de coagir os homens novos a tractarem de pôr sérias barreiras a esse immenso lavor subterraneo que tende a converter a Europa, sobretudo a Europa latina, n'uma como vasta copia das Missões do Paraguay. Se, pois, esta carta sair das suas mãos, é aos homens de quinze até vinte e cinco annos, cuja educação o jesuitismo, aninhado entre os affagos maternos, não tenha já viciado, que as precedentes idéas poderão, porventura, aproveitar. Deixo por isso á apreciação de v. s.ª a conveniencia ou inconveniencia absolutas de as tornar conhecidas, bem como a opportunidade ou inopportunidade dellas. Nem ambiciono, nem temo que as minhas opiniões, neste como em qualquer outro assumpto, sejam sabidas. Ao cabo da existencia, os applausos ou as censuras do mundo fazem mediocre impressão em quem está costumado a reflectir. Ou a nossa memoria se desvanece nos longes indecisos do progressivo esquecimento, ou são outros os juizes que hão-de definitivamente sentencear-nos; juizes suspeitos quando julgarem as questões de opinião ou de interesse da sua epocha, imparciaes e incorruptiveis quando julgarem as cousas e os homens do nosso tempo.

[Nota de rodapé 4: Joan. Major, In 3.um Sent. Dist. 37, Quest. 16, apud Launoium, Oper. vol. I, p. 78. É, expressa por outra fórma, a doutrina constante da igreja, tão admiravelmente resumida por Vicente de Lerins: «Christi ecclesia, sedula et cauta depositorum apud se *dogmatum* custos, nihil in iis unquam permutat, nihil *minuit*, nihil *addit*. Commonitorium c. 32.]

[Nota de rodapé 5: Emquanto ecumenico.]

INDICE

PAG.

Advertencia prévia I a XV

A Voz do Propheta, precedida de uma Introducção 1 a 118

Theatro, Moral, Censura 119 a 134

Os Egressos 135 a 154

Da Instituição das Caixas Economicas 155 a 192

As Freiras de Lorvão 193 a 206

Do estado dos Archivos Ecclesiasticos do Reino 207 a 251

A Suppressão das Conferencias do Casino 253 a 297

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Affonso Africano, poema heroico da presa de Arzilla e
  Tanger, por Vasco Mousinho de Quebedo; nova edição;
  8.º, 1844—480 réis.

Os amores de Dido com Enéas, traducção da 4.ª
  Eneida de Virgilio (com o texto latino ao lado), por
  João Nunes de Andrade; 8.°, 1847—240 réis, br.

Bellezas de Coimbra, por Antonio Moniz Barreto Côrte
  Real; 12.º grande, 1831—480 réis, br.

Cantatas de João Baptista Rousseau, traduzidas
  em verso portuguez por Antonio José de Lima Leitão;
  4.°, 1816—240 réis, br.

Caramurú, poema epico do descobrimento da Bahia,
  composto por fr. José de Santa Rita Durão; 2.ª edição;
  8.°, 1836—360 réis.

Carta de guia de casados, para que pelo caminho da
  prudencia se acerte com a casa do descanso, por D. Francisco
  Manuel; nova edição; 8.°, 1853—200 réis, br.

Chronica de Palmeirim de Inglaterra, por Francisco
  de Moraes, a que se ajuntam as mais obras do
  mesmo auctor; 4.°, 3 vol., 1786—2$4OO réis.

Cinco annos de emigração na Inglaterra, na Belgica
  e na França, do brigadeiro Antonio Bernardino
  Pereira do Lago; 8.°, 2 vol., 1834—400 réis, br.

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Ordem, ou construição litteral, palavra por palavra, das primeiras quatro comedias de Terencio, pelo mesmo Leonel da Costa; 8.°, 2 vol, 1790—960 réis.

Eclogas de Virgilio, traduzidas em portuguez em verso
  rimado, com as notas, explicação da fabula e de alguns
  logares escuros, por José Pedro Soares; 8.°, 1800—160
  réis, br.

Elegiada, poema da jornada de Africa, por Luiz Pereira;
  fielmente copiado da edição de Manuel de Lyra,
  anno de 1588, por Bento José de Sousa Farinha; 8.°.
  1785—480 réis.

Erasto, pastoral de Gessner, traduzida do allemão; 8.º,
  1817—120 réis, br.

Escolha de poesias orientaes, traduzidas da versão ingleza de Guilherme Jones, e seguidas de outras varias rimas, por Francisco Manuel de Oliveira; 8.°, 2 vol., 1793-94—400 réis, br.

Eufrosina, comedia de Jorge Ferreira de Vasconcellos; 3.ª edição, fielmente copiada por Bento José de Sousa Farinha; 8.°, 1786—480 réis.

Henriada, poema epico de Voltaire, traduzido em verso, e illustrado com varias notas, por Thomás de Aquino Bello e Freitas; nova edição; 16.°, 2 vol., 1812—480 réis, br.

Henrique IV, poema epico, traduzido do original francez, por ***; 4.°, 1807—480 réis, br.

Historia de Cromwell, conforme com as memorias escriptas d'aquella epocha, e as collecções das notas parlamentares; escripta em francez por mr. Villemain, e traduzida por M. S. da C. Couraça; 8.º grande, 1842—600 réis, br.

Historia dos descobrimentos e conquistas dos portuguezes nas Indias orientaes e occidentaes: traducção do francez pelo capitão Manuel de Sousa; 8.°, 4 vol., 1786—1$920 réis.

Historia de Napoleão, por mr. Norvins; traduzida do
  francez sobre a ultima edição; 8.°, 4 vol., 1846—1$200
  réis.

Historia critica do theatro, e causas da decadencia
  do seu verdadeiro gosto, traduzida do francez por Luiz
  Antonio de Araujo; 8.°, 1779—320 réis, br.

O Hyssope, poema heroi-comico, por António Diniz da
  Cruz e Silva; nova edição, revista, correcta e ampliada
  de notas; 12.º grande, Paris, 1821—600 réis.

Idyllios, e poesias pastoris de Salomão Gessner:
  traduzidos em verso portuguez por Joaquim Franco de
  Araujo Freire Barbosa; 8.°, 1784—200 réis.

Itinerario da India por terra até Aleppo e d'ali à
  ilha de Chipre, por frei Gaspar de S. Bernardino; conforme
  a edição de 1611; 8.° grande, 1842—360 réis, br.

Lisboa reedificada, poema epico de Miguel Mauricio
  Ramalho; 8.°, 1780—300 réis.

Marilia de Dirceo, por T. A. G.; nova edição; 16.°,
  3 partes, 1 vol., 1840—120 réis, br.

A Natureza, poema, por José Agostinho de Macedo;
  8.º, 1846—320 réis, br.

Newton, poema, por José Agostinho de Macedo; 2.ª edição,
  correcta e augmentada; 8.°, 1815—300 réis, br.

Noites clementinas, poema em quatro cantos á morte de Clemente XIV (Ganganelli), trasladado em vulgar por um anonymo; nova edição; 8.°, 1816—320 réis.

Obras de Francisco de Borja Garção Stokler, tomo 1.º (contendo elogios de homens illustres—memoria sobre a originalidade dos descobrimentos maritimos dos portuguezes no seculo xv, etc.); 8.°, 1805—400 réis, br.

Obras ineditas de Duarte Ribeiro de Macedo,
  publicadas por Antonio Lourenço Caminha; 8.°, 1817—400
  réis.

Obras poeticas de Bartholomeu Soares de Lima
  Brandão, abbade de Coronado; 12.º grande, 1794—240
  réis, br.

Obras poeticas de Francisco Dias Gomes, mandadas publicar por ordem da academia real das sciencias de Lisboa, a beneficio da viuva e orphãos do auctor; 4.º 1799—800 réis, br.

Obras poeticas de Nicolau Tolentino de Almeida; nova edição, augmentada com as suas obras posthumas; 16.º, 3 vol., 1828—300 réis, br.

Obras poeticas de Pedro Antonio Correia Garção; nova edição; 8.°, 2 vol. 1826—600 réis, br.

Obras de Virgilio, traduzidas em verso portuguez, e
  annotadas por Antonio José de Lima Leitão; tomo 1.°,
  contendo as Bucolicas e as Georgicas; 8.° grande,
  1818—5OO réis, br.

O Paraiso perdido, epopéa de João Milton, vertida do
  original inglez para verso portuguez por Antonio José
  de Lima Leitão; 8.° grande, 2 vol., 1840—1$200
  réis, br.

Poemas lusitanos do dr. Antonio Ferreira; 3.ª impressão;
  16.°, 2 vol., 1829—320 réis, br.

O porque de todas as cousas, ou endelechia da philosophia natural e moral, problemas de Aristoteles; escriptos no idioma castelhano por frei André Ferrer de Valdecebro e expostos na linguagem portugueza pelo padre Manuel Coelho Rabello; 8.°, 1818—300 réis.

Rimas de João Xavier de Matos; nova edição; 8.°, 3 vol., 1827—1$440 réis.

Rimas varias, Flores do Lima, etc., por Diogo Bernardes e seu irmão Fr. Agostinho da Cruz; 12.°, 3 vol. 1770—600 réis, br.

Do sitio de Lisboa, sua grandeza, povoação e
  commercio, etc., dialogo de Luiz Mendes de Vasconcellos;
  nova edição conforme á de 1608; 8.°, 1786—240
  réis, br.

As Solidões, poema de Cronegk, extrahido e traduzido
  da escolha de poesias allemãs de Huber; e algumas poesias
  portuguezas feitas em 1833 ao Bussaco; 8.°, 1835—160
  réis, br.

Successo do segundo cerco de Diu, estando D. Joham
  Mascarenhas por capitão da fortaleza, em 1546; poema
  de Jeronymo Côrte Real, fielmente copiado da edição
  de 1574 por Bento José de Sousa Farinha; 8.°, 1784—480
  réis.

Tratados de amisade, Paradoxos, e Sonho de
  Scipião, compostos por M. T. Cicero, e traduzidos do
  latim em linguagem portugueza por Duarte de Rezende,
  no anno de 1531; agora reimpressos por Luiz Antonio
  de Azevedo; 8.°, 1790—300 réis.

Ulysippo, comedia de Jorge Ferreira de Vasconcellos
  3.ª edição, fielmente copiada por Bento José de Sousa
  Farinha; 8.°, 1787—480 réis.

A verdade, ou pensamentos philosophicos sobre os objectos
  mais importantes á religião e ao estado, por José
  Agostinho de Macedo; 16.°, 1837—200 réis, br.

Viagem extatica ao templo da sabedoria, poema
  em quatro cantos, por José Agostinho de Macedo; 4.º,
  1830—600 réis, br.

Viagens de Cyro, historia moral e politica, pelo cavalheiro
  de Ramsay, traduzida em portuguez; nova edição;
  12.°, 2 vol., 1817—600 réis.